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OMISSÃO DE AUXÍLIO
MEDIDA DA PENA
RECURSO
Sumário
Sumário (da responsabilidade da Relatora) I. O crime de omissão de auxílio protege diversos bens jurídicos, desde a vida, à integridade física e à liberdade individual, nas suas diversas acepções de liberdade de deslocação, de autodeterminação, sexual, etc., que têm de comum o facto de serem bens jurídicos de natureza eminentemente pessoal, estando afastados da tutela penal interesses de carácter patrimonial. II. O recurso dirigido à medida da pena visa sindicar a observância do princípio da proporcionalidade na escolha da espécie e respectiva e dosimetria concreta, assim como a correção dos critérios de determinação, à luz da intensidade da culpa, das exigências de prevenção geral e especial e das circunstâncias do caso e não a concretização de um novo quantum da pena aplicada, alternativo ou substitutivo do decidido na primeira instância, prevalecendo este sempre que não se verifique qualquer excesso ou erro de apreciação.
Texto Integral
Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido em 12 de Novembro de 2024, no processo comum colectivo nº 8594/20.8T9LSB do Juízo Central Criminal de Loures - Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, foi decidido:
1- Condenar o AA, pela prática, em autoria material, na forma consumada, e em concurso efectivo de:
a) 1 (um) crime de homicídio por negligência, previsto e punível pelo artigo 137.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 10 (dez) meses de prisão e na pena acessória de conduzir veículos com motor pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, nos termos do disposto no artigo 69º, nº. 1, al. a) do Código Penal;
b) 2 (dois) crimes de ofensa à integridade física por negligência, previstos e puníveis pelo artigo 148.º, n.º 1 do Código Penal, na pena, para cada um deles, de 8 (oito) meses de prisão e na pena acessória de conduzir veículos com motor pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, nos termos do disposto no artigo 69º, nº. 1, al. a) do Código Penal, relativamente a cada um desses crimes;
c) 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punível pelo artigo 291.º, n.º 1, als. a) e b) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, e na pena acessória de conduzir veículos com motor pelo período de 1 (um) ano e 6 (seis) meses, nos termos do disposto no artigo 69º, nº. 1, al. a) do Código Penal;
d) 3 (três) crimes de omissão de auxílio, previstos e puníveis pelo artigo 200.º, n.ºs. 1 e 2 do Código Penal, na pena para cada um deles de 1 (um) ano de prisão;
2- Efectuado o cúmulo jurídico das penas referidas em 1.a), b), c) e d), condenar o arguido na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.
3- Efectuado o cúmulo jurídico das penas acessórias referidas em 1.a), b) e c), condenar o arguido na pena acessória única de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses (artº 69º, nº 1.al a), do Código Penal), devendo o arguido entregar a respectiva carta de condução e licença de condução caso possua esta última, na secretaria deste Tribunal ou em qualquer Posto policial, no prazo de 10 (dez) dias a contar do trânsito em julgado da presente decisão, sob pena de não o fazendo incorrer na prática de um crime de desobediência.
4- Absolver o arguido AA da prática de (um) crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punível pelo artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal.
5- Absolver o arguido AA da prática de 2 (dois) crimes de omissão de auxílio, previstos e puníveis pelo artigo 200.º, n.ºs. 1 e 2 do Código Penal.
O arguido AA interpôs recurso do acórdão condenatório, tendo, para o efeito, formulado as seguintes conclusões:
1. O AA ora Recorrente foi condenado pela prática, em autoria material, na forma consumada, e em concurso efectivo de:
a) um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo artigo 137º nºs 1 e 2 do CP na pena de 2 anos e 10 meses de prisão e na pena acessória de conduzir veículos com motor pelo período de 1 ano e 6 meses nos termos do disposto no artigo 69º nº 1 al. a) do CP;
b) 2 (dois) crimes de ofensa à integridade física por negligência p. e p. pelo artigo 148º nº 1 do CP na pena, cada um deles, de 8 meses de prisão e na pena acessória de conduzir veículos com motor pelo período de 1 ano e 6 meses nos termos do disposto no artigo 69º nº 1 al. a) do CP, relativamente a cada um desses crimes;
c) 1 (um) crime de condução perigosa de veículo rodoviário, p.e p. pelo artigo 291º nº 1 als. a) e b) do CP na pena de 2 anos e 2 meses de prisão e na pena acessória de conduzir veículos com motor pelo período de 1 ano e 6 meses nos termos do disposto no artigo 69º nº 1 al. a) do CP;
d) 3 (três) crimes de omissão de auxílio p. e p. pelo artigo 200º nºs 1 e 2 do CP na pena de cada um deles de 1 ano de prisão;
2. Em cúmulo jurídico foi o arguido condenado na pena única de 5 anos de prisão e na pena acessória de conduzir veículos com motor pelo período de 2 anos e 8 meses de prisão nos termos do disposto no artigo 69º nº 1 al. a) do CP;
3. O ora Recorrente delimita o presente Recurso:
a) apenas à questão dos crimes de omissão de auxilio, por erro e má aplicação e interpretação do Direito face à matéria dada como provada a este respeito, mostrando-se conformado com a restante matéria dada como provada o que, aliás, resulta da confissão integral e sem reservas por parte do arguido aqui recorrente;
b) à medida da pena que deve resultar da pretendida não condenação do recorrente quanto aos crimes de omissão de auxílio;
c) à não suspensão da execução da pena;
4. Conquanto tudo o que se passa e consta dos autos, não apresenta perigosidade de maior, sendo o gravame a tal respeito mais de extrapolação dos crimes praticados.
5. Dir-se-á mesmo que a severa punição infligida, é mais produto do combate à tipologia do crime que ao subjectivo de rebeldia ou habitualidade perigosa do AA.
6. Quanto se acaba de dizer, repercute-se significativamente no anterior comportamento do AA, relativamente ao qual apresenta apenas condenações relativas a crimes de pouca gravidade e distantes no tempo.
7. Nunca este preso, encontra-se social, profissional e familiarmente inserido e o Colectivo de Juízes não deixou de o reconhecer embora sempre ancorados no relatório social junto aos autos.
8. Como bem refere o Colectivo de Juízes (pág. 11 do Acórdão), mostrou arrependimento pela sua conduta desatenta e potenciadora do acidente e pediu desculpas em audiência.
9. Atenta a auto-delimitação que o ora Recorrente faz relativamente ao âmbito do presente recurso, reproduzem-se na integra os factos dados como provados relativamente aos crimes de homicídio negligente, ofensa à integridade física e de condução perigosa (foi por estes crimes que o arguido foi condenado, tendo-os confessado, vide pagina 14 do Acórdão -1º parágrafo)) e que no entender do ora recorrente poderiam e deveriam ter conduzido o Colectivo à aplicação de uma pena mais branda, mas refutando, contudo, ter praticado os 3 (três) crimes de omissão de auxílio de que também vinha acusado e que acabou condenado. (vinha acusado de 5)
10. A própria defesa do AA reconhece ( não podia deixar de o reconhecer) ser a conduta global em análise merecedora de censura, como foi, mas crê, por outro lado, que a mesma, aconselhava uma pena não tão severa e inibidora de qualquer projecto de futuro a médio prazo.
11. A QUESTÃO DOS CRIMES DE OMISSÃO DE AUXILIO (aliás, o único ponto de discordância do recorrente sendo que , por sua vez, também potenciou a medida da pena)
Cremos, com todo o respeito, que o Acórdão ora recorrido incorre num erro de análise da prova ao concluir que o arguido cometeu três crimes de omissão de auxílio.
12. ANÁLISE DA PROVA ( crimes de omissão de auxílio)
13. Cabe reconhecer que a súmula efectuada pelo Acórdão ora recorrido quanto ao depoimento das testemunhas ouvidas em julgamento (fls. 16 a 21 do acórdão) constituem um retrato fiel do que por elas foi dito, não sendo, assim, necessário, do ponto de vista da defesa, o recurso à gravação da prova.
14. E analisadas estas ( lidas e relidas) constata-se qual foi o percurso lógico-dedutivo efectuado pelo Acórdão, ressaltando, de modo inequívoco, que o Colectivo de Juízes formulou o seu juízo de condenação depois de, de dúvida em dúvida, ter ouvido os agentes da PSP “à paisana” BB e CC, ao tempo casada com o BB.
15. Na verdade, são estes os depoimentos que consubstanciam a convicção de que ocorreu uma fuga por parte do arguido / recorrente.
16. Mas outros depoimentos há, em tudo diferentes do destas testemunhas, que colocam em dúvida o depoimento daquelas, que, por sua vez “influenciaram” ou determinaram a convicção do Tribunal.
17. testemunha DD referiu: “ Quando chegaram ao acidente (ela e o marido) o acidente tinha acabado de se dar”
“ Lembra-se de ver um senhor alto com sangue na testa, a senhora, mãe das meninas, estava a sair do carro. O senhor dizia “está tudo bem” (falta o ponto de interrogação que constava do depoimento). Logo que ouviram o embate o marido telefonou ao 112”
“Na altura estavam parados para além do seu veiculo, um outro veiculo (só podia ser o do arguido) e um autocarro”
Daqui resulta, sumariamente, que foi o arguido quem perguntou se estava tudo bem e que se aproximou do local do embate onde se encontrava só o automóvel que transportava as meninas, o do arguido, o desta testemunha e um autocarro.
18. A testemunha EE (marido de DD) referiu:
“um dos veículos intervenientes era um Mercedes escuro (o do arguido), viu junto a esse carro uma pessoa alta com as mãos na cabeça, onde apresentava um ferimento que sangrava. Estava desorientado. Falava muito. Depois nunca mais o viu”
A testemunha FF (militar da GNR do núcleo especializado em acidentes de viação) referiu:
“Que elaborou a participação do acidente, o arguido estava junto do veiculo dele, que segundo os agentes da PSP (à paisana, que iam a passar no local) o arguido tentou numa primeira fase sair do local (sempre é diferente de tentar uma fuga) que o arguido estava agitado e tinha ferimentos no olho direito, que solicitou tratamento médico e que não falou muito com ele.
Disse que NÃO foi mencionado pelos agentes da PSP à paisana que ele iria fugir, apenas que ele estaria a sair do local já ia pela berma e nós trouxemo-lo.
A testemunha rematou que é normal haver nervosismo, às vezes as pessoas têm que sair do local para espairecer. É normal.”
19. Testemunha GG referiu:
“ A dado momento veio um agente da PSP à paisana que disse que encontrou um senhor a andar em sentido contrário ao do acidente”
20. Resulta, no mínimo duvidoso (estará a dúvida instalada ?) que o arguido / recorrente tenha tentado fugir.
21. É notória a divergência, sobretudo, do depoimento do agente da GNR FF, especialista em acidentes de viação, e dos agentes da PSP à paisana BB e CC.
22. Aquele chega referir que os agentes da PSP à paisana nunca mencionaram que o arguido tentou qualquer espécie de fuga.
23. Sendo que as demais testemunhas depuseram no sentido que o arguido estava no local, carecia de tratamento médico ( o que chegou a solicitar ao agente FF).
24. Acresce que o arguido foi transportado para o Hospital de ambulância, estava ferido, desorientado, agitado, nervoso, sendo licito perguntar se estava o arguido em condições físicas e emocionais para prestar qualquer tipo de auxílio no quadro da grande confusão que entretanto se estabeleceu no local ?
