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PROVA TESTEMUNHAL
FALSIDADE DE TESTEMUNHO
Sumário
Sumário (da responsabilidade da Relatora) I. A prova testemunhal tem por função no processo a demonstração da realidade dos factos, tal como se lê na matriz do nosso direito (artº 341º do Cód. Civil). Conforme diz Antunes Varela [nota no texto], a prova testemunhal é considerada, sob vários aspectos, a prova mais importante de entre aquelas que são admitidas por lei. Isto porque, nos termos da nossa lei, é testemunha a pessoa que, não sendo parte na acção nem seu representante, é chamada a narrar (declaração de ciência) as suas percepções sobre factos passados. Espera-se dela que reproduza o que viu, o que ouviu, ou o que observou, o que sentiu. II. Faltar conscientemente à verdade num processo judicial constitui, sem romantismos exagerados, uma falha de personalidade que implica que, por qualquer outro motivo menos substancial e injustificado [porque nada se provou em contrário], alguém se dispõe a vir a um lugar em que se administra a Justiça, e a enganar quem julga, contra ou a favor de alguém, alterando com isso a realidade dos factos. O preço da mentira, este preço de que se fala e que não se mede, pelo menos neste contexto não se apurou coisa diversa, em dinheiro, é, no entanto, elevadíssimo e é precisa uma personalidade especialmente individualista e deficientemente formada para aquiescer em comprometê-la.
Texto Integral
Acordam os juízes da 3ª Sec. Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.
Relatório
Pelo Juízo Local Criminal de Loures – J2 – foi proferida Sentença que decidiu do seguinte modo: (…) Pelo exposto, julgando parcialmente procedente a acusação, decido condenar a arguida AA: a) como autora de um crime de falsidade de testemunho, previsto e punível no artigo 360º n.º 1 do Código Penal, na pena de 160 (cento e sessenta) dias de multa, à taxa diária de 5 (cinco) euros ou seja, a multa de 800 (oitocentos) euros. (…)
Inconformada, a arguida interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões: (…) 1ª Quando questionada a arguida sobre o que aconteceu nesse dia a mesma respondeu que se encontrava a trabalhar, a arrumar as coisas na cozinha e que o patrão a puxou, mais a cozinheira, para uma dispensa, onde já se encontrava o irmão do patrão e algumas outras pessoas que não conhecia. Ora, de tal depoimento nunca posto em causa resulta que a razão de ciência da testemunha não pode ter a ver com a visão, quanto muitos com a audição. 2ª Esclareceu ainda que ali permaneceram muito tempo e que ouviu gritos e coisas a quebrarem; que não viu ninguém a entrar no restaurante; que não viu pessoas com cara tapada; que não viu armas, bastões e facas. Poderá tal depoimento que não foi posto em causa quanto ao local do esconderijo será sequer passível de ser contraditório ? A arguida entende que não pois que a impossibilidade de ver obsta á declaração de ver pessoas com cara tapada, de ver armas, bastões e facas. 3ª Em suma, o alegado em 1ª e 2ª das Conclusões não pode ser considerado como depoimento contraditório, ou seja, o depoimento da arguida não é passível de ser enquadrado no conceito de falsas declarações. 4ª Esse dever de verdade da testemunha apenas existe relativamente aos factos de que possua conhecimento direto e que constituam objeto da prova (cf. artigo 128º, n.º 1, do CPP). A arguida nunca esteve a depor sobre fatos não verdadeiros. 5ª O dever de verdade, no caso da testemunha, conforme refere Medina de Seiça, limita-se aos «factos de que possua conhecimento direto (cf. art. 128º, nº 1, do CPP), i. é, factos que tenham sido objeto das suas perceções (…), acontecimentos ou circunstâncias, concretos, quer do mundo exterior, quer da vida anímica. 6ª Supletivamente, quando como é o caso se tratem de circunstâncias não essenciais, se a testemunha faltar à verdade, não sendo afastado o preenchimento da tipicidade da conduta, haverá lugar á atenuação especial da pena, podendo mesmo ter lugar a dispensa da pena (cf. artigo 364º, al. a), do Código Penal). Nestes termos e nos demais de direito doutamente supridos deve o presente recurso ser admitido, julgado procedente por provado, revogando-se a sentença recorrida e absolvendo-se a arguida se fará JUSTIÇA! (…)
O Ministério Público na primeira instância respondeu ao recurso, não apresentando conclusões, pugnando pela improcedência do mesmo.
