CONTRATO DE TRANSPORTE DE MERCADORIAS POR TERRA
INCUMPRIMENTO
Sumário

I – Resultando que a empresa transitária celebrou um contrato com a segurada da A. em que assumiu o papel de transportador e celebrou em nome próprio o contrato de transporte com a Ré, assumindo aquela a posição de expedidor e esta a posição de transportador no respectivo documento de expedição, ou CMR, a responsabilidade contratual pelo incumprimento do contrato celebrado com a segurada da A. é daquela empresa, nos termos do art. 15.º do D.L. n.º 255/99, de 07/07, que regula o acesso e o exercício da actividade transitária, tendo a mesma direito de regresso relativamente à Ré.
II – Pretendendo a A. exercer o direito de crédito da sua segurada derivado do incumprimento parcial do contrato que esta celebrou com a empresa transitária para transporte de mercadorias para Itália, deveria ter accionado directamente esta empresa, até porque não está prevista no caso a acção directa do expedidor no contrato de transitário contra o transportador sub-contratado.
III – Para que o terceiro possa ser responsabilizado pela violação do direito de crédito do credor é necessário que aquele tenha conhecimento efectivo do direito deste e que tenha consciência de que está a lesar tal direito.
IV – Ainda que a Ré pudesse ser responsabilizada directamente pela segurada da A., a sua obrigação de indemnizar decorreria do disposto nas regras gerais de indemnização dos arts. 562.º e seguintes do Código Civil, e não das regras da Convenção CMR, uma vez que estas têm aplicação apenas no âmbito da responsabilidade contratual decorrente da celebração de contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada.

Texto Integral

Proc. n.º 468/23.7T8MAI.P1



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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:


I “A..., S.A.” intentou, no Juízo Local Cível da Maia do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, acção declarativa, com processo comum, contra “B..., Lda.”, pedindo a condenação desta a pagar-lhe a quantia de € 39.006,39, acrescida de juros de mora, à taxa legal comercial.
Alegou para tal que, na qualidade de seguradora, celebrou com “C..., Malhas e Confecções, Lda.” um contrato de seguro de transporte de mercadorias, que cobria o risco de transporte de confecções/vestuário para senhora e homem, tecidos e acessórios do local de origem para o local de destino, que esta empresa vendeu a mercadoria referida nos arts. 12º e 13º da petição inicial para um cliente em Itália, tendo contratado com a R. o respectivo transporte, durante o qual, na noite de 18 para 19/01/2022, quando o veículo que fazia o transporte estava aparcado na área de serviço da Repsol, em ..., Espanha, as peças indicadas no art. 39º da petição inicial foram furtadas por desconhecidos, que o furto foi participado à “C...” pela transitária desta, “D...”, e que a segurada participou o sinistro à A., a qual, no âmbito do contrato de seguro, em 13/07/2022, lhe pagou a quantia de € 39.006,39, ficando por aquela sub-rogada nos direitos que pudesse ter contra a R., que foi responsabilizada pelo sucedido e não rejeitou as reclamações que recebeu.
A R. contestou, invocando a excepção de prescrição do direito da A., impugnando os factos alegados na petição inicial, alegando designadamente que nunca teve qualquer relação comercial com a “C...” nem efectuou qualquer transporte de mercadorias a pedido desta sociedade, e aduzindo que, de todo o modo, a responsabilidade por perda de mercadoria é calculada nos termos da Convenção CMR, tendo como limite máximo as 8,33 unidades de conta por quilograma de peso bruto em falta.
A A. respondeu, defendendo não se verificar a excepção de prescrição invocada.
Por despacho de 10/09/2023 decidiu-se:
«(…)
No caso dos autos a Autora, na fundamentação do seu pedido, invoca, além do mais, que celebrou com a Ré um contrato de transporte internacional de mercadorias por terra (artigos 16º a 27º). Nos artigos 28º e 29º, porém, faz referência à D..., transitária da Autora, a qual, inclusivamente, lhe terá participado o furto das mercadorias (artigo 46º).
Ora, considerando o regime jurídico da actividade transitária, importa esclarecer qual o papel desempenhado pela D... no contrato celebrado com a Ré porquanto tal poderá ter influência no mérito da acção. A imprecisão dos factos que concretizam a causa de pedir deverá dar lugar a um convite ao aperfeiçoamento, nos termos do artigo 590º, nº 1, nº 2, alínea b) e nº 4, do Código de Processo Civil, por forma a que a parte contrária possa exercer completamente o contraditório, em relação aos específicos elementos factuais que constroem, no seu conjunto, aquela causa de pedir.
