CRÉDITOS LABORAIS
DEVEDOR EM PER
AÇÃO DECLARATIVA
NÃO RECLAMAÇÃO DO CRÉDITO NO PER
PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO
Sumário

I – As ações declarativas não estão abrangidas pelo disposto no n.º 1 do artigo 17.º-E do CIRE, na redação da Lei n.º 9/2022, de 11/01, pois este apenas contempla as ações executivas.
II – O disposto no n.º 11 do artigo 17.º-F do CIRE, sem mais, não impede o credor que não reclamou o seu crédito (constituído à data) no PER, de intentar uma ação declarativa com vista ao reconhecimento do mesmo.
III – Se os créditos vencidos em data anterior à da nomeação do administrador judicial provisório, e não reclamados no PER por motivos que se desconhecem, são créditos litigiosos e os vencidos em data posterior não podiam ter sido reclamados no mesmo, tais créditos não estão abrangidos pelo n.º 11 do artigo 17.º-F do CIRE, nada obstando ao prosseguimento da ação declarativa intentada pelo Autor, sob pena de denegação de justiça.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam[1] na Secção Social (6ª secção) do Tribunal da Relação de Coimbra:

I - Relatório

AA, residente em ...,

intentou a presente ação de processo comum contra

A... - Sucursal em Portugal, com sede em ...,

                                                            

formulando o seguinte pedido:

NESTES TERMOS, e nos melhores de Direito aplicáveis, com o douto suprimento desse Tribunal, deve a presente ação ser julgada procedente por provados os seus fundamentos e, em consequência, serem reconhecidos o vínculo contratual entre o Autor e a Ré, bem como a ilicitude do despedimento e a ser condenada a:

1. Pagar ao Autor a quantia de 39.988,87€ (trinta e nove mil novecentos e oitenta e oito euros e oitenta e sete cêntimos) relativa ao saldo de horas de trabalho devidas e não pagas;

2. Pagar ao Autor a quantia de 2.581, 68€ (dois mil quinhentos e oitenta e um euros e sessenta e oito cêntimos) relativa a subsídios de Natal devidos e não pagos;

3. Pagar ao Autor a quantia de 3.257,26€ (três mil duzentos e cinquenta e sete euros e vinte e seis cêntimos) relativa a subsídios de férias devidos e não pagos;

4. Pagar ao Autor a quantia de 2.274,92€ (dois mil duzentos e setenta e quatro euros e noventa e dois cêntimos) relativa ao saldo de subsídios de alimentação devidos e não pagos;

5. Pagar ao Autor quantia de 608,36€ (seiscentos e oito euros e trinta e seis cêntimos) relativa a formação profissional devida e não proporcionada pela Ré;

6. Pagar ao Autor a quantia de 3.459,84€ (três mil quatrocentos e cinquenta e nove euros e oitenta e quatro cêntimos) relativa à indemnização a que se refere o artigo 391º, n.º 3 do Código do Trabalho;

7. Pagar ao Autor a quantia de 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros) relativa a danos não patrimoniais a que se refere o artigo 389º, n.º 1, alínea a) do Código do Trabalho;

8. Pagar ao Autor as retribuições que este deixou de auferir desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão do Tribunal que declare a ilicitude do despedimento, a que se referem os artigos 389º, n.º 1 e 390º, n.º 1 do Código do Trabalho;

9. Pagar ao Autor os juros à taxa máxima legal que forem devidos desde a citação;

10. Pagar as custas e demais encargos da presente ação, incluindo custas de parte.”

                                                             *

Procedeu-se à realização da audiência de partes e a , notificada para contestar veio fazê-lo alegando, em síntese, que:

A Ré encontra-se num PER decretado em janeiro de 2023 e que se encontra a decorrer; os créditos peticionados pelo A. são na sua larga maioria anteriores a 2023, pelo que, devem ser reclamados no âmbito daquele plano; os créditos peticionados encontram-se prescritos; não procedeu ao despedimento ilícito do Autor nem lhe deve qualquer quantia.

Termina, dizendo que “deve a presente contestação ser julgada procedente, por provada, e em consequência ser a Ré absolvida das quantias peticionadas pela Autora”.                                                       

                                                             *

Foi, depois, proferida sentença (fls. 289) cujo dispositivo é o seguinte:

Nestes termos, pelos fundamentos expostos, e ao abrigo do disposto no art.º 277.º, al. e) do Código do Processo Civil, declaro extinta a presente instância, por impossibilidade superveniente da lide”.