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.
Uma vez remetido a este Tribunal, o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Proferido despacho liminar e colhidos os vistos, teve lugar a Conferência.
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Objecto do recurso
Resulta do disposto conjugadamente nos arts. 402º, 403º e 412º nº 1 do Cód. Proc. Penal que o poder de cognição do Tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o Tribunal está ainda obrigado a decidir todas as questões que sejam de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem a decisão, nos termos dos arts. 379º nº 2 e 410º nº 3 daquele diploma, e dos vícios previstos no artº 410º nº 2 do mesmo Cód. Proc. Penal, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito, tal como se assentou no Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995 [DR, Iª Série - A de 28.12.1995] e no Acórdão para Uniformização de Jurisprudência nº 10/2005, de 20.10.2005 [DR, Iª Série - A de 07.12.2005].
Das disposições conjugadas dos arts. 368º e 369º, por remissão do artº 424º, nº 2, ambos do mesmo Cód. Proc. Penal, resulta ainda que o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem preferencial:
Em primeiro lugar, das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão (artº 379º do citado diploma legal);
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela chamada impugnação alargada, se deduzida [artº 412º], a que se segue o conhecimento dos vícios enumerados no artº 410º nº 2 sempre do mesmo diploma legal.
Finalmente, as questões relativas à matéria de direito.
A arguida, nas conclusões do recurso, fixa o objecto de apreciação requerida nas seguintes questões:
- estando a então testemunha trancada num espaço em que as percepções adquiridas por ouvir não são acompanhadas de visão dos acontecimentos, ainda mais tratando-se de questões não essenciais, circunstância que significa que a testemunha não se contradiz e nem falta à verdade quando diz que não viu coisas que efectivamente não viu, devendo por isso ser absolvida ou, ainda que verificando-se a tipicidade, ser-lhe especialmente atenuada a pena.
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Fundamentação
O Tribunal recorrido fixou a matéria de facto do seguinte modo: (…) No dia ...-...-2018, nas instalações da Unidade Nacional Contra Terrorismo da Polícia Judiciária, a arguida foi inquirida na qualidade de testemunha, no âmbito do Inquérito n.º 12/17.5..., tendo previamente sido advertida de que deveria responder com verdade às perguntas que lhe fossem efetuadas, sob pena de não o fazendo incorrer na prática de um crime. Nesse ato, a arguida declarou que no dia ...-...-2018, trabalhava como empregada de mesa no restaurante/churrasqueira mesa do ..., no ..., nesta comarca de ..., propriedade do seu patrão que conhece unicamente como BB. Declarou que nesse dia, o seu patrão disse aos funcionários que o restaurante iria ficar reservado para o CC e um grupo de amigos que iriam lá almoçar e ordenou para porem uma mesa para quinze pessoas, tendo colocado um aviso à porta a dizer que o restaurante se encontrava reservado para almoço privado. A arguida referiu que conhece o CC há cerca de quatro meses unicamente porque era cliente do restaurante e amigo do BB, e que nesse dia o CC e os amigos chegaram ao restaurante pelas 11h00. Mais declarou a arguida, que nesse dia, cerca das 13h00, quando estava na copa, reparou na entrada de um grande grupo de indivíduos, pensa que seriam mais de vinte, com blusões escuros e roupas de motociclistas, ficando a pensar que eram mais pessoas para o almoço de confraternização. Declarou ainda a arguida que veio a se aperceber que tais indivíduos não vinham para o almoço uma vez que que a maioria transportava paus, facas, martelos, entre outros objetos de agressão, e a maioria deles tinha a cara tapada com gorros ou golas tipo passa-montanhas e sweatshirts com capuz. Posteriormente, no dia ...