25. O recorrente aceita, sem debater, que o arguido cometeu em concurso real de infrações, os crimes de homicídio negligente, ofensa à integridade física e condução perigosa.
26. O Acórdão reflecte – e bem – sobre esta problemática.
27. Não tanto – a ter cometido – quanto ao crime de omissão de auxílio.
28. Na verdade – a ter cometido – cometeu um só crime de omissão de auxílio.
Por uma lado, sempre se trataria de uma crime na forma continuada (concurso ideal homogéneo) uma vez tratando-se de violação, mediante uma única acção, por diversas vezes, do mesmo tipo legal.
29. Por outro, a reflexão que é feita no Acórdão a propósito da exclusão dos “ofendidos” HH e GG com base no conceito de “grave necessidade” constante no artigo 200º nº 1 do CP deve ser extensível às ofendidas II e JJ a, uma vez que, pese embora tenham sido transportadas para o Hospital (como aconteceu com o arguido) não se retira da factualidade provada que estas estivessem perante, por qualquer forma, numa situação de perigo para a vida.
30. Não ficam assim grandes dúvidas, que apreciada na sua globalidade e em atinência ao AA ora Recorrente, a condenação oferece dúvidas quanto à comissão do crime ou crimes de omissão de auxilio.
31. De todo o exposto, oferece-se neste capítulo, que o gravame da pena aqui aplicada, e até o enquadramento legal efectuado, não tem explicação fácil, razão ou coerência consistentes, face à prova produzida.
32. E quanto se diz não pretende reverberar o Judicial Português; antes e tão somente fazer incidir a atenção para a falibilidade de apreciação do rigor probatório, em matéria e circunstâncias de tanto melindre, dificuldades e falência de transparência.
33. Em suma deve o arguido / recorrente ser Absolvido dos 3 (três) crimes de omissão de auxilio por que foi condenado, ou, se assim se não entender, condenado apenas pela prática de 1 (um) só crime de omissão de auxilio, sendo que, em ambas as hipóteses, tal deve reflectir-se na pena final, em cúmulo, que vier a ser fixada.
34. O Acórdão ora recorrido acaba por condenar o arguido na pena de 5 (cinco) anos e 6 (meses) meses de prisão.
35. Aqui reside também a discordância do ora recorrente.
36. Na determinação da medida da pena devem ser em tidas em conta para além da culpa do agente as necessidades de prevenção, tal como dispõe o artigo 71º do Código Penal.
37. A prevenção está ligada à necessidade comunitária de punição do caso concreto sendo que só se torna justificável a aplicação de uma pena se esta for realmente necessária, e quando necessária, esta deverá ser sempre aplicada na medida exacta da sua necessidade e sempre subordinada a uma proibição de excesso.
38. Quando estamos perante uma pena excessiva (ainda que tenha sido considerada necessária) que ultrapasse o juízo de censura que o agente causador do crime mereça, essa pena é injusta.
39. Apesar de estarmos perante um caso em que o grau de culpa é grande tal como a intensidade do dolo, no entender do arguido recorrente a pena que lhe foi aplicada peca por excessiva, pelo que é grande o inconformismo do recorrente.
40. Só a prevenção justa é necessária.
41. Pese embora estejamos perante uma actuação censurável o arguido entende que esta não é passível de uma pena tão severa quanto a aplicada, devendo a mesma ser reduzida e suspensa na sua execução com regime de prova.
42. Neste caso, entende o recorrente que o Tribunal teve principalmente em conta a função retributiva da pena, olvidando-se da função ressocializadora da mesma que tenderia a considerar que as finalidades da punição deverão ser executadas com o sentido pedagógico e ressocializador.
43. Com efeito, o princípio que a doutrina tem denominado da necessidade das penas, afirma que a legitimidade das penas criminais dependa da sua necessidade, adequação e proporcionalidade, em sentido estrito, para a protecção de bens ou interesses constitucionalmente tutelados, salientando que o espaço prisional ( onde o arguido nunca esteve) é estigmatizante e alavanca de mais criminalidade.
44. Dúvidas não deve haver quanto ao estabelecimento de uma prognose favorável em torno deste recorrente. Porém, essa oportunidade não lhe foi concedida.
Termos em que, deve o presente recurso merecer provimento e, em consequência:
a) ser o recorrente Absolvido quanto aos 3 (três) crimes de omissão de auxílio ou, se assim se não entender, deve o recorrente ser condenado apenas por 1 (um) crime de omissão de auxílio;
b) deve a pena em que o recorrente foi condenado ser reduzida ( em função do decidido quanto à al. a) para uma pena não superior a 4 anos de prisão, suspensa na sua execução e sujeita a regime de prova.
Admitido o recurso, o Mº. Pº. apresentou resposta, na qual concluiu:
1. O acórdão fez uma apreciação correcta da factualidade, tendo condenado o arguido na pena de cinco anos e seis meses de prisão.
2. Da análise atenta da motivação de recurso apresentada pelo recorrente e bem assim, das suas conclusões, o fundamento das alegações de recurso prende-se, exclusivamente, com, no entender daquela, da incorreta apreciação da prova quanto ao crime de omissão de auxílio.
3. O Acórdão em causa retratou (de fls.16 a 21 do mesmo) o percurso lógico dedutivo efectuado pelo Tribunal, nomeadamente quanto à convicção formada que efetivamente o arguido, após a prática dos factos, colocou-se (ou tentou colocar-se) em fuga.
4. Não sobram dúvidas que o arguido efetivamente cometeu os três crimes de omissão de auxílio relativamente aos quais foi condenado.
5. Os factos praticados pelo arguido foram graves, do qual resultou a morte de uma criança de dez anos de idade.
6. A ilicitude do facto é elevada e o dolo de intensidade elevada.
7. As exigências de prevenção geral positiva são elevadas, atenta a necessidade de prevenir este tipo de condutas.
8. Foi respeitado o princípio da proporcionalidade.
9. Tudo ponderado, considerando a gravidade dos factos apurados, a culpa do arguido e as exigências de prevenção, mostra-se objectivamente justificada a pena aplicada encontrada pelo tribunal
Termos em que deve o recurso interposto ser julgado improcedente, mantendo-se o douto acórdão recorrido.
Remetido o processo a este Tribunal, na vista a que se refere o art. 416º do CPP, a Exma. Sra. Procuradora Geral da República Adjunta emitiu parecer «sufragando os fundamentos expostos na resposta a recurso apresentada pelo Ministério Público em 1ª. Instância, (…) no sentido da manutenção do acórdão recorrido, pugnando pela improcedência do recurso.»
Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do CPP, o recorrente respondeu em síntese, dizendo o seguinte:
A análise da prova a este respeita suscita muitas dúvidas ( dúvidas essas que devem operar a favor do arguido) bastando para tal revisitar as diversas e contraditórias declarações das testemunhas prestadas em audiência de julgamento e citadas na Motivação de recurso.
A este respeito, o MP em 1ª instância e o MP junto do Tribunal da Relação não esboçam qualquer posição, não analisam criticamente, não se pronunciam, não assumem a existência de tão evidentes contradições, limitando-se a pugnar pela manutenção do decidido.
Aqui chegados cumpre realçar a importância deste tema pois a decisão a este respeito deverá influenciar decisivamente a pena fixada em cúmulo jurídico – necessariamente reduzindo-a se a mesma merecer provimento – importando, neste caso, equacionar a possibilidade de suspensão da pena única a que finalmente se chegará.
Também a este respeito – redução da pena fixada e suspensão da mesma, matéria suscitada em sede de recurso – o MP em ambas as instâncias não se pronunciou.
E é tanto quanto cumpre responder ao Parecer do MP.
Colhidos os vistos e realizada a conferência, nos termos e para os efeitos previstos nos arts. 418º e 419º nº 3 al. c) do CPP, cumpre então, decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DOS RECURSOS E IDENTIFICAÇÃO DAS QUESTÕES A DECIDIR:
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art. 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061).
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º por remissão do art. 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art. 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art. 410º nº 2 do mesmo diploma;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
Seguindo esta ordem lógica e as conclusões do recurso, as questões a decidir são as seguintes:
Se o recorrente deve ser absolvido quanto aos 3 (três) crimes de omissão de auxílio ou, se assim se não entender, deve o recorrente ser condenado apenas por 1 (um) crime de omissão de auxílio;
Se a pena em que o recorrente foi condenado deve ser reduzida ( em função do decidido quanto à al. a) para uma pena não superior a 4 anos de prisão;
Se esta pena deve ser suspensa na sua execução e sujeita a regime de prova.
2.2. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
No acórdão recorrido foi fixada a seguinte matéria de facto e a seguinte motivação da mesma decisão (transcrição):
1. Pelas 21h40m do dia ... de ... de 2020, o arguido AA conduzia o veículo ligeiro de passageiros, de marca Mercedes, com matrícula ..-PI-.., próximo do quilómetro 4,4 da A1, sentido Norte/Sul, área desta comarca.
2. Fazia-o após ter ingerido, voluntariamente, bebidas de teor alcoólico antes de iniciar a condução.
3. O arguido conduzia, naquelas circunstâncias, com uma taxa de álcool no sangue de 2,58 g/l sendo o valor apurado, após dedução do erro máximo admissível, de 2,25 g/l.
4. A artéria, no local do acidente, configura uma recta, com boa visibilidade em toda a sua largura e extensão.
5. A faixa de rodagem apresenta uma largura de 10,50 metros, com três vias de trânsito no mesmo sentido, delimitadas com linha longitudinal descontínua e linha contínua delimitadora da berma.
6. A velocidade máxima permitida no local é de 120 km/h.
7. Na altura era de noite e o piso, em asfalto, estava seco, em estado regular, sem anomalias ou deformações e limpo.
8. No momento da ocorrência havia elevada intensidade de trânsito.
9. Alguns metros atrás do local de embate circulavam outros utentes da via, ao volante das suas viaturas automóveis, designadamente EE e DD; KK e LL; MM; BB e CC, entre outros utilizadores da via.
10. Nas mesmas circunstâncias espácio-temporais, proveniente do acesso de ..., sentido Norte/Sul, a assistente, II, encontrava-se aos comandos da viatura automóvel da marca Citroen e com a matrícula ..-BX-.., fazendo-o na segunda faixa a contar da direita.
11. Consigo, seguiam como passageiras, as suas filhas, ambas menores de idade, sentadas no banco traseiro.
12. NN, nascida a .../.../2010, seguia sentada no lugar por detrás do condutor, fazendo uso de banco elevatório e cinto de segurança.
13. JJ, nascida a .../.../2012, circulava sentada no lugar por detrás do lugar habitualmente designado por pendura, fazendo uso de banco/cadeira de retenção e cinto de segurança.
14. Também HH seguia nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, na via da direita, como condutor da viatura automóvel ligeiro de passageiros, da marca Renault e com a matrícula ..-..-UA.
15. Consigo seguia, na qualidade de passageira, no lugar ao lado do condutor, GG.
16. Próximo do marco hectométrico que assinala o quilómetro 4,4 da A1, o arguido efectuou uma manobra de ultrapassagem, utilizando a faixa da esquerda, ao veículo conduzido por DD, que circulava na faixa central (segunda faixa a contar da direita).
17. Fê-lo a uma velocidade não concretamente determinada, mas seguramente superior a 120 km/h.
18. Logo após, o arguido retomou à faixa central, onde circulava a assistente, sem se assegurar se ali circulavam outros veículos.
