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INADMISSIBILIDADE LEGAL DA INSTRUÇÃO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS
Sumário
I. O artigo 286º nº1 do Código de Processo Penal estabelece que «A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir a acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento». II. Visando a instrução neste caso a comprovação da decisão de acusar em ordem a submeter ou não a causa a julgamento esta tem de proporcionar, de acordo com o artigo 286º nº1 do Código de Processo Penal, uma verdadeira alternativa ao Juiz de instrução, ou seja, a alternativa de acordo com as regras legais de submeter ou não a causa a julgamento sendo essa a consequência da comprovação judicial a efetuar. III. Com efeito, o legislador utiliza em tal preceito a conjunção disjuntiva ou claramente indicativa das alternativas ou opções aí consagradas. IV. O recorrente pretende apenas questionar e discutir na fase de instrução a qualificação jurídica dos factos sem que, contudo, o horizonte de tal discussão permita a sua não sujeição à fase de julgamento, ou seja, sem que permaneça a alternativa legalmente prevista de submeter ou não a causa a julgamento e, assim, o escopo principal da fase de instrução tal como implementada pelo legislador. V. A discussão da qualificação jurídica dos factos só deve ser admitida nesta fase quando idónea a proporcionar a citada alternativa. Exemplos claros de tal são situações em que da eventual alteração da qualificação jurídica possa ocorrer extinção do procedimento criminal por prescrição, desistência de queixa, caducidade do exercício de direito de queixa, amnistia ou a possibilidade de suspensão provisória do processo... VI. O legislador expressamente consagrou, como evidencia o artigo 339º nº4 do Código de Processo Penal, a fase de julgamento como a fase central do processo penal, fase de produção e apreciação de prova e exercício pleno das garantias de defesa do arguido, fase essa que não está vinculada à qualificação jurídica dos factos resultantes das fases processuais anteriores e, assim, à qualificação jurídica dos factos constante do despacho de acusação ou do despacho de pronúncia. VII. O escopo da fase de instrução foi claramente definido pelo legislador e, não obstante lhe ter conferido uma natureza facultativa, não visou aquele consagrar uma fase inútil ou redundante relativamente à fase de julgamento. VIII. O legislador não quis criar sem qualquer restrição o direito do arguido à fase de instrução, posto, que se assim fosse não teria criado a possibilidade de inadmissibilidade legal da mesma, conceito que tem vindo a ser interpretado de modo mais amplo ou mais restrito pela doutrina e jurisprudência, mas que na nossa perspetiva não pode ser separado do escopo processual da fase de instrução. IX. E, assim, situações em que se pretenda substituir a ideia matriz de comprovação-neste caso da acusação- preordenada à submissão ou não da causa a julgamento ou que eliminem a alternativa em que se traduz a sua finalidade integram o conceito de inadmissibilidade legal. X. A Constituição da República Portuguesa não consagra qualquer direito ilimitado do arguido à fase de instrução porquanto a imposição constitucional contida no artigo 32º nº4 refere-se à natureza jurisdicional de tal fase e à reserva de juiz no que respeita à prática de atos instrutórios que se prendam com direitos fundamentais e possibilidade de delegação dos demais. XI. É a lei processual penal que configura a fase processual e o legislador gizou-a como uma fase processual facultativa e apenas para o processo comum e daí se retira, também, a sua intenção de inexistir um direito ilimitado do arguido a tal fase, pois, que os arguidos em processos especiais não podem à mesma aceder. XII. Ademais o mesmo legislador delimitou tal fase ao determinar que quando requerida pelo arguido a mesma visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação em ordem a submeter ou não a causa a julgamento e, assim, a sua finalidade quando requerida por aquele apenas se pode traduzir em lograr evitar que a causa seja submetida a julgamento.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I-RELATÓRIO:
Por despacho proferido em ... de ... de 2025 nos autos de instrução com o nº1128/21.9JGLSB que correm os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte- Juízo de Instrução Criminal de Loures- Juiz 1, ao que nos interessa, decidiu-se: Em face do exposto, rejeito o requerimento de abertura de instrução, por parte do arguido AA, com fundamento na sua inadmissibilidade legal, de acordo com as disposições conjugadas dos arts. 286.°, n.°1, 287.°, n.°s 2, a contrario sensu, e n° 3 do Código de Processo Penal.