-...-2021, nas instalações do Juízo Central Criminal de Loures-Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de ..., no decurso da audiência de julgamento do Processo Comum Coletivo com o nº 12/17.5..., foi inquirida, na qualidade de testemunha, a ora arguida. Nessa qualidade prestou declarações depois de previamente ter prestado juramento. No decurso da aludida audiência foi perguntado à arguida se no dia dos factos em julgamento se havia indicações relativamente ao serviço que tinham de fazer, se estava aberto ao público, ou não, se ia acontecer alguma coisa, ao que respondeu que “estava aberto ao público” e que não sabia se ia ali ser organizado algum almoço em específico. Foi-lhe perguntado também se conhecia alguma das pessoas que estavam no restaurante nesse dia, ao que respondeu que não. Perguntada a arguida sobre o que aconteceu nesse dia, esta respondeu que se encontrava a trabalhar, a arrumar as coisas na cozinha, e que o patrão a puxou, mais a cozinheira, para uma dispensa, onde já se encontrava o irmão do patrão e algumas outras pessoas, que não conhecia. Que ali permaneceram muito tempo e que ouviu gritos e coisas a quebrarem. Perguntada a arguida se viu alguém a entrar no restaurante, esta respondeu que não. Perguntada a arguida se viu pessoas com cara tapada, respondeu que não. Perguntada a arguida se viu armas, bastões e facas, respondeu que não. A arguida prestou, em sede de inquérito e em Tribunal, depoimentos contraditórios, sabendo que estava a depor sobre factos não verdadeiros. A arguida atuou livre, deliberada e conscientemente. Com intuito de prejudicar a boa administração da justiça, a arguida prestou depoimentos contraditórios, narrando factos que sabia não corresponderem à verdade, não obstante ter sido previamente advertida que estava obrigada a falar com verdade, sob pena de, não o fazendo, incorrer em responsabilidade criminal. Bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei. A arguida é ..., aufere mensalmente a quantia de € 942. É solteira, vive com a irmã, com quem partilha as despesas domésticas, cabendo-lhe suportar mensalmente a quantia de € 600. A arguida não tem antecedentes criminais. Factos não provados Não logrou provar-se que dos dois depoimentos contraditórios prestados pela arguida, o prestado em audiência é que não corresponde à verdade. (…)
O Tribunal recorrido fundamentou a decisão de facto do seguinte modo: (…) O tribunal louvou a sua convicção quanto ao teor do depoimento prestado pela arguida em inquérito e em audiência de julgamento, certidão de fls. 1 a 6, e transcrição de fls. 33 a 115, uma vez que a arguida usou o direito ao silêncio. Mais louvamos o certificado de registo criminal da arguida. Quanto ao facto não provado assim foi considerado por não ter assento positivo inequívoco na prova produzida, que apenas sustenta a certeza de duas declarações da arguida com sentidos contraditórios. (…)
Quanto ao enquadramento jurídico, decidiu-se ali que: (…) Vem a arguida acusada da prática de um crime, p. e p. pelo art.º 360.º n.º 1 e 3 do Código Penal. Estipula este preceito legal, que “Quem, como testemunha, perito, técnico, tradutor ou intérprete, perante tribunal ou funcionário competente para receber como meio de prova, depoimento, relatório, informação ou tradução, prestar depoimento, apresentar relatório, der informação ou fizer traduções falsos, é punido com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou com pena de multa não inferior a 60 dias (...)”. E o nº 3, “Se o facto referido no n.º 1 for praticado depois de o agente ter prestado juramento e ter sido advertido das consequências penais a que se expõe, a pena é de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias.” Para que se verifique a qualificativa prevista no n.