REALIZAÇÃO DE TRABALHO SUPLEMENTAR
ÓNUS DA PROVA
RECUSA DE COLABORAÇÃO
INVERSÃO DO ÓNUS DA PROVA
Sumário

I – Para efeitos de aplicação do disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPC, impõe-se a notificação expressa da parte no sentido da possibilidade da inversão do ónus da prova.
II – É sobre o Autor que impende o ónus de provar as horas de formação que não lhe foram concedidas por se tratar de facto constitutivo do direito que invoca (n.º 1 do artigo 342.º do CC).
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam[1] na Secção Social (6ª secção) do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório

AA, residente em ...,

intentou a presente ação de processo comum contra:

A..., Lda., com sede em ...,

           

alegando, para tanto, que trabalhou para a Ré desde 12/08/2017 até 31/12/2022, data em que denunciou o contrato de trabalho; apenas descansava dois dias por mês mas nunca viu nos recibos o valor correspondente a trabalho suplementar e noturno; acredita ter prestado 150 horas extraordinárias por ano, o que perfaz a quantia de pelo menos € 3.675,00, nunca tendo sido remunerado; encontram-se em dívida os valores correspondentes ao trabalho suplementar prestado em dias de descanso, estando em falta seis dias por mês durante os 5 anos e 3 meses em que vigorou a relação laboral, o que perfaz € 2.587,20 anuais e a Ré nunca lhe assegurou formação, encontrando-se em dívida o valor de € 980,00.

Termina formulando o seguinte pedido:

“Termos em que, e nos demais de Direito, deve a presente acção ser julgada procedente por provada, e, consequentemente:

a) Ser ordenada a citação urgente da R para contestar, nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 561.º do Código do Processo Civil.

b) A R condenada a reconhecer que ao longo da relação laboral o A prestou trabalho extraordinário em dias de descanso e que nunca lhe foi pago ou dado descanso compensatório, condenando-a consequentemente ao pagamento da quantia de 13.641,60€.

c) A R reconhecer que não foi paga ao A a quantia referente a trabalho suplementar prestado diariamente em montante a apurar aquando da entrega das folhas de ponto que se encontram, na posse da R, em valor nunca inferior 3.675€

d) A R condenada a reconhecer que durante toda a relação Laboral não assegurou ao A. o direito à formação contínua previsto no Art. 131º n.º 2 do CT encontrando-se em dívida o valor de €980,00.

e) Relativamente a estes valores que o A não consegue por ora quantificar, deverão ser apurados depois de juntos aos autos os registos de tempo de trabalho, do período compreendido entre 12.08.2018 e 31.12.2022.

f) Estes valores devem ser acrescidos de juros vencidos e vincendos à taxa legal em vigor, contados desde o fim do contrato de trabalho, ou seja, 31.12.2022.”

*

A Ré contestou alegando, em síntese, que:

O A. trabalhava 40 horas semanais de segunda feira a sábado, folgando ao domingo, não lhe sendo devida a quantia peticionada; assegurou ao A. a formação contínua a que estava obrigada não lhe sendo devida, a este título, qualquer quantia.

Termina dizendo que “deve a presente ação ser julgada improcedente e não provada, com todas as demais consequências legais”.

                                                                       *

Foi proferido o despacho saneador de fls. 21 e segs. e foi indicado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

                                                           *                                            

Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento.

                                                           *

De seguida, foi proferida a sentença de fls. 41 e segs., cujo dispositivo tem o seguinte teor:

Pelo exposto, julgo a ação totalmente improcedente e, em conformidade, absolvo a ré do pedido.”

                                                           *                                                        

O Autor, notificado desta sentença, veio interpor o presente recurso que concluiu da forma seguinte:

(…).

                                                           *

A Ré não apresentou resposta.

                                                           *

O Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu o douto parecer de fls. 72 e segs., no sentido “de que ao recurso deverá ser negado provimento, confirmando-se a sentença recorrida.”

                                                             *

Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

                                                             *

II – Questões a decidir

Como é sabido, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitadas pelas conclusões da alegação do recorrente (art.º 639.º do C.P.C.), com exceção das questões de conhecimento oficioso.

Cumpre, então, apreciar as questões suscitadas pelo recorrente, quais sejam:

1ª – Reapreciação da matéria de facto (inversão do ónus da prova).

