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NULIDADE DA SENTENÇA
HERANÇA
COMPROPRIEDADE
ARRENDAMENTO
ABUSO DE DIREITO
Sumário
I - Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de excepções não deduzidas na exclusiva disponibilidade das partes, é nula a sentença que o faça. II – Nada obsta, contudo, a que a defesa por excepção possa ser deduzida de forma tácita ou implícita, desde que a respectiva parte alegue os factos integradores do direito que invoca, evidenciando inequivocamente que dele pretende prevalecer-se. III – A partir do momento em que um dos herdeiros se opõe a que o outro herdeiro que tem o uso exclusivo do bem o continue a fazer, esse uso passa-se a considerar ilícito por privar o outro do uso que dele igualmente pretendia fazer, para efeitos do disposto no art.º 1406º, do CC – aplicável por força do disposto no art.º 1404º, do mesmo diploma legal -, e tal acarretará uma obrigação de compensação pela privação do uso. IV – Porém se o herdeiro já ocupava tal bem, antes da abertura da sucessão, com fundamento num direito obrigacional validamente constituído, não basta a oposição dos demais herdeiros para se concluir pela existência de um facto ilícito e, consequentemente, pelo direito a uma indemnização com base na privação do uso. V - Ainda que a questão do abuso de direito seja uma questão que pode ser conhecida oficiosamente, a oficiosidade não pode ir para além dos factos que foram alegados e controvertidos.
Texto Integral
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
I. Relatório AA, por si e na qualidade de cabeça de casal e herdeira da herança aberta por óbito do seu marido BB; e CC e BB, na qualidade de herdeiros da herança aberta por óbito do seu pai BB;
intentaram contra a presente acção declarativa sob a forma comum: DD e marido EE,
pedindo a condenação dos réus:
- a pagar à 1ª autora uma indemnização no montante global de € 12.900,00 e aos 2ª e 3º autores uma indemnização do montante global de € 2.866,66, a título de danos patrimoniais causados pela privação do uso da fracção autónoma identificada na petição inicial, acrescida de juros moratórios legais vincendos, desde a data da sua citação até efectivo pagamento;
- a pagar a cada um dos autores uma indemnização no valor de € 1.000,00, a título de danos morais; e
- a desocupar o referido imóvel ou, a pagar desde a citação da presente acção a título de renda a quantia mensal nunca inferior a € 400,00 pela sua ocupação até à realização da partilha do imóvel.
Para tanto, alegaram, em síntese, que os autores e a ré mulher são herdeiros de BB, falecido a ../../2020; que o acervo patrimonial que compõe a herança indivisa aberta por óbito do falecido BB contempla, para além do mais, metade indivisa de um imóvel destinado à habitação sito na rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., sendo que a outra metade indivisa pertence à 1ª autora (mulher do falecido); o imóvel em apreço é constituído por duas fracções autónomas; que, desde o óbito de BB, a fracção ... (correspondente ao ...) do identificado imóvel encontra-se ocupada pelos réus, sem o consentimento dos autores e sem que os réus paguem qualquer tipo de contrapartida aos restantes herdeiros e proprietários pela sua utilização, não obstante as diversas interpelações escritas e/ou verbais levadas a cabo pelos autores aos réus, desde junho de 2020, para que os mesmos procedam à desocupação do imóvel; que, com a ocupação do imóvel pelos réus, os autores vêm-se coartados da possibilidade de aceder ao mercado de arrendamento, retirando dessa forma os rendimentos e proveitos que o imóvel lhes proporcionaria; que o valor do imóvel em causa no mercado de arrendamento é de montante não inferior a € 400,00/mês; e que, o facto de os autores se verem obrigados a recorrer à presente acção é motivo de incómodo e de vergonha.
Regularmente citados, os réus apresentaram contestação, invocando que os autores são partes ilegítimas para intentar a presente acção desacompanhados da ré mulher (filha do falecido BB); que os autores não são proprietários de qualquer quota-parte ou fracção em concreto sobre o imóvel em causa, não tendo direito a uma indemnização proporcional às quotas-partes de que alegadamente são titulares; que ocupam o imóvel desde julho de 1990, data em que contraíram casamento e que essa ocupação foi devidamente consentida e autorizada quer pelo falecido BB, quer pela 1ª autora; e que, durante alguns anos, os réus pagaram uma “renda”, no montante de € 110,00 mensais, mas desde o ano de 2016 deixaram de pagar qualquer contrapartida aos proprietários do imóvel pela sua ocupação; que estes os dispensaram de fazer qualquer pagamento, mantendo-se, no presente, esse direito dos réus, não obstante o falecimento do autor da herança. Mais impugnaram os prejuízos alegados, tendo reputado o montante de € 400,00, respeitante ao valor do imóvel no mercado de arrendamento, como manifestamente exagerado.
Os autores responderam à excepção de ilegitimidade, pugnando pela sua improcedência, tendo ainda, na sequência do despacho de 25.09.2024, vindo dizer que os réus ocupam o imóvel antes do óbito de BB, tendo iniciado essa utilização através da existência de um contrato de arrendamento verbal, em que pagavam ao falecido BB e à 1ª autora a quantia de € 110,00 a título de renda; que, entretanto, foi acordado entre os réus e a 1ª autora e o falecido BB que temporariamente não pagariam os € 110,00, por forma a que aqueles pudessem reestabelecer as suas vidas; que, depois de a vida dos réus se encontrar mais estável, a 1ª autora e o falecido BB, solicitaram por diversas vezes aos réus que retomassem o pagamento da renda por um valor razoável ao mercado da altura; e que, por diversas vezes, o falecido BB disse à sua esposa, 1ª Autora, e aos seus filhos 2ª e 3º autores, que cabia aos réus o discernimento e livre iniciativa para recomeçar a pagar a renda que era devida.
Foi realizada audiência prévia, na qual se proferiu despacho saneador, onde se afirmou a validade e regularidade da instância, tendo sido julgada improcedente a excepção de ilegitimidade. Foi ainda fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, em termos que não mereceram a reclamação das partes.
Realizada a audiência final, foi prolatada sentença que julgou totalmente improcedente a presente acção.
Inconformados com tal sentença, dela apelaram os autores, tendo concluído as suas alegações de recurso nos seguintes termos:
«1. Substitui-se o tribunal a quo à posição das partes, considerando um título legítimo para a ocupação do imóvel que não alegado pelos mesmos e muito menos a matéria dos autos permitiu concluir nesse sentido, fazendo dessa forma improceder todos os pedidos pelos Recorrentes.
2. Salvo o devido respeito, os Recorrentes consideram que foi incorretamente apreciado pelo tribunal a quo o pedido vertido nos presentes autos fazendo uma errada apreciação da matéria de facto, e acima de tudo uma errada subsunção ao direito materialmente aplicável.
3. Dos articulados carreados para os autos pelos Réus, como seja em sede de contestação jamais foi produzida qualquer alegação/pedido de reconhecimento da existência de um contrato de arrendamento no qual os Réus fossem arrendatários.
4. Competia aos Réus alegar e provar a existência de um título legítimo para a ocupação do imóvel, facto que jamais se afigurou sequer alegado, e muito menos provado.
5. Os Réus apenas sustentaram o título de ocupação de imóvel com base num contrato gratuito (comodato), referindo-se sempre a uma ocupação gratuita e consentida, jamais tendo sido pelos mesmos sustentada a ocupação com base em qualquer contrato de arrendamento.
6. Aliás, os próprios Réus não tinham consciência/animus ou sequer comportamento no sentido de que tal ocupação estava inerente a um contrato de arrendamento.
7. Os Réus sempre reconheceram a ocupação como gratuita.
8. Nos autos além de se verificar que os fundamentos estão em oposição com a decisão, também se conclui pela existência de uma ambiguidade ou obscuridade que torna a decisão ininteligível.