º 3, exige-se, cumulativamente: a) a juramento; b) a advertência das consequências penais a que o declarante se expõe, em caso de falsidade; c) por autoridade competente. O crime de falso testemunho é um crime “de mão própria”, perigo abstracto e de mera actividade, pois é praticado por quem reveste certa qualidade, “não é necessário que a declaração falsa prejudique efectivamente o esclarecimento da verdade suporte da decisão nem sequer que in concreto o tenha colocado em perigo”, e a conduta esgota-se na prestação do depoimento falso não exigindo lei qualquer resultado (e quando o faz é como circunstância agravante. Como o bem jurídico protegido é a “administração da Justiça como função do Estado” traduzindo o “interesse público na obtenção de declarações conformes à verdade no âmbito de processos judiciais ou análogos, na medida em que constituem suporte para a decisão”; ocorrerá lesão de tal bem jurídico sempre que tal não ocorra, (Comentário Conimbricense, artº 360º ). No caso em apreço, analisamos os factos provados, temos que a arguida no processo em fase de inquérito prestou um depoimento e em sede de audiência de julgamento prestou um depoimento contrário. Daqui resulta, necessariamente, que a arguida no mesmo processo judicial, sobre a mesma realidade, prestou depoimentos contraditórios. Teremos assim que concluir que a mesmo não cumpriu o seu dever de falar com verdade, pelo que a sua conduta preenche o tipo de crime em análise. Como não foi possível apurar que, dos dois depoimentos prestados, o depoimento prestado em audiência foi o depoimento falso, teremos que concluir que a conduta da arguida não pode subsumir-se à previsão do nº 3 do art.º 360º do Código Penal, mas apenas ao nº 1. (…)
Concretamente na escolha e determinação da pena, fundamentou: (…) Sopesando que a arguida é primária, procedendo à escolha da pena, tendo por base o princípio estabelecido pelo artº 70º do Código Penal, damos preferência à pena privativa da liberdade, porquanto só esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Cumpre agora determinar a medida concreta da pena dentro da moldura penal abstracta. Nos termos do disposto no n.º 1 art.º 71º do Código Penal, atender-se -à a culpa do arguido (limite máximo) às necessidades de prevenção geral (limite mínimo) e as necessidades de prevenção especial (quantum exacto da medida da pena a aplicar-lhe) e a todas as circunstância que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido ( n.º 2 ). São elevadas as exigências de prevenção geral, atento a frequência da prática deste crime, por vezes a atingir foros de banalidade, a exigir um maior esforço na reposição da norma violada. Importa ainda ponderar o dolo directo da actuação da arguida. Não tendo sido possível concluir que foi em Tribunal que a arguida prestou o depoimento falso, a ilicitude não vai além da mediania. A arguida é primária, o que na juventude da sua idade outra realidade não seria de esperar. Em audiência de julgamento, não veio relevar arrependimento ou juízo crítico sobra sua conduta, o que se reflete negativamente em sede de exigências de prevenção especial. Tudo ponderado, julgamos ajustada à culpa e às exigências de prevenção geral e especial, a pena de 160 dias de multa, à taxa diária de 5 euros (atento a situação económica da arguida e o disposto no art.º 47º, nº 2 do Código Penal). (…)
Vejamos, então, na perspectiva desta Relação se merece acolhimento a pretensão do recorrente.
A questão a conhecer, muito embora se desdobre em diversos aspectos, há-de ser avaliada dentro dos padrões de vícios ínsitos no artº 410º do Cód. Proc. Penal, atento a que se não mostram minimamente cumpridos os requisitos do artº 412º do mesmo diploma.
Portanto, para além dos eventuais vícios que importem a nulidade da decisão (artº 379 do mesmo Cód. Proc. Penal) e que, se existirem, importam o conhecimento oficioso nesta sede, o Tribunal de recurso perscrutará a decisão e, acaso da sua leitura resulte algum dos vícios previstos no artº 410º daquele diploma, conhecerá nesse sentido.
