CAUSA DE PEDIR
FACTOS ESSENCIAIS
ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA
Sumário

I - A causa de pedir é constituída pelos factos de cuja verificação depende a procedência do pedido.
II - Proposta ação e citado o réu, a causa de pedir, enquanto elemento essencial da causa, torna-se, nos termos do art.º 260.º do CPC, estável, mas não necessariamente imutável.
III - Pode, com efeito, ser alterada ou ampliada por acordo das partes, em qualquer altura do processo, em 1.ª ou em 2.ª instância, salvo se tal perturbar inconvenientemente a instrução, discussão e julgamento da causa (art.º 264.º do CPC).
IV - Também pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceite pelo autor; para o efeito, dispõe este do prazo de 10 dias contado da aceitação (art.º 265.º, n.º 1 do CPC).
V - Pode, ainda, ser modificada sempre que na origem da modificação estejam factos supervenientes, desde que introduzidos em juízo através de articulado superveniente (art.º 588.º, n.º 1 do CPC).
VI - Cabe exclusivamente às partes, sem que o tribunal possa substitui-las nessa tarefa, o ónus da alegação dos factos essenciais, isto é, daqueles que constituem a causa de pedir ou em que se baseiam as exceções invocadas, o mesmo é dizer os factos que servem de fundamento à ação e à defesa (art.º 5.º, n.º 1 do CPC).

Texto Integral

Processo n.º 331/23.1T8AMT.P1 - Recurso de apelação

Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este - Juízo Local Cível de Amarante

Recorrente: AA

Recorrido: Condomínio do Edifício ...


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.- Sumário

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.- Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto,

I.- Relatório

.- AA instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Condomínio do prédio constituído em propriedade horizontal, denominado ‘Edifício ..., sito na Rua ..., ..., da União de Freguesias ... (...), ..., ... e ..., ....

Pediu, pela procedência da ação, a condenação do Réu:

a.- a realizar, à sua custa, as obras de reparação e eliminação das causas dos problemas surgidos na fração do A., em prazo nunca superior a 30 dias, e a pagar ao A., a título de sanção pecuniária compulsória, nos termos do art.º 829.º-A do CC, o valor de € 100,00 por cada dia de atraso no cumprimento;

b.- a pagar ao A. a quantia de € 3.800,70, a título de indemnização referente ao custo das obras de reparação descritas de 36.º a 38.º supra, ou, caso assim se não entenda, condenar a Ré a proceder às obras de reparação descritas de 36.º a 38.º supra, em prazo nunca superior a 15 dias, e a pagar ao A., a título de sanção pecuniária compulsória, nos termos do art.º 829.º-A do CC, o valor de € 100,00 por cada dia de atraso no cumprimento;

c.- a pagar ao A. a quantia de € 1.200,00, a título de rendas que este deixou de auferir até à presente data, acrescida da quantia correspondente às rendas que se forem vencendo até ao pagamento da quantia referida na alínea precedente ou, caso assim se não entenda, até à conclusão das obras referidas na alínea precedente por parte da Ré;

d.- a pagar ao A. a quantia de € 300,00, a título de indemnização pelo dano referido no art.º 39.º do presente articulado.

e.- a pagar ao A. o montante correspondente aos juros moratórios sobre as quantias referidas nas alíneas precedentes, à taxa legal, desde os seus vencimentos e até integral e efetivo pagamento.

Para tanto, e em síntese, alegou, no que para este recurso importa, o seguinte.

É proprietário da fração autónoma designada pelas letras AJ, destinada a habitação, tipo t2, situada no 3.º e último andar, sob a cobertura, do ‘Edifício ...’, cujo condomínio é o Réu.

Em 31 de outubro de 2022, provindo do telhado e de fissuras do edifício, surgiram infiltrações de água, que causaram estragos no interior de um dos quartos e no teto da sua varanda.

A fração estava arrendada, mediante o pagamento de uma renda mensal de € 300,00, sendo que, com os estragos que sofreu, deixou de ter condições de habitabilidade em dezembro de 2022.

Por esse motivo, a arrendatária deixou, em dezembro de 2022, de pagar a renda, pelo que, à data da propositura da ação, não auferira a quantia de € 1.200,00 a título de rendas.

O condomínio Réu não diligenciou pela reparação, quer das causas das infiltrações, quer dos estragos causados no interior da fração; é, pois, responsável, quer por tal reparação, quer por indemnizá-lo dos danos causados, nomeadamente, do valor das rendas, vencidas e vincendas, não recebidas.


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Citado, contestou o Réu, batendo-se pela improcedência da ação.

No que ao caso importa, alegou, em síntese, o seguinte.

Em assembleia realizada a 06-04-2021, na qual o Autor não compareceu nem se fez representar, os condóminos do Edifício Réu deliberaram iniciar as obras pela cobertura e só depois passar para a fachada; mais deliberaram que a obra só teria início quando houvesse disponibilidade para o efeito.

O Autor não impugnou esta deliberação, pelo que ficou vinculado à mesma, não podendo formular na ação os pedidos que formula, comportamento que, de resto, configura abuso de direito.

Os estragos descritos pelo Autor no interior da sua fração, se se verificaram, poderão ter tido como causa outros fatores que não o estado das partes comuns do edifício em que se insere.

A arrendatária continua a habitar a fração, o que revela que esta mantém condições de habitabilidade, sendo abusivo pedir o valor das rendas ao condomínio e, em contrapartida, continuar gratuitamente a habitar na fração.