Assim, nos termos do disposto no artigo 590º, nº 2, alínea b) e n.º 4, do Código de Processo Civil, convido Autora a aperfeiçoar a petição inicial, corrigindo as imprecisões da matéria de facto alegada, nos termos expostos, e após deverá a Ré pronunciar-se quanto à resposta ao convite, agora, formulado.»
Em resposta, a A. alegou que a “D...” não celebrou qualquer contrato com a R., apenas celebrou contrato enquanto transitário com a “C...”.
Foi realizada audiência prévia, foi elaborado despacho saneador, onde se julgou improcedente a excepção de prescrição invocada, fixou-se o objecto do litígio e enunciaram-se os temas da prova.
Procedeu-se seguidamente a julgamento, após o que foi proferida sentença, na qual se decidiu julgar a acção improcedente e, em consequência, absolver a R. do pedido.
Desta decisão veio a A. interpor recurso, tendo, na sequência da respectiva motivação, apresentado as seguintes conclusões, que se transcrevem:
«I. Salvo o devido respeito, ocorreu erro no julgamento dos factos dados como não provados sob o nº 2, a saber:
“2. O local onde o camião foi estacionado era isolado, despovoado àquela hora, sem qualquer vigilância e com escassa iluminação pública.” (sic)
II. Na verdade, (i) o próprio tribunal recorrido reconhece, na sua motivação, que o local não é controlado e não existem aí câmaras de vigilância, o que também decorre (ii) do relatório junto como doc. 3 da petição e (iii) do próprio depoimento da testemunha, motorista do camião, AA (gravado na audiência de 02.05.2024, das 10:28 às 00:17:49), (iv) do depoimento da testemunha Engº BB, averiguador (gravado na audiência de 15.05.2024, das 14:45 às 11:08) e (v) da mera consulta do sítio, na internet, público internet:truckparkingeurope. Estes dois factos, (a) de que o local não é controlado e (b) não existem aí câmaras de vigilância deverão, como tal, ser dados como provados.
III. Por seu lado, que o local era isolado, despovoado àquela hora, sem qualquer vigilância e com escassa iluminação pública decorre ainda
i. das fotografias a p. 5 a 8 do doc. 3 da petição,
ii. do relatório junto como doc. 3 da petição,
iii. do depoimento da testemunha Engº BB, averiguador (gravado na audiência de 15.05.2024, das 14:45 às 11:08),
iv. da mera consulta do sítio público, na internet, googleearth,
v. da consulta do sítio público, na internet, internet:truckparkingeurope e
vi. de simples presunção natural dos factos:
(a) de o aparcamento ter sido feito à noite (facto provado 19),
(b) numa estação de serviço na AP, via tipo auto-estrada (facto 19),
(c) do condutor do camião ter ido descansar (facto 20),
(d) de durante a noite o selo e as portas daquele semirreboque terem sido abertos por desconhecidos que dele retiraram do seu interior, furtaram e fizeram suas 2405 unidades (facto 21)
e, finalmente,
(e) de só na manhã do dia seguinte, o dia 19, o motorista se ter apercebido do furto (facto 22).
IV. Deverá, como tal, no uso dos poderes previstos no artº 662º do CPC, dar-se como provado:
O local onde o camião foi estacionado era isolado, despovoado àquela hora, sem qualquer vigilância e com escassa iluminação pública.
V. Concluindo-se depois, de direito, com os mais factos, sobre isto, dados como provados nos nºs 19 a 22, que tudo integra o conceito de falta imputável, a título de negligência grosseira, ao motorista do camião, que foi quem escolheu o local do parqueamento, podendo e devendo ter escolhido outro, mais seguro, e, como tal, à imputação dos prejuízos, sem qualquer limitação, à apelada, com base no previsto no artº 29º da Convenção CMR, condenando-se, como tal, a apelada no pedido.
VII. Se assim se não entender deverá então a ré ser condenada a pagar à apelante ao menos a indemnização prevista no artº 23º da Convenção CMR.
VIII. Salvo o devido respeito, o tribunal a quo fez uma errada interpretação e aplicação do previsto nos artºs 23º e 29º da Convenção CMR.