Assim, apreciando.
Da leitura da decisão não decorrem aparentes quaisquer nulidades (artº 379º do Cód. Proc. Penal).
O que a sentença dá como assente e não está impugnado nos termos do artº 412º citado é que a aqui arguida foi ouvida duas vezes no processo como testemunha, de ambas as vezes tendo-lhe sido feita advertência da obrigação de falar com verdade, uma das vezes em inquérito e outra em julgamento.
Na primeira vez [........2018] diz que viu pessoas entrarem no restaurante [quando o grupo que fora almoçar já la estava dentro] e que estes traziam caras tapadas com gorros ou golas subidas e vinham munidos de paus, facas, martelos entre outros.
Da segunda vez que foi ouvida [........2021], em audiência de julgamento, diz que não viu ninguém entrar no restaurante, consequentemente não viu gente «mascarada» nem armada com aqueles instrumentos, porque o patrão a levou para uma dispensa, onde ficaram escondidos com outras pessoas.
Dizer que estas declarações não são contraditórias é o mesmo que dizer que branco e preto são exactamente a mesma cor.
Portanto, vamos ver isto por partes.
A prova testemunhal tem por função no processo a demonstração da realidade dos factos, tal como se lê na matriz do nosso direito (artº 341º do Cód. Civil).
Conforme diz Antunes Varela1, a prova testemunhal é considerada, sob vários aspectos, a prova mais importante de entre aquelas que são admitidas por lei.
Isto porque, nos termos da nossa lei, é testemunha a pessoa que, não sendo parte na acção nem seu representante, é chamada a narrar (declaração de ciência) as suas percepções sobre factos passados.
Espera-se dela que reproduza o que viu, o que ouviu, ou o que observou, o que sentiu.
Como se percebe, daqui deriva, desde logo, a importância das questões relativas a depoimentos, porque se espera que a pessoa, surpreendida com um evento cujos pressupostos não domina, venha, tempos depois, talvez anos depois, com recurso a uma memória que até eventualmente reprimiu por ser violenta, e que é permeável a uma quantidade exorbitante de eventos cujo condicionamento não controla, dizer ao exacto ponto da verdade, o que experienciou nessa ocasião. Com a dificuldade acrescida de não vir falar de si e do que sentiu nessa ocasião – o relato de traumas é mais fácil porque crava na memória marcos de sofrimento evidentes e, por vezes, mesmo permanentes -, mas vem falar do que lhe foi externo, das circunstâncias a que assistiu, naturalisticamente consideradas, portanto, sem as valorar. Até porque a valoração é sempre subjectiva.
Isto, que já de si será um problema, na medida em que essa narração decorre de imagens perceptivas rebuscadas na memória que, com toda a probabilidade, serão incapazes de retratar com fidelidade a realidade, ainda vem acrescido de outra dificuldade: o que sabemos, como afirma António Damásio2, é que as imagens que a nossa memória produz são reais para nós próprios e que há outros seres que constroem imagens do mesmo tipo, mas não temos a garantia de representarem a realidade «absoluta».
Assim, se na sua obra o Autor desafia a ideia de que a razão e as emoções são entidades separadas, argumentando que as emoções são uma parte essencial do processo racional, podemos perceber que, da boca dos especialistas surge a primeira limitação à percepção desta questão como se ela fosse linear.
O processo racional, longe de se medir a esquadro pelos segmentos lógicos ou dados objectivados que os sentidos nos permitem adquirir da nossa exposição ao mundo exterior, a partir do momento em que é também relacional, porque nisso se traduz de facto a inteligibilidade humana, é necessariamente valorativo, ou seja, o acontecimento que percepcionamos é adquirido por nós através de um espectro de valores que temos pré-existentes, razão pela qual é percepcionado por nós exactamente do mesmo modo.