9. Ao abrigo do disposto na alínea c), do n.º1, do artigo 615.º por remissão do artigo 666.º, ambos do CPC, é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
10. Os Réus nunca pediram que lhe fosse reconhecido o direito a um qualquer contrato de arrendamento, não tendo aliás formulado veja-se qualquer pedido reconvencional nos autos em causa, e muito menos alicerçaram a sua defesa na existência de um título legítimo para a ocupação do imóvel que se caracteriza-se num contrato de arrendamento.
11. Nas ações de reivindicação não impende sobre os Autores o ónus da prova da falta de título legítimo para a ocupação da coisa pelos Réus, mas sim cabe aos Réus o ónus da prova de tal título.
12. Como defende Henrique Mesquita, RLJ, ano 125º, 94 e seguintes, “quando o reivindicante atua contra um detentor ilegítimo, não tem de provar a ilegitimidade da detenção: é ao réu que incumbe alegar e provar que detém a coisa com base num título oponível ao proprietário.”
13. Pelo que, também por tal factualidade verifica-se um excesso de pronúncia por parte do Tribunal a quo, uma vez que conheceu de uma questão de que não podia tomar conhecimento, por não ter sido alegado e sequer peticionado pelas partes e também por não ser de conhecimento oficioso, violando, desta forma o princípio do dispositivo, bem como atentos os factos dados como provados não poderia concluir daquela forma.
14. O princípio do dispositivo ou da disponibilidade das partes é um dos princípios basilares relativo à prossecução processual que faz recair sobre as partes o dever de formularem o pedido e de alegarem os factos que lhe servem de fundamento e os factos em que estruturam as exceções – artigo 3.º, n.º1 do CPC e, em coerência com esta regra, o juiz está limitado aos factos alegados pelas partes, não podendo pronunciar-se sobre um conteúdo que, apesar de legalmente previsto, não está abrangido por esse pedido, para mais, estando em causa interesses meramente patrimoniais dos lesados e, por isso, na inteira disponibilidade destes.
15. Ao abrigo da alínea d) do n.º1 do artigo 615.º, por remissão do artigo 666.º, ambos do CPC, é nula a sentença quando o Juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
16. O Tribunal a quo, na sua fundamentação, arbitrariamente assume a ocupação pelos Réus num suposto contrato de arrendamento, mas em boa verdade na sua decisão jamais condenou os Autores no reconhecimento da existência de um contrato de arrendamento, o que aliás jamais poderia acontecer, assim, o facto de não o ter feito reveste uma total ambiguidade e ininteligibilidade da douta sentença.
17. Salvo o devido respeito, independentemente de tudo quanto se pudesse ter alegado, o que jamais aconteceu e muito menos no sentido da configuração daquele título como um arrendamento, apenas e só pela leitura do facto provado n.º 7 é absolutamente inconcebível ou sequer aceitável que possa o tribunal considerar que há um contrato de arrendamento. Tudo isto claramente conjugado com a prova produzida e o sentido da defesa dos Réus nestes autos.
18. A este respeito, com particular importância para o desfecho e apreciação deste recurso atente-se na seguinte alegação dos próprios Réus - artigo 30 da contestação, dizem os Réus o seguinte: “De todo o exposto, resulta que o prédio ocupado pelos RR, desde de 2006, e, consequentemente, à data do falecimento do BB não gerava qualquer rendimento”.
19. É do conhecimento geral, pelo menos segundo se crê, o contrato de arrendamento ainda é, por natureza, um contrato bilateral ou sinalagmático, uma vez que dele nascem obrigações para ambas as partes, estando essas obrigações unidas por um vínculo de reciprocidade ou interdependência (sinalagma), e como tal, um contrato oneroso e não gratuito.
20. Não se poderá entender de outra forma, não sendo concebível e muito menos aceitável, que a partir do momento em que os Réus foram dispensados do pagamento da contrapartida pela ocupação do imóvel, por acordo com a 1.ª Autora e o falecido BB, resultasse a celebração e muito menos manutenção de qualquer contrato de arrendamento, mas sim de um puro e indubitável contrato de comodato, atenta a sua natureza gratuita, a vontade que as partes manifestaram e acima de tudo o animus contraendi com que o fizeram.
21. Por todos os factos dados como provados na douta sentença, outra conclusão não se poderá retirar que não seja a de que a partir do momento em que a 1.ª Autora e falecido BB, “dispensaram o pagamento de qualquer contrapartida pela utilização do imóvel” estavam com os Recorridos a celebrar um autêntico contrato de comodato, este sim um contrato gratuito, contrato esse que os próprios Réus expressamente reconhecem na sua contestação e na diversa documentação junta aos autos.
22. Andou mal o tribunal a quo ao não considerar em face de todos os factos provados que a dispensa de pagamento de qualquer contrapartida conduziu à modificação do título com base no qual os Recorridos permaneceram a habitar o imóvel, transformando-o num negócio exclusivamente gratuito.
23. Sob a hipótese de a douta sentença proferida pretender-se condenar os Autores no reconhecimento da existência do contrato de arrendamento, sempre colocar-se-ia a questão da grosseira violação do Princípio da Liberdade Contratual das partes/autonomia da vontade, consistindo este princípio na liberdade conferida às partes contratantes, de criarem relações jurídicas, de acordo com as suas intenções e necessidades, desde que obedeçam às regras impostas pela lei.
24. O Tribunal a quo quando determina a existência de um contrato de arrendamento entre as partes, está em clara violação da Constituição da República Portuguesa.
25. O acordo que as partes celebraram reveste as notas típicas do contrato de comodato, tal como o artigo 1129.º do Código Civil o define.
26. Tratou-se de um acordo através do qual o falecido BB e a 1.ª Autora permitiram aos Réus a ocupação do imóvel, para que eles se servissem de tal bem de forma gratuita, de favor, a título de caridade, generosidade de pais para filha, ou seja de um verdadeiro contrato de comodato, facto que jamais se poderá conceber que o fosse ad eternum.
27. Resulta também nesta parte um evidente excesso de pronuncia, ou seja, uma violação clara do princípio do dispositivo e ainda do princípio da liberdade contratual e acima de tudo da vontade das partes.
28. Ora, considerar o não pagamento de rendas como remitido tal como considerou o tribunal a quo quando tal não parece resultar de qualquer base factual presente nos autos, pois nada em relação a essa matéria foi sequer alegado pelos Recorridos e muito menos dado como provado nos autos, conduz mais uma vez a um excesso de pronúncia que conduz há nulidade da mesma, o que expressamente se invoca com as devidas e legais consequências.
29. Parece-nos claro que nunca os Recorrentes, na altura a 1.ª Autora e o falecido BB, pretenderam que tal ocupação pelos Recorridos permanecesse de forma gratuita por período indefinido, aliás não é isso que parece resultar da própria natureza do contrato de comodato como nos parece claro resultar da vontade dos Autores e dos próprios Réus que em momento algum, uma vez mais, alegaram ou provaram no sentido de qualquer reconhecimento/existência de direito a um contrato de arrendamento.
30. Como pode o tribunal a quo considerar que tendo por base tão só essa factualidade – veja-se que não pretendiam os Recorrentes manter para sempre a gratuitidade da relação - pretenderam os Recorrentes manter um contrato de arrendamento por mais de uma década e pretenderam ainda remir/perdoar todas as rendas, em favor de uma filha em detrimento dos demais, colocando na esfera jurídica dos Autores um contrato de arrendamento e não considerou, como deveria ter considerado, salvo melhor opinião, que estamos perante um contrato de comodato.
31. Não se afigura credível, do ponto de vista do comum cidadão e do comum declaratório, que a vontade ficcionada das partes fosse manter um contrato de arrendamento sem que pela parte fosse paga qualquer contrapartida pelo uso do imóvel, excluindo toda e qualquer possibilidade de denúncia de um contrato e onde nem sequer se encontram cumpridos os requisitos para existência do mesmo – sinalagma.