TERMOS EM QUE a apelação deverá ser julgada procedente, substituindo-se a sentença recorrida por acórdão que condene a apelada no pedido, com o que se fará
JUSTIÇA !».
A R. apresentou contra-alegações, defendendo a rejeição do recurso quanto à impugnação da matéria de facto, por não terem sido cumpridos os ónus do art. 640º do C.P.C., e, no mais, que deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

***


II – Considerando que o objecto do recurso interposto, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas suas respectivas conclusões (cfr. arts. 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do C.P.C.), são as seguintes as questões a tratar, por ordem lógica de precedência:
a) admissibilidade do recurso;
b) impugnação da matéria de facto;
c) mérito da causa.
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Vejamos a primeira questão.
O recurso pode ter como objecto a impugnação da decisão sobre a matéria de facto e a reapreciação da prova gravada (cfr. art. 638º, nº 7, e 640º do C.P.C.).
Neste caso, o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição (nº 1 do art. 640º):
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
No que respeita à alínea b) do nº 1, e de acordo com o previsto na alínea a) do nº 2 da mesma norma, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
No caso, a recorrida defende que a recorrente não procedeu à indicação exacta das concretas passagens da gravação dos dois depoimentos que refere, nem explica como é que esses depoimentos poderiam conduzir a solução diferente.
A recorrente impugna os factos que ficaram a constar do ponto 2 do elenco dos factos não provados, aduzindo argumentação para colocar em causa a conclusão a que nessa parte chegou o tribunal recorrido na sua motivação, indicando não só o que foi dito nessa motivação de que “o local não é controlado e não existem aí câmaras de vigilância”, bem como o documento 3 junto com a petição inicial, a consulta de dois sítios na Internet, a presunção natural decorrente de determinados factos dados como provados e os depoimentos de duas testemunhas ouvidas na audiência de julgamento, indicando os dias das respectivas sessões e a hora de início, sendo que da sua alegação se percebe que faz uma análise crítica de todos os elementos que indica e os motivos pelos quais considera que o facto em causa deve ser dado como provado, bem como o que entende ter sido referido pelas testemunhas, ainda que sem haver uma expressa transcrição de depoimentos, não havendo qualquer dificuldade em encontrar os depoimentos das testemunhas com a consulta das respectivas actas de audiência de julgamento, nem em verificar os mesmos, para mais que os depoimentos têm apenas a duração total de 17m49s e 23m18s, respectivamente.
Sendo assim, verifica-se que a recorrente deu suficiente cumprimento às exigências referidas, especificando o concreto ponto dos factos não provados que põe em causa, indicando as razões da sua discordância, bem como a alteração que pretende quanto a tal factualidade, e indicando os concretos meios de prova que justificam a sua pretensão.
Pelo que, afigura-se que está cumprido o ónus em questão por parte da recorrente.
Anote-se que há que ter em conta o princípio da proporcionalidade, não exacerbando os requisitos formais a tal ponto que tal se traduza numa denegação/recusa da reapreciação da matéria de facto, ao arrepio do que foi a intenção do legislador e do que consta claramente da letra da lei (neste sentido, cfr. Ac. do S.T.J. de uniformização de jurisprudência nº 12/2023, de 14/11, D.R. n.º 220/2023, Série I, págs. 44 a 65, e António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, 7ª edição actualizada, págs. 202 a 207).
É, portanto, admissível o recurso, não havendo razões para a sua rejeição, designadamente pelo motivo invocado pela recorrida.
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Passemos à segunda questão.
Assente que a recorrente cumpriu com as exigências respeitantes à impugnação da matéria de facto, apreciemos então da alteração pretendida.
São os seguintes os factos dados como provados na sentença recorrida (transcrição):
«1. A Autora é uma sociedade comercial que se dedica à actividade seguradora.
2. A Ré é uma sociedade comercial que se dedica à actividade de transporte de mercadorias.
3. No exercício da sua actividade a Autora, na qualidade de seguradora, celebrou com C..., Malhas e Confecções, Lda., pessoa colectiva nº ...93, com sede na Rua ..., ..., na qualidade de tomadora e segurada, o contrato de seguro de transporte de mercadorias, titulado pela apólice nº ...29 e pelo certificado nº ...46.