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Dispensada a audiência prévia, foi:

.- fixado em € 5.300,70 o valor da causa;

.- proferido despacho saneador tabelar;

.- identificado o objeto do litígio;

.- enunciados os temas da prova;


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Foi realizada a audiência de discussão e julgamento.


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Seguidamente, foi proferida sentença julgando:

1.- parcialmente procedente o primeiro pedido acima referido em b. e, consequentemente, condenando o Réu a pagar ao Autor a quantia de € 796,72, acrescida de IVA, bem como de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento;

2.- improcedentes os restantes pedidos, deles absolvendo o Réu.


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Inconformado com esta decisão, dela veio o Autor interpor o presente recurso, batendo-se pela sua revogação no segmento que absolveu o Réu/Apelado dos pedidos das alíneas c) e e) e pela sua substituição por outra que o condene a pagar-lhe uma indemnização correspondente ao valor das rendas que o Autor/Apelante deixou de auferir desde outubro de 2023, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, desde a citação até efetivo e integral pagamento.

Para tanto, formulou as seguintes conclusões:
A) Tendo o Tribunal a quo dado como provado, no facto 19, que a inquilina continuou a habitar na fracção do autor, e dado como não provado o tema da prova n.º 15, a saber, que a fracção autónoma continua arrendada, quer isto dizer que o Tribunal a quo considerou que a fracção continua por arrendar. O Tribunal a quo deveria ter dado como provado, no facto 19, que a inquilina continuou a habitar na fração do autor até Setembro de 2023 inclusive, continuando a fracção por arrendar. Resulta do texto da sentença que a inquilina referiu ter saído da fração em Setembro de 2023, e que a testemunha BB referiu a saída da inquilina naquela mesma data, bem como referiu que o quarto continua inabitável e ninguém o quer arrendar naquele estado. Como tudo consta das declarações da inquilina, constantes da faixa da gravação do seu depoimento de 10:07 a 10:34, cfr. acta de audiência de julgamento de 04/11/2024, de minutos 17:24 a 17:56, e ainda resulta das declarações da testemunha BB, constantes da faixa da gravação do seu depoimento de 10:57 a 11:22, de minutos 12:25 a 12:36.
B) A matéria da alteração em apreço não foi alegada pelo A., porquanto tais factos ocorreram após a entrada da acção (em 03/03/2023).
C) Tais factos não importam uma alteração da causa de pedir, pois o dano continua a ser o não recebimento de rendas, pese embora as circunstâncias tenham mudado. Pois, após a saída da inquilina, mantendo-se a fracção por arrendar, o A. continuou a não receber rendas.
G) Tais factos também não importam uma alteração do pedido, que se mantém o pedido de indemnização correspondente ao valor das rendas não recebidas.
H) Assim, não sendo tais factos supervenientes constitutivos, modificativos ou extintivos do direito do A., não tinham estes de ser alegados.
I) São, na verdade, factos instrumentais que resultaram da instrução da causa e que o Tribunal a quo deveria ter tido em consideração e dá-los como provados, ao abrigo do disposto no art. 5.º n.º 2, al. a), do CPC.
J) Na verdade, o pedido objecto do presente recurso consubstancia um pedido de indemnização em sede de responsabilidade civil extracontratual, cabendo ao A. alegar os factos que preencham os pressupostos atinentes a tal responsabilidade, nos termos do disposto no art. 483.º n.º 1 do CC, são eles o facto (acção ou omissão), a ilicitude (violação de um direito subjectivo ou de qualquer disposição legal dirigida à protecção de interesses alheios), a culpa (enquanto juízo de censura), o dano (não recebimento das rendas), e o nexo de causalidade adequada entre o facto e o dano – o que fez.
K) O Tribunal a quo absolveu o R. do pedido de pagamento das rendas que o A. deixou de auferir até ao pagamento da quantia correspondente ao custo das obras de reparação da fracção daquele.
L) É verdade, como diz o Tribunal a quo, que a arrendatária não deixou de pagar as rendas, tão-só entrou em mora; porém esta saiu, não tendo a fracção voltado a ser arrendada, precisamente pelo estado que o quarto apresenta (facto provado n.º 10), pelo que o A., após a inquilina ter saído e até à presente data, se viu privado das rendas.
M) Por outro lado, o Tribunal a quo assentou a sua decisão no facto de o não recebimento das rendas, in casu, após a saída da arrendatária do locado, se ter ficado a dever à recusa do A. em efectuar o conserto do quarto e do roupeiro, entendendo o Tribunal a quo que era sua obrigação de senhorio fazê-lo.
N) Ora, não era obrigação do A. proceder à reparação dos danos existentes na sua fracção, advindos da existência de infiltrações de água nas partes comuns do edifício em causa constituído em propriedade horizontal.
O) Como diz o Tribunal a quo, eram reparações indispensáveis e urgentes.
P) Dispõe o art. 1427.º n.º 1 do CC que as reparações indispensáveis e urgentes nas partes comuns do edifício podem ser levadas a efeito, na falta ou impedimento do administrador, por iniciativa de qualquer condómino.
Q) Este normativo que respeita às obras nas partes comuns do edifício tem de ser transposto para as obras na própria fracção quando os danos aí existentes advêm das patologias ou vícios das partes comuns, como ficou in casu demonstrado.
R) Portanto, se a lei diz que o condómino pode, quer dizer que tem esse direito ou faculdade, direito esse ou faculdade que depende da sua iniciativa e da sua vontade em tal sentido, não correspondendo pois a qualquer dever ou obrigação do condómino, que lhe possa ser imposta ou exigida pelo condomínio, mesmo quando o condómino assume o papel de senhorio.
S) Aquele direito ou faculdade do condómino não escusa, nem exclui, os deveres que impendem sobre o condomínio, quer de reparação das partes comuns, quer de reparação das fracções afectadas pelos vícios ou patologias existentes nessas partes comuns.
T) Portanto, ao A. não era exigível a realização das obras na sua fracção a expensas suas, ainda que as pudesse fazer, obras essas que eram da responsabilidade do R., como o Tribunal doutamente veio a decidir, condenando este ao pagamento do custo da reparação.
U) Encontram-se in casu preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, plasmados no art. 483.º do CC: o facto (omissão do dever de reparação da fracção do A. que recaía sobre o R.), a ilicitude (violação do direito de propriedade do A. sobre a fracção, plasmado no art. 1305.º do CC), a culpa (enquanto juízo de censura), o dano (como veremos já de seguida) e o nexo de causalidade adequada entre o facto e o dano.
V) Quanto aos danos, são eles as rendas que o A. deixou de auferir desde a saída da arrendatária em Setembro de 2023 até à presente data, porquanto a fracção continua por arrendar, devido ao estado do quarto, que se mantém inalterado, a saber, a precisar das obras decretadas pelo Tribunal.
W) Consideramos provada a inabitabilidade do quarto e, por conseguinte, a inviabilidade do arrendamento da fracção, atento o facto provado n.º 10 e o facto do tema de prova n.º 15 ter sido dado como não provado.
X) O A. vê-se impedido de usar e fruir da fracção de sua propriedade, designadamente dando-a de arredamento, integrando-se os danos causados ao A. no denominado dano de privação do uso da fracção propriedade do A. e de que este vinha retirando proventos dando-a em arrendamento e recebendo a correspectiva renda.
Y) Impendendo sobre o R. o dever de proceder à reparação dos danos existentes no interior da fracção e que punham em causa a utilização da fracção para o fim a que o A. o destinava, ou seja, o respetivo arrendamento, deve o R. responder pelos prejuízos decorrentes dessa sua omissão ilícita, verificando assim o sobredito nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Z) A omissão do R., a saber, a não realização das obras de reparação do interior da fracção do A., acarretou para este a perda das rendas a partir de Outubro de 2023 até à data, a isto acrescendo os juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até efectivo e integral pagamento, o que o Tribunal a quo deveria ter decretado.
AA) Pelo exposto, ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 483.º n.º 1, 1305.º e 1427.º n.º 1, todos do CC, e bem assim o 5.º n.º 2 do CPC.