19. Acresce que, devido à velocidade excessiva que imprimia à viatura, ao regresso inopinado à faixa central e em razão do seu estado de embriaguez que lhe retirava a capacidade de concentração, raciocínio e reflexos, não conseguiu evitar o choque no veículo conduzido pela assistente.
20. O arguido não diminuiu a velocidade, nem realizou nenhuma manobra evasiva, como por exemplo desviar a sua trajectória para um dos lados, distanciamento, ou accionou os órgãos de travagem.
21. Devido à conduta do arguido, a viatura por si conduzida embateu com grande vigor e força com a sua parte frontal na parte traseira do BX.
22. Como consequência do forte impacto do PI no BX, o veículo conduzido pela assistente foi impulsionado de encontro ao veículo automóvel com a matrícula UA, conduzido por HH, que circulava na faixa da direita.
23. Nesse seguimento, o BX embateu com o vértice frontal direito no vértice traseiro esquerdo do UA e rodopiou diversas vezes sobre si até se imobilizar, atravessado na via da direita.
24. Por seu turno, também o condutor do UA perdeu o controlo da viatura por si conduzida, foi embater contra o talude do lado direito da via, com a parte traseira da viatura, o que deu origem ao capotamento e deslizou até à posição final do BX, ficando parcialmente por cima desse, onde se imobilizou, já depois do marco hectométrico que assinala o quilómetro 4,3 da A1.
25. Já o PI embateu no separador central e ficou imobilizado na faixa da esquerda, com a zona frontal direccionada para o separador de betão.
26. Após, o arguido saiu do veículo por si conduzido.
27. NN ficou encarcerada na viatura e só com a chegada dos Bombeiros foi retirada da viatura, já inconsciente.
28. Após, foi transportada para o serviço de urgência do ... em Lisboa, onde foi declarado o óbito pelas 12h27m do dia ... de ... de 2020.
29. Como consequência directa e necessária do embate narrado, NN sofreu lesões traumáticas crânio-encefálicas, torácicas e do membro inferior direito, examinadas no relatório de autópsia de fls. 77-80, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, que lhe determinaram a sua morte.
30. A assistente, II, foi transportada para o serviço de urgência do ... em Lisboa, onde deu entrada pelas 23h31m e teve alta pelas 04h09m do dia .../.../2020.
31. Como consequência directa e necessária do embate descrito, a assistente, II, sofreu traumatismo crânio-encefálico, facial e lombar, dor à palpação ao nível dos 10.° e 11.° arcos costais à esquerda e contractura lombar à direita ao nível da L4 e L5, lesões examinadas no relatório de fls. 351-352, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, que lhe determinaram 60 dias de doença, todos eles com incapacidade para o trabalho profissional.
32. JJ foi transportada para o serviço de urgência do ... em Lisboa, onde deu entrada pelas 23h25m do dia .../.../2020 e teve alta pelas 14h01m do dia .../.../2022.
33. Como consequência directa e necessária do embate relatado, JJ sofreu lesões traumáticas crânio-encefálicas, traumatismo facial com equimose na hemi-face direita, na região malar esquerda e hematoma peri-orbitário esquerdo, examinadas no relatório de fls. 349-350, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, que lhe determinaram 30 dias de doença, todos eles com incapacidade para as actividades escolares.
34. Em momento não concretamente apurado, o arguido afastou-se do local, tendo vindo a ser encontrado por terceiro, em fuga, pendurado num viaduto a cerca de 200 metros do local do acidente.
35. Ao encetar fuga, o arguido alheou-se por completo da situação de grave necessidade em que as pessoas que seguiam na viatura automóvel de matrícula ..-BX-.. se encontravam, o que representou, não cuidando de se certificar do real estado de saúde de NN, II, e JJ e não lhes prestando qualquer auxílio, nem sinalizou o local do embate.
36. O arguido não cuidou de se certificar do estado de saúde de HH e GG.
37. Ao actuar da forma descrita, AA omitiu voluntariamente os deveres de cuidado e diligência que sobre si recaíam e de que era capaz.
38. O arguido, ao conduzir a uma velocidade superior ao permitido naquele local e ao efectuar uma manobra de ultrapassagem sem se certificar previamente de que o retorno à faixa central era seguro, mudando para a mesma sem guardar a distância de segurança da viatura da frente, demonstrou uma atitude e condução de manifesta falta de cuidado que o dever geral de prudência aconselha, omitindo cautelas exigíveis e indispensáveis a quem conduz veículos automóveis.
39. E ao exercer a condução, em concreto, a manobra de ultrapassagem, à velocidade em que seguia, sabia o arguido de que a probabilidade de despiste e colisão do veículo com outros que circulassem na via de rodagem era grande.
40. E que, assim, colocava em perigo a vida, integridade física e valores patrimoniais elevados alheios dos condutores e ocupantes dos veículos, como ocorreu, perigo este que previu.
41. Dessa feita, o arguido representou como possível a morte, lesões na integridade física e estragos em bens patrimoniais alheios de condutores e passageiros, com o que não se conformou, o que veio a acontecer, com o falecimento de NN em face dos ferimentos verificados; os ferimentos, dores e sofrimento causados a II e JJ; bem como dores e sofrimento causados a HH e GG, pese embora esses últimos não tenham tido necessidade de recorrer a assistência hospitalar e, ainda, a destruição completa da viatura daqueles, de valor não concretamente apurado, mas de valor superior a 5.100,00 €.
42. Sabia o arguido que se encontrava sob o efeito de ingestão de bebidas alcoólicas, não se encontrando em condições de efectuar a condução do seu veículo automóvel em segurança, mas, ainda assim, não se absteve de o fazer.
43. Ao conduzir o veículo da forma descrita, o arguido sabia que o estado de embriaguez em que se encontrava, atenta a TAS apurada, implicava um elevado grau de probabilidade de ocorrência de acidente de viação, colocando em perigo os demais utentes da via, o que veio a ocorrer.
44. Ao abandonar o local, de modo livre e deliberado, consciente da gravidade do acidente que provocara e bem assim de que no veículo BX seguiam pessoas, o arguido desinteressou-se da situação de grave necessidade em que as mesmas poderiam encontrar-se, como se encontravam, e que representou como possível, não cuidando de se certificar do real estado de saúde de NN, II e JJ e não lhes prestou o auxílio necessário ao afastamento da situação de perigo que criou, bem sabendo que dessa forma violava os mais elementares deveres de solidariedade pessoal perante a vida e a integridade física dos seus concidadãos, conformando-se com a eventual ocorrência de outras lesões mais graves para a vida e integridade física das vítimas.
45. O acidente ficou a dever-se ao facto do arguido, na ocasião, ter assumido um tipo de condução totalmente imponderada, ousada, leviana e temerária, não cuidando, como lhe era exigível e possível, de manter o seu veículo a transitar de molde a não embater em terceiros, considerando que se encontrava a realizar uma manobra de ultrapassagem e em local onde não podia exceder a velocidade de 120 km/hora, além de se encontrar com os reflexos e tempo de reacção diminuídos por se encontrar a conduzir influenciado pelo consumo de álcool.
46. Ao actuar da forma descrita, o arguido omitiu voluntariamente, os mais elementares deveres de cuidado e diligência que sobre si recaíam e de que era capaz.
47. Sabia que estava obrigado a cumprir as regras estradais, designadamente que não podia conduzir veículos automóveis sob o efeito do álcool e que devia adequar a velocidade que imprimia ao veículo tendo em conta o local em que circulava e a manobra que realizava, devendo ter-se assegurado que conseguia controlar a viatura e que não colidiria com a viatura da frente, o que não fez.
48. O arguido quis conduzir o referido veículo, na via pública, da forma descrita, e modo descuidado, porque desajustado ao tipo de manobra que realizava, insensato, imprudente e perigoso, sabendo que a sua conduta era susceptível de criar sério perigo de acidente com os demais utentes da via, e representando a possibilidade de vir a embater nalgum veículo, como sucedeu, e, dessa forma, causar-lhe lesões na sua integridade física ou mesmo a morte, e, ainda, a lesão de bens patrimoniais de valor elevado, o que veio a acontecer.
49. Sabia o arguido que as suas condutas lhe estavam vedadas por lei penal e tendo capacidade de determinação, não se inibiu de as realizar.
50. Das condições pessoais, sociais e económicas do arguido:
- À data dos alegados factos criminais constantes no presente processo, tal como no presente, AA mantinha-se inserido no seu núcleo familiar de referência, constituído pelo próprio, pela companheira de 32 anos e pelos quatro filhos do casal, menores de idade.
- A dinâmica familiar era e continua a ser descrita como adequada, pautada por vínculos afetivos e de entreajuda. AA mantém ainda relação de proximidade com a maioria da família mais alargada, residentes no mesmo “bairro”.
- O arguido bem como a respectiva família residia então, tal como na actualidade, no mesmo local.
- Trata-se das instalações de uns aviários abandonados há muitos anos e que foram sendo gradualmente ocupados.
- Esta zona encontra-se conotada com problemáticas sociais de pobreza, exclusão social e de delinquência.
- AA é natural de ..., tendo o seu processo de socialização ocorrido no seio de uma família numerosa, de condição socioeconómica humilde, sendo as despesas asseguradas pelos provimentos obtidos na venda ambulante. O período da infância foi marcado pela longa reclusão do progenitor, tendo a progenitora, auxiliada pelos avós e tios, acabado por assumir a responsabilidade na educação do arguido.
- Em termos de percurso escolar, verificou-se pouco investimento, sendo que em idade regular não adquiriu qualquer habilitação, já que desde muito jovem passou a colaborar com os seus familiares na actividade da venda ambulante. Foi posteriormente, e no âmbito de intervenção social de que foi alvo, que foi encaminhado para um Curso de Educação e Formação para Adultos, tendo concluído o nível B2 (6° ano de escolaridade). Foi também integrado num Programa Ocupacional, tendo exercido funções de ... na ..., durante um ano.
- AA percorria várias zonas do país, nomeadamente, a zona do ..., com os seus familiares na procura de trabalho. Chegou a viver alguns anos em ... com os pais, para trabalhar em várias actividades agrícolas.
- Ao nível relacional, com dezassete anos, conheceu a sua companheira, OO, com quem tem quatro filhos, com 17, 14, 13 e 6 anos de idade.
- O percurso profissional do arguido decorre há muito na área da venda ambulante de vestuário, actividade que exerce em conjunto com outros familiares.
- No plano económico, o agregado familiar constituído, beneficia há muito da atribuição do rendimento social de inserção. Como complemento da economia doméstica o arguido e a companheira continuam a dedicar-se à venda ambulante de vestuário “de porta a porta”.
- O quadro económico é percepcionado pelo próprio como modesto face aos gastos quotidianos da família. Não obstante, e de acordo com o arguido, o seu agregado aufere cerca de 1100€ mensais, quantia em que se insere o rendimento social de inserção e os abonos de família dos jovens.
- A instauração do presente processo judicial não determinou alterações importantes no quotidiano do arguido.
- Para além dos danos materiais que diz ter sofrido AA refere ter ficado emocionalmente perturbado com a situação criminal em apreço.
- Ainda assim, AA parece ter alguma dificuldade em avaliar as consequências graves dos seus actos/comportamentos ora em apreço.
- No âmbito de condenações anteriores, AA foi sujeito à intervenção da DGRSP desde ..., no âmbito do cumprimento de duas medidas de pena de prisão suspensas com regime de prova, o arguido correspondeu na generalidade.
