I – O processo especial de impugnação da regularidade e licitude do despedimento é aplicável aos casos em que o despedimento é assumido formalmente como tal, ou seja, com dedução de nota de culpa, apresentação de defesa por parte do trabalhador, instrução e decisão final.
II – O articulado motivador do despedimento embora equiparável a uma petição não é verdadeiramente uma petição inicial tal como esta é configurada na lei processual civil.
III – O trabalhador ao longo do procedimento disciplinar tem conhecimento dos factos de que é acusado, tem oportunidade de se defender com apresentação dos meios de prova que entendeu serem necessários sendo-lhe, por fim, dado conhecimento da decisão final que culminou no seu despedimento.
IV – Ao contrário do que acontece com uma petição inicial em que, formalmente, pela primeira vez é dado conhecimento ao réu dos factos em que o autor suporta o seu pedido, na ação de IRLD o trabalhador conhece já os factos que lhe são imputados aquando da instauração da ação e não é o articulado motivador que lhe vai dar esse conhecimento.
V – O contexto processual em que ocorre o articulado motivador é substancialmente diferente do contexto subjacente à instauração de uma ação cível.
VI – Não é inepto nos termos da alínea a) do nº 2 do artº 186 CPC o articulado motivador do despedimento quando da contestação apresentada pelo trabalhador (artº 98º- L) se verifica que este interpretou convenientemente aquele articulado.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Adjuntos: Mário Rodrigues da Silva
Paula Roberto.
I- Nos presentes autos de Ação de Impugnação Judicial da Regularidade e Licitude do Despedimento, que a trabalhadora AA, nascida em ../../1981, residente na Avª. ...., ... ..., intentou contra a entidade empregadora, Santa Casa da Misericórdia ..., pessoa coletiva nº ...88, com sede no ... – ..., veio a trabalhadora, invocar a falta de causa de pedir no articulado (motivador) apresentado pela entidade empregadora, alegando, em síntese que esta apenas “faz uma descrição temporal, meramente conclusiva, das diversas fases do processo disciplinar para cujas peças genericamente remete.”
“Assim, tendo a entidade empregadora no seu articulado motivador do despedimento apenas dado como reproduzido o procedimento disciplinar e a nota de culpa, sem que tivesse alegado qualquer facto que permita concluir pela licitude do despedimento é de considerar inepto tal articulado por falta de indicação de causa de pedir, não havendo lugar ao seu aperfeiçoamento.
Pelos fundamentos expostos, julgo inepto o articulado motivador do despedimento apresentado pela entidade empregadora Santa Casa da Misericórdia ..., declarando nulo todo o processado a partir da sua apresentação – cfr, artigo 186º n.º 1 e 2 a) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 1º n.º 2 a) do Código de Processo do Trabalho.
Uma vez que a entidade patronal não procedeu em conformidade com o disposto no artº 98º-I, nº 4, alª a) do Código de Processo do Trabalho, nos termos do artº 98º-J, nº 3 do mesmo diploma legal, declaro a ilicitude do despedimento da trabalhadora e, consequentemente, condeno a entidade empregadora:
a) A pagar ao/à trabalhador/a uma indemnização correspondente a 30 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fração de antiguidade, sem prejuízo dos nºs 2 e 3 do artigo 391º Código do Trabalho;
b) No pagamento das retribuições que a trabalhadora deixou de auferir desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da presente decisão;
(…).
(…).
“ A – FACTOS
1.º A Autora foi admitida, por contrato escrito a termo certo, com início a 26 de Março de 2009, para trabalhar sob a autoridade e direção da Ré como Educadora de Infância.- Doc. Nº 1
2.º Em virtude das sucessivas renovações, o contrato de trabalho supra aludido, converteu-se em contrato sem termo.
3.º Ultimamente a Autora auferia a retribuição ilíquida de € 1.709,00/mensais, acrescido de € 4,70/dia de trabalho prestado a título de subsídio de alimentação.