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Inconformado com o mesmo veio o arguido AA interpor o presente recurso extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem: I- A Exma. Sra. Juiz de Instrução entendeu que o RAI é legalmente inadmissível, uma vez que o recorrente visa tão somente a alteração da qualificação jurídica e não a sua não submissão a julgamento, conditio sine qua non para o início da fase instrutória. II- Entendimento este completamente equivocado, tratando-se, com a devida vénia, de uma interpretação errônea do n.°3 do artigo 287.° do Código de Processo Penal. III- Isto porque, do artigo 286.°, n.°1, do Código de Processo Penal não se depreende qualquer limitação a atuação do juiz de instrução no que pretende o recorrente. Antes o contrário, haja vista que a expressão comprovação judicial tem um significado bastante amplo. IV- As únicas hipóteses de inadmissibilidade legal do RAI, são: -Nos processos especiais (artigo 286.°, n.°3, do CPP); -Quando requerido pelo arguido, que contemple factos não constantes da acusação pública ou particular (artigo 287.°, n.°1, alínea a) do CPP); - Quando requerido pelo Ministério Público (artigo 287.°, n.°1, do CPP); - Quando requerido pelo assistente em caso de crimes públicos ou semipúblicos (artigo 287.°, n.° 1, alínea b) do CPP). V-O caso em disputa não se enquadra em nenhuma das hipóteses constantes do rol encimado, sendo legalmente previsto o RAI apresentado. VI-É evidente que cabe ao juiz de instrução, quando suscitada, a análise da decisão tomada pelo Ministério Público, pois exerce todas as funções até a remessa do processo para julgamento (artigo 17.° do CPP). VII-E dentre tais funções está a de analisar o conteúdo da acusação proferida, visando limitar o seu objeto, quando verificar que extrapola o que foi apurado no âmbito do inquérito. VIII- Mas tal análise - quando suscitada pelo arguido - não se limita somente quando aquele visa a sua não submissão a julgamento, mas também (e não se limitando a) no caso de indicação de que a qualificação jurídica resta equivocada, sem que, para tanto, vise obstar o prosseguimento do processo para a fase do julgamento. IX- A Exma Sra. Dra. Juiz de Instrução também alicerça o seu entendimento em decisões tomadas por outras cortes outrora. Contudo, os ventos estão mudando e existe corrente jurisprudencial que ruma em direção às pretensões do recorrente. X-Como é o caso do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora em 12/07/2023, no âmbito do processo 415/22.3TNR- C.E1, disponível em dgsi.pt. XI- Que, em suma, aduz que "a instrução integra, indubitavelmente, as garantias de defesa do arguido, tendo este, nesse âmbito, o impostergável direito à redução do objeto do processo (e logo do julgamento), não podendo invocar-se como obstáculo ao exercício de tal direito fundamental, razões de eficácia ou de celeridade.”. XII-Assim como que “o jurisprudência do Tribunal Constitucional vem reconhecendo ao arguido o direito à instrução, mesmo quando com a mesma se visa, apenas, uma não pronúncia parcial, afirmando, nesse âmbito, que «não podem eliminar-se as garantias previstas para uma dada fase processual com o argumento que os meios de defesa podem ser usados na fase processual subsequente»; e, ainda, que o art. 287°, n.°2 CPP «estabelece como requisito único a que deve obedecer o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido, a indicação, sem sujeição a formalidades especiais e por súmula, das razões de facto e de direito da sua discordância relativamente à acusação”. XIII- Vale frisar que a única limitação imposta ao arguido quanto à instrução é que o requerimento não pode versar sobre factos que não constaram da acusação pública ou particular, não sendo imposta pelo legislador processual penal outra limitação. XIV-E não poderia agir de forma diversa, porquanto violaria disposição constitucionalmente protegida, uma vez que ao arguido não pode ser subtraída qualquer garantia legal de defesa, exegese do artigo 32.°, n.º1, da Constituição da República Portuguesa. XVI-A instrução, ainda que facultativa, é uma etapa processual em que o arguido pode efetuar parte da defesa que lhe for mais conveniente, mesmo que não se pretenda afastar, por completo, a sua responsabilidade penal. XVII-Dentre as garantias de defesa do arguido, encontra-se a possibilidade de ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte, exegese do artigo, 61.°, n° 1, alínea b), do Código de Processo Penal. XVIII-O recorrente visa, através do controle jurisdicional do juiz de instrução, ver reduzido substancialmente o objeto do processo, a fim de que, ainda que submetido a julgamento, enfrente uma acusação bastante mais reduzida do que o Ministério Público pretende seja recebida. XIX- E sonegar ao recorrente a sua audição através do RAI é uma flagrante violação da sua garantia de defesa, constitucionalmente prevista. XX-Portanto, a interpretação dada pela Exma. Sra. Dra. Juiz de Instrução à norma do n.°3 do artigo 287.° do Código de Processo Penal é inconstitucional, porquanto viola as garantias de defesa do recorrente, nos termos do artigo 32.°, n.°1, da Constituição da República Portuguesa. XXI- E a sua decisão deve ser revogada, por inconstitucional, e substituída por outra, que admita o RAI e declare aberta a instrução.
Termina pugnando pelo provimento do recurso e consequente revogação do despacho recorrido e substituição do mesmo por outro que admita o requerimento de abertura de instrução.
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Admitido o recurso no Tribunal a quo o Ministério Público apresentou resposta extraindo-se da mesma com maior relevo o seguinte: Antes de mais, e avançando o sentido da nossa resposta, entendemos assistir razão à Mm.a Juíza de Instrução Criminal. Do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido, verifica-se que o mesmo apenas se insurge contra a qualificação jurídica, e não quanto aos factos, que lhe são imputados, os quais nem põe, em momento algum, em causa. O Recorrente aceita ser submetido a julgamento pela prática dos factos, mas discorda perentoriamente, e como é caso aliás, debatido, neste tipo de crimes, pelo número de ilícitos penais de que é acusado. Este é um ponto de análise (jurídica). Sucede que, como bem aponta a Mma Juíza de Instrução Criminal, a fase de instrução é um momento de controlo, de controlo jurisdicional sobre a existência de fundamentos necessários para, “in casu”, uma acusação. Quanto à questão da admissibilidade de se poder requerer a abertura de instrução para discutir a simples requalificação jurídica dos factos constantes da acusação, há quem entenda que é admissível, uma vez que se deve evitar chegar à audiência com uma qualificação jurídica incorrecta, com fundamento de que a alteração da qualificação jurídica pode determinar a incompetência material do tribunal ou o arquivamento dos autos por falta de uma condição de procedibilidade processual. Parece-nos s.m.o., que a norma só contempla a discussão sobre factos - «relativamente a factos» dizem as alíneas - e não prevê a pura possibilidade de se abrir a instrução para discutir a qualificação jurídica dos mesmos. Será, portanto os factos, o campo da dissensão. Em princípio, a qualificação jurídica dos factos, deve estar reservada à audiência de julgamento, conforme claramente resulta da leitura do art. 339-4. Tudo sem prejuízo do art. 303-5, que permite a alteração da qualificação jurídica dos factos na instrução, mas por iniciativa do Juiz.» - in Código de Processo Penal Anotado, Fernando Gama Lobo, p. 620,2017, Almedina, Também não nos podemos olvidar, e concatenando que, o AUJ n.° 11/2013, que determina que, em suma: A «alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.° n. os 1 e 3, do CPP.». Por outras palavras, alterar a qualificação jurídica, sem qualquer produção de prova, violaria, não só as normas indicadas pela Mm Juíza, como, em última instância, o referido AUJ. Pelo exposto e sem mais delongas, entendemos não assistir razão ao Recorrente, pois que o despacho de não pronúncia não violou o disposto nos artigos 286.°, n.°1 e 287.°, n.°2 e 3 do Código de Processo Penal, ou quaisquer outras normas.