51. O arguido regista os seguintes antecedentes criminais:
- No âmbito do processo n.° 525/06.4..., do Tribunal Judicial de Vila Franca de Xira, por decisão transitada em julgado em .../.../2006, foi condenado pela prática, em .../.../2006, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 40 dias de multa, à taxa diária de 3 euros;
- No âmbito do processo n.° 91/07.3..., do Tribunal Judicial de Vila Franca de Xira, por decisão transitada em julgado em .../.../2007, foi condenado pela prática, em .../.../2007, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 130 dias de multa, à taxa diária de 3 euros;
- No âmbito do processo n.° 74/06.0..., do Tribunal Judicial de Vila Franca de Xira, por decisão transitada em julgado em .../.../2009, foi condenado pela prática, em .../.../2006, de um crime de resistência e coação sobre funcionário, na pena de 14 meses de prisão, suspensa por 14 meses, com regime de prova.
- No âmbito do processo n.° 323/07.8..., do Tribunal Judicial de Vila Franca de Xira, por decisão transitada em julgado em .../.../2010, foi condenado pela prática, em .../.../2007, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 8 meses de prisão, suspensa por um ano;
- No âmbito do processo n.° 623/07.7..., do Tribunal Judicial de Vila Franca de Xira, por decisão transitada em julgado em .../.../2010, foi condenado pela prática, em .../.../2007, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 9 meses de prisão substituída por multa;
- No âmbito do processo n.° 59/17.1..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo Local Criminal de T. Vedras, por decisão transitada em julgado em .../.../2018, foi condenado pela prática, em .../.../2017, de um crime de furto qualificado, na pena de 8 meses de prisão substituída por multa;
- No âmbito do processo n.° 222/18.8..., do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juízo Local Criminal de Pombal, Juiz 2, por decisão transitada em julgado em .../.../2018, foi condenado pela prática, em .../.../2018, de um crime de furto qualificado, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão suspensa por 1 ano com regime de prova. A pena aplicada foi extinta por decisão de ........2020;
- No âmbito do processo n.° 454/18.9..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte, Juízo de Competência Genérica da ..., por decisão transitada em julgado em .../.../2019, foi condenado pela prática, em .../.../2018, de um crime de furto qualificado, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão suspensa por 2 anos e 6 meses com regime de prova;
- No âmbito do processo n.° 438/19.0..., do Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Criminal de Santarém, Juiz 2, por decisão transitada em julgado em .../.../2020, foi condenado pela prática, em .../.../2019, de um crime de furto qualificado, na pena de 1 ano e 6 meses de prisão suspensa por 1 ano. A pena foi extinta por decisão de ........2021.
52. O arguido em audiência de julgamento disse estar arrependido e pediu desculpas.
III.2 - Factos não Provados.
Não se provou que:
a) O arguido tem averbada no seu Registo Individual de Condutor uma contra- ordenação.
III. 3 - Fundamentação de Facto.
Serviram de base para formar a convicção do Tribunal, a análise crítica e conjugada dos elementos probatórios a seguir enunciados, apreciados segundo as regras de experiência comum e a livre convicção do julgador, nos termos do art° 127° do Cód. de Proc. Penal, excepto quanto aos exames periciais cujo valor probatório é o previsto no art° 163° do último diploma legal citado, em que o juízo técnico e científico constante de tais exames se presumem subtraído à livre apreciação do julgador:
Vale em matéria de apreciação da prova em processo penal, não se tratando da prova “tarifada”, como é o caso da prova pericial, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.127°, do C.P.P.
A apreciação da prova segundo esse princípio, não se traduz em livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, correspondendo, antes, à apreciação da prova de acordo com critérios lógicos e objectivos que determinam uma convicção racional, objectivável e motivável. A livre apreciação da prova consubstanciar-se-á nas regras da experiência e na livre convicção do julgador. As normas da experiência, no dizer do Prof. Cavaleiro Ferreira, “são definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub judice, assentes na experiência comum, e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além das quais têm validade’. A livre convicção, segundo o mesmo mestre “é o meio de descoberta da verdade, não uma afirmação infundamentada da verdade”, portanto, “uma conclusão livre, porque subordinada à razão e à lógica, e não limitada por prescrições formais exteriores”.
Também, de reter a propósito das presunções, dada a sua relevância nesta matéria da prova, a definição constante do artigo 349° do Código Civil que reza “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”. O recurso às presunções assume especial relevo prático em relação a factos de que não há prova directa. A máxima da experiência é pois uma regra que exprime aquilo que sucede na maior parte dos casos, traduzindo-se assim, numa regra extraída de casos semelhantes. A experiência permite formular um juízo de relação entre factos, parte-se do pressuposto de que “em casos semelhantes existe um idêntico comportamento humano” e este relacionamento permite afirmar um facto histórico não com plena certeza mas, como afirma Tonini, como uma possibilidade mais ou menos ampla.
Concretizando, foram os seguintes os meios de prova produzidos e valorados pelo Tribunal:
Declarações do arguido, prestadas em audiência de julgamento.
Declarações da assistente;
Prova testemunhal;
Pericial:
- relatório de autópsia de fls. 77-80, estudo histopatológico de fls. 81-82 e relatório de fls. 83-84;
- relatório de fls. 83.
Documental:
- Boletim de informação clínica e/ou circunstancial de fls. 3-4;
- PAV de fls. 35-38;
- Elementos clínicos de fls. 133-136, 168-169;
- Elementos clínicos de fls. 137-150; 170-176;
- Elementos clínicos de fls. 182-186;
- Relatório de averiguação de fls. 202-251 e aditamentos de fls. 198-201 e 396-397;
- Relatório de averiguação de fls. 253-271 e documentos de fls. 272-347;
- Auto de exame directo de fls. 349-350;
- Auto de exame directo de fls. 351-352;
- Relatório de averiguação de fls. 370-397;
- Autos de fls. 476-480, 481-483, 484-486, 487-489;
- Registo fotográfico de fls. 490-536;
- CD de fls. 569;
- Relatório de ocorrência de fls. 574-575;
- Informação de fls. 578;
- Cota de fls. 589;
- CD de fls. 603;
- Relatório técnico final de fls. 715-742;
- Registo Individual do Condutor do arguido de fls. 756-757;
- Relatório Social junto aos autos em ........2024 com a ref.15747623;
- CRC do arguido junto aos autos em ........2024 com a ref\15780694.
Concretizando e explicitando, refira-se o seguinte:
A instrução da causa não assumiu particulares dificuldades, porquanto, o arguido confessou toda a factualidade imputada no libelo acusatório, com excepção da factualidade integrante dos crimes de omissão de auxílio, como em sede própria se deixou consignado.
Assim, no tocante à dinâmica do acidente e suas consequências, a posição assumida pelo arguido em conjugação com o acervo probatório supra elencado (documental e pericial), determinou a prova da correspondente factualidade.
Sendo que no tocante ao elemento volitivo das acções, o mesmo apreende-se, sem dificuldades, desde logo das declarações do arguido, conjugadas com os factos praticados, porquanto, atendendo à natureza dos factos praticados o arguido actuou porque assim o quis, tendo empreendido a condução depois de ter consumido bebidas alcoólicas, com as suas capacidades e competências diminuídas por tal facto (como o ensinam as regras da experiência comum), circulando em excesso de velocidade e realizando uma manobra de ultrapassagem com manifesta violação das regras de segurança, não observando as regras da condução e de segurança que se lhe impunham, bem sabendo que colocava em perigo todos os utentes da via, nomeadamente, a sua integridade física e vida, assim, como colocava em perigo valores patrimoniais elevados alheios. O que previu e aceitou. Admitindo, atendendo à natureza da actividade perigosa que realizava e os moldes em que o fazia, como possível a morte, lesões e estragos em bens patrimoniais alheios, apenas deixando de se conformar com a produção de tal resultado. Tudo como nos ensinam as regras da normalidade das coisas e da experiência comum.
No tocante à factualidade que se considerou por provada sob os pontos 34, 35, 36 e 44, o arguido negou que tivesse fugido ou abandonado quem quer que seja, afirmou que “estava desorientado, desmaiei ” e que nunca teria abandonado quem quer que seja.
Ora, a versão de negação trazida aos autos pelo arguido não resistiu ante a prova testemunhal produzida, que, no essencial e por força da confissão (parcial) do arguido se reconduziu ao apuramento dos factos constitutivos do crime de omissão de auxílio.
Diremos, desde logo, que como resultou dos depoimentos prestados e o próprio reconheceu, o arguido, que estava ensanguentado na cabeça, rosto e olho (a participação de acidente de viação menciona ferimentos leves), apesar de ferido, saiu pelo seu pé, do veículo que conduzia e permaneceu pelo menos algum tempo no local.
Retira-se, do depoimento de todas as testemunhas presentes no local que as mesmas se aperceberam da aflição da assistente e da sua filha JJ, mãe e irmã da NN que permanecia encarcerada dentro da viatura BX. Resultou do depoimento das testemunhas que tentaram movimentar o carro de forma a conseguir “libertar” a PP mas não o conseguiram. Também, resultou do depoimento das testemunhas que se aproximaram da pequena e permaneceram junto da mesma. Outras testemunhas, mantiveram-se junto da assistente e da filha a carecer, igualmente, de cuidados, uma vez que também estavam feridas, e se encontravam numa grande aflição perante o estado da NN.
Colhe lembrar, neste quadro, que foi na parte traseira do veículo BX que o veículo do arguido embateu com grande vigor e força como se provou, provocando o posterior embate do BX no UA e rodopiando diversas vezes até se imobilizar. Finalmente, tendo o condutor do UA perdido o controlo da sua viatura, provocando o seu capotamento, esse veículo viria a ficar parcialmente, precisamente em cima do BX (do lado onde estava a NN). Numa sucessão de factos de enorme violência e que o estado em que ficaram os veículos, como se vê das fotografias juntas aos autos, fielmente documenta. Situação essa que o arguido não pode ter deixado de percepcionar.
Quanto ao arguido nenhuma referência foi feita quanto à sua actuação no imediato, nomeadamente, no sentido de se inteirar qual a situação dos feridos e de ajudar no que lhe fosse possível. O que mal se compreende quando estava perante uma situação trágica e por si criada, facilmente apreensível para qualquer pessoa, ainda, que apresentando ferimentos. Não se tratou de desatenção das testemunhas, porquanto, o arguido nada aduziu em contrário.
Por último, dizer, como melhor se verá infra, que a prova testemunhal foi inequívoca no sentido do arguido ter encetado fuga do local.
Vejamos, com mais pormenor, como se orientou o depoimento das testemunhas.
Desde logo, a assistente que contou como, a seguir ao acidente uma Senhora tirou a QQ do carro, o que não foi possível fazer relativamente à PP que estava presa dentro do carro por força do outro carro que estava em cima. Afirmou, não ter visto o condutor do carro que provocou o acidente, nem nunca ter havido contacto por parte do mesmo ou pedido de desculpas.