4.º O despedimento da A. foi precedido de processo disciplinar, que por sua vez foi precedido de processo prévio de inquérito, e que ora se juntam e se dão por integralmente reproduzidos – Doc. Nº 2
5.º No dia 22 de julho, de 2024, a Ré enviou, por carta registada com aviso de receção, à Autora a nota de culpa junta ao supra aludido processo disciplinar e cujo teor se dá por integralmente reproduzido – Cfr. Doc. Nº 2
6.º Por carta registada datada de 6 de Agosto de 2024, a Ré respondeu por escrito à nota de culpa, invocando a prescrição e caducidade do procedimento disciplinar, arguindo a nulidade da Nota de Culpa e impugnando, na sua generalidade, os factos que lhe vinham imputados na Nota de Culpa, tendo ainda requerido que se procedesse à inquirição de seis testemunhas a cuja matéria indicou.
7.º Concluída a instrução, designadamente a inquirição das testemunhas e a resposta da Autora, assim como o teor dos documentos juntos aos autos, foram considerados provados pela Arguente, ora aqui Ré, os factos constantes na nota de culpa – Doc. Nº 2
8.º Assim como julgadas improcedentes as arguidas exceções da prescrição e caducidade, uma vez que os factos dados como provados nos pontos 3.º a 58.º da Nota de culpa sã, além do mais, suscetíveis de qualificar a prática, pela A., de um crime de maus tratos previsto e punido pelo Art.º 152.º-A, nº 1, alínea a) do Código Penal, para além de que, só após a conclusão do processo prévio de Inquérito a Ré teve conhecimento de tais comportamentos da A.
9.º Foi julgada improcedente também a arguida nulidade da Nota de Culpa, por alegada ausência de descrição circunstanciada dos factos, pois que, para além de os mesmos estarem suficientemente reportados no tempo, lugar e modo foram perfeitamente percebidos pela A., ao ponto de esta ter assumido na sua resposta posição clara relativamente aos mesmos, e assim lhe ter sido permitido a sua defesa relativamente aos mesmos como a exerceu.
10.º Concluindo a Arguente que, pela prática dos mesmos, a trabalhadora, ora A. incorreu num comportamento ilícito e culposo que pela sua gravidade tornou imediata e praticamente senão mesmo completamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
11.º No dia 9 de outubro, de 2024, por carta registada com aviso de receção, a Ré comunicou à Autora o seu despedimento imediato com justa causa, conforme cópia do despedimento fundamentado, que se dá por integralmente reproduzido – Doc. Nº 2
12.º A Ré pagou à A. todas as retribuições, subsídios de férias e natal, horas de formação e todos os créditos laborais emergentes da cessação do contrato de trabalho – Doc. Nº 3
B- DIREITO
13.º O comportamento infracional da autora, consubstancia uma violação dolosa e grave dos seus deveres enquanto trabalhadora e funcionária da Santa Casa da Misericórdia ....
14.º A Ré, despediu a autora com justa causa, tal como é definido pelo nº 1 do art. 351º do C.T., que se transcreve: “Constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.
15.º Segundo a alínea d), i) e m) nº 2 do art. 351º do C.T., constituem justa causa de despedimento nomeadamente, o desinteresse repetido pelo cumprimento, com a diligência devida, de obrigações inerentes ao exercício do posto de trabalho a que está afecto, bem como a prática, no âmbito da empresa, de violência (física) sobre qualquer utente (in casu crianças de tenra idade que lhe estavam confiadas), familiar, colaborador ou trabalhar da Instituição, e ainda a redução anormal de produtividade.
16.º A exigência de justa causa disciplinar implica a verificação cumulativa dos requisitos de:
- Comportamento culposo do trabalhador.
- Impossibilidade de subsistência da relação laboral.
- Nexo de causalidade entre estes dois requisitos
17.º Ora o comportamento culposo da trabalhadora/autora, provado no processo disciplinar, é mais do que manifesto, porquanto violou conscientemente os deveres de urbanidade e probidade previsto nos Art.º 128.º, nº 1, al. a) do Código do Trabalho e ainda os deveres de zelo e diligência, previstos na al. c) e os deveres de obediência, previsto na al. e), todas do mesmo preceito legal.
