AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
PEDIDO
RECONVENÇÃO
FUNDAMENTOS
Sumário

I - Nem tudo o que é alegado na contestação constitui matéria de defesa, sendo que só esta pode servir de fundamento para a dedução de reconvenção.
II - O pedido tem de consistir na declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto jurídico, na condenação na prestação de uma coisa ou de um facto ou no decretamento de uma mudança na ordem jurídica existente, o que não sucede quando se pretende que o tribunal declare que uma pessoa entretanto falecida tinha vontade de praticar um acto jurídico que não praticou.
III - Reconhecendo a ré que os bens que ocupa pertencem à autora da acção de reivindicação, o pedido de entrega dos bens só pode improceder se a ré demonstrar que é titular de algum direito real de garantia ou de gozo ou direito pessoal de gozo que lhe faculte a detenção utilização da coisa.
IV- O direito à remuneração por serviços prestados ao proprietário não é uma despesas feita por causa dos bens ou de danos por eles causados.

Texto Integral

RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2025:1818.23.1T8PVZ.A.P1

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SUMÁRIO:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:



A. Relatório:

AA, contribuinte fiscal n.º ...00, BB, contribuinte fiscal n.º ...99, CC, contribuinte fiscal n.º ...71, DD, contribuinte fiscal n.º ...22, EE, contribuinte fiscal n.º ...12, e FF, contribuinte fiscal n.º ...54, instauraram, em representação das heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de GG e de HH, acção judicial contra II, residente em ....
Os autores pediram a intervenção principal activa de JJ, contribuinte fiscal n.º ...41, e mulher KK, também herdeiros das heranças representadas, a qual foi admitida.
A terminar a petição inicial os autores pedem a condenação da ré a reconhecer que os imóveis identificados e os bens móveis neles existentes pertencem às heranças indivisas abertas por óbito de GG e de HH, a restituir imediatamente às heranças os imóveis e os bens móveis, a pagar às heranças €18.900,00 pela utilização dum dos prédios entre 12 de Agosto de 2021 e 12 Novembro de 2023, acrescida de €700,00 por cada mês de ocupação desde essa data até à entrega do imóvel, e ainda €700,00 de indemnização por cada mês de ocupação de outro dos imóveis desde a citação até à sua entrega.
Para fundamentar o seu pedido alegam, em súmula, que conjuntamente com os chamados são os únicos e universais herdeiros das heranças ilíquidas e indivisas abertas por morte de GG, falecida em ../../2011, e marido, HH, falecido em ../../2019, os quais eram proprietários de uma casa de rés-do-chão e andar, onde residiam, e uma casa térrea com quintal. A ré passou a habitar o 1.º piso daquela casa em data anterior à morte de HH, juntamente com este, de quem foi cuidadora, e aí continua a habitar depois da morte daquele, sendo que apesar de interpelada pelos autores para a entregarem se recusa a abandonar o imóvel e a restitui-lo aos autores, juntamente com os bens móveis que nele foram deixados pelos de cujus, privando as heranças do proveito que obteriam colocando os imóveis no mercado de arrendamento e que se cifra em cerca de €700,00 mensais por cada imóvel.
A ré foi citada e apresentou contestação, defendendo a improcedência da acção.
Em reconvenção pediu que se «reconheça a última vontade do falecido HH em deixar os seus bens aos filhos da ré», e que se condenem os autores a pagar-lhe «€75.600,00 pelos serviços prestados … como enriquecimento sem causa» e «€5.427,03 por despesas liquidadas pela ré do HH», valores estes acrescidos de juros desde a citação.
Alegou para tanto que desde Junho de 2014 foi cuidadora do HH a tempo inteiro, na residência deste, para onde levou alguns bens móveis seus por não os haver nessa casa; o HH não tinha rendimentos suficientes para as suas próprias despesas, os quais eram em parte suportados pela ré ou pelo seu companheiro; também não tinha com que pagar à ré qualquer valor pelos cuidados que esta lhe prestava e, como forma de compensação e agradecimento, manifestava a vontade que os seus imóveis fossem doados aos filhos da ré, a qual, contudo, nunca aceitou concretizar essa vontade; a ré cuidou diariamente do HH entre Junho de 2014 a Agosto de 2019, sem qualquer contrapartida monetária, prestando-lhe cuidados que se fossem prestados por uma empregada doméstica interna custariam no mínimo €1.200; a ré pagou ainda variadíssimas despesas do HH.