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A Requerente respondeu ao recurso da Ré, batendo-se por que lhe fosse negado provimento e por que fosse mantida a sentença recorrida.

Para o efeito, formulou as seguintes conclusões:

I) O Recorrente não se conforma com a Douta Sentença proferida nos autos à margem referenciados e dela interpôs recurso de apelação pedindo a sua revogação parcial, por entender que a decisão proferida violou o disposto nos artigos 483.º, nº 1, 1305.º e 1427.º, nº 1 do Código Civil e artigo 5.º, nº 2 do CPC.

II) Não assiste razão à Recorrente, em qualquer dos pontos por si alegados.

III) O Tribunal a quo considerou como provado, no ponto 19, que a arrendatária continuou a habitar na fração autónoma que lhe foi locada pelo Autor.

IV) Por sua vez, considerou como não provado que a fração autónoma propriedade do Autor se encontra arrendada a CC pela quantia mensal de 300,00€ (trezentos euros).

V) Pretende o Recorrente, face ao teor dos depoimentos das testemunhas CC e BB, que o ponto 19 da matéria considerada como provada passe a ter a seguinte redacção: 19. A inquilina continuou a habitar na fracção do autor até Setembro de 2023 inclusive, continuando a fracção por arrendar.

VI) Conforme o próprio Recorrente reconhece, tais factos não foram por si alegados, na petição inicial, nem o poderiam ser, porquanto terão ocorrido após a entrada da petição inicial (Março de 2023).

VII) A alegada falta de recebimento de rendas pelo Recorrente a partir de Outubro de 2023, por abandono do locado por parte da inquilina motivada pela falta de realização de obras no interior do locado, bem como a impossibilidade de o arrendar a terceiros por esse motivo, consubstanciam factos essenciais ao direito indemnizatório que o Recorrido vem exercer nos autos contra o Recorrente.

VIII) A causa de pedir deixou de ser a falta de pagamento das rendas pela arrendatária e passou a ser o dano de privação do uso da fracção propriedade do Autor, atendendo a que, segundo o mesmo terá ficado privado de proceder ao arrendamento do imóvel após a saída da inquilina em Setembro de 2023.

IX) Não tendo tais factos sido oportunamente alegados pelo Recorrente, o Recorrido viu-se impossibilitado de se defender e produzir qualquer prova quantos aos mesmos.

X) O Recorrente não cuidou em alegar, como lhe era imposto que fizesse, todos os factos essenciais, nomeadamente os factos que pretende ver agora acrescentados na matéria de facto considerada como provada, pelo que em nenhum erro de julgamento incorreu o tribunal a quo ao não os considerar.