Termina pugnando pelo não provimento do recurso.
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Remetido o processo a este Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora Geral-Adjunta emitiu parecer em que acompanha os argumentos da resposta do Ministério Público do tribunal recorrido.
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Uma vez que o parecer não aduz novos argumentos não houve (nem tinha de haver) cumprimento do disposto no artigo 417.º n.º 2 do Código Processo Penal.
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Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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Nada obstando ao conhecimento do mérito do presente recurso cumpre, assim, apreciar e decidir.
2-FUNDAMENTAÇÃO:
2.1- DO OBJETO DO RECURSO:
É consabido, em face do preceituado nos artigos 402º, 403º e 412º nº 1 todos do Código de Processo Penal, que o objeto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, devendo, assim, a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas –, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por serem obstativas da apreciação do seu mérito, nomeadamente, nulidades insanáveis que devem ser oficiosamente declaradas em qualquer fase e previstas no Código de Processo Penal, vícios previstos nos artigos 379º e 410º nº2 ambos do referido diploma legal e mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (vide Acórdão do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I–A Série, de 28/12/1995).
Destarte e com a ressalva das questões adjetivas referidas são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respetiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar1.
A este respeito e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva2 «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objeto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões”.
Em face do exposto impõe-se esclarecer, à luz do que o recorrente invoca nas suas conclusões as questões a dirimir são: -Se o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido foi indevidamente rejeitado por inexistir inadmissibilidade legal nos termos do artigo 287º nº3 do Código de Processo Penal. -Se o despacho recorrido infringe o artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
2.2- DA APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO:
Exara o despacho recorrido o que a seguir se transcreve: Nos presentes autos, o arguido AA, requereu a abertura de instrução (Ref 51416643) relativamente à acusação do Ministério Público, que lhe imputou a prática, em autoria material e em concurso efetivo, de 21 (vinte e um) crimes de pornografia de menores, agravado, p e p pelos arts. 176°, n° 1, al. B), C) e D) e n°8; 177°, n° 7 e 69°-B, n° 2 e 69°-C, n° 2 todos do Código Penal. Como fundamentos do requerimento de abertura de instrução o arguido, em síntese, admite ser julgado pelos factos de que vem acusado, os quais não coloca em causa, apenasconsiderou o arguido, que actuou de acordo com uma única resolução criminosa, pelo que deve ser julgado pela prática de 2 (dois) crimes de pornografia de menores, agravado, p e p pelos arts. 176°, n° 1, al. B), C) e D) e n°8, 177°, n° 7 e 69°-B, n° 2 e 69°-C, n° 2 todos do Código Penal.
* Cumpre apreciar e decidir: A instrução, como resulta do art.° 286.°, n.°s 1 e 2, do CPP, tem carácter facultativo e visa a comprovação judicial da decisão tomada findo o inquérito de deduzir acusação ou de arquivá-lo, cuja direcção compete a um juiz (art.° 288.°, n.°1, do CPP), comportando o conjunto de actos a levar a cabo (art.° 290.° do CPP) e, obrigatoriamente, o debate instrutório (art.° 297.° do CPP), culminando na decisão de pronúncia ou de não pronúncia, em face dos indícios recolhidos e da verificação da probabilidade destes conduzirem, ou não, à aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (arts. 307.°, n.°1, e 308.° do CPP). Por via da instrução, a posição assumida pelo Ministério Público no fim do inquérito é objecto de controlo jurisdicional e, desde logo, a requerimento do arguido, relativamente a factos pelos quais se deduziu acusação (art.° 287.°, n.° 1, alínea a), do CPP), em razão da consagrada possibilidade de intervenção que a sua condição plenamente justifica (art.° 69.°, n.° 1, alínea g), do CPP) e se insere nas suas garantias de defesa (art.° 32.°, n.°1, da CRP), tanto mais que o processo criminal assume estrutura acusatória (art.° 32.°, n.°5, da CRP). Aqui chegados e, se por um lado, nos termos do art.° 287.°, n.°2, do CPP, o requerimento de abertura de instrução “não está sujeito a formalidades especiais”, por outrolado também é verdade que tal requerimento “deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar (.. Ora, quando o requerimento é apresentado pelo sujeito processual arguido e por força das referidas finalidades legais da instrução mister será que ele apresente um conjunto de razões, encurtando agora argumentos e exposições, de onde resulte, caso sejam atendidas, a não submissão da causa a julgamento, isto é, como consequência da procedência das razões invocadas não haverá julgamento, a causa será arquivada, o processo findará. Do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido, verifica-se que o mesmo apenas se insurge contra a qualificação jurídica, e não quanto aos factos, que lhe são imputados, os quais nem põe em causa. Do requerimento em apreço, apenas se pode concluir que o arguido aceita ser submetido a julgamento pela prática de dois, dos vinte e um crimes de que vem acusado, conformando-se com a acusação e seu intrínseco propósito no que concerne a estes factos penalmente relevantes, não visando obter despacho de não pronúncia. Face ao exposto, significa que a causa terá sempre que prosseguir para a fase subsequente, isto é, haverá sempre julgamento, (cff. neste sentido, os Acórdãos da Relação de Évora datados de 08/05/2012, Relator Edgar Valente; de 14/07/2015, Relator Maria Isabel Duarte e de 6/12/2016, Relator João Amaro, todos acessíveis em www.dgsi.pt). Por outro lado, e ainda que assim não se entendesse, sendo a fase processual da instrução um momento de controlo, no requerimento de abertura de instrução têm de constar os fundamentos necessários a