Na audiência prévia foi proferido o seguinte despacho sobre a reconvenção:
«[…] Na reconvenção como é sabido há, no fundo, um cruzamento de acções: com a acção proposta pelo autor contra o réu cruza-se outra acção proposta por este contra aquele.
Com efeito, “o Réu não se limita a sustentar o mal fundado da pretensão do Autor mas deduz contra ele uma pretensão autónoma. Trata-se de uma espécie de contra-acção, passando a haver no processo um cruzamento de acções” – Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, pág. 146.
Esse cruzamento de acções só pode ser admitido mediante a observância de duas ordens de requisitos, estabelecidos no art. 266º do Cód. de Processo Civil – “requisitos objectivos e requisitos processuais” – Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3ª Edição, pág. 378 –, exprimindo uma relação de conexão substantiva que deve existir entre o pedido principal e o pedido reconvencional.
Os primeiros traduzem-se, basicamente, numa identidade relativa ao tribunal competente para os dois pedidos e da forma do processo correspondente.
Os segundos constam de um elenco previsto no n.º 2 do artigo 266º do mesmo diploma legal e traduzem-se, essencialmente, no facto de o pedido reconvencional dever ter com a acção um certo nexo, “que consiste em se fundar no mesmo facto ou relação jurídica deduzida em juízo para algum desses efeitos” – Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 147.
Assim, o n.º 2 do citado normativo estatui que a reconvenção só é admissível nos seguintes casos: a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa; b) Quando o réu se propõe tornar efectivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida; c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor” d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.”
Ora, os pedidos formulados pela ré na sua reconvenção não são admissíveis.
Com efeito, o facto de alegadamente o falecido HH ter tido a vontade de deixar os seus bens aos filhos da ré não consubstancia qualquer fundamento que obste ao reconhecimento dos direitos que os autores peticionam, já que não se traduz na existência de um qualquer direito de gozo da ré sobre os imóveis.
Por outro lado, o alegado direito de crédito que a ré invoca possuir por ter prestado assistência ao falecido HH e por ter pago despesas que eram da responsabilidade do mesmo não se trata de qualquer crédito relativo à coisa cuja entrega lhe é pedida, sendo certo que a ré não invoca qualquer excepção de compensação e que não pretende obter o pagamento de qualquer valor que exceda o valor peticionado pelos autores.
Ademais, a ser verdade que a ré terá sido contratada para exercer as funções de cuidadora do Sr. HH, a verdade é que a ré peticiona um valor por ter sido contratada como funcionária doméstica do falecido, assentando, assim, o seu pedido numa relação laboral.
Assim sendo, existindo uma relação laboral nunca poderia ser obtida a condenação dos autores a pagarem qualquer valor a título de enriquecimento sem causa (que é um instituto subsidiário).
Acresce que este tribunal não tem competência material para a apreciação de pedidos de natureza laboral, o que obsta a que esse pedido seja admitido.
A questão da má fé é uma questão incidental que será apreciada nos autos e que não se traduz em qualquer pedido reconvencional.
Antes todo o exposto, não se admitem os pedidos reconvencionais deduzidos pela ré. […]»
A seguir, considerando ser possível conhecer parcialmente do mérito da acção, foi decidido:
«[…] julgar parcialmente procedente a presente acção, apreciando-se o primeiro pedido formulado pelos autores e, em consequência, condena-se a ré II a reconhecer que os imóveis descritos nos pontos 3 dos factos provados são propriedade das heranças abertas por óbito de GG e de HH, bem como a restituir, de imediato, aos autores e interveniente o primeiro piso do imóvel identificado no ponto 3, al. a), assim como os móveis deixados no mesmo pelos de cuius.»
A ré interpôs recurso de apelação destas duas decisões.
As respectivas alegações apresentam corpo de alegações e, após o título «conclusões», um texto que repete praticamente na íntegra aquele corpo das alegações, situação que o Supremo Tribunal de Justiça tem validado como formulação de «conclusões», mas que aqui não se reproduzem dada a sua vastidão.
Não consta que os recorridos tenham respondido a estas alegações.
Após os vistos legais, cumpre decidir.