32. Nunca e em momento algum os Recorridos alegaram que tinham no dia de hoje um contrato de arrendamento e que por via disso não desocupavam o locado, nem muito menos alegaram que as “rendas” foram remidas.
33. Com a matéria alegada pelos Recorridos jamais se poderia considerar que os próprios encarassem aquela relação no âmbito de um contrato de arrendamento, mas sim no âmbito de um contrato gratuito e que o título legítimo que alegam deter na sua esfera jurídica para ocupação do imóvel foi essa mesma relação jurídica gratuita – como seja um verdadeiro contrato de comodato.
34. Relação essa constituída pelo falecido BB e pela 1.ª Autora e que os Recorridos alegaram deter ainda na sua esfera por força do artigo 2074.º do Código Civil – regulação dos direitos e obrigações dos herdeiros em relação à herança.
35. O falecido BB e a 1.ª Autora, jamais quiseram estabelecer um contrato de arrendamento, pois se assim o fosse não dispensavam o pagamento da contrapartida pela ocupação. O que os pais da 1ª Autora fizeram, tal como milhares e milhares de pais pelo nosso país, quiseram “emprestar”, “permitir o gozo de forma gratuita do imóvel”, “comodatar” o imóvel à sua filha, tudo isto por forma a permitir uma melhor condição de vida à sua filha em face da dificuldade que esta vivenciava.
36. Conduzindo tudo isto, à conclusão de que o contrato de comodato existente há muito que caducou.
37. Isto porque, uma vez que a situação que deu causa para o comodato tinha terminado, estando na esfera dos Réus a obrigação de restituir o imóvel de imediato, por via da caducidade do contrato. Contudo, e não obstante essa linha, é certo também que os Recorrentes exerceram o seu direito de denúncia ad nutum, previsto no artigo 1137.º, n.º 2, com as diversas interpelações no sentido de estes restituírem o imóvel ou então passarem a pagar uma renda pela ocupação do mesmo, e sendo certo que, na medida que os Recorridos não respeitaram e por isso tiveram os Recorrentes de intentaram a presente ação.
38. Por força do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça supra transcrito, considerando-se no mesmo que não é pretensão do comodatário manter a sua generosidade por tempo indefinido, aliás não podendo o comodatário usar de tal prorrogativa, por maioria de razão, muito menos poderá o direito permitir que às custas da gentileza, bondade e generosidade da Recorrente AA e do falecido BB que emprestaram, gratuitamente, o gozo do imóvel por força das dificuldades passadas por estes, ver-se por inerência de um contrato de arrendamento que no caso é gratuito, e assim fazendo e querendo os Recorridos os que bem lhes entende, recusando-se a entregar o imóvel e achar que têm direito a nele permanecer sem qualquer contrapartida conforme aliás alegaram.
39. Caso assim não se entenda, uma vez mais salvo o devido respeito, não andou bem a douta sentença a quo ao desconsiderar os pedidos formulados em sede de inicial, fazendo uma errada subsunção da matéria de facto e prova produzida ao direito materialmente aplicável.
40. Ainda que admitisse o douto tribunal a quo, por hipótese meramente académica, o que não se concebe nem concede, que o título que legitima a ocupação do imóvel referenciado nos autos pelos Réus fosse um contrato de arrendamento, sempre teria de considerar o douto tribunal que os réus atuam em manifesto abuso de direito!
41. Se considerarmos que os Réus ocupam o imóvel ao abrigo de um contrato de arrendamento, são interpelados, uma, duas, três e muitas outras vezes, sempre rejeitaram o pagamento de qualquer contrapartida pela ocupação, se isto não é abuso de direito então claramente os princípios da boa-fé, do bom senso e acima de tudo os princípios da integridade e do cumprimento integral dos contratos estão claramente em crise.
42. Os próprios Réus bem sabem que não existe qualquer contrato de arrendamento sobre o imóvel em apreço, isto é, os Réus sabem muito bem e nesse aspeto saliente-se que o maior princípio norteador da celebração dos contratos é a intenção, o propósito e a vontade que os contratantes manifestaram ou induziram na celebração daquele negócio. Saliente-se os mesmos nunca disseram o contrário.
43. Não restam dúvidas que os Recorridos sempre afastaram por completo a manutenção ou sequer existência de um contrato de arrendamento sobre o imóvel da herança.
44. O que os Réus/Recorridos invocam e alegam é tão só um alegado direito de ocupação gratuita do referido imóvel.
45. Mais ainda, se conclui a douta sentença que existe uma relação de arrendamento e os mesmos Réus manifestam a intenção de não pagar, rejeitando por completo tal premissa, porque razão a Mma. Juiz a quo não condenou os Réus em abuso de direito?
46. Salvo o devido respeito a douta sentença para além de altamente atentatória aos mais basilares princípios constitucionalmente consagrados, belisca a certeza e a segurança jurídica que se lhes incute.
47. Sempre teria o douto tribunal de considerar que face às circunstâncias do caso, os “alegados” titulares do direito, como sejam os Réus excedem manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico do direito.
48. Salvo o devido respeito a douta decisão é absolutamente contraditória, despida de qualquer sentido e muito menos fundamento jurídico que a sustente, sendo certo que a manutenção da mesma será com toda a certeza a abertura de um precedente nunca antes visto nos nossos tribunais, diga-se claramente, violador das mais basilares normas e princípios constitucionais, o que jamais se poderá aceitar.
49. Por tudo o supra exposto, deve a douta ser alterada no sentido vertido nas presentes alegações, fazendo-se a acostumada justiça.».
Contra-alegaram os réus, pugnando pela improcedência total do recurso e pela manutenção integral do julgado e formulando as seguintes conclusões:
“1- Os presentes autos, contrariamente ao alegado pelos AA., não consubstanciam uma acção de reivindicação, pois nesta o A. proprietário terá que peticionar o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.
2- Analisando os pedidos formulados pelos AA. na inicial, constata-se que os mesmos não consubstanciam uma autêntica acção de reivindicação, pelo que todas as considerações feitas no que concerne ao ónus de prova da ocupação legítima ou ilegítima do prédio em causa, bem como relativamente à necessidade de ser peticionada, ou não, a existência de um contrato de arrendamento, são destituídas de qualquer sentido.
3- O facto de a Mma Juíza a quo ter concluído pela existência de um contrato de arrendamento que fundamentava e legitimava a ocupação do móvel por parte dos RR. não extravasa os seus limites na prolação da sentença, não viola o preceituado no artº 608º nº 2 do Código de Processo Civil, nem constitui a nulidade a que se reporta o artº 615º, nº 1, al) d) do mesmo Código.
4- Tal contrato de arrendamento foi alegado pelos RR na sua contestação, tendo sido dado como provado que:
-Para além do período indicado em 6), os Réus ocupam aquele imóvel desde, pelo menos, 1990- facto provado nº 13;
-Tal ocupação foi consentida e autorizada quer pelo falecido BB, quer pela 1.ª Autora- facto provado nº 14.
-Durante alguns anos, os Réus pagavam, como contrapartida pela ocupação do imóvel, ao falecido BB e mulher AA, o montante de € 110,00 mensais, facto provado nº 15;
-Desde data indeterminada, o falecido BB e a Autora AA dispensaram os Réus do pagamento da contrapartida pela ocupação do imóvel- facto provado nº 16.