2ª – Se a Ré devia ter sido condenada no pedido formulado pelo Autor.

                                                             *

III – Fundamentação

a) - Factos provados e não provados constantes da sentença recorrida:

1. A Ré é uma sociedade comercial que se dedica à atividade de panificação e distribuição [art1pi].

2. O A. trabalhou para a Ré desde 12.08.2017 até 31.12.2022, data em que o A. por iniciativa própria cessou, por denúncia, o seu contrato de trabalho [art2pi].

3. A sua hora de entrada era às 2h30 [art7pi].

4. O período normal de trabalho semanal era de 40 horas, distribuídas de segunda feira a sábado [art8contestação].

5. Sendo o dia de folga do Autor ao domingo [art11contestação].

FACTOS NÃO PROVADOS

3. Durante toda a relação laboral o A apenas descansava 2 dias por mês, correspondendo a 2 domingos.

8. o A prestou 150 horas extraordinárias por ano.

9. por diversos dias entrou antes da sua hora de entrada e trabalhou mais que 8 h/diárias.

3. (repetido) o A apenas gozou dois dias de descanso por mês.

7. (repetido) A R., no que refere à totalidade dos anos em que vigorou a relação laboral, nunca assegurou ao A. o direito à formação contínua.

10. (repetido) não foram pagas ao A quaisquer quantias referentes ao banco de horas, quer por via do trabalho prestado em dia de descanso, quer por via do trabalho suplementar diário.

                                                             *

b) - Discussão

1ª questão

Reapreciação da matéria de facto (inversão do ónus da prova).

Conforme resulta do disposto no artigo 640.º, do C.P.C.:

<<1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 . No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; (…)>>.

Acresce que, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação nos casos previstos no artigo 662.º, do CPC.

Lidas as alegações e respetivas conclusões, constatamos que o A. recorrente não procedeu, desde logo, nas conclusões, à indicação dos concretos pontos da matéria de facto que considera incorretamente julgados.

Ora, <<a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão sobre a matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:

a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;

b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;

c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);

 (…)

Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da auto-responsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo>>[2].

Conforme se decidiu no acórdão do STJ, de 01/10/2015:

<<I – No recurso de apelação em que seja impugnada a decisão da matéria de facto é exigido ao recorrente que concretize os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especifique os concretos meios probatórios que imponham uma decisão diversa, relativamente a esses factos, e enuncie a decisão alternativa que propõe. (…).>>[3]

Posto isto, dúvidas não existem de que o A. recorrente não cumpriu o ónus que sobre si impendia pois não especificou nas conclusões os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e, consequentemente, este tribunal não pode proceder à reapreciação da matéria de facto impondo-se, por isso, nesta parte, a rejeição do presente recurso.

                                                             *

Mais alega o recorrente que:

- Para fazer prova de tais tempos de trabalho suplementar, pois trabalhava cerca de 8h diárias de segunda a sábado e dois domingos por mês, requereu por não dispor dos mesmos que a Ré juntasse aos autos o registo do tempo de trabalho do A.

- A Ré foi notificada nos termos do artigo 417.º e segs. do CPC.

- Em resposta a tal solicitação vem apenas dizer que eliminou os registos um ano após o A. ter cessado o contrato laboral.

- Nenhuma justificação existe para a ré não ter entregue os documentos.

- Destruiu os elementos de forma deliberada e consciente, inviabilizando em absoluto a produção de prova do A.

- A conduta da Ré deve considerar-se culposa e, consequentemente, considerar-se invertido o ónus da prova.

Vejamos:

Resulta dos autos que, por despacho de fls. 21 vº, foi ordenada a notificação da Ré, ao abrigo do disposto nos artigos 417.º e 429.º, ambos do CPC para, em 15 dias, juntar aos autos os registos de tempos de trabalho do A. entre 12/08/2017 e 31/12/2022.

A Ré, em resposta a tal notificação, veio dizer que já não dispõe dos registos de tempos de trabalho do Autor no período referido, porquanto, cerca de um ano após a denúncia do contrato pelo mesmo, procedeu à eliminação de tais documentos.

Conforme resulta do artigo 417.º do CPC:

<<1 - Todas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados.