4. Este contrato tinha por objecto seguro a mercadoria da segurada, a saber confecções/vestuário para senhora e homem, tecidos e acessórios, melhor descrita na factura nº 2022/28.
5. Cobria o risco do transporte daquelas mercadorias do local de origem para o de destino.
6. Tinha por âmbito de cobertura armazém – armazém.
7. Por âmbito geográfico, além do mais, a Europa.
8. Por meios de transporte, além do mais, o terrestre.
9. E estava sujeito à cláusula Institute Cargo Clauses A), que majorava o prejuízo em 10%.
10. Este contrato estava em vigor à data de Janeiro de 2022.
11. A sobredita segurada da Autora é uma sociedade comercial que se dedica à actividade de confecção e comercialização têxtil.
12. Vendeu a mercadoria, artigos diversos de vestuário à sua cliente de Itália, E..., Spa, num total de 3521 unidades, 124 caixas e 687 kg, com o valor de venda global de 55.319,75 €.
13. Venda essa sujeita à clausula incoterm CIP.
14. A dita segurada da Autora celebrou com D..., enquanto transitária, um contrato para transporte das mercadorias.
15. A D... celebrou com a Ré um contrato de transporte das mercadorias, por terra, pelo qual, contra o pagamento de uma prestação pecuniária, que a Ré recebeu, se obrigou a transportar as sobreditas mercadorias de ... e Vila do Conde, Portugal, até ..., Itália.
16. Aquele contrato foi titulado pelo CMR nº ...10 A, datado de 14.01.2022, no qual figurou como expedidor a C..., como local de origem ..., como destinatário E..., Spa, como local de destino/entrega da mercadoria Via ..., ... ..., Itália, como transportador a ré e como mercadoria transportada 124 boxes (3 palets) textiles, com 687 kg.
17. E foi ainda titulado pelo CMR nº ...41, datado de 17.01.2022, no qual figurou como expedidor, a transitária da C..., D..., como destinatário E..., Spa, como local de entrega da mercadoria ...15 ..., ..., como transportador a ré, como mercadoria 3 paletes, com 1100kg.
18. Em 17.01.2022 a Ré carregou aquelas mercadorias.
19. Em 18.01.2022, pela noite, o tractor e semi-reboque que transportavam as mercadorias foram parqueados pelo respectivo condutor na área de serviço da Repsol, ao km ... da AP-7, em ..., Espanha.
20. O respectivo condutor foi descansar.
21. Durante a noite o selo e as portas daquele semireboque foram abertos por desconhecidos que dele retiraram do seu interior, furtaram e fizeram suas 2405 unidades (T-shirts, polos, vestidos, etc) nele transportadas, no valor global de 35.460,35 €.
22. O que tudo foi constatado pelo condutor na manhã do dia 19.01.2022.
23. E por ele foi logo participado às autoridades, no caso a Generalitat de Catalunya, Departamento d´Interior, Direcció General de la Policia que lavraram do ocorrido o auto nº ...42/2022 AT USCJONQUE.
24. No destino, em 20.01.2022, o destinatário lavrou, por escrito, em italiano, as seguintes reservas no CMR: “Ricevuti: 2nplt com 37 culli. Riserva di. ctrl. su. qta”.
25. O que, traduzido para português, quer dizer: “Recebidas: 2 paletes com 3 cartões. Reservas de controlo de qualidade”.
26. O furto foi participado pela transitária D... à C... por escrito de 19.01.2022.
27. Aquela transitária responsabilizou pelo mesmo a Ré por escrito de 15.02.2022, que esta recebeu.
28. A C... emitiu a favor da E..., Spa, a nota de crédito nº NC 2022/5, datada de 16.02.2022, no valor de 35.460,35 €.
29. A C... reclamou depois da Autora a indemnização do prejuízo no valor de 35.460,35 €.
30. Este foi depois fixado no valor final de 39.006,39 €, por sujeito à sobredita cláusula de majoração.
31. Em cumprimento do contrato de seguro com ela celebrado a Autora pagou assim em 13.07.2022 à sua segurada, C..., a quantia de 39.006,39 €.