5- Os próprios AA., no articulado de resposta com a REFª ...01, alegaram aquele contrato de arrendamento e, em consequência de tal alegação, foi dado como provado que:
-Os Réus iniciaram utilização do referido imóvel através da existência de um acordo verbal, em que pagavam ao falecido BB e à 1.ª Autora a quantia de € 110,00 (cento e dez euros), a título de contrapartida pela utilização do imóvel- facto provado nº 19;
-Foi acordado entre os Réus e a 1.ª Autora e o falecido BB de que não pagariam os devidos € 110,00, a título de correspetivo pela utilização do imóvel durante algum tempo, por forma a que os Réus pudessem reestabelecer e reerguer novamente as suas vidas, mas nunca no sentido de eternizar tal isenção do pagamento da renda.- facto provado nº 20.
-Por diversas vezes, o falecido BB disse à sua esposa, 1.ª Autora, e aos seus filhos 2.ª e 3.º Autores, que cabia aos Réus o discernimento e livre iniciativa para recomeçar a pagar a contrapartida pela utilização do imóvel que era devida.- facto provado nº 21.
6- Os próprios AA. no mesmo articulado de resposta alegaram – embora não o tivessem provado- que “a dada altura, e depois de a vida dos Réus se encontrar mais estável, a 1ª Autora, mãe da Ré DD, e o falecido BB solicitaram por diversas vezes aos Réus que retomassem o pagamento da renda por um valor razoável ao mercado da altura e, assim, procedessem à regularização da situação do arrendamento” com aqueles”.
7- Ora, dos factos provados – e não impugnados -, resulta que a existência do contrato de arrendamento foi expressamente referida e alegada por ambas as partes no processo- e houve até, nesta matéria, acordo entre elas.
8- Mas mesmo que assim não se tivesse acontecido, o certo é que, como é consabido, a qualificação jurídica dos factos feitas pelas partes nos articulados não vincula o Tribunal, podendo este qualificá-los de diferente forma, conforme resulta do preceituado no nº 3 do artº 5º do Código de Processo Civil.
9- Os AA/Recorrentes alegaram um putativo excesso de pronúncia da douta sentença recorrida, por ter nela ter sido dado como provado um contrato de arrendamento que, alegadamente, nunca teria sido alegado por qualquer das partes.
10- Ora, são os mesmos AA/Recorrentes que vêm agora, despudoradamente, alegar e defender a existência de um contrato de comodato que JAMAIS foi por eles alegado, sendo certo que JAMAIS foram alegados – e muito menos provados- os factos em que se consubstancia aquele mesmo contrato.
11- O relevante é que, contrariamente ao que se verifica em relação ao contrato de arrendamento, não foram alegados, e muito menos provados, factos que poderiam consubstanciar a existência de um contrato de comodato.
12- O “discernimento e livre iniciativa” que incumbia aos RR. para o reinício do pagamento da renda consubstancia a figura do “arbítrio do devedor” a que se reporta o artº 778º do Código Civil, sendo certo que nos termos do seu nº 2 “quando o prazo for deixado ao arbítrio do devedor, só dos seus herdeiros tem o credor o direito de exigir que satisfação a obrigação”.
13- Os AA/Recorrentes nada dizem àcerca da modalidade em que se consubstancia o alegado abuso do direito, nem fundamentam minimamente tal pedido.
14- O não pagamento da renda durante algum tempo, cujo reinício foi deixado ao “discernimento e livre iniciativa” dos RR. resultou - cfr. factos provados nºs 19, 20 e 21-, de um acordo celebrado entre a 1ª Autora e seu falecido marido e os RR.
15- Os RR., na sua contestação, apenas se limitam a defender a legitimidade da sua ocupação do prédio em causa, pelo que, atentos os factos dados como provados, não se vislumbra onde se possa enquadrar a figura do abuso do direito.
16- Por todo o exposto, bem andou, assim, a Mma Juiza a quo ao julgar procedentes os pedidos formulados pelos AA.”.
Colhidos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
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II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635º, nº 4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º, nº 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do citado diploma legal).
*
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelos recorrentes e a sua precedência lógica, são as seguintes:
a) da nulidade da sentença por oposição entre os fundamentos e a decisão; por ininteligibilidade da decisão e por excesso de pronúncia [art.º 615º, nº 1, als. c) e d), do NCPC];
b) da reapreciação da decisão de direito, importando averiguar:
i. se ocorreu uma errada subsunção dos factos ao direito [mormente, por errada qualificação do(s) acordo(s) celebrado(s) entre os réus e o autor da herança e mulher]; e
ii. se a conduta dos réus consubstancia abuso de direito.
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III. Fundamentação 3.1.Fundamentação de facto
Em primeira instância, a matéria de facto foi fixada nos seguintes termos:
«- Factos provados:
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos: Oriundos da petição inicial: 1) A 1.ª Autora contraiu casamento católico com BB, tendo este falecido a ../../2020. 2) Na escritura de habilitação de herdeiros lavrada no dia 8 de junho de 2022, no Cartório Notarial ..., sito na av. ..., F, freguesia ..., concelho ..., consta que BB deixou a suceder-lhe: o cônjuge (aqui 1.ª Autora), com quem foi casado no regime da comunhão geral de bens, e os filhos (aqui 2.ª e 3.º Autores e Ré DD). 3) BB outorgou testamento escrito, no dia 5 de setembro de 2005, no Cartório Notarial ..., sito na av. ..., F, freguesia ..., concelho ..., onde instituiu a 1.ª Autora como herdeira da sua quota disponível. 4) O prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...04 (da freguesia ...) encontra-se inscrito a favor dos Autores e da Ré DD através da AP. ...82 de 2022/06/23 por dissolução da comunhão conjugal e sucessão hereditária. 5) O prédio id. em 4) é constituído por duas frações autónomas (frações designadas pelas leras “A” e “B”). 6) A fração designada pela letra ... (... andar) do prédio id. em 4) encontra-se ocupada pelos Réus, o que, desde o falecimento de BB, é efetuado sem o consentimento dos Autores. 7) Os Réus não pagam qualquer tipo de contrapartida pela sua utilização. 8) Não obstante as diversas interpelações escritas e/ou verbais levadas a cabo pelos Autores aos Réus, desde junho de 2020, para que os mesmos procedam à desocupação do imóvel, os Réus jamais custearam, desde essa data, qualquer pagamento pela ocupação do imóvel. 9) Os Réus não suportaram o custo associado ao ramal de saneamento, cujo serviço foi totalmente pago pelos Autores em setembro de 2023. 10) Com a ocupação do imóvel pelos Réus, os Autores vêm-se coartados da possibilidade de aceder ao mercado de arrendamento, retirando dessa forma os rendimentos e proveitos que o imóvel lhes proporcionaria. 11) O valor do imóvel em causa no mercado de arrendamento é de montante indeterminado, mas não superior a 400,00 € (quatrocentos euros) por mês. 12) A instauração da ação causa aos Autores incómodo.
Oriundos da contestação: 13) Para além do período indicado em 6), os Réus ocupam aquele imóvel desde, pelo menos, 1990. 14) Tal ocupação foi consentida e autorizada quer pelo falecido BB, quer pela 1.ª Autora. 15) Durante alguns anos, os Réus pagavam, como contrapartida pela ocupação do imóvel, ao falecido BB e mulher AA, o montante de € 110,00 mensais. 16) Desde data indeterminada, o falecido BB e a Autora AA dispensaram os Réus do pagamento da contrapartida pela ocupação do imóvel. 17) À data do falecimento do BB, a fração ocupada pelos Réus não gerava qualquer rendimento. 18) Os Réus pagam metade da despesa relativa ao consumo de água de ambas as frações autónomas que atualmente compõe o edifício referido em 4).