XI) Mantendo-se inalterada a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo, inexiste consequentemente, quaisquer razões para se alterar e/ou revogar a Douta Sentença proferida. Caso assim não se entenda, o que por mera hipótese de raciocínio se concebe,

XII) Caso se entenda que tais factos consubstanciam factos instrumentais, os mesmos nunca poderiam integrar a matéria de facto, nem, consequentemente, constituir o objeto da impugnação da decisão relativa à matéria de facto.

XIII) Trata-se de um poder e não de um dever da Meritíssima Juíza a quo.

XIV) Pelo que, não tendo sido alegados por nenhuma das partes tais factos e não tendo a Meritíssima Juíza a quo entendido, em resultado da instrução, optado por os acrescentar à matéria de facto provada e não provada, eles são insuscetíveis de constituir o objecto de impugnação da decisão de facto dirigida a aditá-los à factualidade provada.

Caso assim também não se entenda, o que por mera hipótese de raciocínio se concebe,

XV) Do depoimento da testemunha CC, decorre que as infiltrações ocorreram em Outubro de 2022 e a saída do locado apenas ocorreu em Setembro de 2023.

XVI) Resulta ainda do depoimento desta testemunha, que entre Outubro de 2022 e Setembro de 2023 dirigiu vários pedidos de reparação do quarto “do seu filho” à representante do seu senhorio, BB, sem que o mesma a tenha realizado.

XVII) No que concerne ao motivo de tal saída referiu que tal não se ficou a dever à existência de infiltrações, mas antes ao facto de, volvido quase um ano após a ocorrência das infiltrações, o senhorio não lhe ter (ainda) reparado o quarto que havia sofrido danos advenientes das mesmas.

XVIII) Nada soube dizer quanto ao destino do locado, após a sua saída. Cfr. depoimento da testemunha CC, gravado em suporte digital no dia 04/11/2024 com início às 10.07 e fim às 10.34 (minutos 15.06 a 18.40; minutos 15.06 a 22.20 e minutos 25.40 a 26.35)

XIX) Do depoimento da testemunha BB, decorre que a inquilina lhe solicitou, na qualidade de solicitadora do Recorrente, que este procedesse à reparação do imóvel.

XX) Assim como decorre que o Recorrente, pese embora tenha sido informado que poderia fazer a reparação diretamente, preferiu não a fazer.

XXI) No que concerne ao motivo da saída da arrendatária do locado referiu que um dos motivos, sem indicar os demais, foi a falta de reparação do quarto, afirmando que o mesmo estaria inabitável.

XXII) No que concerne ao arrendamento do locado após a saída da arrendatária, não esclareceu e/ou de algum modo demonstrou que o A. tentou colocá-lo no mercado de arrendamento e que este se viu impossibilitado de o arrendar em virtude do estado de um dos seus quartos.

XXIII) Ao referir que o quarto está inabitável, ninguém vai querer arrendar um apartamento que não pode usar um quarto, todo estragado e inevitavelmente cheira a mofo, entrou em completa contradição com o teor do relatório pericial, que atesta que a reparação a realizar no quarto é de baixa complexidade (pintura do tecto, paredes e envernizamento do pavimento) e de reduzido montante (796,72€ + IVA) e que no interior do imóvel inexiste qualquer cheiro a mofo. Cfr, depoimento da testemunha BB, gravado em suporte digital do dia 04/11/2024 com início às 10.57 e fim às 11.22 (minutos 07.48 a 09.43, minutos 11.57 a 12.35 e 22.12 a 23.37

XXIV) Os depoimentos das testemunhas acima indicados jamais se revelarão suficientes, para concluir pela alteração da matéria de facto pretendida pela Recorrente.

XXV) Não se tendo revertido tal matéria de facto, logicamente não há lugar à sua colocação nos factos provados.

XXVI) Inexiste qualquer erro na apreciação da prova quanto à presente matéria de facto, nem se verificam quaisquer razões que permitam alterar a factualidade considerada como provada pelo Tribunal a quo.

XXVII) Da matéria de facto considerada como provada, contrariamente ao invocado pelo Recorrente, não resulta que a fracção autónoma pertencente ao mesmo, se encontra por arrendar, desde Outubro de 2023, em virtude de padecer de danos que pela sua gravidade impossibilitam a utilização da mesma.

XXVIII) O Recorrente nada alegou e/ou provou quanto à existência de uma expectativa real e séria de efectuar novos contratos de arrendamento e quanto à real impossibilidade de celebração de novos contratos de arrendamento devido às condições do arrendado.

XXIX) O direito à indemnização pela privação do uso de uma coisa está dependente não apenas da prova dessa privação, mas também das consequências negativas e danosas daí decorrentes.

XXX) Nessa medida, não tendo o Recorrente demonstrado a privação do uso da fracção autónoma de que é proprietário e as consequências danosas daí decorrentes, esse direito não lhe pode ser reconhecido.

XXXI) Tal como decorre da Douta Sentença, de modo a evitar a saída da arrendatária do locado, o Recorrente poderia e deveria ter realizado as obras no interior do locado, uma vez que as infiltrações verificadas no final de Outubro de 2022 foram erradicadas pelo Recorrido num curto período de tempo.