EE, que terá sido uma das primeiras pessoas a chegar ao acidente, porquanto, explicou que circulava com a esposa que era a condutora do veículo em que seguiam e que a dada altura passou por eles um carro a alta velocidade e pouco depois viram um “clarão”. Quando chegaram ao local do acidente, que teria acabado de acontecer, viu um grande aparato. Ligou logo para o 112 e foi relatando ao telefone o que via. Encostaram o carro do lado direito junto a um talude. Um dos veículos intervenientes era um Mercedes escuro. Viu junto a esse carro uma pessoa alta com as mãos na cabeça, onde apresentava um ferimento que sangrava. Estava desorientado. Falava muito. Depois, nunca mais o viu.
DD, mulher da testemunha EE, relatou que conduzia o veículo onde seguia com o marido a velocidade de 90/100 km/h, dado que como é hábito havia colocado o cruise control. Quando o veículo (conduzido pelo arguido) passou pelo seu lado esquerdo “parecia uma flecha”. Ouviram um primeiro embate. Chegados ao local do acidente, lembra-se de ver um senhor alto com sangue na testa no meio dos destroços. Não sabe quem era. Era tudo escuro. Disse ter ficado com a pequenina (a QQ) o tempo todo, que queria ir para o lado da irmã. Quando chegaram ao local, o acidente tinha acabado de se dar. A senhora, mãe das meninas, estava a sair do carro. O senhor dizia “está tudo bem”. Estaria no carro preto que estava junto ao rail. Logo que ouviram o primeiro embate, o marido telefonou ao 112. Na altura estavam parados para além do seu veículo, um outro veículo e um autocarro.
KK, disse que circulava com a mulher e que viu passar um Mercedes em excesso de velocidade, grande velocidade. Mais à frente já só viu fumos. Parou em segurança. Viu a mãe das meninas a chorar e os carros intervenientes. Ouviu um senhor dizer que alguém queria fugir, mas não se lembra bem.
Dadas as dificuldades de lembrança da testemunha e após requerido pelo Ministério Público e acordo de todos os intervenientes, foi permitida a leitura das declarações prestadas em sede de inquérito a fls. 594 e 595, como se fez constar na sede própria. Após leitura das declarações, a testemunha confirmou o que aí consta, nomeadamente que estava no local um senhor com uma ferida na cabeça, a andar de um lado para o outro, a dizer “ já me foderam a vida”. Ficou com a ideia que este circulava no veículo Mercedes, interveniente no acidente dos autos.
LL, companheira da testemunha KK e que seguia com o mesmo na noite do acidente. Afirmou ter sido a primeira pessoa a chegar. Contou como chegados ao local do acidente viu muito fumo. Ouviu a mãe da menina a pedir ajuda, “era desesperante”. Havia outro casal que teve que partir um vidro para sair do carro (o que estava por cima do carro da assistente) e outro rapaz num carro. Juntamente com um senhor brasileiro foi cuidar da menina, que estava presa dentro da viatura e que viria a falecer. Uma outra senhora tratou da outra menina.
RR. Essa testemunha foi interveniente no acidente dos autos, sendo condutor do UA. Afirmou ter visto o condutor da carrinha preta a sair da mesma e que o mesmo tinha sangue no rosto. O condutor perguntava por alguém e queria um telefone e dava a entender que tinha mais alguém no carro. Esse indivíduo andava de um lado para o outro. Afirmou, ainda, que a dada altura perdeu o contacto visual com o referido indivíduo e que mais tarde, um casal de polícia “à civil” lhe disse que o referido indivíduo estava a caminhar para fora do local. Não sabe dizer se iria fugir. Não sabe se nessa altura já estava a ambulância no local.
Afirmou que nem ele nem a esposa tinham ferimentos visíveis.
FF, militar da GNR, que elaborou a participação de acidente de viação de fls. 164 e ss.
Esta testemunha afirmou ter-se deslocado ao local após o acidente no qual intervieram 3 (três) veículos, como relatou. Quando chegou, os Bombeiros estavam a proceder à reanimação da menina (a NN). O arguido estava junto do veículo dele com a escolta de dois PSP, segundo a testemunha: “Iam a passar no local e mediaram a situação para não haver conflitos. Mencionaram que o arguido tentou numa primeira fase sair do local”.
Contou que o arguido estava agitado e tinha ferimentos no olho direito, tendo solicitado tratamento médico e que não falou muito com ele.
Disse que não foi mencionado que ele iria fugir, apenas que ele estaria a sair do local “já ia pela berma e nós trouxemo-lo”. A propósito de uma fuga, a testemunha rematou “ É normal haver o nervosismo. Às vezes as pessoas têm que sair do local para espairecer. É normal”.
SS, pai das vítimas NN e JJ e que não foi interveniente no acidente, chegou ao local apos ter sido avisado por um colega. Afirmou que se deparou com um cenário aterrador. Quando chegou já estavam lá os bombeiros. Nunca viu o arguido. O arguido nunca lhes pediu desculpas.
GG, mulher da testemunha HH. Contou que seguia com o marido no veículo UA e foram intervenientes no acidente. Sentiu o embate e o carro no ar e às voltas. Até que parou, tendo ficado “encaixado” no veículo da senhora em que seguiam as meninas. Quando saíram do carro viram muita gente. Entretanto, apareceu o condutor do veículo que provocou o acidente. Procurava alguém. Tinha sangue na testa. Entretanto, deixou de o ver.
A dado momento veio um agente da PSP “ à paisana” que disse que encontrou o senhor a andar em sentido contrário ao do acidente.
O veículo em que seguia ficou encaixado no veículo da senhora onde estava a criança. Tentaram mexer no carro, mas não conseguiram desencaixá-lo. Havia um grupo grande a fazer isso, mas sem êxito. Não sabe se o arguido participou.
TT, chefe da PSP.
Circulava pela via onde se deu o acidente, que não presenciou. Relatou que foram intervenientes três carros. Do seu lado esquerdo, parado junto ao separador central estava uma carrinha escura toda partida. Saiu de dentro um indivíduo a cambalear com sangue na cabeça e nas mãos. Aproximou-se dele e o mesmo dizia “ o meu amigo, o meu amigo”. Disse-lhe para se sentar junto à berma e que iria chamar o 112. Viu uma senhora com uma menina e a procurar outra criança. Olhou para dentro do veículo e viu a outra menina que estava presa, com os olhos semi-abertos e ensanguentada. Tentou segurar a cabeça dela. Uma senhora já tinha ligado ao 112. Chegou a sua ex-mulher que lhe perguntou pelo responsável. Olhou e já não estava lá. Começou a correr em sentido contrário e foi à procura do arguido. Deu com ele pendurado na ponte a 150/200 metros, num talude de cimento a tentar levantar uma perna. Disse-lhe “polícia” e ele largou os braços e caiu, tendo ainda batido num pilar. Depois veio na sua direcção e disse-lhe “ estás a foder-me a vida”. Projectou-o ao chão e levou-o para o local do acidente. Asseverou que, claramente, ele queria fugir. Depois foi ter com a GNR e deixou o arguido com o guarda que aí estava.
Não sabe dizer se o arguido estava nervoso. Nunca viu nenhum interesse por parte do arguido na situação ocorrida.
O arguido dava sinais de estar embriagado. Tinha um discurso de quem acabou de ter um acidente. Parecia confuso. Naturalmente, terá batido com a cabeça. O viaduto onde o encontrou é o que está mais perto do local do acidente, no sentido do Porto. É visível nas fotos de fls. 736 e 504 com as quais foi confrontado. Entre o momento em que chegou ao local e o momento em que foi buscar o arguido teriam decorrido cerca de 10 minutos. A GNR chegou enquanto caminhavam de regresso ao local do acidente.
CC, comissária da PSP, ao tempo dos factos casada com a testemunha BB. Contou que chegados ao local o marido saiu logo da viatura que era conduzida pela própria. Passados 3 a 4 minutos saiu do carro e dirigiu-se ao marido. Tendo-lhe perguntado o que teria acontecido, o marido deu por falta do indivíduo que teria causado o acidente. O marido foi à procura, perguntando às pessoas se o tinham visto. A dado momento o marido começou a correr. Foi atrás e viu o marido a falar com alguém e um indivíduo pendurado no varandim de um viaduto a 4 metros de altura. Largou as mãos caiu e bateu num pilar. Proferiu vários impropérios. O marido fez-lhe uma revista e levou-o para perto do acidente. Ficou junto a ele enquanto o marido foi falar com o GNR, que disse que não era preciso nada (o que achou estranho face à detenção que acabavam de fazer).
O arguido nada perguntou quanto às pessoas envolvidas no acidente. Estava bastante embriagado. Tinha um forte odor a álcool. Mostrava preocupação com o carro e com a vida dele. Enquanto voltavam do viaduto ele dizia que o amigo dele tinha fugido Repetia muito. Estava exaltado.
Melhor esclarecendo, referiu que quando viu o arguido ele estava por cima do talude a cerca de 1 metro do solo e que quando largou as mãos, caiu e bateu no pilar. Estava ensanguentado na cabeça.
Quando se dirigiram para o viaduto atrás do arguido, o que demorou cerca de 1 minuto, não estavam meios de socorro. Quando voltaram já estavam.
MM. Chegou ao local a seguir ao acidente. Circulava num veículo como pendura, o qual era conduzido pelo seu colega. Vê um casal a sair do carro que estava capotado por cima do carro onde seguia a menina. Viu um senhor a sair de um outro carro. Dizia ajudem-me. Não se recorda de ele ter perguntado por outros feridos. Dizia “ajudem-me, doí-me a cabeça”. Não voltou a ver o Senhor. Foi tentar ajudar e tentar tirar as meninas de dentro do carro. Conseguiram tirar uma menina e reuniram esforços para conseguir tirar a outra menina mas não conseguiram. A menina estava presa.
Da conjugação das declarações da assistente e dos referidos depoimentos, prestados de modo coerente, seguro e isento e, em especial, dos depoimentos das testemunhas BB e CC e em conjugação com as fotografias do local, resultou inequívoco para o Tribunal que o arguido, contrariamente ao por si afirmado, a dada altura retirou-se do local e encetou fuga, o que apenas não logrou concretizar por pronta acção da testemunha BB. Não se nega que num primeiro momento, a versão constante do libelo acusatório se nos afigurou de difícil execução face à altura do viaduto, visível nas fotografias de fls..736 e, especialmente, de fls. 504. Contudo, ouvidas as duas testemunhas referidas que, com precisão e coerência, relataram as condições em que se depararam com o arguido e a forma como o mesmo logrou alcançar o viaduto, a partir do talude de cimento aí existente, afastaram-se as dúvidas que nos surgiram, porquanto, se percebe que estando em cima do talude e na extrema do viaduto, o acesso ao mesmo é possível e até relativamente fácil.
Não se olvidou o depoimento da testemunha FF que parece ter desvalorizado a situação em causa, porquanto, não a terá entendido como se tratando de uma fuga. Contudo, as circunstâncias relatadas pelas testemunhas BB e CC não são compatíveis com um cenário em que o arguido tivesse querido “espairecer” ou afastar-se por escassos momentos. Quando é certo que caso o arguido tivesse logrado subir ao viaduto ter-se-ia irremediavelmente ausentado do local. Também, o comportamento assumido pelo arguido não estava, seguramente, relacionado com o estado de desorientação que o mesmo poderia apresentar fruto do acidente, porquanto, numa situação dessas nunca o arguido se atreveria a subir a um viaduto, como nos dizem as regras da experiência comum. Certos de que experimentando alguma desorientação ficaria no local onde poderia receber alguma ajuda, nomeadamente, médica.