Não há imunidade, nos humanos, que permita uma percepção não valorativa, seja no bom ou no mau sentido, porque a percepção é precisamente um instrumento de aquisição de conhecimentos que são etiquetados pelo cérebro para nos valerem de alguma coisa. E este é precisamente o ponto.
Se nos confrontamos à partida com esta constatação, fácil será perceber as cautelas que devem guiar o interprete das declarações das testemunhas, por exemplo, como tem de fazer o juiz.
E também tem de perceber até que ponto a testemunha se deixa condicionar sem intenção e a partir de que ponto tem ela mesma a intenção e vontade de condicionar o seu ouvinte.
Conforme afirmava Cavaleiro de Ferreira, a prova é a demonstração da verdade dos factos juridicamente relevantes3. E enquanto fonte de convencimento do julgador, será também, enquanto prova, a potencial demonstração da ocorrência de factos que integrem a previsão da norma penal incriminatória.
A importância da prova testemunhal é, como tal, evidente.
A testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto de prova (artº 128º nº 1 do Cód. Proc. Penal) e o depoimento é um acto pessoal que não pode ser feito por intermédio de procurador (artº 138º nº 1 do mesmo diploma).
A recorrente vem, esquecendo isto mesmo, dizer que não se pode dizer o que não se viu.
Está certa essa afirmação.
No entanto, isto vale para todas as fases do processo e não apenas para a fase em que lhe interessa invocar esta verdade absoluta.
A arguida nestes autos, enquanto testemunha nos primeiros, foi ouvida duas vezes em fases diferentes do processo, em ambas sendo advertida de que a falta de verdade nas respostas a faria incorrer em responsabilidade criminal.
Nem sequer alega, como bem se compreende, aliás, qualquer problema de má percepção dessas advertências, pois que isso significava assumir a mentira.
Mas vem dizer que as circunstâncias não essenciais sobre que falou nem sequer permitem concluir pela verificação do crime que lhe vem apontado.
Para além de que, sendo certo que só depõe quanto a factos de que tenha conhecimento directo, nas suas primeiras declarações a testemunha assumiu que presenciou os factos, descrevendo-os com relativo pormenor mesmo, quando na segunda audição tem uma postura diametralmente oposta, dizendo que nada viu.
Nestas circunstâncias, como resulta dos factos provados, é evidente que a testemunha mentiu, numa ou noutra situação, ou em ambas, com isso violando as proibições e preenchendo com a sua conduta o crime por que veio a ser condenada.
As declarações em julgamento, sobretudo das testemunhas, revestem-se de uma fulcral importância porque, maioria das vezes, sobre elas assentará a convicção do Tribunal e a decisão sobre a culpabilidade do agente por que se venha a decidir.
Quando a testemunha de factos relevantes como estes são vem dizer uma coisa em inquérito, contribuindo com isso de forma decisiva para que se decida, ou não, acusar e levar alguém a julgamento e depois disso, em julgamento, vem dizer coisa contrária, muitas vezes contribuindo precisamente para a absolvição do agente, compete ao Tribunal chegar a uma de duas conclusões: ou a prova remanescente lhe permite concluir num dos sentidos e, então, apura que uma das versões da testemunha não corresponde à verdade e encaminha certidão para inquérito contra a mesma; ou, pelo contrário, não chega a essa conclusão e, apurando que as versões são opostas, sabe na mesma que numa das ocasiões a testemunha mentiu devendo extrair a mesma conclusão disso ou, ainda, se não conseguir apurar essa oposição e ficar sem saber se a testemunha mentiu, ou não, dar-lhe o benefício da dúvida e assentar nisso mesmo.
Ora, neste caso, não há a mínima dúvida de que a testemunha disse coisas da primeira vez que contradisse agora, desde logo, que viu entrar um grupo «mascarado» no restaurante e armado coim os objectos que identificou. Quando, da segunda vez, disse que nada viu porque estava trancada numa dispensa.
Não se consegue perceber sequer como pode vir em recurso dizer que não há contradição nisto: dizer que viu e depois dizer que não viu. É simples, mais contrário do que isto é mesmo difícil de encontrar.