18.º Os comportamentos da Arguida, para lá de lesarem direta e gravemente os interesses dos utentes (crianças), familiares destes e demais colaboradoras da instituição, são também atentatórios da imagem entidade empregadora, afetando a sua imagem perante os utentes e seus familiares, quer interna, quer externamente, e põem mesmo em causa o alcance da sua missão e escopo, colidindo frontalmente com os mesmos, gerando um clima de desconfiança perante tudo e todos, incompatível com a manutenção da relação de trabalho.
19.º Para lá de vexatórios e humilhantes e ultrajantes para com as colegas de trabalho e até com a própria Instituição arguente.
20.º Logo, é de todo inaceitável, atento tal comportamento culposo por parte da trabalhadora, que a Ré fosse obrigada a manter o vínculo laboral que a ligava à autora.
21.º E daí que, as consequências destes comportamentos culposos da autora impossibilitem a subsistência da relação laboral e seja irremediavelmente/irreparável a quebra de confiança para a relação de trabalho.
22.º Razão pela qual, esses comportamentos/atos levaram ao seu despedimento com justa causa, tudo de acordo com o prescrito nas alíneas c) e d) do Artº 351º, nºs. 1 e 2 do C.T.
Termos em que deve a presente ação ser julgada totalmente improcedente por não provada e, consequentemente, declarada a regularidade e licitude do despedimento da autora, tudo com as demais legais consequências”.
Em primeiro lugar alega a recorrente que a decisão que declarou o despedimento ilícito é uma decisão surpresa.
Conforme se lê no acórdão do STJ de 12.07.2028, P. 177/15.0T8CPV-A.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt “I - A decisão surpresa que a lei pretende afastar com a observância do princípio do contraditório, contende com a solução jurídica que as partes não tinham a obrigação de prever, para evitar que sejam confrontadas com decisões com que não poderiam contar, e não com os fundamentos que não perspetivavam de decisões que já eram esperadas. II - A decisão surpresa não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito quanto ao destino final do pleito, nem com a expectativa que possam ter perspetivado quanto à decisão, quer de facto, quer de direito, sendo certo que, pelo menos, de modo implícito, a poderiam ou tiveram em conta, designadamente, quando lhes foi apresentada uma versão fáctica não contrariada e que, manifestamente, não consentiria outro entendimento”.
No caso, a questão da ineptidão do articulado motivador do despedimento foi suscitada pela trabalhadora recorrida na sua contestação ao articulado motivador.
Teve, assim, a recorrente empregadora, ora apelante, na resposta que apesentou, oportunidade de responder, contestando não só o pedido reconvencional, como também a matéria da exceção dilatória da ineptidão (cfr artº 98º L nº 4 do CPT.
Como o não fez “sib imputet”[1].
Por isso, era previsível para a recorrente que no saneador viesse a ser proferida a decisão que decidiu pela ineptidão do articulado motivador.
Esta decisão, ao contrário do alegado pela recorrente, não constituiu uma decisão surpresa.
Alega ainda a recorrente que o despacho saneador não apresenta qualquer fundamentação quanto à desnecessidade de audição das partes, ou até, da não realização da audiência prévia, consubstanciando esta omissão, da mesma forma, uma nulidade processual.
Ora, nos termos do nº 1 do artº 62º do CPT a audiência prévia é convocada quando a complexidade da causa o justifique.
É ao juiz que cabe decidir sobre a oportunidade da convocação desta audiência; é a ele que cade decidir se a complexidade da causa justifica essa convocação.
Como assim, nenhuma nulidade processual foi cometida nem tão pouco uma nulidade da sentença nos termos do artigo 615º/1/d) do C.P.C.
A 1ª instância, partindo da conclusão de que na ação especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento (artºs 98º-B e ss do CPT) o articulado motivador equivale a uma petição inicial, declarou aquele inepto alinhando para o efeito a seguinte argumentação:
“(…) o empregador passa a assumir processualmente uma posição muito semelhante à de um autor, apesar de ser a parte contra a qual é instaurada a ação, na medida em que lhe compete apresentar, junto do tribunal, um articulado que motive o despedimento, para o que oferecerá todas as provas, sendo depois o trabalhador notificado para responder, querendo, no prazo de quinze dias[2].