                                                              *

O Autor, notificado desta decisão, veio interpor o presente recurso que concluiu da forma seguinte:

A. A sentença de que se recorre constitui uma decisão-surpresa, na medida em que ao ora recorrente não foi dada oportunidade de se pronunciar sobre a questão jurídica objeto da decisão do tribunal a quo;

B. Constituindo violação do princípio do contraditório constante do disposto no artigo 3º, n.º 3 do Código de Processo Civil.

C. Para além de constituir uma decisão-surpresa, a sentença de que ora se recorre implica, nos seus efeitos, uma situação de denegação da justiça que ao Autor assiste.

D. O artigo 17º-F, n.º 11 do CIRE dispõe que a decisão de homologação vincula a empresa e os credores relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no n.º 5 do artigo 17º-C, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações.

E. Assim, deve entender-se que, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no n.º 5 do artigo 17º-C (e só a estes), a decisão de homologação vincula a empresa e os credores. Porém,

F. Deve considerar-se que a regra de que o plano é aplicável a todos os créditos constituídos à data da nomeação do administrador provisório (e só a estes), mesmo que não tenham sido reclamados ou o credor participado nas negociações, não é uma regra absoluta, não valendo nomeadamente quanto aos créditos litigiosos.

G. Quer do teor do art.º 17.º-EdoCIRE, quer das finalidades do PER, podemos afirmar com segurança que o legislador não pretendeu impedir a propositura de ações em data posterior à homologação do plano de recuperação nas situações onde se discutem créditos que continuam a necessitar de definição jurisdicional para que possam ser cobrados, designadamente os créditos litigiosos.

H. Ora, tendo a presente acção dado entrada no tribunal depois da homologação do Plano de Revitalização da Ré, todos os pedidos formulados pelo autor, nele se incluindo os créditos vencidos antes da prolação do despacho que nomeou o administrador judicial provisório no PER e aqueles só vencidos após tal despacho, porque litigiosos, têm de ser apreciados, sob pena de se criar uma situação de denegação e justiça. (Neste sentido ver entre outros Ac. RP de 08.06.2022, Processo 22434/18.4T8PRT-A.P1; Ac. RL de 26.05.2021, Proc. 15326/19.1T8SNT.L1-4; Ac. RC de 26.09.2017 1122/16.1T8GRD-A.C1 e Ac. RP de 24.10.2022, Processo 1121/21.1T8PNF.P1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.)

I. Da sentença sob recurso resultando, ainda, violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva constante do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa e do artigo 2º do Código de Processo Civil.

J.            A decisão da Mª Juiz do tribunal a quo padece, pois, de erro de julgamento que afeta o fundo da decisão, e dita a sua revogação por estar desconforme ao direito por violação das disposições constantes dos artigos 17º-E, n.º 1 e 17º-F, n.º 11 do CIRE, na redação que lhe foi conferida pelo Decreto-Lei n.º 57/2022, de 25/08, e do disposto no artigo 3º, n.º 3 do Código de Processo Civil (princípio do contraditório)e, ainda, do princípio da tutela jurisdicional efetiva constante do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa e do artigo 2º do Código de Processo Civil.

K. Não se verifica, no caso vertente, impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, pois é líquido que o pedido do autor se refere a créditos litigiosos que, como tal, deve ser apreciado, sob pena de se criar uma situação de denegação e justiça e violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva constante dos artigos 20º da Constituição da República Portuguesa e 2º do Código de Processo Civil.

L. Deve, pois, a sentença sob recurso ser revogada, ordenando-se a continuação dos autos, com notificação ao autor da contestação apresentada pela ré, seguindo-se os demais termos até final.

NESTES TERMOS, e nos demais de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve ao presente recurso de apelação ser concedido provimento e, em consequência, ser revogada a Sentença recorrida, ordenando-se a continuação dos autos, com notificação ao autor da contestação apresentada pela ré, seguindo-se os demais termos até final.

Com o que farão, Vossas Excelências, Senhores Juízes Desembargadores, a necessária e costumada J U S T I Ç A !”