servir de apoio a essa actividade de controlo/comprovação judicial. Contudo, no requerimento de abertura de instrução não há qualquer alusão às razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação, nomeadamente, o que foi desatendido/ficou por fazer, na fase processual de inquérito e que, por esse motivo, culminou na dedução de acusação, que meios de prova não foram correctamente valorados, que diligências de prova deveriam ter sido realizadas, ao invés, o arguido classifica os factos descritos na acusação, com dois crimes (e não vinte e um), pelos quais aceita ser submetido ajulgamento, ou seja, igualmente não pretende a neutralização da acusação, quer pela invocação da inadmissibilidade de provas ou de nulidades processuais. Assim sendo, e pelas supra expostas razões, entende-se que a instrução é legalmente inadmissível uma vez que do requerimento de abertura de instrução em apreço, apenas se pode concluir que o arguido aceita ser submetido a julgamento pela prática de dois crimes de pornografia de menores, agravado, p e p pelos arts. 176°, n° 1, al. B), C) e D) e n°8; 177°, n° 7 e 69°-B, n° 2 e 69°-C, n° 2 todos do Código Penal, conformando-se com a acusação e seu intrínseco propósito no que concerne a estes factos penalmente relevantes. Desde logo e por este motivo, a submissão da causa a julgamento é inevitável. Assim, verifica-se a impossibilidade de o conteúdo do requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido ter por efeito a não submissão da causa a julgamento, ante os seus fundamentos, nunca poderá impedir a prossecução da causa para a fase do julgamento. Pelo exposto, entende-se que o requerimento de abertura da instrução não pode ser recebido porque no requerimento de abertura de instrução, terá de ser exposto um conjunto de razões que espelhe o desacerto do juízo indiciário que foi consequente na decisão de deduzir acusação, i.e., as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação (...), bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito (...), de harmonia com o disposto no art. 287°, n° 2 do Código de Processo Penal. Sendo a fase processual da instrução um momento de controlo, no requerimento de abertura de instrução têm de constar os fundamentos necessários a servir de apoio a essa actividade de controlo/comprovação judicial. Em suma, impõe-se concluir pelo incumprimento dos legais requisitos impostos pelo art. 287.°, n.°2 do Código de Processo Penal, cuja consequência será a rejeição do requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido. Pelo exposto, atendendo a que no requerimento para a abertura da instrução apresentado pelo arguido, não se discutem os factos constantes da acusação (apenas se alega que os mesmos têm uma diferente qualificação jurídica o que consequentemente implica que os autos obrigatoriamente sejam remetidos para a fase de julgamento, em oposição ao que são os fins da instrução - ou que são falsos), é de concluir que a instrução nos termos em que foirequerida se configura como legalmente inadmissível, por não se mostrar apta a evitar que o arguido seja submetido a julgamento, e em consequência vai rejeitada em conformidade com o disposto no artigo 287°, n° 3 do Código de Processo Penal. Decisão: Em face do exposto, rejeito o requerimento de abertura de instrução, por parte do arguido AA, com fundamento na sua inadmissibilidade legal, de acordo com as disposições conjugadas dos arts. 286.°, n.°1, 287.°, n.°s 2, a contrario sensu, e n° 3 do Código de Processo Penal. Sem custas por não serem devidas. Notifique com cópia. * Remeta à distribuição para julgamento.
O despacho recorrido supratranscrito incide sobre o requerimento de abertura de instrução apresentado nos autos pelo arguido e ora recorrente, e que a seguir se transcreve na parte relevante para o objeto deste recurso: AA, arguido melhor identificado nos autos acima referenciados, representado pelo mandatário que esta subscreve, vem à presença de V. Exa., com fundamento no artigo 287.°, n.°1, alínea a), do Código de Processo Penal, requer a ABERTURA DA INSTRUÇÃO Pelos fundamentos contidos na narrativa a seguir. I- DA ADMISSIBILIDADE DA ABERTURA DA INSTRUÇÃO 1.Como restará cabalmente demonstrado, o arguido visa a redução do objeto do processo. 2.E há muito a doutrina e a jurisprudência se debatem acerca da admissibilidade da instrução quando o arguido não visa obter um despacho de não pronúncia e, consequentemente, não ser submetido a julgamento. 3.Ao arguido não pode ser subtraída qualquer garantia legal de defesa, exegese do artigo 32.°, n.° 1, da Constituição da República Portuguesa: Artigo 32.° (Garantias de processo criminal) 4.processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso. 5.A instrução, ainda que facultativa, é uma etapa processual em que o arguido pode efetuar parte da defesa que lhe for mais conveniente, mesmo que não se pretenda afastar, por completo, a sua responsabilidade penal. 6.E neste sentido temos um cirúrgico ensinamento constante do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora em 12/07/2023, no âmbito do processo 415/22.3TNR-C.E1, disponível em dgsi.pt:3 «1-Discordando o arguido da acusação no tocante a 7 dos 13 crimes de que foi acusado, indicando em concreto as razões de facto em que sustenta essa discordância, não pode o RAI ser rejeitado in limine (por inutilidade legal da instrução), apenas com o argumento de que seja qual for o resultado da instrução os autos sempre seguirão para julgamento. 2-A instrução integra, indubitavelmente, as garantias de defesa do arguido, tendo este, nesse âmbito, o impostergável direito à redução do objeto do processo (e logo do julgamento), não podendo invocar-se como obstáculo ao exercício de tal direito fundamental, razões de eficácia ou de celeridade. 3.Com efeito, o jurisprudência do Tribunal Constitucional vem reconhecendo ao arguido o direito à instrução, mesmo quando com a mesma se visa, apenas, uma não pronúncia parcial, afirmando, nesse âmbito, que «não podem eliminar-se as garantias previstas para uma dada fase processual com o argumento que os meios de defesa podem ser usados na fase processual subsequente»; e, ainda, que o art. 287.°, n.