Assim, temos que esse articulado motivador assume claramente a natureza de uma petição inicial, onde o empregador deverá motivar o despedimento, apresentar as provas respetivas e formular o correspondente pedido, designadamente a validade do procedimento disciplinar e a licitude do despedimento[3].
Prescreve a al. b) do n.º 2 do art.º 27.º do Código de Processo do Trabalho, aplicável ex vi artigo 1º n.º a) do Código de Processo do Trabalho, que «o juiz deve, até à audiência final convidar as partes a completar e a corrigir os articulados, quando no decurso do processo reconheça que deixaram de ser articulados factos que podem interessar à decisão da causa, sem prejuízo de tais factos ficaram sujeitos às regras gerais sobre contraditoriedade e prova.»
Daqui resulta apenas que nas situações em que os articulados apresentam deficiências ou insuficiências o tribunal deverá socorrer-se do convite ao aperfeiçoamento a fim de se possibilitar o aproveitamento da peça processual que padeça de deficiência ou irregularidade.
Situação totalmente distinta sucede quando a petição inicial ou a peça processual que lhe seja equivalente é desprovida de qualquer facto que sustente o fim pretendido, ou dito doutra forma é inexistente ou ininteligível a causa de pedir que sustente o pedido, caso em que tal peça é inepta, tal como prescrevem os artigos 186.º n.º 2 al. a) e 552.º n.º 1 als. d) e e) do Código de Processo Civil.
Compulsados os autos, constata-se que a entidade empregadora, no articulado motivador refere que “No dia 9 de Outubro, de 2024, por carta registada com aviso de receção, a Ré comunicou à Autora o seu despedimento imediato com justa causa, conforme cópia do despedimento fundamentado, que se dá por integralmente reproduzido (…)
17.º
Ora o comportamento culposo da trabalhadora/autora, provado no processo disciplinar, é mais do que manifesto, porquanto violou conscientemente os deveres de urbanidade e probidade previsto nos Art.º 128.º, nº 1, al. a) do Código do Trabalho e ainda os deveres de zelo e diligência, previstos na al. c) e os deveres de obediência, previsto na al. e), todas do mesmo preceito legal.
18.º
Os comportamentos da Arguida, para lá de lesarem direta e gravemente os interesses dos utentes (crianças), familiares destes e demais colaboradoras da instituição, são também atentatórios da imagem entidade empregadora, afetando a sua imagem perante os utentes e seus familiares, quer interna, quer externamente, e põem mesmo em causa o alcance da sua missão e escopo, colidindo frontalmente com os mesmos, gerando um clima de desconfiança perante tudo e todos, incompatível com a manutenção da relação de trabalho.
19.º
Para lá de vexatórios e humilhantes e ultrajantes para com as colegas de trabalho e até com a própria Instituição arguente.”
Importa, como tal, aferir se tal será bastante, para que se entenda cumprido o ónus imposto pelos referidos artigos e caso não o seja se poderá ainda assim o Tribunal decidir no sentido do aperfeiçoamento nos termos propugnados.
Reitere-se que resulta da formulação ínsita no referido artº 98º-I nº 4 al. a) do Cód. Proc. Trabalho, que o legislador impôs ao empregador, não apenas a junção do procedimento disciplinar mas igualmente que o mesmo motivasse o despedimento mediante a apresentação de um articulado.
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães 07-05-2020 (Processo: 5804/19.8T8VNF.G1 Relatora: Vera Sottomayor), consultável em www.dgsi.pt “Daqui decorre que o legislador impôs que através do referido articulado a entidade empregadora expusesse os fundamentos de facto e de direito da ação no sentido da declaração da licitude do despedimento; sem que se possa entender o cumprimento de tal ónus pela mera junção de requerimento dando por reproduzidos os factos constantes do despedimento disciplinar ou da nota de culpa, como aquele que foi junto a fls. 26 e segs.
De resto, caso o legislador se bastasse com a junção do procedimento disciplinar, não teria imposto igualmente a necessidade de junção de articulado motivando o despedimento.