B. Recurso da decisão de rejeição da reconvenção:


B.1. Questão a decidir:

As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se a reconvenção deduzida pela ré é processualmente admissível.



B.2. Fundamentação de facto:

A recorrente insurge-se contra aquilo que designa por «factos» que o tribunal a quo teria julgado indevidamente provados para decidir rejeitar a reconvenção.
Ao dizer isto e reclamar a modificação dos «factos» a recorrente incorre num manifesto equívoco na interpretação da decisão e na leitura das normas processuais aplicáveis.
A decisão de admitir ou não a reconvenção é estritamente processual. Nela não se procede ao julgamento de quaisquer factos, designadamente dos alegados para fundamentar a acção e/ou a reconvenção, porque os mesmos não são necessários para essa decisão.
A aceitação ou rejeição da reconvenção funda-se exclusivamente no conteúdo da reconvenção, na sua estrutura e configuração, na sua relação com o objecto da lide.
No momento de decidir se admite ou rejeita a reconvenção, o juiz tem de decidir somente se a reconvenção, tal como foi deduzida, se ajusta às situações elencadas no artigo 266.º do Código de Processo Civil que permite ao réu de uma acção deduzir, nesse mesmo processo, um pedido reconvencional.
Essa avaliação é feita independentemente de qualquer juízo sobre a probabilidade dos factos em que assenta a reconvenção e/ou da viabilidade do respectivo mérito. Logo, para essa decisão é irrelevante se os factos que fundamentam a reconvenção já estão provados ou ainda são controvertidos. O que importa é o modo como está configurada ou estruturada a reconvenção e se esta se ajusta à previsão do artigo 266.º do Código de Processo Civil.
Para essa finalidade, o juiz tem naturalmente de interpretar o articulado onde a reconvenção foi deduzida, mas o resultado dessa interpretação não são «factos jurídicos», são meras conclusões sobre o que é alegado pelo reconvinte. Tais conclusões podem estar mais ou menos correctas e podem interferir com a decisão a tomar sobre a admissibilidade da reconvenção, mas o acerto das mesmas contende com o mérito da decisão recorrida, não com quaisquer «factos» que nessa sede importe apurar se estão «provados» ou permanecem «controvertidos».
Por tudo isso não há que introduzir modificações numa fundamentação de facto inexistente e desnecessária para o que cabe decidir.



B.3. Se a reconvenção é admissível:

O direito de acção tem a natureza de direito potestativo: reunindo os pressupostos processuais necessários, qualquer pessoa tem o direito de instaurar as acções que desejar, por mais inviáveis que sejam. Isto é válido para qualquer pessoa, mesmo para aquelas que já têm a qualidade de réus numa acção instaurada por outrem. Também os réus têm o direito potestativo de instaurar acções contra os autores.
Todavia, isto não significa que os réus o possam fazer livremente na própria acção contra si instaurada pelos autores que desejam igualmente demandar. O direito de acção é livre; o direito de reconvir é condicionado.
A lei processual define os casos em que a reconvenção é admissível, isto é, em que o réu de uma acção pode, na respectiva contestação, deduzir, em reconvenção, pedidos contra o autor. Fora dos casos aí previstos a reconvenção não é admissível, o que significa apenas, contudo, que se o réu quiser deduzir pedidos contra o autor, e é livre para o fazer, terá de ter a iniciativa de instaurar uma nova e distinta acção, não pode aproveitar aquela que foi da iniciativa do autor que quer demandar.
Para o efeito é irrelevante se o réu tem o direito que pretende exercer por via dessa acção; isso terá de ser objecto de prova e julgamento na nova e distinta acção que vier a instaurar. Da mesma forma que é irrelevante saber se o réu até podia ter configurado a sua reconvenção de modo a preencher os respectivos pressupostos materiais – o que releva não é formulação possível dos pedidos que o réu deseja deduzir, é a modo como os configurou efectivamente.
O artigo 266.º estabelece os pressupostos materiais da reconvenção, definindo os casos em que o réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor.
Essa possibilidade existe desde que se verifique uma das seguintes situações: a) o pedido do réu emergir do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa; b) o réu propor-se tornar efectivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida; c) o réu pretender o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor; d) o pedido do réu visar alcançar, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.
Como vimos, os autores deduziram contra a ré uma acção na qual alegam que determinados bens imóveis e móveis pertencem às heranças de que são os únicos herdeiros e que estão a representar, que a ré ocupa sem título parte de um dos imóveis e usa o respectivo recheio, que essa ocupação ilícita causa danos às proprietárias dos bens.
A ré contestou, defendendo que ocupa parte de um dos imóveis por ter sido cuidadora a tempo inteiro do seu proprietário entretanto falecido e para isso necessitava de habitar aí e foi autorizada pelo proprietário a fazê-lo. A seguir sustenta que não foi paga pela prestação desses cuidados, que a prestação dos mesmos tem valor económico, que não tendo os serviços sido pagos deu-se o enriquecimento injustificado de quem estava obrigado a pagá-los, que também pagou despesas da pessoa que cuidava e das quais não foi ainda reembolsada, que no imóvel existem bens móveis que foi ela que adquiriu e colocou ali. Mais alega que como forma de compensação e agradecimento o falecido proprietário manifestava a vontade que os seus imóveis fossem doados aos filhos da ré, a qual, contudo, nunca aceitou concretizar essa vontade.
Com base nessa fundamentação de facto a ré formulou contra os autores os seguintes pedidos: que se «reconheça a última vontade do falecido HH em deixar os seus bens aos filhos da ré», e que se condenem os autores a pagar-lhe «€75.600,00 pelos serviços prestados … como enriquecimento sem causa» e «€5.427,03 por despesas liquidadas pela ré do HH».
Como é fácil de ver esta configuração da reconvenção não se ajusta a qualquer dos casos previstos nas alíneas b), c) e d) do n.º 2 do artigo 266.º do Código de Processo Civil.
Tal como estruturou a reconvenção, a ré não pretende tornar efectivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida - o valor que peticiona nada tem a ver com os bens, mas sim com a prestação dos cuidados.
A ré também não pretende o reconhecimento de um crédito, para obter a compensação ou para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor - a autora não aceita ser responsável pela indemnização pedida pelos autores, ao menos subsidiariamente, e por isso também não deduz compensação, ao menos a título subsidiário, nem pede que os autores sejam condenados na diferença entre os valores.
Por fim, o seu pedido não visar alcançar, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter – em lado algum a ré defende que é proprietária dos bens imóveis cuja restituição lhe é pedida.