° 2 CPP «estabelece como requisito único a que deve obedecer o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo arguido, a indicação, sem sujeição a formalidades especiais e por súmula, das razões de facto e de direito da sua discordância relativamente à acusação.» 4.A tese recorrida sobre o pretenso juízo valorativo abrangente de todo o processo, para além do flagrante atropelo ao normal exercício das garantias de defesa pelo arguido, leva também a resultados que logo evidenciam o seu desajustamento face à natureza dos direitos em causa. Tanto assim, porquanto, se a imputação dos crimes ao arguido ocorrera em acusações autónomas, ora porque praticados em comarcas diferentes, ora porque os respetivos processos tiveram distinto andamento, sempre teriam de ser admissíveis as respetivas instruções. 5. O conceito de «inadmissibilidade legal» a que alude art. 287.° não acomoda uma situação como a referida em 1., caso em que sempre se revelaria inconstitucional, por violação do disposto no art. 32.°, Constituição. 6.Deste modo, legalmente admissível a abertura da instrução.» II- DA SÍNTESE DO DESPACHO DE ACUSAÇÃO 7.Aduz o Ministério Público que o arguido, no dia ........2021, pelas 10:02:53 UTC e 10:03:42 UTC, através da plataforma “...”, fez o upload 2 ficheiros que comportavam imagens de pornografia de menores. 8.Adiante, que entre os dias ........2021, pelas 12:59:10 UTC, 22:01:48 UTC, 20:08:01 UTC, 17:38:14 UTC e 17:20:51 UTC e ........2021, pelas 09:51:47 UTC, através da plataforma “...”, fez o upload de 19 ficheiros que comportavam imagens de pornografia de menores. 9.Ato contínuo, informa que: “...o arguido tendo perfeito conhecimento que, ao adquirir, deter, ceder e partilhar os referidos ficheiros, estava a induzira exploração das crianças utilizadas para a realização dos filmes em causa...” 10.E que “o arguido sabia que os vídeos e imagens em causa eram relativos a abusos sexuais cometidos contra menores de catorze anos e que não se encontravam manipulados, exibindo crianças reais” 11.Deste modo, requereu que o arguido fosse submetido a julgamento, perante tribunal coletivo, pelo cometimento de 21 (vinte e um) crimes de pornografia de menores, previsto e punido pelo artigo 176°, n.° 1, alíneas b), c) e d) do Código Penal e n.° 8, agravado nos termos do seu artigo 177°, n.° 7, do Código Penal e artigos 69.°-B, n.°2 e 69.°-C, n.° 2, ambos do Código Penal. 12. Era o que vali frisar. III- DA UNIDADE DA ATUAÇÃO DO ARGUIDO 13.Segundo consta da acusação, o arguido, no dia ... de ... de 2021 efetuou o upload de 2 ficheiros contendo pornografia de menores. 14.As alegadas ações ocorreram entre 10:02:53 UTC e 10:03:42 UTC, ou seja, num lapso temporal de 49 segundos. 15.Todavia, entendeu o Ministério Público se tratar de uma pluralidade de ações ilícitas, culminando com a consumação de dois crimes de pornografia de menores. 16.Todavia, com a devida vénia, esta interpretação é deveras equivocada. 17.Com efeito, a distinção entre unidade ou pluralidade de crimes reside no ato volitivo do agente que o perpetra, ou, como bem define a doutrina e a jurisprudência, na resolução criminosa. 18.E na análise da resolução criminosa a verificação do interregno temporal é fundamental. 19.Como consta da acusação, os uploads foram realizados praticamente de forma simultânea. Tratava-se de ficheiros cujo teor era análogo (no seu cerne) e foram submetidos à mesma plataforma: “...”. 20.E, portanto, a resolução criminosa teve início a 10:02:53 do dia .../.../2021, terminando a 10:03:43 daquele mesmo dia. 21.Mesma linha de raciocínio deve ser seguida no tocante aos factos ocorridos entre os dias .../.../2021 e .../.../2021. Conquanto o lapso temporal entre as ações do arguido seja maior, evidente a resolução criminosa única. 22.0 arguido, entre 12:59:10 UTC do dia .../.../2021 e 09:51:47 UTC do dia .../.../2021 efetuou login (entrou) por seis vezes em seu perfil na plataforma “...” e fez o upload de 19 ficheiros. 23.Com a devida vénia, grave equívoco de interpretação cometeu o Ministério Público também em relação aos factos ocorridos naquelas horas entre os dias .../.../2021 e .../.../2021, porquanto o ato volitivo do arguido foi único. 24.A resolução do arguido foi única, desencadeando seis eventos {logins), que, por seu turno, culminaram com 19 uploads dos ficheiros mencionados na acusação. Tendo encerrado o seu ânimo no segundo seguinte ao último upload realizado. 25.Para comprovar as assertivas encimadas, analisemos um caso análogo julgado à luz do concurso de crimes (artigo 30.°, n.°1, do Código Penal). 26.No acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 06/02/2019, no âmbito do processo 71/15.5JDLSB.S1 (disponível dgsi.pt)4este fora o entendimento acerca da resolução criminosa: «I- De acordo com o art. 30°, n.°1, do CP, em caso de repetição da conduta, o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente cometidos ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. Este preceito consagra um critério teleológico, e não naturalístico, para distinguir entre unidade e pluralidade de crimes. A uma única conduta naturalística podem corresponder vários crimes (tantos quantos os tipos de crime violados); a várias condutas naturalísticas subsumíveis ao mesmo tipo legal pode corresponder um único crime. Neste último caso, o critério de distinção deve residir na existência de unidade ou pluralidade de resoluções criminosas. Sempre que exista uma única resolução, determinante de uma prática sucessiva de atos ilícitos, haverá lugar a um único juízo de censura penal, e portanto existirá apenas um crime. Caso haja sucessivas resoluções, estaremos perante uma pluralidade de juízos de censura, e portanto de infrações. A unidade de infrações pressupõe porém, em regra, uma conexão temporal forte entre as diversas ações naturalísticas. É este basicamente o critério vertido no n° 1 do art. 30° do CP, segundo a lição de Eduardo Correia. II - Esta posição foi porém rejeitada por Figueiredo Dias há alguns anos, propondo como critério fundamental da unidade ou pluralidade de infrações o da unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica. No entanto, o mesmo autor reconhece que, quando apenas um tipo legal for violado “será de presumir que nos deparamos com uma unidade