Oriundos do articulado de resposta com a REFª: ...01: 19) Os Réus iniciaram utilização do referido imóvel através da existência de um acordo verbal, em que pagavam ao falecido BB e à 1.ª Autora a quantia de € 110,00 (cento e dez euros), a título de contrapartida pela utilização do imóvel. 20) Foi acordado entre os Réus e a 1.ª Autora e o falecido BB de que não pagariam os devidos € 110,00, a título de correspetivo pela utilização do imóvel durante o tempo algum tempo, por forma a que os Réus pudessem reestabelecer e reerguer novamente as suas vidas, mas nunca no sentido de eternizar tal isenção do pagamento da renda. 21) Por diversas vezes, o falecido BB disse à sua esposa, 1.ª Autora, e aos seus filhos 2.ª e 3.º Autores, que cabia aos Réus o discernimento e livre iniciativa para recomeçar a pagar a contrapartida pela utilização do imóvel que era devida.
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- Factos não provados:
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
Oriundos da petição inicial: a) A propositura da presente ação pelos Autores causa-lhes sentimento de vergonha. Oriundos da contestação: b) O aludido em 16) sucede desde 2016. Oriundos do articulado de resposta com a REFª: ...01: c) A dada altura, e depois de a vida dos Réus se encontrar mais estável, a 1.ª Autora, mãe da Ré DD, e o falecido BB solicitaram por diversas vezes aos Réus que retomassem o pagamento da renda por um valor razoável ao mercado da altura, e, assim, procedessem à regularização da situação do “arrendamento” com aqueles.».
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3.2.Fundamentação de direito
Vieram os autores apresentar recurso, sem que, contudo, tenham reagido contra a matéria de facto fixada em 1ª instância. Acresce que não vislumbramos que a decisão da matéria de facto padeça de qualquer vício que solicite a nossa intervenção oficiosa, pelo que a factualidade a atender é a que consta dos factos dados como provados nos presentes autos.
Assim sendo, e por uma questão de precedência lógica, e como já fomos adiantando, começaremos por analisar da(s) invocada(s) nulidade(s) da sentença.
3.2.1. Da(s) nulidade(s) da sentença
As decisões judiciais podem padecer de vícios com diversas causas, sendo a respectiva consequência também diversa: se existe erro no julgamento dos factos e do direito, a respectiva consequência é a revogação, se foram violadas regras próprias da sua elaboração e estruturação, ou que respeitam ao conteúdo e limites do poder à sombra do qual são decretadas, são nulas nos termos do art.º 615º, do NCPC [de referir que, no caso, não é aplicável o art.º 666º, do NCPC citado pelos recorrentes, pois, a decisão visada não se trata de um acórdão da Relação, mas de uma sentença da 1ª instância].
As causas de nulidade taxativamente enumeradas no aludido art.º 615º não visam o chamado erro de julgamento e nem a injustiça da decisão, ou tão pouco a não conformidade dela com o direito aplicável, sendo coisas distintas, mas muitas vezes confundidas pelas partes, a nulidade da sentença e o erro de julgamento, traduzindo-se este numa apreciação da questão em desconformidade com a lei.
Não deve por isso confundir-se o erro de julgamento e muito menos o inconformismo quanto ao teor da decisão com os vícios que determinam as nulidades em causa.
Com efeito, as causas de nulidade de sentença (ou de outra decisão), conforme lapidarmente se escreve no ac. do STJ de 17.10.2017 (relatado no processo nº 1204/12.9TVLSB.L1.S1 e disponível em www.dgsi.pt) “visam o erro na construção do silogismo judiciário e não o chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, ou a não conformidade dela com o direito aplicável, nada tendo a ver com qualquer de tais vícios a adequação aos princípios jurídicos aplicáveis da fundamentação utilizada para julgar a pretensão formulada: não são razões de fundo as que subjazem aos vícios imputados, sendo coisas distintas a nulidade da sentença e o erro de julgamento, que se traduz numa apreciação da questão em desconformidade com a lei.”.
Isto posto, segundo o ora invocado pelos recorrentes a decisão recorrida incorreu na nulidade prevista no referido art.º 615º, nº 1, al. c), do NCPC, de acordo com o qual é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
Com efeito, a sentença é nula quando, e desde logo, ocorre contradição entre os fundamentos e a decisão (1º segmento do preceito), pelo que se, na fundamentação da sentença, o julgador segue determinada linha de raciocínio apontando para determinada conclusão e, em vez de a tirar, decide em sentido divergente, ocorre tal oposição. Trata-se de um erro lógico-discursivo nos termos do qual o juiz elegeu determinada fundamentação e seguiu um determinado raciocínio mas decide em colisão com tais pressupostos.
Realidade distinta desta é o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou erro na interpretação desta, ou seja, quando – embora mal – o juiz entenda que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação ou dela decorre, o que existe é erro de julgamento e não oposição nos termos aludidos – cfr. Lebre de Freitas, inA Ação Declarativa Comum, 2000, p. 298.
A nulidade em questão ocorre, pois, quando a fundamentação aponta num certo sentido que é contraditório com o que vem a decidir-se e, enquanto vício de natureza processual, não se confunde com o erro de julgamento, que se verifica quando o juiz decide mal ou porque decide contrariamente aos factos apurados ou contra lei que lhe impõe uma solução jurídica diferente.
Por outro lado, tal nulidade poderá ainda ocorrer quando a decisão se mostre ininteligível por ser ambígua ou obscura (2º segmento do normativo), sendo que o vício da ambiguidade ou obscuridade pressupõe inteligibilidade de uma decisão ou resposta, ou seja, que não pode, com segurança, determinar-se o sentido exacto dessa decisão ou resposta, quer porque não se mostra claramente expresso, quer porque contém em si mais do que um sentido.
Feitas estas considerações e voltando ao caso presente, não se vislumbra que a sentença recorrida padeça de qualquer vício lógico, ambiguidade ou obscuridade. O dispositivo da mesma encontra-se em perfeita consonância com a respectiva fundamentação – os pedidos indemnizatórios e de desocupação do imóvel formulados pelos apelantes foram julgados totalmente improcedentes, porquanto o tribunal recorrido considerou que a ocupação do imóvel que vem sendo efectuada pelos réus é lícita, ou seja, vem sendo efectuada ao abrigo de um contrato de arrendamento.
O que ocorre é que os apelantes discordam – infra veremos se com razão – da subsunção dos factos apurados (e saliente-se, não impugnados) às normas jurídicas pertinentes feita pela julgadora. Ora, esta discordância integra, como já salientamos, um eventual erro de julgamento e não uma nulidade.
Termos em que improcede a invocada nulidade.
Os recorrentes vieram ainda arguir a nulidade da sentença recorrida com fundamento no art.º 615º, nº 1, al. d), do NCPC, defendendo que o tribunal a quo considerou existir um título legítimo para a ocupação do imóvel – contrato de arrendamento - apesar de, em sede de contestação, não ter sido produzida qualquer alegação/pedido de reconhecimento da existência de um contrato de arrendamento no qual os réus figurem como arrendatários e tal questão não ser do conhecimento oficioso.
Mais referem em abono da sua posição que numa acção de reivindicação incumbe aos réus alegar e demonstrar a existência de um título legítimo para a ocupação, não cabendo aos autores o ónus da prova da falta de título legítimo.
Concluem, assim, ter o tribunal recorrido incorrido em excesso de pronúncia e violado o princípio do dispositivo.
Vejamos, então.
A nulidade prevista na al. d) do nº 1, do aludido art.º 615º prende-se com a omissão de pronúncia (quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar) ou com o excesso de pronúncia (quando o juiz conheça de questões de que não podia tomar conhecimento).
A nulidade da sentença (por omissão ou excesso de pronúncia) há-de, assim, resultar da violação do dever prescrito no nº 2 do art.º 608º do NCPC do qual resulta que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, e não se pode ocupar senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
A situação ora em referência – excesso de pronúncia - verifica-se, pois, quando o tribunal conhece de questões que não foram invocadas pelas partes e de que não podia conhecer oficiosamente.