(…)
Com efeito, para além do empregador estar obrigado a apresentar a prova documental que comprove os fundamentos do despedimento (procedimento disciplinar), também tem a incumbência de apresentar o articulado inicial do qual faz constar os factos materiais e concretos fundamentadores da decisão do despedimento comunicada por escrito ao trabalhador – cfr. artigos 98º-C a 98 –M do CPT.
Neste tipo de ação especial de impugnação da regularidade e licitude do despedimento compete ao empregador o ónus de alegar e provar os factos subjacentes ao despedimento apresentando para o efeito o respetivo articulado motivador a que alude o artigo 98.º J do CPT, assumindo este articulado uma natureza idêntica a uma petição inicial, impondo-se ao empregador que motive o despedimento, apresente as respetivas provas e formule o correspondente pedido, sob pena de tal articulado ser considerado de inepto – cfr. arts. 186.º n.º 2 al. a) e 552.º, n.º 1 als. d) e e) do CPC.
Cabia à empregadora alegar os factos concretos que imputou ao trabalhador e deu como provados no processo disciplinar e que estiveram na base da aplicação da sanção de despedimento, de forma a poder o trabalhador sobre eles se pronunciar na contestação, assim habilitando o tribunal a, produzida a prova requerida pelas partes, considerá-los como provados ou não provados.”
Retornando ao caso dos autos constamos que o articulado motivador do despedimento é totalmente desprovido da alegação dos factos que fundamentaram o despedimento de que a trabalhadora foi alvo e que agora pretende impugnar.
Na verdade, no articulado apresentado pelo empregador, este limita-se a fazer uma resenha conclusiva do sucedido nas diversas fases do procedimento disciplinar, nos termos que, exemplificativamente, supra deixámos transcritos.
Daqui resulta inequívoco que a entidade empregadora não cumpriu com o ónus que lhe está imposto pelo disposto nos n.ºs 4 do art.º 98.º-I e n.º 2 do art.º 98.º-J ambos do Código de Processo do Trabalho, de alegação dos factos concretos que imputou ao trabalhador e que serviram de fundamento à aplicação da sanção do despedimento.
A falta de alegação de factos é total, não pode ser substituída pela remissão para o procedimento disciplinar ou para nota de culpa dele constante e não pode dar lugar ao convite ao aperfeiçoamento, pois não se trata de completar qualquer imprecisão ou lacuna, ou obscuridade.
O aperfeiçoamento implica, em termos mínimos, que haja algo a aperfeiçoar, designadamente quando deixem de ser alegados alguns factos com relevo para a boa decisão da causa e não nos casos em que inexiste qualquer facto articulado, como a situação em apreço nos autos, em tudo equiparada à ineptidão prevista no artigo 186º do Cód. Proc. Civil, face à total ausência de factos motivando as razões que presidiram ao despedimento e suscetíveis de levar a conclusão da sua licitude.
Assim, tendo a entidade empregadora no seu articulado motivador do despedimento apenas dado como reproduzido o procedimento disciplinar e a nota de culpa, sem que tivesse alegado qualquer facto que permita concluir pela licitude do despedimento é de considerar inepto tal articulado por falta de indicação de causa de pedir, não havendo lugar ao seu aperfeiçoamento.
Pelos fundamentos expostos, julgo inepto o articulado motivador do despedimento apresentado pela entidade empregadora Santa Casa da Misericórdia ..., declarando nulo todo o processado a partir da sua apresentação[4] – cfr, artigo 186º n.º 1 e 2 a) do Código de Processo Civil, aplicável ex vi artigo 1º n.º 2 a) do Código de Processo do Trabalho”.
Passando a analisar e a decidir.
Esta Relação teve já oportunidade de se pronunciar sobre a questão que se controverte no acórdão de 28.02.2013, P. 485/12.2TTCBR.C1 do qual o presente relator foi 2º Adjunto e no qual se escreveu
“(…) Anteriormente, o trabalhador que instaurasse uma ação de impugnação de despedimento tinha necessariamente que elaborar uma petição inicial, e nela expor as razões de facto e de direito que fundamentavam a sua posição. Com a revisão do CPT e instituição desta nova ação especial agora o trabalhador terá apenas de apresentar um requerimento, feito em formulário eletrónico, comunicando o seu despedimento e identificando o empregador, conforme o disposto no artº 98.º-D.