de facto punível; a qual, no entanto, também ela, pode ser elidida se se mostrar que ume o mesmo tipo especial de crime foi preenchido várias vezes pelo comportamento do agente.” III - Analisados os factos dos autos, conclui-se pela unidade criminosa, ou seja, pela prática de um só crime de burla qualificada e de um único crime de falsificação, dada a unidade de resolução que presidiu a todo o comportamento do arguido desde o início até ao final. Com efeito, ele agiu aproveitando-se das facilidades concedidas pelas funções de “tesoureiro de facto” da assistente e da confiança que nele depositava a administração da mesma, situação que se manteve ao longo de toda a atividade criminosa, atividade que o arguido desenvolveu sem interrupções temporais significativas, tudo isto revelando uma única vontade, que perdurou desde a resolução inicial até ao termo do comportamento ilícito. Este quadro fáctico aponta indubitavelmente para a unidade de resolução e consequentemente para a unidade de crimes. Aliás, mesmo à luz da conceção de Figueiredo Dias, a mesma conclusão é inevitável, pois todo o comportamento do arguido assume indiscutivelmente um “sentido de ilicitude” unitário.» 27-No seio do referido acórdão, a conduta do arguido foi entendida como única, mesmo que, para atingir o objetivo de sua resolução criminosa, tenha efetuado aproximadamente mais de uma centena de ações entre os anos de ... e ...: “(...) 7 - Entre os anos de ... a ... o arguido utilizou cheques sacados sobre contas tituladas pela assistente (...) 9- Seguindo este procedimento o arguido emitiu setenta e dois cheques [cinquenta e nove pertencentes a conta bancária da assistente no (então) XX e treze no YY], e depositou as quantias neles apostas na referida conta co-titulada com a arguida (...) 14 - Agindo deste modo, por noventa vezes, o arguido logrou que fosse transferido para a conta bancária de que é co-titular com a arguida no (...)” 28.E, volvendo ao caso concreto, o arguido, ao efetuar o upload dos 19 ficheiros, mesmo que em dias e horários distintos, tinha uma única resolução, atingindo o objetivo pretendido e não mais efetuou quaisquer uploads de material ilícito. 29. Concluindo o seu ato volitivo terminantemente. 30.Portanto, necessário que o Juiz de Instrução, dentro de suas funções jurisdicionais (artigo 17.° do Código de Processo Penal) adeque a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, onde também se insere a quantidade de crimes que se pretende ver o arguido enfrentar. 31. E para tanto, deve ser proferido um parcial despacho de não pronúncia, para que o arguido seja submetido a julgamento, perante tribunal coletivo, pelo cometimento de 2 (dois) crimes de pornografia de menores, previsto e punido pelo artigo 176.°, n.° 1, alíneas b), c) e d) do Código Penal e n.° 8, agravado nos termos do seu artigo 177.°, n.° 7, do Código Penal e artigos 69.°-B, n.° 2 e 69.°-C, n.° 2, ambos do Código Penal. IV-DO PEDIDO Por todo o acima exposto, requer: I- Seja determinada a abertura da instrução; II- Seja proferido, ao final, despacho parcial de não pronúncia, para que o arguido seja submetido a julgamento, perante tribunal coletivo, pelo cometimento de 2 (dois) crimes de pornografia de menores, previsto e punido pelo artigo 176.°, n.° 1, alíneas b), c) e d) do Código Penal e n.° 8, agravado nos termos do seu artigo 177.°, n.°7, do Código Penal e artigos 69.°- B, n.° 2 e 69.°-C, n.° 2, ambos do Código Penal., nos termos da fundamentação.
Aqui chegados importa proceder à concreta apreciação do objeto do presente recurso.
Insurge-se o recorrente relativamente à rejeição do seu requerimento de abertura de instrução por considerar, em suma, que não devia tal requerimento ter sido rejeitado pelo tribunal recorrido e que tal rejeição viola as suas garantias de defesa à luz do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
Analisemos, pois, a sua pretensão.
Estabelece o art.º 287º nº1 al. a) do Código de Processo Penal que «a abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação».
Refere o nº2 do citado preceito que o «requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283º».
A instrução é, consabidamente, uma fase facultativa de algumas formas de processo criminal, cuja abertura depende de requerimento que pode ser formulado apenas por determinados sujeitos processuais e nas circunstâncias legalmente previstas.
Conforme refere o artigo 286º nº1 do Código de Processo Penal a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
O âmbito desta fase processual é, assim, delimitado e, ao que nos interessa por estar em causa requerimento de abertura de instrução deduzido pelo arguido, traduz-se na comprovação da objetiva legalidade da acusação, na verificação da existência de material probatório que indicie suficientemente a ocorrência de crime e a sua autoria e na formulação do juízo de prognose de probabilidade razoável de condenação do seu autor.
Trata-se, assim, de verificar se se confirma o acerto da decisão de acusar, se a acusação é a decorrência lógica dos elementos recolhidos no inquérito e aí analisados pelo Ministério Público.
Tal comprovação só pode realizar-se sob o horizonte do conjunto de razões de facto e de direito de discordância crítica em relação à decisão do Ministério Público, vertidas no requerimento de abertura de instrução apresentado e a sua finalidade é a realização de um juízo sobre se se verificam os pressupostos legais para a submissão ou não da causa à fase de julgamento5.
Ora, visando a instrução, neste caso, a comprovação da decisão de acusar em ordem a submeter ou não a causa a julgamento esta tem de proporcionar, de acordo com o artigo 286º nº1 do Código de Processo Penal, uma verdadeira alternativa ao Juiz de instrução, ou seja, a alternativa de acordo com as regras legais de submeter ou não a causa a julgamento sendo essa a consequência da comprovação judicial a efetuar.
Com efeito, o legislador utiliza em tal preceito a conjunção disjuntiva ou claramente indicativa das alternativas ou opções aí consagradas.
No caso em apreço o recorrente requereu a abertura de instrução apenas para alterar a qualificação jurídica dos factos, factos esses cuja narração e sua imputação como autor não questiona.