Com interesse para o caso que nos ocupa atente-se ao esclarecedor sumário do ac. do STJ de 06.12.2017 (relatado no processo nº 434/14.4TTBRR.L1.S2 e consultável in www.dgsi.pt):
“I. Só existe excesso de pronúncia quando os limites processuais forem ultrapassados com o Juiz a pronunciar-se sobre questão que nenhuma das partes suscitou no processo, excedendo-se, no âmbito da solução do conflito, nos limites por elas pedido e definido, sendo que a nulidade prevista na 2ª parte, da alínea d), do nº 1, do artigo 615º, do CPC, apenas terá lugar se a sentença conheceu de questões que nenhuma das partes submeteu à apreciação do Juiz, dentro dos limites legais. II – O excesso de pronúncia gerador de nulidade refere-se, pois, aos pontos essenciais de facto e de direito que constituem o centro do pedido, quer seja no que respeita ao pedido, quer quanto às excepções suscitadas.”.
Assim, e como referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código Processo Civil Anotado, volume II, p. 737: “Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de excepções não deduzidas na exclusiva disponibilidade das partes (art.º 608-2) é nula a sentença que o faça.”.
Neste conspecto, cumpre ainda referir que, em relação aos factos que constituem excepções peremptórias, o réu encontra-se na mesma posição do autor, competindo-lhe o ónus da sua alegação e, ulteriormente, da sua prova, não podendo as mesmas ser atendidas, pelo tribunal, quando, pelo respectivo interessado, não haja sido formulado pedido expresso ou, pelo menos, implícito, nesse sentido. Quer isto dizer que vigora, nesta matéria, o princípio do pedido, com assento nos art.ºs 3º, nº 1 e 609º, nº 1, do NCPC, que condiciona toda a actividade jurisdicional, não podendo o tribunal estender a sua actividade decisória, para além dele, pois que o processo só se inicia, mediante o impulso das partes que, através do pedido e da defesa, circunscrevem o objecto do processo, e não, por iniciativa do tribunal, o qual não tem que saber se, porventura, à situação das partes conviria melhor outra providência que não a solicitada, ou se esta poderia fundar-se noutra causa de pedir (cfr. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, p. 371 a 373.).
Destarte, cada uma das partes suporta, com resultado do princípio dispositivo, um ónus de afirmação (alegação).
Ao autor cabe a afirmação dos factos que, segundo a norma substantiva aplicável, servem de pressuposto ao efeito jurídico pretendido e ao réu incumbirá, por sua vez, a afirmação dos factos correspondentes à previsão (abstracta) da norma substantiva em que baseia a causa impeditiva, modificativa ou extintiva do efeito pretendido pelo autor, ou seja, em que baseia a excepção invocada.
Tendo isto presente, no caso, importa, pois, e antes de mais, aferir qual foi o efeito jurídico pretendido pelos autores nesta acção.
Com efeito, ao contrário do que parecem entender os recorrentes, a presente acção não foi configurada, na petição inicial, como uma acção de reivindicação, prevista no art.º 1311º, do CC, nem sequer como uma acção de petição de herança, a que alude o art.º 2075º, do mesmo compêndio legal.
Perscrutando a petição inicial, facilmente se conclui que os autores não invocam propriamente a propriedade da fracção autónoma ocupada pelos réus, nem formulam os pedidos típicos de uma acção de reivindicação (ou sequer de uma acção de petição de herança).
O que resulta da petição inicial é que a 1ª autora, na qualidade de cônjuge meeira e na qualidade herdeira, e os restantes autores, na qualidade de herdeiros, possuem apenas um direito à meação e/ou um direito à herança ainda não partilhada e a cujo acervo pertence a fracção autónoma ocupada pelos réus.
Direito à herança este que igualmente reconhecem à ré mulher, por ser filha do autor da sucessão.
E, por isso, mesmo terminam o seu articulado inicial, formulando, em primeira linha, um pedido indemnizatório contra os réus com fundamento na privação de uso e argumentando que estes, após o óbito de BB, ocupam a dita fracção autónoma sem o consentimento dos restantes herdeiros e da cônjuge meeira e sem pagarem qualquer contrapartida pela utilização exclusiva daquele bem imóvel, impedindo-os de colocar tal bem no mercado de arrendamento e dessa forma de obter os rendimentos e proveitos que o imóvel lhes proporcionaria.
É certo que os autores também pedem a desocupação do imóvel, mas fazem-no apenas e tão só em alternativa ao pagamento de uma contrapartida monetária (correspondente ao rendimento que seria possível obter, caso a fracção autónoma estivesse arrendada).
Estamos, pois, perante a invocação de uma situação de uso de um bem que integra o património conjugal e o património de uma herança – patrimónios esses que ainda não foram sujeitos a partilha -, por um dos herdeiros, em proveito próprio, alegadamente geradora da obrigação de indemnizar os restantes herdeiros e cônjuge meeira.
Em suma, os autores baseiam essencialmente a sua pretensão na responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, prevista no art.º 483º e seguintes do CC.
São os próprios autores que o afirmam de forma expressa nos artigos 45º e 46º, da petição inicial [“45. Estão preenchidos os requisitos da obrigação de indemnizar nos termos da responsabilidade civil por facto ilícito, incorrendo os Réus no dever de indemnizar os Autores. 46. Fundamenta-se a presente ação, além dos demais, no disposto nos artigos 483º, 562º, 564º, 566º e 2086º e seguintes do Código Civil.”].
Assim, e muito embora não o digam expressamente, não podemos deixar de concluir que os autores sustentam a sua pretensão na tese seguida por grande parte da jurisprudência, segundo a qual, a partir do momento em que um dos herdeiros se opõe a que o outro herdeiro que tem o uso exclusivo do bem o continue a fazer, esse uso se passa a considerar ilícito por privar o outro do uso que dele igualmente pretendia fazer, para efeitos do disposto no art.º 1406º, do CC – aplicável por força do disposto no art.º 1404º, do mesmo diploma legal -, e que tal acarretará uma obrigação de compensação pela privação do uso (vide, ac. do STJ de 21.04.2022, relatado no processo nº 2691/16.1T8CSC.L1.S1 e acessível in www.dgsi.pt).
Nestes termos, era aos autores que incumbia alegar e demonstrar, para além do mais, como pressuposto fundamental da responsabilidade civil extracontratual invocada, os factos susceptíveis de revelar a ilicitude da ocupação da fracção autónoma em causa pelos réus (cfr. art.º 342º, nº 1, do CC).
De todo o modo, nada impedia os réus de alegar factualidade susceptível de afastar, na sua óptica, os pressupostos de tal responsabilidade civil. E foi o que fizeram, tendo vindo afirmar que iniciaram a ocupação da fracção em causa em data muito anterior ao óbito de BB, por acordo com os proprietários, e mediante o pagamento de uma contrapartida monetária, e que, entretanto, deixaram de proceder ao pagamento da renda porquanto os ditos proprietários os dispensaram de tal obrigação e que a relação jurídica assim constituída se manteve após o óbito, por força do disposto no art.º 2074º do CC que regula os direitos e obrigações dos herdeiros em relação à herança, não tendo os autores direito a qualquer compensação.
Assim, e muito embora, os réus (no respectivo articulado) não tenham afirmado expressamente que ocupam a propalada fracção autónoma ao abrigo de um contrato de arrendamento, não podemos concordar com os apelantes quando afirmam que em momento algum invocaram factos susceptíveis de integrar tal realidade.
Acresce que, cumprido o contraditório, quanto aos factos assim alegados na contestação, os autores não só não os refutaram (tendo-os confirmado), como ainda os reforçaram e complementaram, explicando que o contrato de arrendamento assumiu a forma verbal e que a dispensa de pagamento da renda foi concedida apenas temporariamente.