Ora, o Tribunal a quo, no âmbito da sua liberdade de convicção, cumprindo as regras de valoração da prova sem que nada conste da decisão em sentido oposto, vem dizer isso mesmo: ponderados os dois depoimentos que se mostram certificados nos autos, foi-lhe evidente a contradição. Além disso, os documentos juntos também não deixam dúvidas sobre as advertências e cominações feitas.
Significa isto que o Tribunal fundou a sua convicção de prova em elementos de prova validamente recolhidos, que ponderou com respeito pela validade dessa forma de produção, concluindo deles o inevitável, portanto, firmando uma convicção com liberdade de ponderação e valoração, em determinado sentido.
E ainda que se apele às regras de normalidade e experiência, aqui sem expressão que justifique sequer a sua utilização, mas ainda que assim se fizesse, dessa normalidade decorre também que uma coisa e outra constituem opostos recíprocos, sendo excludentes uma da outra, por isso, contraditórias.
Como tal, e por mais voltas que se dê, aquela convicção livremente formada corresponde, efectivamente, à única que era possível formar.
Temos, como tal, e como diz a sentença recorrida, contradição entre as declarações prestadas pela testemunha aqui arguida, num momento e noutro do referido processo.
Mais do que isso, essa contradição é em termos tais que, no sentido a produzir do depoimento, é mesmo reciprocamente excludente, certo sendo que afirmar uma coisa é mesmo excluir a outra e vice-versa.
Neste contexto de contradição, o Tribunal a quo, como deixou claro, não chegou à conclusão de qual das versões correspondeu à realidade dos factos. E muito embora seja fácil de presumir qual seja, esta presunção não é judiciária e é mesmo desnecessária, pois que, ao contrário do que afirma a recorrente, esta factualidade não é acessória e era fundamental para apurar a verdade dos factos. Ao mesmo tempo que, como se compreende, para o tipo legal em causa é indiferente que seja esta versão do julgamento verdade ou a outra de inquérito, uma vez que em ambas as ocasiões foi feita a legal advertência e informada a então testemunha e, reciprocamente excludentes que se mostram as versões, certo é que uma delas é falsa, pelo menos.
Atento isto, fácil é perceber que o elemento objectivo do tipo estava preenchido, tal como o subjectivo, completando a verificação típica.
Sem dúvidas, pelo que as não podia invocar e com isso privilegiar a arguida, circunstância em que a decisão com a referida opção seria, aí sim, nula, a sentença recorrida produziu decisão condenatória, como devia.
Em vista disto, improcede este fundamento do recurso.
A verdade das declarações quando somos chamados a desempenhar um papel tão fundamental quanto o de ser os olhos e os ouvidos do Tribunal, como tal, da Sociedade que julga e tenta pacificar a ordem jurídica cujo equilíbrio sofreu o abalo da verificação dos factos que serão objecto desse depoimento. É, como tal, uma questão cívica.
Como é de civismo, mesmo antes de ser crime, que aqui se fala.
Um cidadão de pleno direito, com a consciência inequívoca dos seus deveres e direitos de cidadania, em nenhuma circunstância mente num Tribunal. Em nenhuma circunstância, repete-se.
O civismo é o conjunto de regras que nos mantém membros da civitas, empenhados na defesa dos interesses de todos e em prol de todos.
O civismo é o anti-vírus das formas de agregação sem escrúpulos, sem regras, sem respeito recíproco entre iguais.
O civismo é o que nos distingue enquanto espécie e nos faz merecer o estatuto do ser vivo mais determinante e influente da vida que conhecemos.
Ser cívico é ser ético e ser ético, como diria Aristóteles, é viver na constante busca pelo bem de todos.
Depois disto, e já quando o civismo falhou, vem a criminalização, que constitui o marco que, para além da ética, considera o comportamento como lesivo da verdade das instituições democráticas de tal forma que se justifique ser sancionado o comportamento violador pela forma mais robusta de reacção que é a tutela penal.