2 - Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis; se o recusante for parte, o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no n.º 2 do artigo 344.º do Código Civil.>>

Antes de mais, cumpre dizer que, para efeitos de aplicação do disposto no n.º 2 deste normativo, impõe-se a notificação expressa da parte no sentido da possibilidade da inversão do ónus da prova, notificação esta que não foi ordenada pelo tribunal de 1ª instância.

Na verdade, conforme se decidiu no acórdão do STJ, de 12/04/2018, disponível em www.dgsi.pt:

<<IV - Tendo em conta as consequências decisivas da inversão do ónus da prova para a decisão da causa, impõe-se que a notificação efetuada à parte para proceder à junção de documentos seja acompanhada da advertência de que a sua recusa injustificada implica a inversão do ónus da prova, nos termos do art. 344.º, n.º 2, do CC.>>

E no acórdão do mesmo Tribunal, de 24/05/2018, disponível em www.dgsi.pt:

<<XII. De qualquer modo, deverão as partes ser advertidas previamente da eventualidade daquela inversão do ónus da prova, de forma a poderem gerir o esforço probatório que lhe é exigível e a evitar uma decisão-surpresa, como decorre do disposto no art.º 3.º, n.º 3, do CPC.>>

Acresce que, o A., ora recorrente, nada requereu nesse sentido.

O A., finda a produção de prova, nada requereu ou arguiu perante o tribunal recorrido no sentido do cumprimento do disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPC.

Desta forma, impõe-se concluir que não se encontram preenchidos os pressupostos de que depende a inversão do ónus da prova.

Por outro lado, pese embora o empregador deva manter o registo dos tempos de trabalho (bem como o registo de trabalho suplementar) durante cinco anos, o seu incumprimento não determina, sem mais, a inversão do ónus da prova antes fazendo aquele incorrer em responsabilidade contraordenacional (n.ºs 4 e 5 do artigo 202.º e n.º s 8 e 9 do artigo 231.º, ambos do CT).

Assim, acompanhamos a sentença recorrida quando na mesma se decidiu:

No Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 10/1/2024, 1701/22.8T8CSC.L1-4, relatora Des. Manuela Fialho, conclui-se que “Da circunstância de a empregadora não dispor de registos dos tempos de trabalho ou de trabalho suplementar não emerge a inversão do ónus da prova no concernente à prestação de trabalho suplementar.”.

Na respetiva fundamentação aduz-se que “Relativamente à circunstância da ré não proceder ao registo do tempo de trabalho e ao registo do trabalho suplementar, importa referir que se considera que a falta ou irregularidade dos registos dos tempos de trabalho ou de trabalho suplementar não consubstancia, só por si, violação do dever de cooperação estabelecido no art.º 417º do Código Civil, implicando como consequência imediata a inversão do ónus de prova, caso o empregador seja notificado, nos termos do art.º 429º, 1, do Código de Processo Civil, para os apresentar e não satisfaça esse dever por uma daquelas razões, já que a inversão do ónus da prova nos termos do art.º 344º do Código Civil, para que remete o nº2, do art.º 417º do Código de Processo Civil, pressupõe que tenha havido uma recusa de cooperação processual por uma das partes que tenha tornado culposamente impossível a prova à outra parte, sobre quem recaía o ónus probatório de certo facto, sendo que podendo a prova da prestação de trabalho suplementar ser feita por qualquer um dos meios de prova admitidos em direito, a falta de apresentação pelo empregador do registo de trabalho suplementar não conduz, por si só, à inversão do ónus da prova, posição em linha com a jurisprudência constante, entre outros, do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15/11/2021, Processo nº 2586/20.4T8VFR.P1, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 3/02/2020, processo nº 1870/18.1T8BGC.G1, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/01/2019, processo nº 9055/15.2T8LSB.L1.S1 e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/02/2017, processo nº 988/08.3TTVNG.P4.S1 todos publicados em www.dgsi.pt .”

Subscrevemos estes considerandos.

Na verdade, o ónus da prova da realização de trabalho suplementar está a cargo do autor nos termos previstos no Art.º 342º/1 do CC. Esta regra inverte-se, contudo, nos termos – no que para aqui releva – do disposto no Art.º 344º/2 do CC, ou seja, quando a parte contrária tiver culposamente tornado impossível a prova ao onerado.