Com efeito e, como evidencia o seu requerimento de abertura de instrução supratranscrito, pretende o mesmo que na fase de instrução seja alterada a qualificação jurídica dos factos de 21 (vinte e um) crimes de pornografia de menores, previstos e punidos pelo artigo 176°, n.°1, alíneas b), c) e d) do Código Penal e n.°8, agravados nos termos do seu artigo 177°, n.°7, do Código Penal e artigos 69.°-B, n.°2 e 69.°-C, n.°2, ambos do Código Penal para 2 (dois) crimes de pornografia de menores, previstos e punidos pelo artigo 176.°, n.°1, alíneas b), c) e d) do Código Penal e n.°8, agravados nos termos do seu artigo 177.°, n.°7, do Código Penal e artigos 69.°- B, n.°2 e 69.°-C, n.°2, ambos do Código Penal.
O recorrente pretende, pois, questionar e discutir na fase de instrução a qualificação jurídica dos factos sem que, contudo, o horizonte de tal discussão permita a sua não sujeição à fase de julgamento, ou seja, sem que permaneça a alternativa legalmente prevista de submeter ou não a causa a julgamento e, assim, o escopo principal da fase de instrução tal como implementada pelo legislador.
Não se defende aqui, naturalmente, que na fase de instrução não possa ser discutida a qualificação jurídica dos factos, mas apenas que tal discussão só deve ser admitida, nesta fase, quando idónea a proporcionar a citada alternativa. Exemplos claros de tal são situações em que da eventual alteração da qualificação jurídica possa ocorrer extinção do procedimento criminal por prescrição, desistência de queixa, caducidade do exercício de direito de queixa, amnistia ou a possibilidade de suspensão provisória do processo...6
É crucial não olvidar que a opção do legislador foi concentrar na fase de julgamento a discussão de todos os factos e soluções jurídicas pertinentes, pois, expressando tal opção estabelece o artigo 339º nº4 do Código de Processo Penal que: «sem prejuízo do regime aplicável à alteração dos factos, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência bem como todas as soluções jurídicas pertinentes independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368º e 369º».
O legislador expressamente consagrou a fase de julgamento como a fase central do processo penal, fase de produção e apreciação de prova e exercício pleno das garantias de defesa do arguido, fase, essa, que não está vinculada à qualificação jurídica dos factos resultantes das fases processuais anteriores e, assim, à qualificação jurídica dos factos constante do despacho de acusação ou do despacho de pronúncia.
Ademais o escopo da fase de instrução foi, também, claramente definido pelo legislador nos termos sobreditos e, não obstante lhe ter conferido uma natureza facultativa, não visou aquele consagrar uma fase inútil ou redundante relativamente à fase de julgamento.
Por outro lado, também, se entende que o legislador não quis criar sem qualquer restrição o direito do arguido à fase de instrução, posto, que se assim fosse não teria criado a possibilidade de inadmissibilidade legal da mesma, conceito que tem vindo a ser interpretado de modo mais amplo ou mais restrito pela doutrina e jurisprudência, mas que, na nossa perspetiva, não pode ser separado do escopo processual da fase de instrução.
E, assim, situações em que se pretenda substituir a ideia matriz de comprovação-neste caso da acusação- preordenada à submissão ou não da causa a julgamento ou que eliminem a alternativa em que se traduz a sua finalidade integram o conceito de inadmissibilidade legal.
Com efeito, a fase de instrução não é uma substituição da fase de inquérito nem da fase de julgamento, é uma fase processual autónoma e enquanto tal revestida de utilidade e tal utilidade é revelada pela sua finalidade.
O recorrente refere que a única limitação imposta ao requerimento de abertura de instrução do arguido é a contida no artigo 287º nº2 do Código de Processo Penal mas olvida que as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação têm de ser aferidas por relação ao escopo desta fase, têm de ser idóneas a convocar a abertura da mesma de molde a comprovar-se se a causa deve ou não ser submetida à fase subsequente.
Tal como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08-10-20197: «A instrução tem de se pautar pela finalidade de culminar, alternativamente, em que o processo siga, ou não, para julgamento, sob pena de redundar em fase sem virtualidade para atingir o desiderato que lhe está subjacente. É de rejeitar o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido se ele não visa evitar o julgamento por todos os crimes que lhe são imputados na acusação, nem contém as concretas razões da sua discordância em relação à acusação pública. A ausência, quer de fundamentação, quer de utilidade, da instrução, reconduzem-se a causas de inadmissibilidade da mesma».
No caso vertente o recorrente pretende, apenas, a apreciação da qualificação jurídica sem que de tal apreciação, como o mesmo admite, surja a possibilidade do mesmo não ser submetido à fase subsequente de julgamento.
Com efeito, no seu requerimento pugna pela sua pronúncia e não pela sua não pronúncia.
Entende-se, ao contrário do recorrente e em consonância com o despacho recorrido, que estamos perante uma situação de inadmissibilidade legal de instrução e, consequentemente, que não merece censura tal despacho.
Mais invoca o recorrente que o despacho recorrido infringe o artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
E para tanto alega que dentre as garantias de defesa do arguido, encontra-se a possibilidade de ser ouvido pelo tribunal ou pelo juiz de instrução sempre que eles devam tomar qualquer decisão que pessoalmente o afecte, exegese do artigo, 61.°, n° 1, alínea b), do Código de Processo Penal, que sonegar ao recorrente a sua audição através do RAI é uma flagrante violação da sua garantia de defesa, constitucionalmente prevista portanto, a interpretação dada pela Exma. Sra. Dra. Juiz de Instrução à norma do n.°3 do artigo 287.° do Código de Processo Penal é inconstitucional, porquanto viola as garantias de defesa do recorrente, nos termos do artigo 32.°, n.°1, da Constituição da República Portuguesa.