                                                             *

A Ré não apresentou resposta.

                                                             *

O Exm.º Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se nos termos constantes do douto parecer de fls. 307 e segs., no sentido de “que deve ser concedido provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida, a qual deve ser substituía por outra que determine o prosseguimento da ação, com a notificação da contestação ao Autor.”

                                                             *

Colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

                                                             *

                                                             *

II – Fundamentação

a-) Factos provados:

Os constantes do relatório que antecede e

1. O autor interpôs a presente ação em 17.05.2024.

2. A ré instaurou processo especial de revitalização que corre os seus termos no Juízo de Comércio de Santo Tirso – Juiz 1 – sob o nº 3855/22.....

3. Nesses autos foi proferida decisão a nomear administrador judicial provisório devidamente publicada no portal Citius em 17.01.2023.

4. O Autor não apresentou reclamação de créditos no PER referido em 2.  

5. Em 26.06.2023 foi proferida decisão de homologação do plano de recuperação da aqui ré, devidamente transitada em julgado em 19.07.2023.

                                                             *

                                                             *

b) - Discussão

Como é sabido, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitadas pelas conclusões da alegação do recorrente (art.º 639.º, n.º 1, do C.P.C. – redação da Lei n.º 41/2013 de 26/06), com exceção das questões de conhecimento oficioso.

Assim sendo, cumpre apreciar as questões suscitadas pela Ré recorrente, quais sejam:

- Se inexiste fundamento legal para julgar extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.

- Se a decisão recorrida  viola o disposto no artigo 20.º da CRP e 2.º do CPC.

- Se foi violado o princípio do contraditório.

                                                             *

Resulta da matéria de facto apurada que a Ré instaurou processo especial de revitalização que corre os seus termos no tribunal judicial da comarca do Porto, juízo do comércio (J1), sob o n.º nº 3855/22.... e no qual foi proferida decisão de homologação do plano de recuperação da aqui Ré, transitada em julgado.

Mais se provou que a decisão que nomeou o administrador judicial provisório foi proferida em 17.01.2023.

Por outro lado, <<a decisão a que se refere o nº 5 do artigo 17º-C obsta à instauração de quaisquer ações executivas contra a empresa para cobrança de créditos durante um período máximo de quatro meses, e suspende quanto à empresa, durante o mesmo período, as ações em curso com idêntica finalidade>> - n.º 1 do artigo 17.º-E do CIRE na redação dada pela Lei n.º 9/2022, de 11/01.

Acresce que conforme resulta do n.º 11 do artigo 17º-F, na redação dada pela mesma lei, <<a decisão de homologação vincula a empresa e os credores, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações, relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no nº 5 do artigo 17º-C, (…).>>

Alega a recorrente que:

- Para além de constituir uma decisão-surpresa, a sentença recorrida implica, nos seus efeitos, uma situação de denegação da justiça que ao Autor assiste.

- O artigo 17º-F, n.º 11 do CIRE dispõe que a decisão de homologação vincula a empresa e os credores relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no n.º 5 do artigo 17º-C, mesmo que não hajam reclamado os seus créditos ou participado nas negociações.

- Assim, deve entender-se que relativamente aos créditos constituídos à data em que foi proferida a decisão prevista no n.º 5 do artigo 17º-C (e só a estes), a decisão de homologação vincula a empresa e os credores. Porém,

- Deve considerar-se que a regra de que o plano é aplicável a todos os créditos constituídos à data da nomeação do administrador provisório (e só a estes), mesmo que não tenham sido reclamados ou o credor participado nas negociações, não é uma regra absoluta, não valendo nomeadamente quanto aos créditos litigiosos.

- Quer do teor do art.º 17.º-EdoCIRE, quer das finalidades do PER, podemos afirmar com segurança que o legislador não pretendeu impedir a propositura de ações em data posterior à homologação do plano de recuperação nas situações onde se discutem créditos que continuam a necessitar de definição jurisdicional para que possam ser cobrados, designadamente os créditos litigiosos.

- Ora, tendo a presente ação dado entrada no tribunal depois da homologação do Plano de Revitalização da Ré, todos os pedidos formulados pelo autor, nele se incluindo os créditos vencidos antes da prolação do despacho que nomeou o administrador judicial provisório no PER e aqueles só vencidos após tal despacho, porque litigiosos, têm de ser apreciados, sob pena de se criar uma situação de denegação e justiça.