Dos depoimento referidos resultou claro para o Tribunal que o arguido em nenhum momento se procurou inteirar da situação das vítimas, nem sequer das crianças que se encontravam no local. Afirmou o mesmo que estava desorientado, o que se admite, dado que como emerge das fotografias do seu veículo foram accionados os air bags, o mesmo apresentava ferimentos na cabeça e na vista (como emerge das suas declarações e depoimentos das testemunhas ouvidas) e acabara de protagonizar um acidente aparatoso. Contudo, depois de sair do seu veículo e decorridos alguns momentos, não se entende como pôde o mesmo alhear-se de toda a envolvente, não procurando saber dos feridos e ajudar até onde lhe fosse possível. Recorde-se que como todas as testemunhas referiram e o arguido não pode ter deixado de se aperceber, permanecia encarcerada num dos veículos a criança NN e a sua mãe e irmã que, também, estavam feridas, se encontravam numa enorme aflição. Os presentes tentaram, inclusive, movimentar o veículo que se encontrava por cima do veículo onde estava a criança e do seu lado, sem que o arguido tivesse feito menção de auxiliar. Ninguém referiu qualquer acção do arguido nesse sentido e ele próprio, também, não o fez. O arguido, naturalmente, ciente de toda a situação, agiu porque assim o quis.
Os factos relativos às condições pessoais, sociais e económicas do arguido retiram-se do teor do Relatório Social e foram confirmados pelo arguido em audiência de julgamento. O arrependimento e desculpas prestadas foram verbalizadas em audiência pelo próprio.
As condenações criminais do arguido, emergem do certificado de registo criminal junto aos autos.
O facto não provado decorreu da circunstância de tal facto não resultar do certificado individual de condutor junto a fls. 796 e 797 dos autos.
2.3. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
A questão sobre se o arguido deve ser absolvido dos crimes de omissão de auxílio só poderá ser resolvida por duas vias possíveis: ou com fundamento em erro de julgamento, na consideração como provados dos factos integradores dos elementos constitutivos descritos no tipo legal correspondente e/ou porque se verifica um erro de direito, no que se refere ao enquadramento jurídico dos factos apurados à luz do art. 200º do Código Penal.
A matéria de facto pode ser sindicada em recurso através de duas formas: uma, de âmbito mais estrito, a que se convencionou designar de «revista alargada», implica a apreciação dos vícios enumerados nas als. a) a c) do art. 410º nº 2 do CPP; outra, denominada de impugnação ampla da matéria de facto, que se encontra prevista e regulada no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma.
Assim, se no primeiro caso, o recurso visa uma sindicância centrada exclusivamente no texto da sentença, dirigida a aferir da capacidade do juiz em expressar de forma adequada e suficiente as razões pelas quais se convenceu e o sentido da decisão que tomou, já no segundo, o que o recurso visa é o reexame da matéria de facto, através da fiscalização das provas e da forma como o Tribunal recorrido formou a sua convicção, a partir delas.
O erro do julgamento verifica-se sempre que o Tribunal tenha dado como provado um facto acerca do qual não foi produzida prova e, portanto, deveria ter sido considerado não provado, ou inversamente, quando o Tribunal considerou não provado um facto e a prova é clara e inequívoca, no sentido da sua comprovação.
O mecanismo por via do qual deverá ser invocado - impugnação ampla da matéria de facto – encontra-se previsto e regulado no art. 412º nºs 3, 4 e 6 do CPP e envolve a reapreciação da actividade probatória realizada pelo Tribunal, na primeira instância e da prova dela resultante.
No entanto, essa reapreciação não é livre, nem abrangente, antes tem vários limites, porque, além de não importar um novo julgamento da causa, está condicionada ao cumprimento de deveres muito específicos de motivação e formulação de conclusões do recurso (Maria João Antunes, in RPCC – Ano 4 Fasc.1 – pág. 120; Acórdão do STJ n.º 3/2012, de 8/3/2012, DR, I Série, n.º 77, de 18/4/2012 Acs. da Relação de Guimarães de 6.11.2017, proc. 3671/13.4TDLSB.G1; da Relação de Évora de 09.01.2018 proc. 31/14.3GBFTR.E1; da Relação de Coimbra de 08.05.2018, proc. 30/16.0GANZR.C1; da Relação de Lisboa de 12.06.2019, processo 473/16.0JAPDL.L1 e de 28.04.2021, processo 4426/17.2T9LSB.L1, in http://www.dgsi.pt).
Assim, nos termos do nº 3 do art. 412º do CPP, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e c) as provas que devem ser renovadas».
O nº 4 do mesmo artigo acrescenta que, tratando-se de prova gravada, as indicações a que se referem as alíneas b) e c) do nº 3 se fazem por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, sendo que, neste caso, o tribunal procederá à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, segundo o estabelecido no nº 6.
Assim, quanto à especificação dos concretos pontos de facto, o recorrente terá de indicar, com toda a clareza e precisão, o que é que, na matéria de facto, concretamente, quer ver modificado, apresentando a sua versão probatória e factual alternativa à decisão de facto exarada na sentença que impugna, e quais os motivos exactos para tal modificação, em relação a cada facto alternativo que propõe, o que exige que o recorrente apresente o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida e o correlacione comparativamente com o facto individualizado que considera erradamente julgado.
Portanto, só os factos controvertidos por efeito das provas cujo conteúdo seja adequado à conclusão de que se impõe uma decisão diferente da recorrida, segundo a motivação do recorrente, é que são objecto de sindicância pelo Tribunal da Relação.
Por sua vez, a especificação das concretas provas, «só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida. Por exemplo, é insuficiente a indicação genérica de um depoimento, de um documento, de uma perícia ou de uma escuta telefónica realizada entre duas datas ou a uma pessoa. Mais exactamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação (…) das passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento» (Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, 4ª. ed., 2009, nota 8 ao art. 412º., pág. 1144).
Quando se trate de depoimentos de testemunhas, de declarações de arguidos, assistentes, partes civis, peritos ou consultores técnicos, o recorrente tem, pois, de individualizar, no universo das declarações prestadas, quais as particulares passagens, nas quais ficaram gravadas as frases que se referem ao facto impugnado.
Essa modificação será, ainda, assim, tão só a que resultar do filtro da documentação da prova, segundo a especificação do recorrente, por referência ao conteúdo da acta, com indicação expressa e precisa dos trechos dos depoimentos ou declarações em que alicerça a sua divergência (art. 412º nº4 do CPP), ou, pelo menos, mediante «a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente» (Ac. do STJ nº 3/2012, de fixação de jurisprudência de 08.03.2012, in D.R. 1.ª série, nº 77 de 18 de abril de 2012).
Caso se limite a indicar a totalidade de um documento ou de uma perícia, ou de uma escuta telefónica, por reporte a um determinado período, ou as declarações prestadas por um certo número de testemunhas, na sua globalidade, não pode considerar-se cumprido o ónus, nem viabilizada a possibilidade de reapreciação da matéria de facto, pelo Tribunal de recurso.
A forma minuciosa e exigente como está previsto e regulado este tríplice ónus de especificação ilustra como o duplo grau de jurisdição da matéria de facto não implica a formulação de uma nova convicção por parte do tribunal de recurso, em substituição integral da formada pelo tribunal da primeira instância, nem equivale a um sistema de duplo julgamento, antes se cingindo a pontos concretos e determinados da matéria de facto já fixada e que, de acordo com a prova já produzida ou a renovar, devem necessariamente ser julgados noutro sentido, justamente, de harmonia com os princípios da imediação, da oralidade e do contraditório da audiência de discussão e julgamento, que postulam a excepcionalidade das alterações ao julgamento da matéria de facto, feito na primeira instância e a concepção do recurso como um remédio jurídico e não como um outro julgamento (Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012. No mesmo sentido, Acs. do Tribunal Constitucional nºs 124/90; 322/93; 59/2006 e 312/2012, in www.tribunalconstitucional.pt e AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07-12-2005, Germano Marques da Silva, Registo da Prova em Processo Penal, Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra, 2001. No mesmo sentido, Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390; Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 393).
Trata-se de colocar à apreciação do tribunal de recurso a aferição da conformidade ou desconformidade da decisão da primeira instância sobre os precisos factos impugnados com a prova efectivamente produzida no processo, de acordo com as regras da experiência e da lógica, com os conhecimentos científicos, bem como com as regras específicas e princípios vigentes em matéria probatória, designadamente, com os princípios da prova proibida, da livre apreciação da prova e do in dubio pro reo, assim como, com as normas que regem sobre a validade da prova e sobre a eficácia probatória especial de certos meios de prova, como é o caso da confissão integral e sem reservas, da prova pericial ou da que emerge de certo tipo de documentos (cfr. arts. 125º a 127º; 163º, 169º e 344º do CPP).
Se dessa comparação resultar que o Tribunal não podia ter concluído, como concluiu na consideração daqueles factos como provados ou como não provados, haverá erro de julgamento e, consequentemente, modificação da matéria de facto, em conformidade com o desacerto detectado.
Porém, se a convicção ainda puder ser objectivável de acordo com essas mesmas regras e a versão que o recorrente apresentar for meramente alternativa e igualmente possível, então, deverá manter-se a opção do julgador, porquanto tem o respaldo dos princípios da oralidade e da imediação da prova, da qual já não beneficia o Tribunal de recurso.
Neste caso, já não haverá, nem erro de julgamento, nem possibilidade de alteração factual (Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012; Acs. do Tribunal Constitucional nºs 124/90; 322/93; 59/2006 e 312/2012, in www.tribunalconstitucional.pt e AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07-12-2005 Paulo Saragoça da Mata, in A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra 2004, pág. 253, Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390; Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 393 e ainda, os Acs. do STJ de 12.09.2013, proc. 150/09.8PBSXL.L1.S1 e de 11.06.2014, proc. 14/07.0TRLSB.S1; Acs. da Relação de Coimbra de 16.11.2016, proc. 208/14.1JACBR.C1; de 13.06.2018, proc. 771/15.0PAMGR.C1 e de 08.05.2019, proc. 62/17.1GBCNF.C1; Acs. da Relação do Porto de 15.11.2018, proc. 291/17.8JAAVR.P1, de 25.09.2019, processo 1146/16.9PBMTS.P1 e de 29.04.2020, proc. 1164/18.2T9OVR.P1; da Relação de Lisboa de 24.10.2018, proc. 6744/16.8L1T9LSB-3; de 13.11.2019, proc. 103/15.7PHSNT.L1, de 09.07.2020, proc. 135/16.8GELSB.L1-9, da Relação de Guimarães de 08.06.2020, Ac. da Relação de Lisboa de 2.11.2021, proc. 477/20.8PDAMD.L1-5, proc. 729/17.4GBVVD.G1 in http://www.dgsi.pt).