XXXII) Não obstante tenha ficado provado que os danos verificados no quarto e varanda da fração autónoma de que o Recorrente é proprietário tiveram origem em parte comum do edifício, os senhorios não deixam de ser contratualmente responsáveis pelo cumprimento das obrigações decorrentes da lei e do contrato por si assumido, nomeadamente, pela obrigação de proporcionar o gozo da fracção locada, nos termos do disposto no artigo 1031º, alínea b) do Código Civil.

XXXIII) Ao Recorrente incumbia a obrigação de realizar todas e quaisquer reparações ou ainda suportar outras despesas consideradas como indispensáveis ou essenciais para o devido gozo da coisa locada.

XXXIV) Ao Recorrente, na qualidade de senhorio, recaía a obrigação da realização de obras de conservação da fração autónoma, uma vez que já se encontravam solucionadas/erradicadas as infiltrações e as humidades, por forma a assegurar que a sua arrendatária lograsse usufruir, em pleno, do locado, utilizando-o no exercício do fim para que ele fora locado.

XXXV) Tal como decorre da Douta Sentença, o Recorrente optou por “quedar-se na maior inércia para vir agora pedir as rendas, quando o lesado tem obrigação de fazer o controle dos danos, desde logo à luz do art. 570 n.º 1 do CC”.

XXXVI) Conforme decorre ainda da fundamentação da Douta Sentença, a saída do locado não se ficou a dever à “entrada de água, mas porque, durante 1 ano, o seu senhorio não reparou o estuque do tecto do quarto (e aqui chegados, cabe sublinhar que a reparação era fácil e barata, muito mal se percebendo a atitude recalcitrante do autor… a qual, obviamente não pode ser incensada ou premiada).”

XXXVII) Inexiste qualquer erro na subsunção dos factos ao direito. nem se encontram quaisquer razões para se alterar e/ou revogar a Douta Sentença proferida, devendo o recurso interposto pelo Recorrente ser considerado totalmente improcedente.


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O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e assim recebido nesta Relação, que o considerou corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto.


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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.


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II.- Das questões a decidir

O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art. ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente.

Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC).

Neste pressuposto, as questões que, neste recurso, importa apreciar e decidir são as seguintes:

i.- da alteração da redação do facto provado n.º 19;

ii.- da alteração do direito aplicado ao litígio dos autos, em face do sentido da decisão a proferir quanto ao ponto i.


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III.- Da Fundamentação

III.I.- Na sentença proferida em 1.ª Instância e alvo deste recurso foram considerados provados os seguintes factos:

A.- O autor AA, solteiro, maior, é dono da fração autónoma, designada pelas letras AJ, destinada a habitação, correspondente ao apartamento T2 com varanda, no terceiro andar, Bloco ..., nas fachadas nascente e sul do edifício denominado “Edifício ...”, sito na Rua ..., freguesia ..., inscrito na matriz sob o art.º ...66 e descrito na Conservatória sob o n.º ...17.

B.- Teor declarado do escrito de 18 de Setembro de 2020, onde consta que o autor AA declarou dar de arrendamento a CC, a fração autónoma referida em A pela quantia mensal de € 300 euros.

C.- A fração autónoma AJ situa-se no último andar do edifício, sob a cobertura.

D.- Em Novembro de 2022, o réu “Condomínio do Edifício ...” procedeu ao tapamento das fissuras do Edifício ....

E.- Em 31 de Outubro de 2022, por email, o autor comunicou ao réu que pingava água do teto de um dos quartos.

F.- Na assembleia de condóminos de 3 de Novembro de 2022, a representante do autor limitou-se a comunicar uma “alegada entrada de água” e o réu é que se prontificou a verificar a situação e foi a condómina da fração “T” que exigiu o prosseguimento da obra de reabilitação, passando-se para as fachadas.

1.- Em 31 de Outubro de 2022, surgiram infiltrações de água no quarto com varanda, começando a pingar água do teto, na cama, no roupeiro e no chão;

2.- As infiltrações alastraram às paredes do quarto e ao teto da varanda do quarto;

3.- Em consequência das infiltrações de água o quarto e a varanda apresentaram escorrências de água nas paredes e tetos;

4.- Humidade nos tetos, paredes e chão;

5.- Empolamento das paredes e teto;

6.- Bolhas e manchas na pintura das paredes e tetos;

7.- Descascamento das paredes e tetos;

8.- As infiltrações de água provinham do telhado e já foram erradicadas;

9.- Em 3 de Novembro de 2022, na assembleia dos condóminos, o autor exigiu do réu a realização das obras de reparação das infiltrações;

10.- No quarto referido em 1 dormia o filho da inquilina, o qual, em consequência das infiltrações e do odor a mofo, passou a dormir na sala de estar; art.º 31.º 32.º pi

11.- A reparação dos estragos no teto e nas paredes do quarto, nos tacos do chão do quarto e no roupeiro embutido importa em € 796,72 euros, mais IVA;

12.- Nas últimas assembleias de condóminos, onde constava na ordem de trabalhos a realização das obras de reabilitação, o autor não compareceu, nem se fez representar;

13.- Na assembleia de condóminos de 6 de Abril de 2021 os condóminos deliberaram que a obra seria realizada por fases, primeiro a reparação da cobertura e só depois das fachadas e que a obra só seria iniciada quando o condomínio tivesse disponibilidade financeira para a custear, deliberação esta que o autor não impugnou;