Nesta fase inicial, embora dando impulso processual à impugnação do despedimento, fica o trabalhador dispensando de fundamentar a sua posição ou apresentar qualquer tipo de prova. Passa a competir ao empregador o ónus de alegar e provar os factos que estiveram subjacentes ao despedimento e defesa da sua validade, apresentando o articulado motivador do despedimento a que se refere o artº 98º-J.
Ou seja, o empregador passa a assumir processualmente uma posição muito semelhante à de um autor, apesar de ser a parte contra a qual é instaurada a acção, na medida em que lhe compete apresentar, junto do tribunal, um articulado que motive o despedimento, para o que oferecerá todas as provas, sendo depois o trabalhador notificado para responder, querendo, no prazo de quinze dias- cfr. Ana Luísa Beirão e Inês Coelho Simões, em estudo publicado em http://emprego.sapo.pt/guia-carreira/artigo/139/artigo.htm.
Assim, temos que esse articulado motivador assume claramente a natureza de uma petição inicial, onde o empregador deverá motivar o despedimento, apresentar as provas respectivas e formular o correspondente pedido, designadamente a validade do procedimento disciplinar e a licitude do despedimento.
A petição será inepta quando “falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir” - al. a) do nº 2 do artº 193º do CPC.
A petição inicial, como articulado através do qual o autor propõe a ação, constitui a peça fundamental de todo o processo, delimitando o objeto da causa e conduzindo a certa pretensão de tutela jurisdicional, com a menção do direito e dos fundamentos respetivos, nela devendo o autor expor os fundamentos da ação e concluir pela formulação do pedido – artº 467º, nº 1, als. d) e e) do Código de Processo Civil.
Refere Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, pag. 111, que na petição inicial o autor deve expor a causa de pedir – acto jurídico (simples ou complexo, mas sempre concreto) donde emerge o direito que o autor invoca e pretende fazer valer e deve o autor indicar o direito para que solicita ou requer tutela judicial e o efeito jurídico pretendido.
Como decorre do disposto no artigo 498º, nº 4, do CPC, a causa de pedir é o facto jurídico concreto em que se baseia a pretensão deduzida em juízo, ou seja, o facto ou o conjunto de factos concretos articulados pelo autor e dos quais há-de derivar o efeito ou efeitos jurídicos que, através do pedido formulado, se pretende ver juridicamente reconhecidos.
Refere, por outro lado, Rodrigues Bastos, in Notas ao CPC, Vol. I, 3ª ed., 253 que a “(...) p.i. há-de expor um facto jurídico (causa de pedir) e tirar dele, como conclusão, um efeito de direito, que o autor impetra lhe seja reconhecido (pedido). Se não se formula qualquer pedido ou se não se expõe a causa de pedir, ou se se faz aquela formulação, ou esta exposição em termos incompreensíveis, só materialmente se poderá falar em p.i., porque substancialmente é evidente que o não é. Tal peça jurídica, com falta desses requisitos, não se mostrará apta a reproduzir, em Juízo, o litígio – daí a sua ineptidão.”
Mas, como salienta Alberto dos Reis, Comentário, 2º, 372, “importa não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente... . Quando a petição, sendo suficiente quanto (...) à causa de pedir, omite factos ou circunstâncias necessários para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta; o que então sucede é que a ação naufraga”.
É que, como refere este autor, “Podem dar-se dois casos distintos: a) a petição ser inteiramente omissa quanto ao acto ou facto de que o pedido procede; b) expor o acto ou facto, fonte do pedido, em termos de tal modo confusos, ambíguos ou ininteligíveis, que não seja possível apreender com segurança a causa de pedir. Num e noutro caso a petição é inepta, porque não pode saber-se qual a causa de pedir”.