Dispõe, por sua vez, o Art.º 417º/2 do CPC que aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa e se o recusante for parte o tribunal aprecia livremente o valor da recusa para efeitos probatórios, sem prejuízo da inversão do ónus da prova decorrente do preceituado no Art.º 344º/2 do CC.

Assim, para que haja inversão do ónus da prova nestas circunstâncias teremos que verificar uma recusa de colaboração, o que no caso, conforme acima dito, falha. A contraparte nada recusou, antes invocou não dispor de registos.

É certo que por força do disposto no Art.º 202º/1 do CT o empregador deve manter o registo dos tempos de trabalho, incluindo dos trabalhadores que estão isentos de horário, em local acessível e por forma que permita a sua consulta imediata. Bem como deve ter um registo de trabalho suplementar (Art.º 231º/1 do CT).

Do incumprimento do aqui preceituado não resulta, contudo, a invocada inversão do ónus da prova. O empregador incorrerá em contraordenação, mas não fica, por tal razão, onerado com a prova. Do mesmo passo, poderá incorrer no dever de pagar duas horas de trabalho suplementar por cada dia de prestação (Art.º 231º/4 do CT).

Não podemos ainda deixar de dizer que a prova do trabalho suplementar não é vinculada. Pode realizar-se por qualquer meio, exceto no caso previsto no Art.º 337º/2 do CT que aqui não tem aplicação.

A jurisprudência dos tribunais superiores vem enunciando para a inversão do ónus da prova efetuada ao abrigo do disposto no Art.º 417º/2 do CPC um conjunto de pressupostos, entre os quais, desde logo, uma notificação para cooperar sob tal cominação; por outro lado, que a falta de cooperação tenha tornado impossível a prova ao onerado – o que é distinto de difícil. E, por último, que a impossibilidade de prova decorra de um comportamento culposo do onerado.

Ora, em presença das circunstâncias evidenciadas nos autos não se preenchem tais pressupostos porque, por um lado, não se registou qualquer recusa de cooperação, por outro, nunca a R. foi notificada sob qualquer cominação e, por fim, a inexistência de registos só por si não constitui fundamento para inverter o ónus probatório já que o trabalho suplementar pode provar-se por qualquer meio não se podendo, pois, concluir, por alguma impossibilidade de prova no caso concreto.” – fim de transcrição.

Por tudo o que ficou dito, impõe-se a manutenção da matéria de facto dada como provada e não provada.

2ª questão

Se a Ré devia ter sido condenada no pedido formulado pelo Autor.

Alega o recorrente que por não ter a Ré feito prova dos tempos de trabalho do A. (nenhuma pronúncia houve em audiência discussão e julgamento referente à hora de entrada e saída do A), deve a douta sentença ser revogada e substituída por sentença que condene a Ré ao pagamento de todo o petitório do A.

Vejamos:

O Autor peticiona a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 13.641,60 a título de trabalho prestado em dias de descanso compensatório, a quantia de € 3.675,00 a título de trabalho suplementar e a quantia de € 980,00 a título de formação não ministrada.

Tendo em conta a matéria de facto provada que se manteve inalterada facilmente se conclui que a pretensão do Autor não pode proceder, na medida em que o Autor não logrou provar, como lhe competia (n.º 1 do artigo 342.º do CC), que prestou trabalho para além do horário normal de trabalho e em dias de descanso compensatório e que não lhe foi ministrada a formação anual a que tinha direito.

Na verdade, ao contrário do alegado pelo recorrente, é sobre o Autor e não sobre a Ré que impende o ónus de provar as horas de formação que não lhe foram concedidas por se tratar de facto constitutivo do direito que invoca (n.º 1 do artigo 342.º do CC).

Como se decidiu no acórdão da RP, de 20/05/2024, disponível em www.dgsi.pt, que acompanhamos:

<<Está em causa a formação contínua, que envolve direitos e deveres para as partes: cabe ao empregador proporcionar a formação profissional adequada a desenvolver a qualificação do trabalhador, cabendo a este participar de modo diligente nas ações de formação profissional que lhe sejam proporcionadas pelo empregador – cfr. art.ºs 127º, nº 1, al. d), 128º, nº 1, al. d) e 131º, nº 1, todos do Código do Trabalho].