Para que possa ser dado por verificada, a arbitrariedade, a impossibilidade lógica e/ou a ilegalidade da decisão da matéria de facto recorrida em que se materializa o erro de julgamento, este terá necessariamente de resultar de se ter dado como provado um facto com base no depoimento de uma testemunha que nada disse sobre o assunto; dar-se como provado um facto sem que tenha sido produzida qualquer prova sobre o mesmo; dar-se como provado um facto com base no depoimento de testemunha, sem que este o tenha presenciado ou por outro motivo não tenha razão de ciência que permita atribuir fidedignidade a esse depoimento; dar-se como provado um facto com base em prova que se valorou com violação das regras sobre a sua força legal; ou com fundamento em provas proibidas, dar-se como provado um facto com base em depoimento ou declaração, em que a testemunha, o arguido, ou o assistente ou parte civil não afirmaram aquilo que na fundamentação se diz que afirmaram, ou que disseram o contrário e esses relatos terem sido desconsiderados, apesar de verdadeiros e credíveis; dar-se como provado um facto com base num documento, ou relatório pericial do qual não consta o que se deu como provado, ou consta o seu contrário; dar-se como provado um facto com recurso à presunção judicial fora das condições e pressupostos em que esta podia operar (neste sentido, Acs. da Relação de Lisboa de 04.02.2016, proc. 23/14.2PCOER.L1-9, da Relação de Lisboa de 04.05.2017, proc. 12/15.0JDLSB.L1-9, da Relação de Lisboa de 11.03.2021, proc. 179/19.8JDLSB.L1-9, da Relação de Lisboa de 26.10.2021, processo nº 510/19.6S5LSB.L1-5, da Relação de Coimbra de 25.10.2023, proc. 101/20.9T9GVA.C2, todos in http://www.dgsi.pt).
O recorrente começou por circunscrever a sua divergência em relação ao acórdão recorrido aos factos atinentes aos crimes de omissão de auxílio.
Esses factos, descortinam-se nos pontos 25 a 37 da matéria de facto provada, como tal exarada no acórdão recorrido.
Porém, o arguido nem sequer os identifica por referência à sua numeração, apenas se lhes referindo genericamente por referência ao tema «omissão de auxílio».
No que se refere aos meios de prova concretos que determinam decisão oposta à tomada, o recorrente começou por afirmar que a súmula dos depoimentos testemunhais que se encontra feita na exposição dos motivos da convicção a páginas 16 a 21 do acórdão recorrido « constituem um retrato fiel do que por elas foi dito », mas recorrendo às transcrições constantes de páginas 6 a 9 do recurso, concluiu que contra os dois depoimentos das testemunhas agentes da PSP, BB e CC, que consubstanciam a convicção de que ocorreu uma fuga por parte do arguido recorrente do local do acidente, logo após a ocorrência do mesmo, foram prestados outros depoimentos – os das testemunhas DD, EE, FF, GG – que colocam em dúvida o depoimento daquelas duas primeiras testemunhas.
A especificação das provas concretas, nos termos e para os efeitos previstos no art. 412º nº 3 al. b) do CPP, implica necessariamente que o recorrente explicite os motivos que impõem uma outra decisão que não a que foi tomada, impondo-lhe uma exigência de fundamentação e de convencimento perante o Tribunal de recurso, semelhante à que se exige ao Juiz na fixação da matéria de facto provada e não provada, pois só assim o raciocínio do recorrente será perceptível (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica, 2ª Edição, fls. 1131, notas 7 a 9, em anotação ao artigo 412º, do Código de Processo Penal).
«A censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção.
«Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão» (Acórdão do TC n.º 198/2004, de 24-03-2004, in DR, II Série, n.º 129, de 02-06-2004. No mesmo sentido, Damião da Cunha, O caso julgado Parcial, 2002, pág. 37).
«O requisito da especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, constante da alínea b) do n.º 3 do artigo 412.º do C.P.P., só é observado se, para além da especificação das provas, o recorrente explicitar os motivos e em que termos essas provas indicadas impõem decisão diversa da decisão do tribunal, de modo a fundamentar e tornar convincente que tais provas impõem decisão diferente.
«Esta exigência corresponde, de algum modo, àquela que é exigida ao julgador para fundamentar os factos provados e não provados, porque do mesmo modo que o julgador tem o dever de fundamentar as decisões, também o recorrente tem que fundamentar o recurso.
«Não cumpre tal requisito a mera negação dos factos, a discordância quanto à valoração feita pelo tribunal recorrido quanto à prova produzida, considerações e afirmações genéricas, a invocação de dúvidas próprias, sem que se analise o teor dos depoimentos das testemunhas indicados nas respetivas passagens da gravação, com a indicação dos motivos por que tal facto ou factos devem ser dados como provados ou não provados (Ac. da Relação de Coimbra de 12.07.2023, proc. 982/20.6PBFIG.C1, in http://www.dgsi.pt).
O tribunal é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento de outros, desde que essa opção seja explicitada e convincente, como é o caso. Cumprida essa exigência, a livre convicção do juiz torna-se insindicável, até porque a documentação dos actos da audiência não se destina a substituir, nem substitui, a oralidade e a imediação da prova. Defender-se uma outra solução, o tribunal de recurso acabaria «por proceder a um juízo, mas com inversão das regras da audiência de julgamento ou então, numa espécie de juízos por parâmetros» (Damião da Cunha, O caso julgado Parcial, 2002, pág. 37).
A impugnação da matéria de facto só pode ser eficaz e validamente levada a efeito e operar o efeito a que se destina – a alteração da matéria de facto, em conformidade com a pretensão do recorrente - se do confronto entre os meios de prova concretizados através dos excertos dos depoimentos, declarações ou documentos e os factos fixados se puder concluir que a decisão está errada, é ilegal ou arbitrária, o que não pode ser sustentado numa simples alegação da discordância entre a convicção do recorrente e a convicção que o julgador livremente formou com base na prova produzida em audiência de julgamento, antes passa necessariamente pela demonstração inequívoca de que o tribunal que a proferiu contrariou as regras da experiência e desrespeitou princípios basilares do direito probatório (v.g. prova legalmente vinculada, provas proibidas etc.).
A convicção alcançada pelo tribunal recorrido, tal como o respectivo processo de formação vem descrito na fundamentação da decisão de facto e está muito longe de se poder qualificar com uma impossibilidade lógica, seja por violação de regras de experiência comum, ou por uma errada utilização de presunções naturais, ou por inobservância de uma norma legal ou princípio aplicáveis em matéria de valor dos meios de prova ou de obtenção de prova obtidos para o processo, ou da sua força probatória.
Muito menos arbitrária, considerando o esforço argumentativo, desenvolvido na exposição dos motivos da convicção, recorrendo aos aspectos mais relevantes dos depoimentos testemunhais, à sua análise comparada que o acórdão expressa no respectivo texto, assim como as razões por que esses testemunhos se apresentaram convincentes e a sua concatenação com os documentos disponíveis nos autos.
Pelo contrário, no caso vertente, o que a análise da decisão recorrida mostra, sobretudo, quanto à fundamentação da decisão da matéria de facto, é que a dúvida razoável foi superada pelas regras de experiência comum e por critérios de lógica, reportados à razão de ciência e ao conteúdo dos depoimentos e das declarações, ao teor dos documentos e às informações relevantes que deles se podem extrair, em total sintonia entre os factos julgados provados e o conteúdo útil dos meios de prova produzidos.
E sendo assim, a insurgência do recorrente, não ultrapassa o estágio da mera discordância e da explanação de uma convicção alternativa cujo único propósito é o de ser absolvido.
Ora a convicção que prevalece é a do Tribunal recorrido, respaldada como está nos princípios do contraditório, da imediação e da oralidade que são característicos da audiência de discussão e julgamento.
Por isso é que a transcrição dos depoimentos das testemunhas DD, EE, FF, GG não tem aptidão como impugnação ampla da matéria de facto para conduzir seja a que alteração da matéria de facto e, por isso mesmo, não merece provimento.
Resta a apreciação do erro de direito.
O art. 200º do Código Penal, prevê um dever geral de auxílio, em determinadas circunstâncias, que a todos os cidadãos é imposto e cuja inobservância é incriminada, com fundamento num princípio de solidariedade humana, essencial à tranquilidade e paz desejáveis, no âmbito das relações humanas em sociedade. Por isso é que qualquer pessoa pode ser agente deste tipo de crime.
O crime de omissão de auxílio protege diversos bens jurídicos, desde a vida, à integridade física e à liberdade individual, nas suas diversas acepções de liberdade de deslocação, de autodeterminação, sexual, etc., que têm de comum o facto de serem bens jurídicos de natureza eminentemente pessoal, estando afastados da tutela penal interesses de carácter patrimonial.
O crime de omissão de auxílio «pressupõe uma situação objectiva de perigo para um dos bens jurídicos mencionados no tipo legal: “em caso de grave necessidade” que ponha em perigo a vida, a integridade física ou a liberdade de outra pessoa. O conceito “grave necessidade” significa e exige que se trate de um risco de perigo eminente de lesão substancial (grave) dos referidos bens jurídicos» (Américo Taipa de Carvalho, em anotação do artigo 200.º do Código Penal, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Coimbra Editora, 2.ª edição, 2012, pág. 1236).
Tem, pois, uma dimensão quantitativa e uma outra qualitativa, exprimindo a primeira um conjunto de sinais exteriores notórios e evidentes facilmente percepcionados por qualquer pessoa e a segunda manifestando-se na seriedade e premência do estado de necessidade.
«Por necessidade entende-se, normalmente, carência de alguma coisa que é imprescindível (...). A ideia de necessidade, fundamentando-se numa indispensabilidade, contém em si uma exigência que normalmente actua como princípio energético orgânico que impele a procurar o bem de que se carece, uma vez que a sua não obtenção conduz a consequências prejudiciais. Esse impulso orgânico energético é, consequentemente, pre-determinado pela situação de constrangimento e fatalidade em que o necessitado se encontra.
«(…) A situação de necessidade decorre de um processo fáctico que, pelo menos a partir de determinado momento, não pode ser controlado pela vítima. Necessidade no sentido do preceito pressupõe, assim, a impossibilidade de por si só afastar o perigo que ameaça bens jurídicos pessoais, isto é, a incapacidade de desenvolver a actividade de defesa adequada às circunstâncias.
A necessidade deve ainda ser grave. Gravidade que subentende um elemento quantitativo, podendo traduzir-se pela existência de consideráveis sinais exteriores facilmente percepcionados por qualquer pessoa, e um elemento qualitativo, que se manifesta na seriedade e premência do estado de necessidade. O que implica, portanto, a urgência da actuação, atentas as graves consequências que desse estado poderão advir para o necessitado.
Caso de grave necessidade (…) é a situação de emergência em que se encontra um ser humano, carecendo em absoluto de uma intervenção alheia, adequada a afastar o perigo que ameaça bens jurídicos pessoais, que por si só é incapaz de superar.
Ora, a situação de necessidade, tal como a sua gravidade, deverá (…) ser averiguada através de uma análise cuidada das circunstâncias fácticas que lhe deram causa, com referência à vítima considerada individualmente, isto é, fazendo apelo à capacidade física e psíquica que revela no momento da ocorrência.» (Maria Leonor Assunção (Contributo para a interpretação do artigo 219.º do Código Penal, O crime de omissão de auxílio), Coimbra Editora, BFDUC, 1994, p. 67).
O dever de impedir a lesão de algum destes bens jurídicos que o art. 200º refere, impõe-se, quer a situação de perigo dessa lesão ter sido ocasionada por um acontecimento natural, quer tenha na sua génese uma conduta (acção ou omissão) criminosa, o que pode dar lugar, em certas situações, a que o cumprimento de tal dever implique como efeito indirecto a necessidade de impedir uma conduta criminosa geradora dessa situação de risco de perda ou lesão da vida, saúde ou liberdade de alguém (neste sentido, Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, p. 848).
