NON BIS IN IDEM
SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
Sumário

Sumário (da responsabilidade da Relatora)
I. Conforme resulta do no n.º 5 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa o princípio non bis in idem pretende garantir que ninguém possa ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.
II. Na suspensão provisória do processo o arguido não é sujeito a qualquer julgamento - cuja realização, aliás, se pretende evitar -, nem as injunções susceptíveis de ser aplicadas constituem qualquer pena.

Texto Integral

Acordam na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
1. Por sentença de 23 de Outubro de 20241 foi o arguido AA condenado na pena de 40 dias de multa, à taxa diária de €10,00 e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 3 meses pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal.
2. Inconformado, veio o arguido interpor recurso apresentando as seguintes conclusões da motivação:
“(…)
1. - A douta sentença recorrida, deu como provado a prática do crime de embriaguez face à confissão integral e sem reservas do arguido, nos termos do art.º 344, n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal.
2. - O Recorrente foi condenado, na multa à taxa diária de €10,00 e na pena acessória de conduzir veículos com motor, pelo período de 3 meses, pela prática em autoria material, no dia 20-01-2024, de um crime de embriaguez, p. e p. pelos art.º 292º, n.º 1 e 69.º, n.º 1, alínea a) ambos do Código Penal.
3. - Ora, acontece que durante o inquérito o MP, havia proposto ao Arguido a aplicação do instituto da suspensão provisória do processo mediante o cumprimento de duas injunções:
a. Entregar €500 a favor da CC, instituição de solidariedade social
b. Entregar a sua carta no processo.
4. - O que o Arguido não entendeu é que teria de expressamente aceitar o instituto de suspensão provisória do processo.
5. - Embora tenha dado cumprimento às injunções tendo pago os €500 e entregando a carta de condução na PSP, a qual veio a ser entregue no dia 23/10 por se encontrar junto aos autos.
6. - A verdade é que dando cumprimento às injunções o Arguido aceitou tacitamente a aplicação do regime da suspensão provisória do processo.
7. - O princípio non bis in idem ou ne bis in idem significa que ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.
8. - Trata-se de um princípio de Direito Constitucional Penal que configura um direito subjetivo fundamental, enunciado no n.º 5 do art.º 29.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).
9. - A douta sentença recorrida traduz-se na aplicação de uma segunda pena pelo mesmo crime.
10. - O que é ilegal por violação do art.º 29.º, n.º 5 da CRP, sendo por isso nula por violação de lei.
(…).”
3. O Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu ao recurso defendendo a sua improcedência invocando, em síntese, que a suspensão provisória do processo não se concretizou por falta de resposta do arguido e ora recorrente.
4. O Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal pronunciou-se do mesmo modo pela improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida.
II. Âmbito do recurso e identificação das questões a decidir
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões apresentadas nas quais, de forma sintética e por referência à motivação do recorrente, são expostas as razões da discordância face à decisão recorrida (artigos 402.º, 403.º e 412.º, n.º 1 do Código Processo Penal). Ao Tribunal de recurso cabe ainda apreciar de eventuais questões de conhecimento oficioso designadamente, se existentes, da verificação dos vícios do artigo 410.º do Código de Processo Penal.
No caso, atentas as conclusões apresentadas importa decidir da suscitada nulidade da sentença.
III. Fundamentação
A 7 de março de 2023 o Ministério Público determinou a notificação do arguido para,
“(…) em 5 dias, esclarecer se concorda com a, eventual, aplicação nos autos do instituto da suspensão provisória do processo, pelo prazo de 4 meses, sujeito às seguintes injunções:
. Entregar €500,00 a favor da CC, instituição de solidariedade social e juntar o recibo comprovativo aos autos
e
. Cumprir um período de inibição de conduzir de 3 meses, devendo, para o efeito, entregar a sua carta de condução nos autos, em 10 dias, após ser notificado para o efeito.”
Da notificação em causa constava ainda que, caso o arguido não concordasse com a suspensão provisória do processo, os autos prosseguiriam com dedução de acusação e que, em caso de concordância sua, seria determinada a suspensão provisória do processo e, cumpridas as injunções propostas, o mesmo seria arquivado.