32. Que a recebeu e dela deu quitação, por escrito por ela assinado em 13.07.2022.
33. No qual, para além do mais, declarou o seguinte: “O titular aceita receber a quantia acima indicada como completa indemnização por todos os prejuízos sofridos neste sinistro e indemnizáveis ao abrigo do contrato de seguro titulado pela apólice em referência. § Com o recebimento da aludida quantia, considera-se, para todos os efeitos legais, integralmente ressarcido de todos os danos referidos no parágrafo anterior. Consequentemente, declara exonerar o segurador de toda e qualquer responsabilidade que diga respeito ao mesmo sinistro, subrogando-o nos correspondentes direitos, acções e recursos contra quaisquer outras pessoas, eventualmente responsáveis pelo sinistro.”.».
Tendo sido dados como não provados os seguintes factos (transcrição):
«1. A mercadoria foi carregada no seu semireboque L-......, puxado pelo tractor ..-RF-...
2. O local onde o camião foi estacionado era isolado, despovoado àquela hora, sem qualquer vigilância e com escassa iluminação pública.».
Pretende a recorrente que seja considerado provado o facto do ponto 2 dos factos não provados [O local onde o camião foi estacionado era isolado, despovoado àquela hora, sem qualquer vigilância e com escassa iluminação pública.], que corresponde ao facto alegado no art. 36º da petição inicial, impugnado no art. 18º da contestação.
No caso concreto, como decorre dos factos dados como provados, na parte em que não foram impugnados, e portanto se encontram definitivamente assentes, e do enquadramento jurídico nesta parte dado pela sentença recorrida, também não posto em causa pelas partes em sede de recurso, a segurada da A. celebrou um contrato para transporte das mercadorias com a “D...”, enquanto transitária, e esta, por sua vez, celebrou um contrato de transporte das mercadorias com a R..
Ou seja, a eventual responsabilização da R. não pode fundar-se na responsabilidade contratual (porque nenhum contrato celebrou com a segurada da A.), mas apenas na responsabilidade delitual (nomeadamente no âmbito da chamada “eficácia externa das obrigações”, como abordado na sentença recorrida).
Ora, em face da circunstância acabada de relatar, e como melhor decorrerá do tratamento da questão enunciada sob a alínea c), a factualidade objecto de impugnação por parte da recorrente não tem qualquer utilidade para a apreciação do mérito do presente recurso, uma vez que o facto impugnado em nada interfere com a questão de saber se a R. pode ser responsabilizada directamente por danos sofridos pela segurada da A., a qual depende de se concluir por imputar àquela a violação do direito de crédito desta sobre a “D...”, posto que, ainda que se provasse o referido facto, não seria este que, singelamente, permitiria a resposta positiva a tal questão.
Face a tal circunstancialismo é irrelevante a alteração factual pretendida pela recorrente quanto ao ponto 2 dos factos não provados.
Sendo irrelevante tal factualidade para a apreciação do mérito da causa, e a fim de não se praticarem actos inúteis no processo (o que até se proíbe no art. 130º do C.P.C.), não há que conhecer da impugnação deduzida nesta parte (neste sentido cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 2022, 7ª edição actualizada, pág. 334, nota 526, e, entre outros, o Ac. do STJ de 23/1/2020 (proc. 4172/16.4TFNC.L1.S1), C.J.S.T.J., tomo I, pág. 13, e o Ac. da R.P. de 05/11/2018, publicado na Internet, em www.dgsi.pt, com o nº de processo 3737/13.0TBSTS.P1).
Donde, em face do que acaba de se analisar, não se conhece da impugnação da matéria de facto apresentada pela recorrente.
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Apreciemos agora a terceira questão.
Como já se disse, da matéria de facto provada (e não impugnada) e do enquadramento jurídico nesta parte dado pela sentença recorrida (não posto em causa neste recurso) resulta que a segurada da A. celebrou um contrato para transporte das mercadorias com a “D...”, enquanto transitária, e esta, por sua vez, celebrou um contrato de transporte das mercadorias com a R..
A A. encontra-se nos autos a exercer a sub-rogação prevista no art. 136º do regime jurídico do contrato de seguro (anexo ao D.L. 72/2008, de 16/04), pelo que dispõe dos poderes que competiam à sua segurada (art. 593º, nº 1, do C.C.).