O art. 200º alude a essas causas de criação de perigo, considerando, justamente, essas duas possibilidades, enumerando exemplificativamente, várias situações recondutíveis a acontecimentos naturais ou a acidentes humanos - calamidade pública, desastre, acidente ou situação de perigo comum - entre as quais se contam, indubitavelmente, os acidentes rodoviários.
A conduta típica ilícita traduz-se em «deixar de lhe prestar o auxílio necessário ao afastamento do perigo», o que pressupõe, desde logo, que o agente esteja em condições de poder prestar a assistência ou o socorro de que a vítima precisa, em termos de capacidade e possibilidade natural de agir, por si próprio ou por intermédio de outrem, promovendo a prestação do socorro. Em segundo lugar exige-se que o agente possa prestar tal auxílio em moldes tais que não implique riscos de lesão corporal grave, uma vez que o crime de omissão de auxílio pressupõe a inexistência do dever de garante a que se refere o art. 10º nº 2 do CP.
Depois, exige-se que o auxílio a prestar seja indispensável e adequado à remoção do perigo de lesão ou a evitar a ocorrência desse risco.
No tipo qualificado previsto no nº 2 do art. 200º do C. Penal, acresce, como elemento do tipo objectivo, que a verificação de caso de grave necessidade tenha sido criada pelo agente, omitente do auxílio devido.
«Deste modo, o cometimento do crime pressupõe:
«- A incapacidade da vítima, por si só, afastar o perigo iminente de lesão importante dos bens jurídicos, revelada pela existência de sinais apreensíveis por qualquer pessoa, da necessidade urgente de actuação na prestação do auxílio [os casos de grave necessidade];
«- A percepção pelo agente a actualidade e idoneidade de um determinado acontecimento de facto para ameaçar a integridade dos bens jurídicos tutelados [o perigo concreto];
«- A não realização dos actos que se revelavam como adequados e necessários ao afastamento do perigo de lesão dos bens jurídicos tutelados [omissão da conduta devida], através de um juízo de prognose ex ante, radicado nas circunstâncias concretas do caso e na conduta do bonus pater familiae, com os conhecimentos do agente;
«- O conhecimento pelo agente da situação de grave necessidade, do perigo que recai sobre a vítima e da possibilidade de actuar no sentido exigido pela norma, e a vontade de omitir o auxílio imposto pela norma [o dolo].» (Ac. da Relação de Coimbra de 05.04.2017, proc. 75/13.2GTCBR.C1. No mesmo sentido, da Relação de Évora, de 09.01.2018, proc. 1271/13.8PAPTM.E1 e Relação de Lisboa, de 16.10.2019, proc. 67/16.0GTCSC.L1-3, da Relação de Lisboa de 2.12.2020, proc. 97/18.7GTCSC.L1-5, todos in http://www.dgsi.pt).
A verificação do dano não releva para o preenchimento do tipo, sendo o agente punido porque omitiu o auxílio devido e não, porque não impediu o resultado danoso que, entretanto, sobreveio.
Do mesmo modo, é irrelevante e não obsta à consumação do crime, que o ofendido tenha sido socorrido por terceiros, pois tal não afasta a obrigação de auxílio que sobre o agente impenda em consequência do perigo criado pela produção do evento.
A expressão «que ponha em perigo» consente a conclusão de que o crime em apreço é um crime de perigo concreto.
A sua imputação subjectiva é feita com base no dolo, em qualquer das suas modalidades, directo, necessário e eventual, traduzido na representação feita pelo agente de que o necessitado de auxílio corre risco de vida ou de lesão grave da sua saúde ou liberdade e com a conformação ou indiferença perante essa situação de perigo.
O acórdão recorrido discorreu assim, a propósito dos crimes de omissão de auxílio:
«In casu, provou-se que o arguido fugiu do local do acidente, não providenciando no sentido de auxiliar a assistente II e as suas filhas NN e JJ, que se encontravam em situação de grave necessidade, o que o arguido representou, não se inteirando do seu estado e não lhes prestando qualquer auxílio, bem sabendo que dessa forma violava os mais elementares deveres de solidariedade pessoal perante a vida e a integridade física dos seus concidadãos, conformando-se com a eventual ocorrência de outras lesões mais graves para a vida e integridade física das vítimas. Tendo actuado de forma, livre, deliberada e consciente. Estando, assim, preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime que nos ocupa relativamente às vítimas II, NN e JJ.
«No mais, afigura-se-nos que a grave necessidade a que se reporta o artigo 200.º, n.º 1, do Código Penal, entendida nos termos supra expostos, não se encontra demonstrada relativamente aos ofendidos HH e GG, porquanto, não se retira da factualidade provada que os mesmos estivessem perante uma situação de grave necessidade, ou seja, não se comprova que no momento em que o arguido abandonou o local, omitindo o auxílio, aqueles tivessem ficado, por qualquer forma, numa situação de perigo iminente de vida ou de uma lesão substancial da sua integridade física. Razão pela qual, impõe-se a absolvição do arguido no tocante a estes dois crimes de omissão de auxílio, relativos aos ofendidos HH e GG.»
Esta análise, porque respaldada na matéria de facto provada de 25 a 37, é correcta e neste conspecto não será alterada, por merecer total concordância o enquadramento jurídico penal ali realizado com referência aos mencionados factos provados de 25 a 37.
O tal factualidade integra tantos crimes, quantas as pessoas colocadas em risco, na dimensão da grave necessidade, ou seja, as vítimas II, NN e JJ, em virtude da natureza eminentemente pessoal dos bens jurídicos visados tutelar com a incriminação contida no art. 200º do Código Penal.
O recurso não merece provimento, nesta parte.
Quanto à pena.
O arguido pretende a redução da pena única e a sua subsequente suspensão na execução, em decorrência da sua tese de que deveria ter sido absolvido dos três crimes de omissão de auxílio, pelos quais foi condenado ou, caso assim se não entendesse num único crime de omissão de auxílio, sendo que nenhuma das alternativas se verifica, no caso vertente.
Por outro lado, importa sublinhar que a actividade jurisdicional de escolha e determinação concreta da pena não corresponde a uma ciência exacta, sendo certo que além de uma certa margem de prudente arbítrio na fixação concreta da pena, também em matéria de aplicação da pena o recurso mantém a sua natureza de remédio jurídico, não envolvendo um novo julgamento. O tribunal de recurso só alterará a pena aplicada, se as operações de escolha da sua espécie e de determinação da sua medida concreta, levadas a cabo pelo Tribunal de primeira instância revelarem incorrecções no processo de interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais vigentes em matéria de aplicação de reacções criminais. Não decide como se o fizesse ex novo, como se não existisse uma decisão condenatória prévia.
E sendo assim, é preciso ter sempre em atenção que o Tribunal recorrido mantém incólume a sua margem de actuação e de livre apreciação, sendo como é uma componente essencial do acto de julgar.
A sindicabilidade da medida concreta da pena em via de recurso, abrange, pois, exclusivamente, a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais previstos nos arts. 40º e 71º do CP, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas já não abrange «a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato de pena, exceto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada» (Figueiredo Dias, DPP, As Consequências Jurídicas do Crime 1993, §254, p. 197; Cunha Rodrigues, Recursos, in Jornadas de Direito Processual Penal, págs. 387; Acs. da Relação de Lisboa de 11.12.2019, proc. 4695/15.2T9PRT.L1-9, da Relação do Porto de 13.10.2021, proc. 5/18.5GAOVR.P1 in http://www.dgsi.pt).
«Daqui resulta que o tribunal de recurso intervém na pena, alterando-a, quando detecta incorrecções ou distorções no processo aplicativo desenvolvido em primeira instância, na interpretação e aplicação das normas legais e constitucionais que regem a pena. Não decide como se o fizesse ex novo, como se inexistisse uma decisão de primeira instância. O recurso não visa, não pretende e não pode eliminar alguma margem de actuação, de apreciação livre, reconhecida ao tribunal de primeira instância enquanto componente individual do acto de julgar» (Ac. do STJ de 19.05.2021, proc. 10/18.1PELRA.S1. No mesmo sentido Ac. do STJ de 3.11.2021, proc. 206/18.6JELSB.L2.S1, ambos in http://www.dgsi.pt).
«A intervenção dos tribunais de 2ª instância na apreciação das penas fixadas, ou mantidas, pela 1ª instância deve ser parcimoniosa e cingir-se à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, à questão do limite da moldura da culpa, bem como a situação económica do agente, mas já não deve sindicar a determinação, dentro daqueles parâmetros da medida concreta da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, a desproporção da quantificação efectuada, ou o afastamento relevante das medidas das penas que vêm sendo fixadas pelos tribunais de recurso para casos similares» (Ac. da Relação de Lisboa de 11.12.2019, proc. 4695/15.2T9PRT.L1-9, in http://www.dgsi.pt. No mesmo sentido, Acs. da Relação de Coimbra de 06.03.2024, proc. 8/19.2PTVIS.C1 e de 10.04.2024, proc. 227/22.4GBLSA.C1, na mesma base de dados).
O recurso dirigido à medida da pena visa sindicar a observância do princípio da proporcionalidade na escolha da espécie e respectiva e dosimetria concreta, assim como a correção dos critérios de determinação, à luz da intensidade da culpa, das exigências de prevenção geral e especial e das circunstâncias do caso e não a concretização de um novo quantum da pena aplicada, alternativo ou substitutivo do decidido na primeira instância, prevalecendo este sempre que não se verifique qualquer excesso ou erro de apreciação.
No acórdão recorrido foi fixada a pena parcelar de um ano para cada um dos crimes, ou seja, no limiar da metade da moldura penal abstracta prevista no art. 200º do CP.
Na argumentação de facto e de direito em que o Tribunal alicerçou a escolha e dosimetria concreta das penas não se vislumbra qualquer desacerto, muito pelo contrário, o acórdão recorrido contém exposição explicativa detalhada e resultante da comparação entre os critérios normativos insertos no art. 71º do CP e as circunstâncias atinentes à execução dos crimes, quanto à intensidade da ilicitude e da culpa, na parte em que já não interessa ao próprio enquadramento jurídico à luz do tipo legal de crime, ao comportamento do arguido anterior e posterior aos factos, às exigências de precenção geral e especial, tudo em sintonia com o que dispõem os arts. 40º e 70º do CP e o art. 18º da CRP, nada havendo, por conseguinte, a alterar, nem nas penas parcelares impostas, nem na pena única aplicada em resultado do cúmulo jurídico.
E assim sendo, dada a duração concreta da pena única – cinco anos e seis meses – fica prejudicada a possibilidade de sopesar a verificação dos pressupostos de que o art. 50º do CP faz depender a suspensão da execução da pena.
O acórdão recorrido não merece, pois, qualquer reparo quanto à escolha e determinação concreta da pena, por se encontrar fixada, de forma ponderada e equilibrada, em conformidade com o grau de culpa do arguido e com as finalidades da punição e em estrito cumprimento dos critérios previstos nos arts. 40º e 71º do CP e 18º da Constituição.
III – DISPOSITIVO
Termos em que decidem, neste Tribunal da Relação de Lisboa:
Em negar provimento ao recurso, confirmando, na íntegra, o acórdão recorrido.
Custas pelo arguido, que se fixam em 4 UCs – art. 513º do CPP.
Notifique.
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Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art. 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pelos Juízes Adjuntos.
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Tribunal da Relação de Lisboa, 18 de Junho de 2025
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Cristina Almeida e Sousa
Ana Paula Grandvaux
Maria da Graça dos Santos Silva