Ora, de acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal (cfr. acs. de 27.04.2005, processo nº 05B810, e de 6.12.2012, processo nº 469/11, ambos disponíveis in www.dgsi.pt), nada obsta a que a defesa por excepção possa ser deduzida de forma tácita ou implícita, desde que a respectiva parte alegue os factos integradores do direito que invoca, evidenciando inequivocamente que dele pretende prevalecer-se.
No mesmo sentido, podemos ver ainda o ac. da RC de 5.05.2020, relatado no processo nº 167/18.1T8OFR-A.C1 e também disponível in www.dgsi.pt.
Por outro lado, e não obstante, a matéria de excepção deva ser separadamente alegada na contestação de acordo com o disposto no art.º 572º, al. c), in fine, do NCPC, tal não significa que apenas ganhe essa qualificação a alegação que seja acompanhada da qualificação jurídica apropriada, relevando, isso sim, a alegação dos factos correspondentes, desde que suficientemente explícitos no sentido de ser possível extrair deles o efeito impeditivo, modificativo ou extintivo que emerge dos preceitos de direito material aplicáveis, o que já contende com o princípio da livre qualificação jurídica pelo tribunal, previsto no art.º 5º, nº 3, do NCPC (vide, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2ª ed, p. 659).
E, assim sendo, no caso, nada impedia, antes obrigava o tribunal recorrido a apreciar e decidir a matéria de excepção em causa – relativo ao acordo/negócio que permite que os réus ocupem o bem imóvel em questão -, e com base nos contributos trazidos aos autos por ambas as partes, tanto mais que foi expressamente acautelado o exercício do contraditório relativamente à matéria de facto invocada pelos réus contestantes e os autores, tendo tido oportunidade de sobre a mesma se pronunciar, acabaram por a confirmar, pelo menos, na sua essência.
Ante todo o exposto, necessário é concluir ser manifesto que a sentença recorrida não padece de qualquer excesso de pronúncia.
Pelo que improcede, igualmente, neste segmento o recurso interposto.
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3.2.2. Reapreciação da decisão de mérito da acção
Conforme decorre do acima exposto, os autores vieram ainda insurgir-se contra a decisão recorrida, invocando que o tribunal incorreu em errónea subsunção dos factos ao direito.
Mas sem razão, adianta-se.
Como já vimos, os recorrentes e autores da presente acção, na qualidade de cônjuge meeira e herdeiros da herança aberta por morte de BB, invocando que, após o óbito deste, os réus – sendo que a ré mulher é também herdeira - ocupam sem o seu consentimento um imóvel que integra a meação e o acervo hereditário sem pagarem qualquer contrapartida e impedindo os demais herdeiros de o utilizarem, vieram pedir o pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais e a desocupação do referido imóvel ou o pagamento de uma compensação pela dita utilização até à partilha.
A pretensão dos autores convoca, pois, que abordemos a questão da regulação do uso das coisas que integram a herança (e o património do casal dissolvido pelo óbito) ainda não partilhada.
Com efeito, com a morte do autor da sucessão e a consequente abertura desta, coloca-se a questão da utilização das coisas que integram a herança até ao momento em que o direito de propriedade (ou outro direito real de gozo que não se extinga por efeito da morte do titular) sobre cada uma delas ingresse, por efeito da partilha, no património de cada um dos herdeiros.
Assim, e apesar de a comunhão hereditária decorrente de uma herança indivisa não se traduzir numa compropriedade, não tendo os herdeiros direito de propriedade relativamente a cada um dos bens que integram a herança, mas apenas um determinado quinhão sobre todo o património que a constitui, cremos ser jurisprudência consolidada que as disposições da compropriedade poderão ser aplicadas, com as devidas adaptações, às situações não especificamente reguladas pelas regras sucessórias, como tem sido prática corrente no caso específico do uso exclusivo por um dos herdeiros de bens de uma herança por partilhar, de que é exemplo, entre muitos outros, o ac. do STJ de 21.04.2022 já supra citado.
Deste modo, na ausência de regulamentação específica sobre o uso, pelos co-herdeiros, das coisas que integram a herança, temos que atender ao art.º 1404º, do CC que manda aplicar as regras da compropriedade, com as necessárias adaptações, à comunhão de quaisquer outros direitos, sem prejuízo do disposto especialmente para cada um deles.
Sendo assim, não divisamos qualquer obstáculo à aplicabilidade o regime do art.º 1406º, nº 1, CC à comunhão hereditária.
Com efeito, a redacção desta norma é a seguinte: «Na falta de acordo sobre o uso da coisa comum, a qualquer dos comproprietários é lícito servir-se dela, contanto que a não empregue para fim diferente daquele a que a coisa se destina e não prive os outros consortes do uso a que igualmente têm direito».
Se houver acordo entre os herdeiros, valerá esse acordo. Na falta dele, qualquer dos co-herdeiros terá o direito de usar as coisas que integram a comunhão hereditária, desde que respeite o fim a que cada uma delas se destina e não prive os restantes co-herdeiros da possibilidade de fazerem o mesmo.
A circunstância de os co-herdeiros não serem titulares de quotas sobre cada um dos bens que constituem a herança, mas apenas sobre a globalidade desta e para valerem no momento da partilha, é, para este efeito, irrelevante.
Daí que, quer os recorrentes, quer a recorrida mulher, na qualidade de herdeiros, a partir da abertura da sucessão, sejam titulares de um direito a usar a fracção autónoma dos autos, direito esse decorrente da sua qualidade de herdeiros, até à partilha.
Deste modo, impõe-se desde já realçar que o pedido de desocupação formulado pelos aqui apelantes sempre careceria de fundamento legal - sendo certo que os autores nem sequer o identificaram - pois não basta para o efeito que se tenham oposto ao uso exclusivo por parte dos réus e inclusivamente lhes tenham comunicado tal oposição.
Com efeito, uma vez que todos os herdeiros são titulares de igual direito de uso, mesmo nas situações em que não seja possível conciliar esses os vários direitos de uso - como será o caso de um imóvel destinado a habitação, em que dificilmente será compaginável a coabitação de mais do que uma família em simultâneo - e, em consequência, o uso exclusivo por um dos herdeiros seja considerado ilícito, tal não implica que se ordene a desocupação do imóvel. Tal oposição apenas confere o direito a uma compensação ao herdeiro (ou herdeiros) que também pretenda(m) fazer dele o mesmo uso (cfr. o recentíssimo ac. da RP de 29.04.2025, proferido no processo nº 3736/23.4T8MAI.P1).
Passando então agora à pretensão indemnizatória formulada pelos recorrentes, fundando-se a mesma em responsabilidade civil aquiliana, cumpre verificar se estão preenchidos os pressupostos desta, estabelecidos no art.º 483º, nº 1, do NCPC.
Desde logo, importa verificar se se verifica o primeiro pressuposto de tal responsabilidade: a prática de um acto ilícito, por violação de um direito alheio.
Para tanto, alegaram os recorrentes no articulado inicial, como já vimos, que os recorridos residem numa fracção autónoma que integra o acervo hereditário, desde a data da abertura da sucessão, sem o consentimento dos recorrentes e sem pagarem qualquer contrapartida, privando-os de utilizar a fracção e de a arrendar.
Todavia, resultou demonstrado que, desde data muito anterior à data do óbito do autor de sucessão, os réus ocupam a aludida fracção; que tal ocupação foi consentida e autorizada quer pelo falecido BB, quer pela 1ª autora; que os réus iniciaram utilização do referido imóvel através da existência de um acordo verbal, em que pagavam ao falecido BB e à 1ª autora a quantia de € 110,00, a título de contrapartida pela utilização do imóvel; que foi acordado entre os réus e a 1ª autora e o falecido BB de que não pagariam os devidos € 110,00, a título de correspectivo pela utilização do imóvel durante algum tempo, por forma a que os Réus pudessem reestabelecer e reerguer novamente as suas vidas, mas nunca no sentido de eternizar tal isenção do pagamento da renda e ainda que, por diversas vezes, o falecido BB disse aos autores, que cabia aos réus o discernimento e livre iniciativa para recomeçar a pagar a contrapartida pela utilização do imóvel que era devida.