Assim, decorrendo daqueles contratos que, no âmbito da actividade transitária, a “D...” assumiu o papel de transportador e celebrou em nome próprio o contrato de transporte com a ora R., assumindo aquela a posição de expedidor e esta a posição de transportador no respectivo documento de expedição, ou CMR (cfr. pontos 15 e 17 da matéria de facto) [de acordo com o art. 4º da Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR), aprovada, para adesão pelo Decreto nº 46.235, de 18/03/1965, e alterada pelo Protocolo aprovado, para adesão, pelo D.L. nº 28/88, de 06/09/1988, foi estabelecido um contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada entre a “D...”, enquanto expedidor, e a R., enquanto transportador], a responsabilidade contratual pelo incumprimento do contrato celebrado com a segurada da A. é da “D...”, nos termos do art. 15º do D.L. 255/99, de 07/07, que regula o acesso e o exercício da actividade transitária, tendo esta direito de regresso relativamente à R., que assume quanto àquele contrato a posição de terceiro com quem a “D...” contratou a execução do transporte.
Ou seja, pretendendo a A. exercer o direito de crédito da sua segurada derivado do incumprimento parcial do contrato que esta celebrou com a “D...” para transporte das mercadorias para Itália, deveria ter accionado directamente esta empresa, até porque, como se concluiu na sentença recorrida (e não foi posto em causa no recurso), não está prevista no caso a acção directa do expedidor no contrato de transitário contra o transportador sub-contratado.
Tendo a A. demandado directamente a R., a responsabilidade desta (como já se aflorou no tratamento da segunda questão) apenas poderá fundar-se na responsabilidade delitual.
Tem sido debatida na doutrina e jurisprudência a possibilidade (e de que modo o fazer) de responsabilizar terceiros pela violação de direitos de crédito, que são direitos relativos, havendo posições que vão desde a não admissão dessa responsabilidade até à sua admissão, passando por posições intermédias que a admitem em determinado tipo de situações, seguindo uns a via do abuso de direito e outros a via da interpretação ampla do art. 483º do Código Civil.
Com efeito, o direito de crédito nasce no âmbito de uma relação contratual e corresponde ao direito do credor ao cumprimento pontual do contrato por parte do devedor, podendo ser frustrado esse cumprimento “em resultado da interferência de um terceiro que, imiscuindo-se na relação creditícia, impede o cumprimento pelo devedor ou coopera com este no seu não cumprimento”. O crédito pode ser “lesado por terceiros de dois modos distintos: mediante ataque ao substrato do crédito ou mediante ataque ao crédito em si” (Ana Rita Gabriel Passos, “A eficácia externa das obrigações”, Mestrado em Direito e Prática Jurídica – Especialidade em Direito Civil, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2019, pág. 8, podendo ser consultado, e onde consultámos, em https://repositorio.ulisboa.pt/bitstream/10451/41885/1/ulfd140961_tese.pdf).
Explicou-se no Ac. do S.T.J. de 11/12/2012, com o nº de processo 165/1995.L1.S1, publicado em www.dgsi.pt, que “os direitos de crédito sendo susceptíveis de lesão por parte de todos, impõem-se ipso facto de forma universal”, sendo que mesmo a doutrina tradicional “não é também entendida de uma forma pura e estrita”, pois “no âmbito da relação obrigacional e mau grado o seu natural hermetismo, existem por vezes áreas em que um terceiro pode penetrar provocando não raro o desequilíbrio contratual e até a destruição do vínculo”. E havendo “interferência de terceiro no âmbito da relação obrigacional”, que ultrapassa “os limites da boa-fé ou abuso do direito”, tal impõe “a responsabilização do terceiro que os transpôs”.
No caso não está em causa a violação de um direito absoluto da segurada da A., posto que a perda de parte da mercadoria sempre convocaria, nas relações entre esta e a cliente final italiana, a questão da repartição do risco (saber se o risco de perda dos bens corria, no momento em que houve a subtracção, pela vendedora ou pela adquirente), não sendo líquido que aquela ainda se pudesse considerar proprietária dos bens, e, de todo o modo, ainda que assim fosse, a violação do direito de propriedade sempre foi levada a cabo pelos autores da subtracção (não decorrendo da matéria de facto – mesmo que se considerasse o facto impugnado no recurso – qualquer conluio com estes por parte de algum elemento da R., designadamente o motorista, nem a existência de dolo, ainda que na forma de dolo eventual, relativamente à possibilidade de ocorrência da subtracção das mercadorias).
Logo, a possibilidade de responsabilização da R. só terá lugar se se concluir que a mesma violou o direito de crédito da segurada da A. sobre a “D...” e em termos tais que imponham essa sua responsabilidade.