14.- Devido a essa falta de meios financeiros, na assembleia de condóminos de 17 de Maio de 2018, a condómina da fração autónoma designada pela letra I, apesar de dispor de uma sentença a condenar o réu a reparar os estragos na sua fração, referiu que pretendia a resolução das infiltrações na fachada e que no interior de cada fração, cada condómino faria a reparação e concordou que, apesar de as infiltrações na sua fração terem origem na fachada, a obra se iniciasse pela cobertura e só depois se realizasse nas fachadas;

15.- O autor recebeu cópia da ata da assembleia de condóminos referida em 14 e não a impugnou nem manifestou discordância relativamente à intervenção da condómina da fração I;

16.- Para além da falta de meios financeiros do condomínio, algumas assembleias não se realizaram por falta de quórum para aprovação da realização das obras sendo que nelas o autor não compareceu, nem se fez representar o que retardou a aprovação e início das obras de reabilitação;

17.- Quando o autor efetuou a comunicação referida em E já a obra da cobertura estava concluída;

18.- E após o tapamento das fissuras referido em D, em Novembro de 2022, o réu ficou convencido que as infiltrações ficaram erradicadas até porque as comunicações posteriores ao autor se cingiram à questão do acionamento do seguro para reparação do interior da sua fração.

19- A inquilina continuou a habitar na fração do autor.


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III.II.- Na mesma sentença não foram considerados provados os seguintes factos:

a.- Fungos e bolores nas paredes e tetos.

b.- Odor a mofo, que alastra a toda o apartamento.

c.- Levantamento da alcatifa.

d.- Levantamento e descolamento dos tacos do chão.

e.- Manchas e descolamento, na cama, no roupeiro embutido e machas nas roupas lá guardadas.

f.- As infiltrações de água provêm do telhado.

g.- A fração autónoma continua arrendada nos termos referidos em B.

h.- Em consequências das infiltrações, a inquilina deixou de pagar a renda. Art.º 35.º da pi

i.- A reparação dos estragos no teto e nas paredes do quarto importa em € 1.365,30 euros.

j.- O valor total das obras de reparação no interior da fração importa em € 796,72 euros, mais IVA.

k.- A substituição da alcatifa importa em € 300 euros.

l.- O autor é dono da fração Z no mesmo edifício, onde poderia realojar a inquilina.


***

III.II.- Do objeto do recurso

1.- Da alteração da redação do facto provado n.º 19

.- O Apelante pede neste recurso a alteração do facto provado n.º 19. Este facto é do seguinte teor: “19.- A inquilina continuou a habitar na fração do autor”.

A pretensão do Apelante é no sentido de, do facto, passar a constar o seguinte: “19.- A inquilina continuou a habitar na fração do autor até setembro de 2023, inclusive, continuando a fração por arrendar”.

Segundo o Apelante, a realidade de facto subjacente ao período cujo aditamento propõe é determinante para a apreciação da pretensão constante da primeira parte da alínea c) do seu pedido. Resultou, por outro lado, da prova produzida em julgamento. Não foi por si alegada, mas também não precisava de o ser, visto que se trata de facto instrumental, passível de conhecimento oficioso pelo tribunal (art.º 5.º, n.º 2, al. a) do CPC). Assim, e porque a sua consideração também não envolve alteração da causa de pedir, nem do pedido, deve ser alterada a redação do facto nos termos que preconiza.

A pretensão do Apelante não pode, contudo, ser acolhida. E não pode ser acolhida, porque a consideração do segmento de facto cuja introdução propõe sempre constituiria uma alteração da causa de pedir não consentida legalmente.

Vejamos.

A realidade de facto que o Apelante pretende ver introduzida no elenco de factos provados não foi alegada pelo próprio na petição inicial. Verificou-se, por outro lado, em setembro de 2023, quando a petição inicial deu entrada em juízo em 03-03-2023. Trata-se, assim, de facto superveniente.

A sentença, nos termos do art.º 611.º, n.º 1 do CPC, deve tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da ação, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão. Ressalva-se desta regra, contudo, as restrições previstas noutras disposições legais, nomeadamente, as que dizem respeito à possibilidade de alteração da causa de pedir.

A causa de pedir, segundo Miguel Teixeira de Sousa, “é composta pelos factos constitutivos da situação jurídica invocada pelas partes, isto é, pelos factos essenciais à procedência do pedido”. O mesmo é dizer, pelos factos “sem cuja verificação o pedido não pode ser julgado procedente”[1].

Deve ser enunciada na petição inicial com que o autor propõe a ação. Tal como prescreve o art.º 552.º, n.º 1, al. d) do CPC, em tal articulado deve o autor expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir.

Proposta a ação com uma determinada causa de pedir e citado o réu, a causa de pedir, enquanto elemento essencial da causa, torna-se, nos termos do art.º 260.º do CPC, estável. Esta estabilidade não é sinónimo, contudo, conforme resulta do próprio preceito, de imutabilidade.

A causa de pedir pode, com efeito, ser alterada havendo acordo das partes e, neste caso, em qualquer altura do processo, quer em 1.ª, quer em 2.ª instância. Isto, salvo se a alteração ou ampliação perturbar inconvenientemente a instrução, discussão e julgamento da causa (v. art.º 264.º do CPC).

Também pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceite pelo autor. Para o efeito, dispõe o autor do prazo de 10 dias contado da aceitação (art.º 265.º, n.º 1 do CPC).