Também, neste particular, se discorda do recorrente e, desde logo, porque a Constituição da República Portuguesa não consagra qualquer direito ilimitado do arguido à fase de instrução. Aliás, a única consagração expressa no artigo 32º da citada Lei Fundamental sobre tal fase está contida no nº4 que versa: «Toda a instrução é da competência de um juiz, o qual pode, nos termos da lei, delegar noutras entidades a prática dos actos instrutórios que se não prendam directamente com os direitos fundamentais».
Assim, a imposição constitucional expressa refere-se à natureza jurisdicional de tal fase e à reserva de juiz no que respeita à prática de atos instrutórios que se prendam com direitos fundamentais e possibilidade de delegação dos demais.
É a lei processual penal que configura a fase processual e o legislador gizou-a como uma fase processual facultativa e apenas para o processo comum e daí se retira também a sua intenção de inexistir um direito ilimitado do arguido a tal fase, pois, que os arguidos em processos especiais não podem à mesma aceder.
Ademais o mesmo legislador delimitou tal fase ao determinar que quando requerida pelo arguido a mesma visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação em ordem a submeter ou não a causa a julgamento e, assim, a sua finalidade quando requerida por aquele apenas se pode traduzir em lograr evitar que a causa seja submetida a julgamento.
Não se discute o direito de arguido à ver discutida a propugnada alteração da qualificação jurídica dos factos, mas, ao contrário do pelo mesmo invocado, não se considera que tal discussão seja nos moldes em que o mesmo a delimitou idónea a convocar a abertura da fase de instrução ou sequer que a rejeição do requerimento do seu requerimento de abertura de instrução configure uma lesão dos seus direitos ou garantias processuais.
A intervenção processual está sujeita a regras e é a inobservância do que configura um requerimento de abertura de instrução admissível que determina a sua rejeição.
Por outro lado, o artigo 61º nº1 al. b) do Código de Processo Penal não se refere apenas à fase de instrução, mas também atos jurisdicionais presididos por juiz de instrução em fase de inquérito e o exercício de tal direito em fase de instrução pressupõe que a mesma tenha lugar, ou seja, que o requerimento de abertura de instrução tenha sido admitido e a fase de instrução declarada aberta.
Tal normativo não consagra qualquer direito à abertura da fase de instrução, mas apenas o direito a ser ouvido no decurso da mesma por juiz.
Foi o legislador que estipulou a inadmissibilidade legal da instrução como fundamento para a sua rejeição e não se nos afigura que tal diminua as garantias de defesa do arguido e ora recorrente.
Não consagrando a Constituição da República Portuguesa nem a lei processual penal qualquer direito ilimitado do arguido à fase de instrução não se vislumbra em que termos a rejeição do requerimento de abertura de instrução do arguido por inadmissibilidade legal infringe as suas garantias de defesa à luz do artigo 32º nº1 do Constituição da República Portuguesa.
Assim, não se deteta a inconstitucionalidade invocada e entende-se ser de improceder in totum a pretensão recursória do arguido.
3- DECISÓRIO:
Nestes termos e, em face do exposto, acordam os Juízes Desembargadores desta 3ª Secção em não conceder provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, confirmar na íntegra o despacho recorrido.
Custas a cargo do arguido fixando-se a taxa de justiça em 4 UC nos termos do artigo 515º nº1 al. b) do Código de Processo Penal.
*
Nos termos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal exara-se que o presente Acórdão foi pela 1ª signatária elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários e sendo as suas assinaturas bem como a data certificadas supra.
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Tribunal da Relação de Lisboa, 18 de junho de 2025
Ana Rita Loja
Hermengarda do Valle-Frias
Maria da Graça dos Santos Silva
_______________________________________________________
1. Vide arts. 403º, 412º e 417º do Código de Processo Penal e, entre outros, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de janeiro de 2015 proferido no processo 91/14.7YFLSB.S1 e de 30 de junho de 2016 proferido no processo 370/13.0PEVFX.L1.S1.
2. Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335
3. https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/99793727aa54caaf802589f20 0499a4d?OpenDocument 4. https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/eedce2e9c0c6e7cc8025839a0052b744?OpenDocument
5. Vide Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 29 de janeiro de 2014, Relatora, Maria do Carmo Silva Dias, processo 1878/11.8TAMAI.P1,
6. Vide no mesmo sentido entre outros:
Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 07/01/2016 proferido nos autos de processo nº797/14.0TAPTM-A.E1 “deverá ser admitida a abertura de instrução que tenha em vista a alteração da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido se a procedência dessa alteração é de molde a criar um pressuposto jurídico-material indispensável a que o arguido, mediante a intervenção de outros factores, nomeadamente a desistência de queixa, logre alcançar a extinção do procedimento criminal, sem chegar a ser submetido a julgamento”.
Ac. da Relação do Porto de 19/11/2018 proferido nos autos de processo nº41/17.9GCBRG-E.G1 “não é lícita a abertura de instrução quando o requerente visa tão só uma alteração da qualificação jurídica quanto aos factos imputados e daí não decorre qualquer vantagem ou benefício direto para si”.
Ac. da Relação de Coimbra de 30/06/2021 proferido nos autos de processo nº538/19.6JACBR.CI: “concordamos assim, com o ac. da RE de 8-5-2012, proc. n.º 226/09.1PBEVR.E1, quando considera que “o critério da submissão, ou não, da causa a julgamento diz respeito, como a literalidade do preceito (art. 286º, n.º 1) impõe, a um juízo sobre todo o processo e não quanto a fragmentos do mesmo. Assim, entendemos que a diferente qualificação jurídica dos factos como único fundamento da instrução só a poderá legalmente sustentar se tiver como resultado almejado a não pronúncia quanto a todos os crimes acusados. Se essa diversa qualificação jurídica dos factos da acusação não é passível de produzir tal resultado, mantendo-se a imputação de um ou mais crimes, sempre a causa terá necessariamente de ser submetida a julgamento e, como tal a instrução é legalmente inadmissível.”, todos acedidos em www.dgsi.pt.
7. Proferido nos autos de processo 1003/17.1GBABF-A.E1 e acedido em www.dgsi.pt