Perante esta factualidade, concluiu o tribunal a quo que os réus ocupam o imóvel ao abrigo de um contrato de arrendamento celebrado com a 1ª autora e o falecido marido.
Insurgem-se os recorrentes contra a decisão recorrida neste ponto, dizendo que os factos não permitem concluir pela existência de um contrato de arrendamento, vindo defender que, ao invés, o tribunal recorrido deveria ter considerado que estamos perante um contrato de comodato – uma vez que os réus ocupam a fracção sem pagar qualquer contrapartida - e que este já caducou, estando os réus obrigados a restituir o imóvel de imediato.
Não obstante a questão assim configurada ser nova [apenas em sede de recurso vieram os autores invocar o direito à restituição do imóvel com base na caducidade de um suposto contrato de comodato, como salientam os recorridos nas suas contra-alegações], sempre diremos o seguinte:
O contrato de comodato é caracterizado como o “contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir” (cfr. art.º 1129º, do CC).
Ou seja, tal negócio pressupõe a entrega da coisa a outrem de forma gratuita.
Ora, da factualidade dada como provada, consta que a 1ª autora e o falecido marido cederam o gozo aos réus da aludida fracção autónoma, mediante o pagamento do valor mensal de € 110,00.
Ou seja, é por demais evidente que, o gozo do imóvel não foi cedido aos réus a título gratuito.
E, assim sendo, verificam-se todos os pressupostos de que nos termos do art.º 1022º, do CC, com referência ao art.º 1023º, do mesmo código depende a qualificação do contrato em causa como de locação, com deveres e direitos inerentes a cada um dos contraentes. Para o senhorio a obrigação de proporcionar o gozo temporário de uma coisa, que entrega ao locatário e para o arrendatário a obrigação principal que se traduz no pagamento da renda, dado tratar-se de um contrato oneroso.
Depois e, salvo o devido respeito, não se pode concluir que o negócio em causa perdeu o seu carácter oneroso e se converteu num contrato de comodato pelo facto de os réus terem sido dispensados temporariamente do pagamento das rendas.
Os factos não revelam que a vontade das partes foi a de celebrar ou converter o contrato de arrendamento num contrato gratuito. Muito pelo contrário. Na verdade, foram os próprios recorrentes que alegaram – e tal resultou demonstrado - que a 1ª autora e o falecido marido não tiveram a intenção, ao dispensar os réus do pagamento das rendas, que tal se convertesse numa isenção de pagamento definitiva, embora o falecido marido tivesse deixado ao arbítrio dos réus a iniciativa de recomeçarem a pagar a renda contratualizada.
Nada temos, pois, a apontar ou acrescentar à bem fundamentada decisão da 1ª instância no que a este particular concerne.
Por conseguinte, lograram os réus demonstrar a existência de um direito obrigacional que lhes permite e faculta o gozo da fracção em causa, independentemente do direito ao uso a que a ré mulher sempre teria direito, por força da sua qualidade de herdeira.
Concomitantemente, não ficou demonstrado ser a ocupação da fracção pelos réus ilícita e lesiva dos direitos dos autores, mormente, para efeitos do disposto no art.º 1406º, do CC.
E, assim sendo, não resultam preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos invocada pelos apelantes.
Ou seja, não se podendo considerar ilícita a utilização que os apelados continuam a fazer do imóvel em apreço, a mera oposição manifestada pelos aqui recorrentes não constitui fundamento suficiente para a procedência das pretensões indemnizatórias formuladas nestes autos.
Defendem, contudo, os recorrentes ocorrer abuso de direito, consagrado no art.º 334º do CC.
Face ao supra exposto, desde já se pode concluir que não assiste qualquer razão aos recorrentes neste particular, mas perante a sua posição e argumentação, impõe-se abordar o referido instituto jurídico do abuso de direito, tanto mais que é do conhecimento oficioso.
Diga-se, porém, que ainda que a questão do abuso de direito seja uma questão que pode e deve ser conhecida oficiosamente, a oficiosidade não pode ir para além dos factos que foram alegados e controvertidos. Veja-se, neste sentido, o ac. desta Relação de Guimarães, de 9.06.2020, relatado no processo nº 1429/14.2T8CHV-A.G1 e o ac. da RC de 7.02.2023, relatado no processo nº 3311/21.8T8LRA.C1, ambos acessíveis in www.dgsi.pt.
Tendo isto presente, dispõe o art.º 334º do CC que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
Verifica-se, pois, “abuso sempre que o exercício de um direito se mostre em desconformidade com a teleologia desse mesmo direito, com o seu fundamento.(…) Pelo que se pode dizer que o exercício de um direito é abusivo quando choque com os princípios normativos do direito enquanto direito” (cfr. Mafalda Miranda Barbosa, Liberdade vs. Responsabilidade - A precaução como fundamento da responsabilidade delitual?, Almedina, 2006, p. 322).
Ora, no caso dos autos, tendo a aludida excepção sido apenas invocada em sede de recurso, da matéria de facto que a 1ª instância considerou provada não se retira que os recorridos tenham incorrido em abuso de direito.
Com efeito, o enquadramento alegado pelos apelantes para a invocação que fazem do abuso de direito, não encontra suficiente eco na matéria de facto provada. Não se mostra demonstrado qualquer factualidade que o suporte. Designadamente, não resultou provado que os réus não pagam qualquer renda há mais de uma década, que a sua situação económica se tenha restabelecido e que tenham sido insistentemente interpelados pela 1ª autora e pelo falecido marido para procederem ao pagamento das rendas em falta e se tenham recusado a tal.
Ademais, e como se também se afirma e bem na decisão recorrida, não cuida apurar e decidir, nesta sede, do (in)cumprimento do contrato de arrendamento, pois tal não faz parte do objecto do processo. Isso sim implicaria a violação dos mais básicos princípios que enformam o processo civil e a certeza e a segurança jurídica.
Assim, não redunda da factualidade apurada qualquer indício que tenha sido violado, muito menos, de forma manifesta e flagrante o principio da boa fé e um exercício do direito pelos réus contrário ao fim económico e social dos direitos de que são titulares.
Ou seja, é indiscutível não se poder concluir que os réus agem em abuso de direito, naufragando o recurso também nesta parte.
Resta dizer que não se vislumbra que os termos em que a sentença recorrida foi proferida sejam atentatórios de qualquer princípio de direito constitucional ou sequer que o ali decidido impeça os autores de fazer valer os seus direitos relativamente ao imóvel em questão, como estes parecem fazer crer.
Com efeito e salvo melhor opinião, a situação em análise poderá e deverá ser dirimida, quanto mais não seja, em sede de processo de inventário, no âmbito do qual se definirá o destino de tal bem pertencente à herança (e ao património conjugal) que neste momento permanece indivisa.
Termos, pois, em que, por todo o exposto, se decide julgar totalmente improcedente a apelação, devendo manter-se a decisão recorrida, porquanto, diversamente do alegado pelos recorrentes, a mesma respeita as disposições legais aplicáveis.
E, assim sendo, as custas do presente recurso, são da inteira responsabilidade dos recorrentes (art.º 527º, nºs 1 e 2 do NCPC).
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SUMÁRIO (art.º 663º, nº 7 do NCPC):
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IV. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo-se a sentença recorrida.
Custas do recurso a cargo dos recorrentes.
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Guimarães, 11.06.2025 Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária
Juíza Desembargadora Relatora: Dra Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
1º Adjunto: Juiz Desembargador: Dr. Alcides Rodrigues
2º Adjunto: Juiz Desembargador: Dr. António Beça Pereira