O empregador tem a obrigação de em cada ano formar pelo menos 10% dos trabalhadores – o que quer dizer que nenhum trabalhador pode exigir ser incluído nesse grupo dos 10% –, mas se a formação não for assegurada pelo empregador no prazo de 3 anos, transforma-se em crédito de horas em igual número para formação por iniciativa do trabalhador, mediante comunicação ao empregador, com a antecedência mínima de 10 dias (art.º 132º, nºs 1 3 do Código do Trabalho).

No geral a regra é esta: a formação constitui encargo do empregador; mas em caso de incumprimento do empregador, o dever de formação passa para a esfera jurídica do trabalhador através do direito que este tem de, durante um determinado lapso de tempo, faltar ao trabalho para receber formação da sua iniciativa (usando o crédito de horas de que passou a ser titular).

Cessando o contrato de trabalho, o trabalhador tem direito a receber a retribuição correspondente ao número mínimo anual de horas de formação que não lhe tenha sido proporcionado/assegurado, ou ao crédito de horas de formação de que seja titular à data da cessação – art.º 134º do Código do Trabalho.

In casu, não ficou provado que a Ré tenha prestado formação contínua ao Autor [alínea k) dos factos não provados, tendo improcedido a impugnação do Recorrente quanto decido em 1ª instância quanto a esta alínea].

Alegou o Recorrente que haveria lugar a inversão do ónus da prova, dado estar em causa facto negativo.

É verdade que a prova dos factos negativos é, em regra, mais difícil, mas daí não resulta qualquer inversão do ónus da prova, não relevando as dificuldades probatórias dos factos negativos para as regras de repartição do ónus da prova[18].

De salientar ainda que a dificuldade da prova não se confunde com a impossibilidade de prova a que se refere o art.º 344º, nº 2 do Código Civil, não sendo, como se refere no acórdão desta Secção Social do TRP de 15/11/2021[19], a dificuldade na produção da prova em relação a um facto suficiente para se preencher o requisito do “tornar impossível a prova” a que se refere o nº 2 do art.º 344º do Código Civil.

Em suma, podemos afirmar que os factos negativos carecem de prova, sem prejuízo de o julgador não deixar de na apreciação da prova ponderar as dificuldades de prova inerentes.

Note-se que o ónus probatório aparece inerente à norma jurídica a aplicar, ou seja, será pela interpretação do direito substantivo aplicável, das normas de direito civil que servem de fundamento à pretensão do demandante, que se deve operar a distinção da natureza dos factos, sendo constitutivos os factos respeitantes à existência do direito, extintivos e modificativos os que, em momento posterior, operam a cessação ou modificação da relação constituída, e impeditivos aqueles que obstam à formação do direito.

E temos defendido que o ónus da prova de que não foi concedida a formação cabe ao trabalhador como facto constitutivo do seu direito quando pede o pagamento do respetivo crédito[20].

Assim, ao trabalhador que reclama o pagamento a retribuição correspondente ao número mínimo anual de horas de formação que não lhe tenha sido proporcionado/assegurado, cabe provar, como sustentáculo do seu direito, que as horas de formação não lhe foram proporcionadas.>>

Improcedem, assim, as conclusões do A. recorrente.

                                                             *

                                                             *                     

Na improcedência das conclusões do A. recorrente impõe-se a manutenção da sentença recorrida em conformidade.

                                                             *                                                        

*

IV – Sumário

(…).

                                                             *

                                                             *

V – DECISÃO

Nestes termos, sem outras considerações, na improcedência do recurso acorda-se em manter a sentença recorrida.

                                                                       *

                                                    *

Custas a cargo do A. recorrente.

                                                           *

                                                           *


Coimbra, 2025/06/27

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(Paula Maria Roberto)

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(Felizardo Paiva)

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(Mário Rodrigues da Silva)



[1] Relatora – Paula Maria Roberto
 Adjuntos – Felizardo Paiva
                – Mário Rodrigues da Silva

[2] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, págs. 128 e 129.
[3] No mesmo sentido, entre outros, cfr. os acórdãos do STJ de 28/04/2016, de 15/09/2016 e de 27/09/2018.