- Não se verifica impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide, pois é líquido que o pedido do autor se refere a créditos litigiosos que, como tal, devem ser apreciados, sob pena de se criar uma situação de denegação e justiça e violação do princípio da tutela jurisdicional efetiva constante dos artigos 20º da Constituição da República Portuguesa e 2º do Código de Processo Civil.

Vejamos, então, se lhe assiste razão.

Como se refere no acórdão desta Relação, de 04/06/2024, disponível em www.dgsi.pt:

<<Está em causa a interpretação do artº 17º-E nº1 do CIRE aprovado pelo DL 53/2004 de 18.03.

A redação anterior de tal segmento normativo, introduzida pelo DL n.º 79/2017, de 30/06, era a seguinte:

«1 - A decisão a que se o n.º 4 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações para cobrança de dívidas contra a empresa e, durante todo o tempo em que perdurarem as negociações, suspende, quanto à empresa, as ações em curso com idêntica finalidade, extinguindo-se aquelas logo que seja aprovado e homologado plano de recuperação, salvo quando este preveja a sua continuação.»

A redação atual, introduzida pela Lei 9/2022 de 11.01 é a seguinte:

«1 - A decisão a que se refere o n.º 5 do artigo 17.º-C obsta à instauração de quaisquer ações executivas contra a empresa para cobrança de créditos durante um período máximo de quatro meses, e suspende quanto à empresa, durante o mesmo período, as ações em curso com idêntica finalidade.»  (sublinhado e negrito nossos)

Como é consabido na anterior redação discutiu-se amplamente se no conceito de ações se integravam apenas as ações executivas ou também as ações declarativas, entendendo-se maioritariamente, na doutrina e na jurisprudência, que se englobavam os dois tipos de ações.

(…)

Porém, e como se vê, a redação introduzida pela Lei 9/2022, resolveu a polémica.

E resolveu-a de modo insofismável e incontestável, pois que perante as dúvidas e divergências quanto ao sentido e alcance do aludido segmento normativo, sobre o mesmo foi operada uma interpretação autêntica através de via legislativa.

Efetivamente

«Interpretação autêntica é a que é realizada por uma fonte que não é hierarquicamente inferior às fontes interpretadas. Corresponde à previsão do art.º 13.º/1 do Código Civil português, que nos dá, a propósito de um caso particular, o critério desta interpretação: lei interpretativa é a que realiza a interpretação autêntica, e há interpretação autêntica quando a nova lei se integrará na lei interpretada.» - Ac. RP de 14.03.2016, p. 9706/14.6T8PRT.P1, in dgsi.pt.

No caso vertente assim foi, pois que a nova redação foi introduzida através de Lei interpretativa que se integra na lei interpretada – artº 13º nº1 do CC.

Ora perante o teor atual do artº 17º-E nº1 do CIRE alcança-se meridianamente evidente que o legislador limitou a proibição da instauração de ações, e a sua suspensão já quando instauradas, às ações executivas; mais definindo/limitando o período máximo durante o qual tal proibição e suspensão são possíveis: 04 meses.

Tal limitação tem na sua génese o entendimento sufragado por alguns de que a pendência ou o prosseguimento de uma ação declarativa para reconhecimento de um crédito em nada prejudica a recuperação de uma empresa que tenha logrado a aprovação de um plano – na ação declarativa apenas se discute o montante da dívida, enquanto o plano de recuperação apenas dispõe sobre a forma de pagamento da dívida.

E se, depois da homologação judicial, o plano de recuperação tem a virtualidade de se impor a todos os credores, vinculando mesmo aqueles que não hajam participado nas negociações (art. 17º-F, nº11, CIRE), há que que considerar a posição dos credores que, por algum motivo, não hajam reclamado os seus créditos ou não tenham aí obtido reconhecimento, nos casos de lhes ser vedada a interposição de uma ação declarativa para tal efeito ou o prosseguimento de ação pendente.

Estes casos constituiriam uma restrição injustificada e desproporcionada ao direito do credor a ver reconhecido o seu crédito, em violação do princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional, consagrado no art. 20º, nº1 da Constituição, e concretizado no art. 2º do CPC.