Siga-se qual das vias doutrinárias se seguir, há um denominador comum entre elas: a de que é “necessário que o terceiro tenha conhecimento efectivo do direito do credor” (Ac. do S.T.J. de 27/01/2022, com o nº de processo 6296/20.4T8GMR.S1, publicado em www.dgsi.pt), não se prescindindo, em qualquer caso, da culpa do terceiro, da censurabilidade da sua conduta. “Exige-se, designadamente (…) que o “terceiro tenha tido a intenção ou pelo menos a consciência de lesar os credores da pessoa directamente ofendida ou da pessoa com quem contrata” (…) ou que aja “com intenção ou consciência do prejuízo, mesmo abstracto, causado ao credor (…). (…) entende-se, assim, que para que possa ser responsabilizado é necessário que o terceiro tenha consciência do prejuízo que pode causar ao credor. O que significa que (…) a responsabilidade do terceiro é (deve ser) sempre uma responsabilidade por dolo e só por dolo (compreendendo-se dentro do dolo não só o dolo directo com as modalidades do dolo necessário e dolo eventual). Deste modo se afasta, pois, a responsabilidade por negligência (que se considera prejudicar o livre desenvolvimento dos negócios)” (Ac. do S.T.J. de 26/11/2024, com o nº de proc. 3603/21.6T8BRG.G1.S1, publicado em www.dgsi.pt).
No caso concreto não resulta da matéria de facto (nem tal foi alegado) que a R. tivesse efectivo conhecimento do direito de crédito da segurada da A. sobre a “D...” (o simples facto de ter sido a R. quem fez já o transporte inicial a partir das instalações daquela não significa que soubesse que contrato existia entre ambas e quais os respectivos termos) e que tivesse agido (por exemplo, facilitando a subtracção das mercadorias do camião onde eram transportadas) com consciência e até intenção de com isso colocar em causa aquele direito de crédito.
Ademais, também não se pode ainda no caso concluir pela definitiva violação do crédito da segurada da A. sobre a “D...” e consequente existência de dano, posto que da matéria de facto não resulta (nem tal foi alegado como causa de pedir da acção) que seja neste momento impossível responsabilizar a “D...” pelo sucedido, obter da mesma a indemnização do prejuízo sofrido com o incumprimento parcial do contrato que ambas celebraram. Sendo certo que, ainda que assim fosse, igualmente nada permite concluir por uma interferência da conduta da R. nessa impossibilidade e por uma interferência ilícita, culposa e causal. Ou seja, não está demonstrado que tivesse ocorrido a total frustração do crédito da segurada da A. sobre a “D...” e que esta ocorrência fosse imputável à R..
O que nos leva a concluir que, independentemente da posição que se tome sobre a questão da responsabilidade de terceiros pela violação de direitos de crédito, no caso não se coloca a questão, posto que a factualidade apurada não permite responsabilizar a R. nesse âmbito.
Como quer que seja, mesmo que se entendesse que a R. poderia ser responsabilizada directamente pela segurada da A., a sua obrigação de indemnizar decorreria do disposto nas regras gerais de indemnização dos arts. 562º e segs. do Código Civil, e não das regras da Convenção CMR invocadas pela A. no recurso, uma vez que estas têm aplicação apenas no âmbito da responsabilidade contratual decorrente da celebração de contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada.
Note-se que, como decorre do que se analisou, a A. deveria ter exercido o seu direito de sub-rogação sobre a “D...”, no âmbito da responsabilidade contratual desta (aqui, sim, aplicando-se as normas indemnizatórias previstas na Convenção), cabendo a esta exercer o direito de regresso sobre a R., também no âmbito da responsabilidade contratual.
Perante o exposto, conclui-se que não merece, assim, acolhimento a pretensão da recorrente.
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Em face do resultado do tratamento das questões analisadas, é de concluir pela não obtenção de provimento do recurso interposto pela A. e pela consequente confirmação da decisão recorrida.
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III - Por tudo o exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
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Custas da apelação pela recorrente (art. 527º, nºs 1 e 2, do C.P.C.).
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Notifique.





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Sumário (da exclusiva responsabilidade da relatora - art. 663º, nº 7, do C.P.C.):
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datado e assinado electronicamente








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Porto, 2025/6/26.

Isabel Ferreira
António Carneiro da Silva
Ana Vieira