A causa de pedir pode, ainda, ser modificada por uma outra via. Sempre que, na sua origem, estejam factos ocorridos, ou de que o autor tenha tido conhecimento, após o momento previsto no n.º 1 do referido art.º 265.º do CPC, pode o autor introduzi-los em juízo, nos termos do n.º 1 do art.º 588.º do CPC, através de um articulado superveniente. Este articulado destina-se, de acordo com o preceito, e quanto ao autor, à introdução em juízo de factos constitutivos do direito deste. Estes, contudo, podem destinar-se, não só “a completar a causa de pedir inicial, como podem implicar uma efetiva alteração ou modificação da causa de pedir”, sendo “a superveniência critério bastante para afastar as restrições fixadas no art.º 265.º”[2]. O articulado superveniente é, pois, mecanismo processualmente adequado à introduzir modificações da causa de pedir.

O articulado superveniente, nos termos do n.º 3 do art.º 588.º do CPC, é oferecido: (a) na audiência prévia, quando os factos hajam ocorrido ou sido conhecidos até ao respetivo encerramento; (b) nos 10 dias posteriores à notificação da data designada para a realização da audiência final, quando não se tenha realizado audiência prévia; (c) na audiência final, se os factos ocorreram ou a parte deles teve conhecimento em data posterior às referidas nas alíneas anteriores.

No caso dos autos, está em causa o pedido do Apelante de condenação do Apelado a pagar-lhe o valor das rendas que deixou de auferir até à instauração da ação, no valor global de € 1.200,00, acrescida das vincendas até ao pagamento, pelo Apelado, do valor da reparação dos danos sofridos no interior da sua fração autónoma ou então da reparação desses danos.

Os factos que o Apelante invocou para sustentar esse pedido, o mesmo é dizer os factos que constituíam a respetiva causa de pedir, constavam dos art.ºs 29.º a 35.º da petição inicial.

Nestes, aquilo que o Apelante alegou resume-se ao seguinte. A fração autónoma de que (ele Apelante) era proprietário estava arrendada a uma inquilina, mediante o pagamento de uma renda mensal de € 300,00. Com os estragos causados no seu interior pelas infiltrações provenientes das parte comuns do edifício em que se insere, a fração deixou de ter, em dezembro de 2022, condições de habitabilidade. Por esse motivo, e além do mais, a inquilina, naquela data de dezembro de 2022, deixou de pagar a renda, apesar de continuar a residir na fração.

Ou seja, na origem da pretensão do Apelante, está a circunstância de a sua arrendatária, continuando arrendatária, ter deixado, contudo, de pagar a renda, pelo facto de o apartamento em que residia ter deixado de reunir condições de habitabilidade. E porque, na perspetiva do Apelante, a recusa de pagamento das rendas seria legítima, forçoso seria que o Condomínio Apelado fosse responsabilizado pelo pagamento das rendas que o Apelante deveria ter recebido e não recebeu, em virtude da omissão deste.

Aquilo que o Apelante alega agora para sustentar o seu pedido é, contudo, algo diverso. Na verdade, segundo o mesmo, a arrendatária teria deixado a fração autónoma em setembro de 2023. Ao deixar a fração autónoma, cessou o contrato de arrendamento que com ela celebrara e tal cessação implicou um dano, consubstanciado, nas suas próprias palavras, nas rendas que deixou de auferir desde a saída da arrendatária em setembro de 2023, pelo facto de continuar por arrendar a fração autónoma, devido ao estado do seu quarto (v. conclusão BB do recurso).

Ou seja, se antes o Apelante formulara um pedido assente no não pagamento das rendas pela sua inquilina, apesar da subsistência do contrato de arrendamento, agora mantém o pedido mas assente num cenário de inexistência de arrendamento e em que o prejuízo já não consiste na falta de recebimento da renda, mas na impossibilidade de, mercê das condições de habitabilidade da fração, não poder dá-la de arrendamento e daí retirar o rendimento correspondente (sendo o valor da renda anteriormente recebida, não o dano efetivamente sofrido, mas apenas a sua medida ou o seu equivalente).

Ou seja, todo um quadro factual diverso do originariamente alegado e, portanto, uma diferente causa de pedir.

O próprio Apelante, apesar de partir do pressuposto (incorreto, como se vê) de que a sua pretensão não envolve modificação da causa de pedir, acaba por reconhecer expressamente que mantém a sua pretensão de recebimento de rendas, pese embora as circunstâncias tenham mudado (v. conclusão D do seu recurso), assim admitindo, ao menos implicitamente, ser outro, que não o inicialmente alegado, o quadro factual que suporta a sua pretensão.

Ora, Apelante e Apelado, em 1.ª instância, não manifestaram acordo no sentido de que tal modificação da causa de pedir pudesse ser feita. Também não o fazem aqui em 2.ª instância, como o revelam as peças recursórias de ambos.

A alteração da causa de pedir por que o Apelante aqui pugna também não foi introduzida em sede de réplica (que o processo, de resto, não comportava), nem muito menos através de articulado superveniente.

Admitir a alteração do facto provado n.º 19 nos termos preconizados pelo Apelante implicaria, por conseguinte, aceitar uma alteração da causa de pedir fora do quadro legal acima traçado e, como tal, uma alteração da causa de pedir ilegítima.

Tanto basta para que se conclua pela improcedência da sua pretensão.

Sem prejuízo do que acaba de ser exposto, é de referir, também, que a pretensão do Apelante não poderia ser admitida com o fundamento por si invocado, que era o da possibilidade de o tribunal conhecer do facto em apreço enquanto facto instrumental. E isto porque a realidade de facto em apreço sempre teria de ser considerada, não instrumental, mas essencial da causa de pedir que suportaria o seu pedido.