Ao credor que não tenha visto reconhecido o seu crédito (porque não o reclamou ou porque não foi aí reconhecido ou porque a impugnação não chegou a ser apreciada), apenas o recurso à ação declarativa lhe permitirá o reconhecimento da condição de credor, nomeadamente, para efeitos de se encontrar abrangido pelo plano de recuperação aprovado – Neste sentido cfr. Isabel Alexandre, in Efeitos Processuais da Abertura do Processo de Revitalização”, II Congresso do Direito de Insolvência, Almedina, págs. 243 a 246.>>fim de citação.

E como se decidiu no acórdão da Relação de Guimarães, de 22/06/2023, disponível em www.dgsi.pt[2], que acompanhamos:

<<No caso dos autos a acção foi proposta depois do Plano de Revitalização ter sido homologado, o qual como sabemos vincula os credores, ainda que estes não tenham reclamado os respectivos créditos, mas estando perante créditos litigiosos que não foram reclamados no PER (créditos vencidos em data anterior a 7.04.2022) e perante outros créditos que não podiam ter sido reclamados no PER (créditos vencidos em data posterior a 7.04.2022) não é aplicável o prescrito no art.º 17.º E do CIRE, nada obstando, assim, ao prosseguimento da acção tal como foi entendido pelo Tribunal a quo.

Cabe referir que os créditos em causa não foram reclamados no PER, sendo certo que quando terminou o prazo para a reclamação de créditos no PER a relação laboral mantida entre Autor e Ré ainda não tinha cessado.

Assim sendo, afigura-se-nos de manifesto que todos os créditos decorrentes da cessação do contrato de trabalho não podiam ter sido reclamados no PER, nem se encontram abrangidos por este, pelo que só com a instauração da acção declarativa poderiam os mesmos vir a ser reconhecidos. Neste sentido se sumariou no Acórdão deste Tribunal da Relação de 21.01.2021, Proc. 1446/20.3T8BRG.G1 o seguinte:

“I - Aos créditos vencidos após o despacho que procedeu à nomeação do administrador provisório, referentes à cessação da relação laboral, não é aplicável disposto no artigo 17º-E, n.º 1, do CIRE, ainda que o PER esteja pendente, na medida em que esta disposição legal se reporta apenas às dívidas existentes à data da decisão a que se refere a alínea a) do n.º 3 do art. 17º-C do CIRE.

II – De outro modo, os credores, cujos créditos se vencessem posteriormente àquela data, ficavam impossibilitados de ver reconhecido judicialmente o seu direito, o que iria colidir com o princípio fundamental de acesso ao direito e aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da CRP.

Neste caso, em que a acção declarativa é proposta depois da homologação do Plano de Revitalização nela se reclamando créditos que podiam ter sido reclamados no PER (mas que por motivos que se desconhecem, não foram aí reclamados e ou reconhecidos) e créditos que se venceram posteriormente (que por isso não podiam ter sido reclamados e reconhecidos no PER) não vislumbramos qualquer razão para impedir o autor de na acção declarativa ver (ou não) reconhecidos os seus créditos, designadamente os vencidos que poderiam ter sido reclamados no PER, pois só assim fica assegurada a definição dos seus efetivos direitos, bem como o seu direito a uma tutela jurisdicional efetiva, tal como prevê o artigo 20.º da CRP. A instauração e o prosseguimento da acção declarativa em nada prejudica o PER e as negociações que aí foram estabelecidas, pois trata-se de apurar da existência do crédito e se for reconhecido, ou se tornar crédito declarado passa o credor a dispor de um título executivo, que poderá ser suspenso, evitando-se assim que o credor se prevaleça dele.

(…)

Há que permitir ao credor o recurso a Tribunal não só para reconhecer os novos créditos vencidos depois da homologação do PER e que por isso não poderiam ter sido reclamados ou incluídos na lista de credores pelo Administrador Judicial Provisório, mas também para reconhecer os créditos que poderiam ter sido reclamados no âmbito do PER, mas que por razões que se desconhecem e que por isso não podem se imputáveis ao credor, o não foram.