A 13 de março de 2024 a notificação em causa foi efectuada à Ilustre Defensora oficiosa e ao arguido, através de carta registada com PD, sendo o seguinte o seu teor:
“(…)
Fica V. Exª notificado, na qualidade de Arguido, para no prazo de 05 dias, vir aos presentes autos, declarar por escrito e por requerimento por si assinado, podendo fazê-lo por email, se concorda com a aplicação da suspensão provisória do processo, pelo prazo de 4 meses, sujeito às seguintes injunções:
(…).”
Por o arguido nada ter comunicado ao processo, a 15 de Abril de 2024 foi proferida acusação e remetidos os autos à distribuição como processo abreviado.
Notificado da acusação veio o arguido, a 26 de Junho, requerer a suspensão provisória do processo juntando comprovativo da entrega, a 25 de Março de 2024, da carta de condução, vindo, a 2 de Julho de 2024, juntar comprovativo de transferência a 29 de Junho de 2024 para a CC, instituição de solidariedade social do montante proposto pelo Ministério Público.
No despacho que recebeu a acusação e designou data para julgamento o Senhor Juiz pronunciou-se sobre o requerimento em causa, indeferindo-o2.
Pretende agora o arguido que ao condená-lo em pena de multa e na pena acessória de proibição de conduzir o tribunal a quo violou o princípio non bis in idem previsto no n.º 5 do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa, por entender que cumpriu as injunções propostas pelo Ministério Público e que, por isso, já foi sancionado pela prática do mesmo crime de condução em estado de embriaguez.
Vejamos.
Conforme resulta do dispositivo constitucional citado o princípio non bis in idem pretende garantir que ninguém possa ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.
Na suspensão provisória do processo o arguido não é sujeito a qualquer julgamento - cuja realização, aliás, se pretende evitar -, nem as injunções susceptiveis de ser aplicadas constituem qualquer pena.
Trata-se de um “mecanismo de oportunidade e consenso3 de que o Ministério Público deve lançar mão na pequena criminalidade desde que se mostrem reunidos os pressupostos previstos no artigo 281.º do Código de Processo Penal. É, assim, uma decisão do Ministério Público que pressupõe também a aceitação do arguido e a concordância do Juiz de Instrução.
Não obstante a clareza da notificação que lhe foi efectuada em linguagem acessivel, o arguido, devidamente representado por Defensor, não declarou que aceitava a suspensão provisória do processo e os autos não chegaram a ser remetidos ao Juiz de Instrução Criminal para os efeitos previstos no n.º 1 do citado artigo 281.º.
No caso, e ainda que alinhada com as injunções propostas pelo Ministério Público, a actuação do arguido ocorreu à margem de qualquer suspensão provisória do processo.
Ou seja, não foi determinada a suspensão provisória do processo, pelo que a entrega da carta de condução e a entrega do montante à CC, instituição de solidariedade social, nem sequer constituíram o cumprimento de qualquer injunção.
Ainda que, nas circunstâncias4, fosse razoável que previamente à prolação da acusação, se tivesse confirmado o significado da entrega da carta que sugere a aceitação da proposta de suspensão que lhe foi apresentada, nem por isso se pode considerar como anómalo o prosseguimento dos autos e a realização do julgamento que culminou com a condenação do arguido.
A responsabilidade criminal do ora recorrente apenas foi apreciada uma vez, em sede de julgamento, e o mesmo apenas sofreu uma condenação pela prática dos factos em causa, não se verificando qualquer violação do princípio ne bis in idem, sendo de improceder a pretensão do recorrente de ver declarada nula a sentença recorrida.
Mais se refere, em qualquer caso5, que o pagamento efectuado à CC, instituição de solidariedade social e a entrega da carta de condução não poderiam ser descontados nas penas impostas em sede de sentença.
Não o podiam ser se estivesse em causa o incumprimento das injunções ou das regras de conduta acordadas no âmbito da suspensão provisória do processo, conforme disposto no n.º 4 do artigo 282.º do Código de Processo Penal e atenta a jurisprudência fixada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Abril de 20176.
E também não o podem ser no caso dos autos, em que a actuação do arguido não foi sequer enquadrada por qualquer suspensão provisória do processo.