Com efeito, a propósito do ónus de alegação das partes e da amplitude dos poderes de cognição do tribunal em matéria de facto, dispõe o art.º 5.º, n.º 1 do CPC que às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.

Por seu turno, estabelece o n.º 2 do mesmo preceito que, além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: (a) os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; (b) os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar; (c) os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.

Da leitura deste preceito resulta um sistema em que, tratando-se de factos essenciais, cabe exclusivamente às partes o ónus da sua alegação, sem que o tribunal possa substituí-las nessa tarefa. À margem destes, o tribunal só se pode socorrer oficiosamente dos factos que, resultando da instrução da causa, se assumam como instrumentais, ou então como complemento ou concretização dos alegados pelas partes - desde que, neste caso, as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar sobre eles -, ou, finalmente, dos factos notórios e daqueles de que tenha conhecimento oficioso.

Subjacente a tal solução está a opção do legislador processual civil pela consagração da denominada “teoria da substanciação”, a qual “implica para o autor a necessidade de articular os factos dos quais deriva a sua pretensão, constituindo-se o objeto do processo e, por arrastamento, o caso julgado apenas sobre os factos integradores dessa concreta causa de pedir”[3].

No nosso caso, atenta a posição do Apelante, importa a distinção entre os factos essenciais e os factos instrumentais.

Os primeiros são, como resulta do n.º 1 do preceito em análise, aqueles que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas, o mesmo é dizer os factos que servem de fundamento à ação e à defesa.

Divergem dos segundos, que “são aqueles que permitem a afirmação, por indução, de outros factos de que depende o reconhecimento do direito ou da exceção”, tratando-se, por isso, “dos factos que possam servir para a formação da convicção sobre os demais factos (designadamente por via do uso de presunções judiciais)”[4].

Saliente-se que os factos instrumentais não se confundem com os factos “que sirvam para integrar presunções legais (v.g. em matéria de responsabilidade civil extracontratual, da posse ou do regime da filiação)”, os quais “são de considerar essenciais, devendo ser alegados em conformidade (art.º 5.º, n.º 1) e ser objeto de pronúncia positiva ou negativa na sentença[5].

No caso, está em causa, como se viu, a pretensão do Apelante de responsabilizar o Apelado pelo pagamento das “rendas” que, mercê do estado da sua fração autónoma, imputável ao segundo, deixou de auferir.

Neste pressuposto, o facto que o Apelante pretende introduzir na causa – que a fração autónoma de que é proprietário continua por arrendar após a saída da anterior inquilina em setembro de 2023 – só poder ser visto como essencial.

Na verdade, constitui, em si mesmo considerado, não um facto revelador ou indutor de outros factos, mas o próprio fundamento do seu pedido. Sem ele, não há, pura e simplesmente, suporte de facto para que se conheça do pedido que formula. O próprio Apelante, apesar de qualificar como instrumental a realidade de facto em apreço, funda nela e não noutra toda a pretensão que deduz no recurso.

O facto em apreço é, pois, fundamento do pedido e, por conseguinte, essencial. E sendo essencial, a sua consideração no processo pressupunha a sua alegação, pelo Apelante, através do mecanismo processual adequado, o que, como assumido pelo próprio, não ocorreu. E não tendo ocorrido, forçoso é concluir pela impossibilidade de dele tomar conhecimento.

Ou seja, também por aqui carece de fundamento a pretensão do Apelante, cuja improcedência, por conseguinte, se impõe.

Improcede, pois, a pretensão do Apelante no sentido da alteração do facto provado n.º 19, nos termos por si preconizados.


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2.- Da definição do direito aplicável ao litígio dos autos

A pretensão do Apelante no sentido da alteração da decisão recorrida em matéria de direito estava integralmente dependente, como resulta das conclusões do seu recurso, da alteração do facto provado n.º 19 (o que, de resto, só reforça a essencialidade do facto).

Não suscitou o Apelante, com efeito, quaisquer outras questões relacionadas com a eventual incorreção da interpretação ou aplicação das regras de direito feitas pela 1.ª instância na sentença recorrida tendo por base os factos nele julgados provados.

Ora, como se viu, a pretensão do Apelante no sentido da alteração do referido facto n.º 19 não pode ser acolhida.

Outrossim, não se nos impõe tecer quaisquer considerações quanto à bondade e acerto da decisão proferida em 1.ª instância quanto à subsunção dos factos provados às normas legais aplicáveis.

Improcede, pois, a apelação, com a consequente confirmação da sentença recorrida.


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Porque vencido no recurso, suportará o Apelante as custas da apelação (art.ºs 527.º e 529.º do CPC).


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IV.- Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.

Custas da apelação pelo Autor/Apelante.

Notifique.


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Porto, 26 de junho de 2025

Relator: José Manuel Correia

1.ª Adjunta: Ana Luísa Gomes Loureiro

2.ª Adjunta: Maria Manuela Barroco Esteves Machado

(assinado eletronicamente)

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[1] In As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa, Lisboa Lex, 1995, p. 122 a 124.
[2] v., neste sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Artigos 1.º a 702.º, 3.ª edição, p. 723.
[3] Neste sentido, v. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Filipe Pires de Sousa, ibidem, p. 26).
[4] Ibidem, p. 32 e 33)
[5]  Ibidem, p. 33.