Quer do teor do art.º 17.º-E do CIRE, quer das finalidades do PER podemos afirmar com segurança que o legislador não pretendeu extinguir as acções declarativas pendentes por força da homologação do plano de recuperação, nem pretendeu impedir a propositura de acções em data posterior à homologação do plano de recuperação, nas situações onde se discutem créditos que continuam a necessitar de definição jurisdicional para que possam ser cobrados.

(…)

Em suma, tendo a presente acção dado entrada o tribunal depois da homologação do Plano de Revitalização da ora aqui Ré, todos os pedidos formulados pelo autor, nele se incluindo os créditos vencidos antes da prolação do despacho que nomeou o administrador judicial provisório no PER, têm de ser apreciados, sob pena de se criar uma situação de denegação e justiça.>> - (fim de citação).

Regressando ao caso dos autos, face ao que ficou dito, dúvidas não existem de que a presente ação declarativa não está abrangida pelo disposto no n.º 1 do artigo 17.º-E do CIRE, na redação da Lei n.º 9/2022, pois este apenas contempla as ações executivas.

E, por outro lado, o disposto no n.º 11 do artigo 17.º-F do CIRE, sem mais, não impede o credor que não reclamou o seu crédito (constituído à data) no PER, de intentar uma ação declarativa com vista ao reconhecimento do mesmo.

Na verdade, “uma vez que atualmente apenas as ações executivas ficam impedidas ou suspensas, havendo disputa sobre o valor em dívida ou sobre a própria existência do crédito, tem o credor a possibilidade de começar a discutir o seu crédito numa ação declarativa”,[3] sendo que, “a decisão de homologação do plano torna-o eficaz erga omnes, mesmo em relação aos credores que não reclamaram créditos e ou que não participaram na negociação. Parte-se do princípio, no entanto, que esses credores foram avisados do curso do PER, nos termos do art 17.º-D, n.º 1.”[4]

Certo é que a presente ação foi intentada em data posterior à da homologação do plano de revitalização da Ré que vincula os credores nos termos suprarreferidos, no entanto, tendo em conta que os créditos vencidos em data anterior a 17/01/2023, e não reclamados no PER por motivos que se desconhecem, são créditos litigiosos (como resulta dos articulados apresentados pelas partes) e os vencidos em data  posterior não podiam ter sido reclamados no mesmo[5], tais créditos não estão abrangidos pelo n.º 11 do artigo 17.º-F do CIRE, nada obstando ao prosseguimento da presente ação, sob pena de denegação de justiça.

Face a tudo o que foi dito, à laia de conclusão, inexiste qualquer impedimento legal ao prosseguimento da presente ação e, por isso, não devia ter sido, como foi, julgada extinta a instância por impossibilidade superveniente da lide.  

                                                             *

Fica prejudicado o conhecimento da 3ª questão supra enunciada.

                                                             *

Resta dizer que, em casos semelhantes, decidimos no sentido da extinção da instância, no entanto, a decisão foi proferida no âmbito do CIRE na redação anterior à da Lei n.º 9/2022, de 11/01.

                                                             *

Procedem, assim, as conclusões formuladas pelo Autor recorrente, impondo-se a revogação da decisão recorrida e o prosseguimento dos autos.

                                                             *

                                                             *

IV – Sumário[6]

(…).

                                                               *

                                                             *

V - DECISÃO

Nestes termos, sem outras considerações acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida, devendo os autos prosseguir os seus trâmites normais.

                                                             *

Custas a cargo da recorrida.

                                                             *

                                                             *

  Coimbra, 2025/06/27

__________________

 (Paula Maria Roberto)

________________

(Felizardo Paiva)

____________________

(Mário Rodrigues da Silva)                                                                                                                                                                                                                                      


[1] Relatora – Paula Maria Roberto
 Adjuntos – Felizardo Paiva
                  – Mário Rodrigues da Silva

[2] Pese embora não tenha sido aplicada a atual redação da Lei n.º 9/2022, de 11/01, as considerações tecidas têm aplicação no caso dos autos.  
 [3] Susana Amaral Ramos, Recuperação de Empresas, Regimes Legais Anotados, 2ª Edição, Almedina, pág. 158.
[4] Susana Amaral Ramos, obra citada, pág. 194.
[5] O contrato de trabalho cessou alegadamente em 24/05/2023.
[6] O sumário é da exclusiva responsabilidade da relatora.