Como articulado que é, a motivação do despedimento está sujeita às regras processuais no que diz respeito à sua existência e requisitos.
Assim, nele deve o empregador expor os factos e as razões de direito que servem de fundamento à ação e formular o pedido- als. d) e e) do nº 1 do artº 467º do CPC.
Os articulados “são as peças em que as partes expõem os fundamentos da acção e da defesa e formulam os pedidos correspondentes” - nº 1 do artº 151º do mesmo diploma
“Nas acções, nos seus incidentes e nos procedimentos cautelares é obrigatória a dedução por artigos dos factos que interessem à fundamentação do pedido ou da defesa, sem prejuízo dos casos em que a lei dispensa a narração de forma articulada”- nº 2 de tal artigo.
Em regra, no julgamento do pleito o juiz só pode servir-se dos factos articulados pelas partes (artºs 664º e 264º, nº 2, do CPC). No caso específico da ação especial de impugnação da regularidade e licitude do despedimento, a entidade empregadora apenas pode invocar factos e fundamentos constantes da decisão de despedimento comunicada ao trabalhador (artigo 98º-J, nº 1, do CPT).
O autor alegará os factos em que se baseia a sua pretensão (causa de pedir) na petição inicial (artºs 264º, nº 1, e 467º, nº 1, al. d), do CPC) e o réu deduzirá toda a sua defesa na contestação (artº 489º do CPC).
Chegados aqui, e se face à alegação da Ré, contida na citada peça de fls. 23, se deveria considerar como suficientemente indicada a causa de pedir, com o consequente convite ao aperfeiçoamento, incluindo a alegação por artigos, nos termos do citado artº 151º do CPC, e a descrição discriminada, sem a mera remessa para o procedimento disciplinar, dos factos que integrariam a justa causa de despedimento, há, todavia, que considerar a ineptidão da petição inicial, revestindo, como vimos, essa natureza o articulado motivador do despedimento, já que a aqui Ré não formula, em tal peça, qualquer pedido, designadamente, como vimos, a validade do procedimento disciplinar e a licitude do despedimento.
Não se pode, assim, qualificar essa peça /requerimento como articulado motivado do despedimento, inexistindo este, como tal, nos presentes autos.
Também por essa inexistência/ineptidão, evidente se torna que fica excluída qualquer possibilidade de aperfeiçoamento, designadamente nos termos do artº 27º, al. b), do CPT. Não se pode aperfeiçoar aquilo que não existe”.
Esta é a jurisprudência que, ao que cremos, tem sido perfilhada por outras Relações (Acs de 14.05.2025, P. 569/13.0TTFAR.E1; de 20.09.2028, P. 57/18.8T8BCL.G1, de 07.05.2020, P. 5804/19.8T8VNF.G1 e de 07.04.2025, P. 3683/24.2T8Mai-A.P1).
Assente que o articulado motivador é equiparável à petição inicial sendo-lhe aplicável o regime processual a esta atinente, importa decidir se aquele articulado é inepto considerando o disposto na al. a) do nº 2 do artº 186º do CPC, tal como considerou a 1ª instância.
Segundo este normativo diz-se inepta quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir.
Mas se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão, com fundamento na alínea a), a arguição não é julgada procedente quando se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial (nº3 do citado preceito).
Ora, lendo a resposta apresentada constata-se que nela a recorrida procedeu à indicação dos argumentos que, na sua ótica, considera serem pertinentes para contrapor à decisão de despedimento e mais importante, revelou conhecer os factos que lhe são imputados ao argumentar no sentido de contrariar os factos que lhe são imputados
Com efeito, na resposta ao articulado motivador alegou:
Sendo certo que a arguida foi notificada do teor da acusação a 26 de julho de 2024, que consultou o processo, através da sua mandatária, a 29 de julho subsequente
Não consta uma efetiva descrição das circunstâncias de tempo, lugar e modo.
Com referência ao que alude a acusação nos artigos 3º a 12º estes reportam-se ao ano letivo 2020/2021 sem qualquer indicação de mês, semana ou dia em que eventualmente teriam ocorrido.