Assim, mentir num processo judicial constitui, sem romantismos exagerados, uma falha de personalidade que implica que, por qualquer outro motivo menos substancial e injustificado [porque nada se provou em contrário], alguém se dispõe a vir a um lugar em que se administra a Justiça, e a enganar quem julga, contra ou a favor de alguém, alterando com isso a realidade dos factos.
O preço da mentira, este preço de que se fala e que não se mede, pelo menos neste contexto não se apurou coisa diversa, em dinheiro, é, no entanto, elevadíssimo e é precisa uma personalidade especialmente individualista e deficientemente formada para aquiescer em compromete-la.
Assim, como o entendemos até muito além do que o Legislador o considerou, este crime é muito grave, pois que, não atentando contra a vida de um, atenta contra a vida das instituições democráticas.
O tipo legal estava preenchido, tal como se decidiu em primeira instância.
Improcede a alegação da recorrente também quanto a isso.
E improcede também o pedido alternativo, uma vez que basta ler a decisão para perceber que a pena foi fixada com critério e adequação.
Mas aprofundamos.
Conforme ensina Figueiredo Dias, a fixação da pena deverá obedecer ao critério geral consignado no artigo 71º e ao critério especial previsto no artigo 77º, nº1, ambos do Cód. Penal, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique4, relevando, na avaliação da personalidade do agente.
Ponderando globalmente as circunstâncias atinentes ao crime em causa (cfr. artº 77º nº1, 2ª parte) como acima se deixou, pode chegar-se a duas conclusões: primeira, que o Tribunal a quo ponderou as circunstâncias que devia ponderar (artº 71º do Cód. Proc. Penal), a que estava obrigado a atender, que ficavam além do tipo que estava, como se enfatiza, preenchido; em segundo lugar, que a pena fixada na primeira instância é até benévola para a arguida, tendo a mesma sido beneficiada ainda pela opção feita pelo Tribunal para o nº 1 do artº 360º do Cód. Penal (e não para o nº 3 desse preceito).
Para uma pena alternativa de prisão ou multa, até 3 anos de prisão ou multa entre 60 dias e até 360 dias (arts. 360 e 47º do Cód. Penal), o Tribunal optou pela pena de multa [cumprindo o desiderato do artº 50º do Cód. Penal] e fixou-a exactamente no terço inferior da moldura abstracta, o que implica ter considerado curta a diferença entre a prevenção e a culpa, num crime desta gravidade e que atenta contra a integridade das decisões proferidas pelos Tribunais e, como tal, contra o Estado.
Nesta sequência, o benefício concedido à arguida é já notável, explicado pelo tribunal a quo pela ausência de antecedentes criminais sobretudo, daí se retirando uma prognose muito favorável à mesma.
Atento isto, não havia nada a atenuar ainda mais, uma vez que nenhum elemento se extrai do processo de que resulte a culpa sensivelmente diminuída por parte da arguida.
O Tribunal a quo fez essa ponderação de forma correcta, nada havendo, como tal, a apontar à decisão recorrida.
Nessa conformidade, também, nada a alterar aos decidido, que é de manter.
Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar não provido o recurso interposto por AA, mantendo-se a decisão do Tribunal a quo.
Custas pela recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC’s, a que acrescem os demais encargos legais.
Notifique.
Lisboa, 18 de Junho de 2025
Texto processado e revisto.
Redacção sem adesão ao AO
Hermengarda do Valle-Frias
Cristina Almeida e Sousa
Rui Miguel Teixeira
_______________________________________________________
1. Manual de Processo Civil - 2ª ed., p. 609.
2. O Erro de Descartes, Emoção, Razão e Cérebro Humano, Publicações Europa – América, p. 113.
3. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, vol.II, Ed. Danúbio, Lisboa 1986, p. 279 ss.
4. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Ed. Coimbra - 1993, p. 290 a 292.