Portanto, a única possibilidade que sobeja é a de o pedido do réu emergir do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa. À acção não é evidentemente. E à defesa?
Nem tudo quanto se alega na contestação é fundamento de defesa! Tal só sucede com os factos jurídicos alegados na contestação que, abstraindo por ora da sua demonstração, possuam a virtualidade de impedir, modificar ou extinguir o direito que o autor pretende exercer ou ver tutelado com o seu pedido. Tudo o que se alegar que não sirva de obstrução à pretensão do autor, ainda que seja gerador de algum direito a favor do réu, já não é fundamento de defesa, é mera alegação feita na defesa (rectius, na contestação).
Para servir de obstáculo ao sucesso da pretensão dos autores ao reconhecimento de que os bens pertencem à herança e a sua ocupação pela ré é ilícita e gerou danos, a ré tinha de alegar que tais bens afinal lhe pertencem e/ou que tem um direito legítimo a ocupar os bens ainda que estes não lhe pertençam. Na contestação não está alegado nenhum facto jurídico que integre algumas dessas situações.
No artigo 1.º da contestação a ré aceita expressamente o alegado nos artigos 9.º a 13.º da petição inicial. No artigo 9.º desta peça os autores alegaram: «9. As heranças ilíquidas e indivisas abertas por morte de GG e HH são legítimas proprietárias dos seguintes prédios urbanos: (…)».
A ré sustenta ainda que passou a ocupar parte dum desses prédios com autorização do respectivo proprietário e para poder cuidar dele pois que necessitava de cuidados a tempo inteiro. Esse proprietário já faleceu há anos e a necessidade de lhe prestar cuidados cessou com o seu falecimento.
Portanto, parece seguro que a reconvenção, constituída, note-se, por dois pedidos de indemnização, não emerge do facto jurídico que serve de fundamento à defesa, emerge sim de factos alegados para justificar a que título até ao falecimento do respectivo proprietário a ré ocupou parte do imóvel, o que podendo embora gerar algum direito a favor da ré (o que se afirma apenas em tese) não constitui um meio de defesa relativamente à pretensão dos autores.
Acresce que a declaração que a ré deduz no petitório da reconvenção - que se «reconheça a última vontade do falecido HH em deixar os seus bens aos filhos da ré» - nem sequer pode constituir mesmo um pedido de uma acção judicial.
O pedido é a tutela jurisdicional concretamente pretendida pelo demandante. Ele tem de consistir na solicitação de que o tribunal declare a existência ou inexistência de um direito ou de um facto jurídico, condene na prestação de uma coisa ou de um facto ou decrete uma mudança na ordem jurídica existente (artigo 10.º do Código de Processo Civil).
A circunstância de uma pessoa ter formulado a dada altura uma determinada vontade, ainda que se trate da vontade de praticar um acto jurídico, é insusceptível de constituir o pedido de uma acção judicial porque a vontade não é em si mesma um acto jurídico, nem produz efeitos jurídicos. A vontade é uma intenção subjectiva, um estado mental, uma resolução; o que produz efeitos jurídicos é a concretização da vontade, a prática do acto jurídico que houve a vontade de praticar.
Embora alegue no artigo 64.º da contestação que o falecido proprietário dos imóveis «tinha vontade que os imóveis da sua propriedade fossem doados aos filhos da ré», esta confessa no artigo seguinte que «nunca aceitou concretizar essa vontade» (em bom rigor, que ele concretizasse, porque sendo ele o proprietário era ele que podia celebrar o contrato de doação concretizador da vontade que manifestava).
Logo, a declaração que a ré leva ao petitório da reconvenção nem sequer é passível de constituir um pedido judicial (o que não significa, note-se, que esse facto – a vontade de compensar – não possa ser relevante para determinar a que título eram prestados cuidados ao proprietário do imóvel pela ré e, por isso, possuir relevo – não efeitosjurídico para um eventual pedido de indemnização por enriquecimento sem causa).
Por estes motivos (só por estes, e não com fundamento na competência material do tribunal para apreciar o pedido reconvencional fundado na prestação de serviços, pois não colhe, de todo, a afirmação feita na decisão recorrida de ter sido alegada uma relação jurídica de trabalho subordinado a remeter o pedido para a competência do tribunal de trabalho) a decisão de rejeitar a reconvenção é correcta e deve ser mantida.
Improcede assim o recurso dessa decisão.