IV. Dispositivo
Por tudo o exposto, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar não provido o recurso, confirmando na íntegra a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 3 UC’s - artigo 515º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal.
Notifique.

(Acórdão elaborado pela relatora em suporte informático e revisto pelos signatários – artigo 94º, n.º 2 do Código de Processo Penal).
Lisboa, 18 de Junho de 2025.
Rosa Vasconcelos
Alfredo Costa (votou vencido)
Ana Rita Loja

VOTO DE VENCIDO
Com o devido respeito pela posição maioritária, que subscrevo parcialmente quanto à correcta exposição dos pressupostos legais da suspensão provisória do processo (artigo 281.º do Código de Processo Penal), não posso, todavia, concordar com a conclusão firmada, por entender que a decisão ora confirmada violou os princípios estruturantes do processo penal justo, designadamente os princípios da boa-fé processual, da proporcionalidade da pena acessória e da proibição do excesso, bem como desconsiderou o comportamento substancialmente relevante do arguido.
1. Quanto à inadmissibilidade do desconto da pena acessória pelo cumprimento espontâneo das injunções:
O acórdão subscrito entende que, por não ter havido aceitação formal do arguido nem homologação judicial da suspensão provisória do processo, os comportamentos por ele praticados (pagamento à CC, instituição de solidariedade social e entrega da carta de condução) não podem ser valorados juridicamente.
Com o devido respeito, esta conclusão não é inteiramente defensável por duas ordens de razões:
a) O arguido cumpriu integral e voluntariamente o conteúdo das injunções propostas, no tempo que lhe foi indicado;
b) O vício formal invocado — a ausência de aceitação escrita e subsequente homologação — é imputável ao próprio sistema e não ao arguido, que não criou a situação de irregularidade, nem dela beneficiou, tendo antes actuado em conformidade com o que lhe foi proposto.
2. Distinção face ao Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.º 4/2017:
A jurisprudência ali fixada reporta-se a situações de incumprimento das injunções no âmbito de suspensão provisória formalmente admitida. No caso sub judice, o arguido cumpriu efectivamente as injunções, embora a proposta do MP não tenha sido formalizada pelo sistema.
Assim, não é o incumprimento da injunção que está em causa, mas sim a omissão de tramitação subsequente pelo Ministério Público, que não submeteu a questão à homologação judicial, apesar do arguido ter demonstrado inequivocamente a sua aceitação através da execução material das medidas.
3. Violação do princípio da boa-fé processual:
O arguido agiu confiando na proposta que lhe foi dirigida e concretizou os actos que lhe foram indicados, interpretando, com razoabilidade, que estava a dar cumprimento ao regime da suspensão provisória. Esta conduta é juridicamente relevante. Nos termos do artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil, o julgador deve ter em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma aplicação uniforme e justa do Direito.
Ora, ignorar o cumprimento efectivo de uma pena acessória já concretizada de facto — sem que o arguido tenha actuado com má-fé — viola o princípio da confiança e da segurança jurídica, princípios estruturantes do Estado de Direito (art. 2.º da CRP), e conduz a uma duplicação material da sanção.
4. Consequência jurídica:
Nestes termos, entendo que, não obstante a ausência de formalização da suspensão provisória do processo, a entrega da carta de condução e o cumprimento integral do período de inibição devem ser considerados no momento da determinação concreta da pena acessória. A sua não valoração traduz-se, a meu ver, numa violação do princípio da proporcionalidade (art. 18.º, n.º 2 da CRP) e na aplicação injustificada de uma pena já materialmente cumprida, o que contraria a lógica retributiva e preventivo-especial da pena.
Assim, voto no sentido da revogação parcial da sentença recorrida, apenas quanto à pena acessória de inibição de conduzir, determinando-se a declaração de extinção da sua execução, por já ter sido concretizada de facto em momento anterior à decisão final.

_______________________________________________________
1. A respectiva acta foi partilhada a 9 de Novembro e assinada a 11 de Novembro de 2024.
2. Nos seguintes termos: “Fls. 44 e 46:
Indefere-se o requerido, uma vez que, por falta de manifestação de concordância por parte do(a) arguido(a), no tempo em que lhe concedido para o efeito (notificação efectuada no dia 13.03.2024 - cf. fls. 32 a 34), não foi determinada a suspensão provisória do processo, situação, aliás, consignada, no dia 15.04.2024, pelo Ministério Público (fls. 37), logo, não havia lugar ao cumprimento de qualquer injunção nos presentes autos.
3. André Lamas Leite, “Suspensão provisória do processo e abertura da instrução em Portugal: brevíssimas notas
4. Já que constava dos autos comunicação da PSP a dar conta da atempada entrega da carta de condução.
5. A questão não foi suscitada pelo recorrente. Toda a argumentação expendida foi centrada na violação do referido princípio constitucional e a única pretensão deduzida respeitava à nulidade da sentença que vimos ser de improceder.
6. “Tendo sido acordada a suspensão provisoria do processo, nos termos do art. 281º do Código de Processo Penal, com a injunção da proibição da condução de veículo automóvel, prevista no nº 3 do preceito, caso aquela suspensão termine, prosseguindo o processo, ao abrigo do nº 4, do art. 282º, do mesmo Código, o tempo em que o arguido esteve privado da carta de condução não deve ser descontado no tempo da pena acessória de inibição da faculdade de conduzir, aplicada na sentença condenatória que venha a ter lugar. (…).”