Também no que concerne aos factos alegadamente ocorridos no ano letivo 2022/2023 não há qualquer indicação de momento específico da sua ocorrência.
No demais consta da Acusação ser a trabalhadora acusada de:
- Proibir crianças e auxiliares de criarem afetos;
- Proibir os meninos de gostarem da BB;
- De criar um verdadeiro clima de terror, quer nas crianças quer nos seus pares e colaboradoras;
- De ter más relações com os seus pares e mostrava sempre má cara a qualquer Colega que fosse à sua sala, assim como à própria diretora;
- De levar várias auxiliares a estados depressivos e de autêntico pavor e medo;
- De possuir um carácter manipulador;
- De impor regras demasiado rígidas e inquebráveis sob pena de castigos exagerados.
Trata-se apenas de um conjunto de afirmações genéricas e conclusivas sem a indicação de factos concretos que as sustentem.
São afirmações imbuídas de juízos de valor por parte dos depoentes.
Do que resulta da acusação e outrossim do relatório final, não constam quaisquer factos que consubstanciem tais alegados comportamentos ou atuações.
Tais acusações são de carácter genérico, conclusivo e imbuídas de juízos de valor e delas não resultam os factos concretos, nem as circunstâncias de tempo modo e lugar em que a aqui trabalhadora arguida os teria alegadamente praticado e que conduziram à presente Nota de Culpa.
Ou seja, a trabalhadora interpretou convenientemente o articulado motivador.
E é o que no comum dos casos acontece.
De facto, o articulado motivador do despedimento embora equiparável a uma petição não é verdadeiramente uma petição inicial tal como esta é configurada na lei processual civil.
O processo especial de impugnação da regularidade e licitude do despedimento é aplicável aos casos em que o despedimento é assumido formalmente como tal, ou seja, com dedução de nota de culpa, apresentação de defesa por parte do trabalhador, instrução e decisão final.
O trabalhador ao longo do procedimento disciplinar tem conhecimento dos factos de que é acusado, tem oportunidade de se defender com apresentação dos meios de prova que entendeu serem necessários sendo-lhe, por fim, dado conhecimento da decisão final que culminou no seu despedimento.
Ou seja, ao contrário do que acontece com uma petição inicial em que, formalmente, pela primeira vez é dado conhecimento ao réu dos factos em que o autor suporta o seu pedido, na ação de IRLD o trabalhador conhece já os factos que lhe são imputados aquando da instauração da ação e não é o articulado motivador que lhe vai dar esse conhecimento.
O contexto processual em que ocorre o articulado motivador é substancialmente diferente do contexto subjacente à instauração de uma ação cível.
Em suma, no caso, dir-se-á que, tendo a trabalhadora interpretado convenientemente o articulado motivador, inexiste razão para o julgar inepto.
Questão diferente é de saber se o despedimento é inválido por na nota de culpa não se encontrar devidamente circunstanciada a factualidade imputada à trabalhadora
Porém, tal questão tem a ver com o mérito e não com a questão meramente processual como é a de saber se o articulado motivador é inepto, questão esta que constitui o objeto da apelação.
Não sendo o articulado motivador inepto, não podia o tribunal a quo, nesta fase processual, concluir pela ilicitude do despedimento com as consequências que daí retirou por efeito da aplicação do disposto no nº 3 do artº 98º-J do CPT.
(…).
Coimbra, 26 de junho de 2025
*
(Joaquim José Felizardo Paiva)
(Mário Sérgio Ferreira Rodrigues da Silva)
(Paula Maria Mendes Ferreira Roberto)
[2] Cfr. Ana Luísa Beirão e Inês Coelho Simões, em estudo publicado em http://emprego.sapo.pt/guia-carreira/artigo/139/artigo.htm
[3] Neste sentido v. o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28-02-2013, Processo: 485/12.2TTCBR.C1, consultável em www.dgsi.pt
[4] Razão pela qual não nos pronunciamos acerca das questões suscitadas pela entidade empregadora no seu articulado de resposta ao articulado apresentado pela trabalhadora, previsto no artigo 98º L do Código de Processo do Trabalho
[5] Da exclusiva responsabilidade do relator.