C. Recurso do saneador-sentença:


C.1 Questão a decidir:

As alegações de recurso convocam esta Relação a decidir se estão reunidas as condições para conhecer de imediato do mérito dos pedidos de reconhecimento da propriedade e de condenação na entrega e, na afirmativa, se esses pedidos podem ser julgados procedentes.

C.2. Fundamentação de facto:

Para conhecer do mérito destes pedidos, o tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1. JJ exerce a função de cabeça de casal das heranças abertas por morte de GG, falecida em ../../2011, e marido, HH, falecido em ../../2019.
2. HH faleceu no estado de viúvo, deixou como herdeiros o irmão JJ e seis sobrinhos AA, BB, CC, DD, EE e FF.
3. As heranças ilíquidas e indivisas abertas por morte de GG e HH são legítimas proprietárias dos seguintes prédios urbanos:
a) Prédio urbano sito na Estrada ..., ..., na freguesia de Matosinhos, Concelho de Matosinhos, correspondente a casa de Rés do Chão e andar, descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o n.º ...57/2010 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...02 da UF de Matosinhos e ..., anterior artigo ...33 da freguesia de Matosinhos, com a valor patrimonial de € 113.984,50.
b) prédio urbano, correspondente a casa térrea com quintal, descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o n.º ...56/2010510 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...12 da UF de Matosinhos e ..., anterior artigo ...60 da freguesia de Matosinhos, com o valor patrimonial de € 16879,45.
4. O imóvel identificado em 3, a) é uma moradia bi-familiar, sendo constituído por duas habitações, uma no R/C e outra no primeiro andar, cada uma delas com três divisões, cozinha, casa e banho e vestíbulo.
5. Os Autores da herança residiam no primeiro piso desse imóvel, encontrando-se o r/c arrendado a terceiros.
6. A Ré passou a habitar o primeiro piso do imóvel identificado em 3. a), desde data anterior à morte de HH, juntamente com este, de quem foi cuidadora.
7. A ré continua a habitar o primeiro piso desse imóvel.

A recorrente insurge-se contra a decisão de considerar provado o facto do primeiro ponto. Embora seja correcta a sua afirmação de que tendo o herdeiro que desempenhava as funções de cabeça de casal falecido na pendência da acção ele deixou de exercer tal cargo, a impugnação não tem qualquer sentido porque o facto em causa é absolutamente irrelevante para a apreciação do pedido e porque de qualquer modo a referência temporal que baliza os factos é o momento da sua alegação, isto é, eles têm sempre por referência a actualidade no momento em que foram alegados.
O mesmo vale quanto à impugnação da decisão de considerar provado o facto do ponto 6. Foi dessa forma que o facto foi alegado pelos autores no artigo 12.º da petição inicial e foi aceite expressamente pela ré no artigo 1.º da contestação. De qualquer modo, para efeitos do pedido de reconhecimento da propriedade e de entrega é irrelevante saber a partir de que data concreta a ré passou a ocupar parte do imóvel, o que releva é se o vem ocupando, o que ela confessou.
Refira-se que a alusão errada e deslocada da recorrente à falta de análise da prova não tem qualquer sentido porque a decisão foi proferida antes de se ter alcançado a fase da produção dos meios de prova que tivesse então de ser apreciados.
Como a decisão foi proferida no despacho saneador, ou seja, antes da instrução da acção com a produção dos meios de prova, os factos que podem ser considerados provados são somente aqueles que ficaram assentes por falta de contestação da ré e que se encontram provados por documento autêntico.
Não há pois que introduzir qualquer mudança na fundamentação de facto da decisão recorrida.



C.3. Fundamentação de direito:

Na decisão recorrida o tribunal a quo julgou procedente o primeiro pedido formulado pelos autores e condenou a ré a reconhecer que os imóveis descritos nos pontos 3 da fundamentação de facto pertencem às heranças abertas por óbito de GG e HH, e a restituir, de imediato, aos autores e chamados o 1.º piso do imóvel identificado no ponto 3, al. a), assim como os móveis deixados no mesmo pelos de cuius.
A oposição da recorrente a esta decisão é deveras insólita e, com todo o devido respeito, traduz a incompreensão de conceitos jurídicos básicos.
Conforme já se assinalou, no artigo 9.º da petição inicial os autores alegaram que «as heranças ilíquidas e indivisas abertas por morte de GG e HH são legítimas proprietárias dos seguintes prédios urbanos: a) prédio urbano sito na Estrada ..., ...… descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o n.º ...57 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...02 da UF de Matosinhos e ..., anterior artigo ...33 da freguesia de Matosinhos, …; e b) Estrada ..., ..., … descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o n.º ...57 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...12 da UF de Matosinhos e ..., anterior artigo ...60 da freguesia de Matosinhos, ….».
São esses os imóveis que constituem o objecto da acção e dos pedidos dos autores. Sucede que no artigo 1.º da contestação a ré aceita expressamente o alegado nos artigos 9.º a 13.º da petição inicial, ou seja, aceita expressamente que os imóveis pertencem às heranças de que são herdeiros os autores, tal como alegado por estes.
O artigo 1311.º do Código Civil prevê a acção de reivindicação, estabelecendo que o proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.
Esta norma tem como justificação o conteúdo legal do direito de propriedade consagrado no artigo 1305º do Código Civil, segundo o qual o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas.
Os poderes de uso e fruição que cabem de modo pleno ao proprietário só poderão ser exercidos por terceiro desde que munido de um direito real ou pessoal de gozo com essa amplitude, sendo que uma vez reconhecida a propriedade da coisa, o terceiro só pode obstar à obrigação de a entregar ao proprietário caso demonstre ser titular do referido direito.
Segundo Rodrigues Bastos, in Notas ao Código Civil, vol. V, 1997, pág. 64 e seg., «a reivindicação é a acção exercida por uma pessoa que reclama a restituição de uma coisa de que é proprietário. A reivindicação funda-se, portanto, na existência do direito de propriedade, e tem por fim a obtenção da coisa. (…). A causa de pedir desta acção é complexa, compreendendo tanto o acto ou facto jurídico de que deriva o direito de propriedade do autor, como a ocupação abusiva do imóvel pelo réu, sendo estes factos que o autor tem de provar para obter a procedência da acção, com condenação nos dois pedidos que deve formular: o do reconhecimento daquele direito e o da restituição da coisa reivindicada, nada impedindo que a esses pedidos se juntem outros, como o de indemnização, se se verificarem os requisitos legais da cumulação».
Também Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, vol. III, pág. 112, afirmam que «a acção de reivindicação (...) é uma acção petitória que tem por objecto o reconhecimento do direito de propriedade e a consequente restituição da coisa por parte do possuidor ou detentor dela».
Para obter a procedência da acção de reivindicação, o autor tem de demonstrar que é o proprietário da coisa reivindicada e que o réu a possui ou detém.
Vigora no nosso sistema jurídico, em sede de direitos reais, a máxima nemo plus iuris in alium transfere potest quam ipse habet. Segundo essa regra, que inspira, por exemplo, o princípio do trato sucessivo do registo predial, ninguém pode transferir para terceiros mais direitos do que tem ou direitos que não tem.
Por efeito do princípio do nemo plus iuris, o reconhecimento do direito de propriedade só pode ser fundamentado em factos constitutivos da aquisição do direito de propriedade e esta, em princípio, só é possível através da demonstração de uma forma de aquisição originária. Querendo ser reconhecido como proprietário, o reivindicante deve fazer a prova dos factos onde radica a aquisição do direito de propriedade, a prova de uma forma de aquisição originária. Em alternativa, o autor pode demonstrar factos a que correspondam presunções de domínio desde que estas não sejam afastadas pela parte contrária.
Pela via da aquisição originária, para poder obter o reconhecimento do direito de propriedade sobre um imóvel é, portanto, necessário que a parte demonstre que se encontra na posse do imóvel e que essa posse reúne os requisitos necessários (pública e pacífica) e a duração suficiente para permitir a aquisição do direito por usucapião (forma de aquisição originária que se sobreporia a qualquer direito anterior).
Pela via da presunção de titularidade do direito é necessário que a parte demonstre factos aos quais a lei associe esse valor de presunção do direito e que essa presunção não seja ilidida pela parte demandada.
No caso os autores não alegaram nenhuma forma de aquisição originária, não alegaram a prática pelos autores das heranças actos de posse sobre os imóveis.
Todavia, alegaram e demonstraram através da junção das competentes certidões do registo predial (documentos autênticos que fazem prova plena dos actos do registo) que os imóveis se encontram inscritos no registo predial a favor dos autores das heranças.
Por outras palavras, invocaram a presunção de titularidade do direito inscrito no registo que advém do artigo 7.º do Código do Registo Predial («o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define»).
Esta presunção não foi afastada pela ré, a qual, bem pelo contrário, aceitou expressamente a titularidade do direito presumida por aquela disposição legal. Logo, o pedido de declaração de que os imóveis pertencem à herança não podia deixar de ser julgado provado.
O que restava decidir era apenas se a ré devia ser condenada a restituir os imóveis ao seu proprietário, rectius, se a ré demonstrou algum título válido para deter esses bens que não lhe pertencem.
A resposta é a de que a ré não só não demonstrou ter algum título válido como nem sequer o alegou!
Esse título tem de consistir numa relação jurídica em resultado da qual a ré tenha o direito ao gozo ou retenção do bem. Ele pode ser um direito real menor (v.g. direitos de usufruto ou de uso e habitação), um direito real de garantia (v.g. uma hipoteca ou um direito de retenção), um direito obrigacional de gozo (v.g. um contrato de arrendamento ou de comodato válido e em vigor) ou mesmo a mera posse se o autor não lograr demonstrar o direito (artigos 1268.º, 1277.º e 1278.º do Código Civil).
Em qualquer dessas situações o poder de facto que o réu exerce sobre um bem apesar de não ser proprietário deste tem uma origem jurídica, é tutelado juridicamente e prevalece sobre os poderes do proprietários. A ré, repete-se, não alegou qualquer facto que possa preencher alguma dessas situações.
O eventual direito de crédito de que possa ser titular pela prestação de serviços que realizou e/ou pelos pagamentos que fez de dívidas do beneficiário daqueles serviços e proprietário dos bens não lhe confere qualquer direito de retenção sobre estes bens porque em nenhum dos casos estamos perante um crédito por despesas feitas por causa dos bens ou de danos por eles causados (artigo 754.º do Código Civil).
Mesmo o alegado pagamento de algumas prestações do IMI relativo aos imóveis não é uma despesa por causa dos imóveis é apenas uma despesa relacionada com os imóveis. A despesa causada é a despesa que decorre da necessidade de manter, conservar ou reparar o imóvel na qual é feita, é uma despesa aplicada no imóvel; a despesa relacionada é a despesa cuja causa é outra relação jurídica (no caso a relação tributária entre a AT e o contribuinte) que se estabelece com o proprietário do imóvel, não traduzindo qualquer aplicação no imóvel, mas apenas o cumprimento da obrigação emergente dessa relação.
Nessa medida, a ré podia efectivamente ser condenada já a entregar os imóveis aos seus legítimos proprietários (as heranças), pelo que a decisão recorrida é correcta.
Não assim, refira-se, no tocante aos móveis.
Os autores alegaram na petição inicial que o imóvel ocupado parcialmente pela ré se encontra integralmente mobilado, com mobiliário que também integra as heranças e que a ré se recusa a entregar esse mobiliário. Todavia, os autores não concretizam que bens móveis são esses.
Na contestação a ré alega que quando foi habitar para lá o imóvel não possuía os bens indispensáveis à vida quotidiana e que, com excepção das loiças de cozinha e da casa de banho e dos móveis da cozinha, lhe pertencem todos os bens móveis que lá se encontram.
O que significa que como os móveis da cozinha e as loiças de cozinha e da casa de banho são partes componentes do próprio imóvel, no sentido que estão abrangidos pelo direito de propriedade do imóvel, é ainda controvertida a propriedade de todos os bens móveis que constituem o recheio do imóvel ocupado pela ré.
Por esse motivo não existe na fundamentação de facto da decisão qualquer facto que elucide sobre quem é titular desse direito e, consequentemente, o tribunal a quo não podia já condenar a ré a entregar os bens móveis que constituem esse recheio, ainda que sob a veste opaca dos «móveis deixados no mesmo pelos de cuius» que obviamente possui uma indeterminação que não é compatível com uma decisão judicial.
Nessa parte e medida procede o recurso.






D. Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso da seguinte forma:
A. Impugnação da decisão de rejeição da reconvenção: improcedente; em consequência, confirmam a decisão.
B. Impugnação do saneador/sentença que conheceu do primeiro pedido dos autores: parcialmente procedente; em consequência, alteram a decisão recorrida, revogando o segmento que se refere aos bens móveis, cuja decisão relegam para final, mantendo o mais aí decidido.

Não há lugar ao pagamento de custas pelo recurso, porque a recorrente foi dispensada do pagamento de taxa de justiça e, não tendo havido resposta ao recurso, não são devidas custas de parte.
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Porto, 26 de Junho de 2025.

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Os Juízes Desembargadores
Relator: Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 894)
1.º Adjunto: Paulo Dias da Silva
2.º Adjunto: Paulo Duarte Mesquita Teixeira







[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]