DIREITO DE PREFERÊNCIA
PRÉDIOS CONFINANTES
REQUISITOS
EXCEPÇÕES
ÓNUS DA PROVA
REEMBOLSO DE DESPESAS
BENFEITORIAS
Sumário

Sumário: (da responsabilidade do relator):
I – O art. 1380.º, n.º 1, do CC, não exige, como requisito constitutivo do exercício do direito de preferência, a alegação e prova da efectiva exploração agrícola de qualquer dos prédios, bastando-se com a sua aptidão para esse efeito;
II – Impende sobre aqueles contra quem é invocado o direito de preferência o ónus de alegar e provar factos integradores de alguma das circunstâncias previstas no art. 1381.º, als. a) e b), do CPC;
III – O preferente está obrigado a reembolsar o adquirente das despesas feitas com a aquisição (notariais, registais e fiscais), se delas, concretamente, beneficiar, de acordo com a aplicação dos princípios e regras do enriquecimento sem causa, nomeadamente, quando o pagamento dessas despesas se tenha projectado no património do preferente, tornando-o mais valioso, seja pelo seu incremento, seja pela sua não desvalorização;
IV - O adquirente preferido goza do direito ao reembolso das benfeitorias que tenha realizado, nos termos do art. 1273.º do CC, devendo o seu valor ser calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa;
V - Cumpre ao adquirente, que invoca o direito de ser indemnizado por benfeitoria, o ónus de alegar e provar factos que permitam considerar preenchidos os requisitos de umas e outras, bem como que o seu levantamento causa ao prédio um dano significativo e que as mesmas aumentaram o valor do prédio.

Texto Integral

Acordam os juízes na 8.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
1.1. CORTE VELHA – EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS, S.A., instaurou acção declarativa, com processo comum, contra 1) AA e mulher, BB; 2) CC e mulher, DD; 3) EE; 4) FF; 5) GG e marido, HH; 6) II; 7) JJ e mulher, KK 8) LL; 9) MM e 10) NN, pedindo que seja ordenada a substituição do adquirente pela A. no negócio de compra e venda do imóvel que identifica, com efeito retroactivo à data da escritura de compra e venda, mediante o pagamento do respectivo preço, que depositou, e, cumulativamente, que seja ordenado o cancelamento da inscrição registal, cadastral e matricial da titularidade do prédio feita a favor do 10.º R.
Para tanto, alegou, em síntese, que, em 31.05.2022, os 1.º a 9.º RR. venderam ao 10.º R. o prédio rústico de que eram proprietários (descrito na CRP de ... sob o n.º 1924 e inscrito na matriz cadastral sob o art. 55.º da Secção AS), sem que tenham dado à A. a preferência a que a mesma tinha direito, por ser proprietária de terreno rústico contíguo (descrito na CRP de ... sob o n.º 1654 e inscrito na matriz cadastral sob o art. 17.º da Secção AS, com parte urbana inscrita na matriz predial urbana sob os arts. 942.º e 943.º).
1.2. O 10.º R. deduziu contestação e reconvenção, que concluiu nos seguintes termos:
«- Deve ser julgada procedente a exceção dilatória deduzida, considerando inepta a petição inicial, abstendo-se o Tribunal de conhecer do pedido e absolvendo o Réu da instância, ou do pedido, conforme for entendimento do Tribunal; caso assim se não entenda,
- Devem ser julgadas procedentes, por verificadas e provadas, as exceções perentórias de caducidade e a vertida no art.1381º do CC deduzidas, absolvendo-se o Réu do pedido.
Quando assim se não entenda e conheça do mérito da causa,
- Deve a presente ação ser julgada improcedente, por não provada e considerado abusivo o exercício do direito reclamado e, em consequência:
- Ser o Réu absolvido do pedido, com as legais consequências.
Se, por mera hipótese a ação vier a ser considerada total ou parcialmente procedente,
- Deve, porém, ser julgado totalmente procedente e provado o pedido reconvencional deduzido e, por via do mesmo, ser a Reconvinda condenada a pagar ao Reconvinte, para além do preço constante no título de aquisição, o montante de €:13042,06 (treze mil e quarenta e dois euros e seis cêntimos), bem como em juros à taxa legal, até efetivo e integral pagamento, desde a notificação da reconvenção e
- Deve ser reconhecido a favor do aqui Réu, direito de retenção sobre o prédio dos autos, até se ver ressarcido do seu crédito».
1.3. Os 1.ºs, 2.ºs, 3.ª, 5.ºs, 6.ª, 7.ºs, 8.º e 9.ª RR. também contestaram, propugnando pela sua absolvição do pedido, alegando, essencialmente, que o prédio da A. não é usado para fins agrícolas ou conexos e a A. não o pretende utilizar para a agricultura, pelo que existe abuso de direito por parte da mesma, nos termos do art. 334.º do CC, não lhe assistindo o direito de preferir.
1.4. A 4.ª R. contestou, invocando a excepção dilatória da ineptidão da petição inicial e alegando que o prédio da A. não é confinante com o prédio relativamente ao qual pretender exercer a preferência e que a A. não alega que tipo de cultura(s) predomina(m) no seu prédio, o que é cultivado no mesmo e que destino pretende dar ao prédio vendido, constituindo a sua pretensão um caso manifesto de abuso de direito. Termina, pedindo a condenação da A. no pagamento de multa e indemnização a favor dos RR., nos termos do n.ºs1 e 2 do art. 542.º do CPC, por ter deduzido pretensão cuja falta de fundamento sabe existir.
1.5. A A. replicou, pronunciando-se pela improcedência da reconvenção e das excepções invocadas.
1.6. A reconvenção foi admitida, mas logo julgada manifestamente improcedente, decisão que foi revogada por decisão desta Relação de 07.06.2024 (apenso A), que entendeu que os autos deveriam prosseguir «com produção de prova, para se apurar das despesas apontadas pelo recorrente e das benfeitorias, respectiva natureza e custo, conforme alegado nos arts.º 75.º a 78.º da contestação/reconvenção».
1.7. Com dispensa da audiência prévia, foi proferido despacho saneador, julgando-se improcedentes as excepções da petição inicial e da caducidade, fixando-se o objecto do litígio e enunciando-se os temas da prova, sem reclamações.
1.8. Procedeu-se à audiência final, após o que foi proferida sentença, que culminou com o seguinte dispositivo:
«(…) o Tribunal decide:
i) Julgar a acção improcedente, absolvendo os RR. do pedido.
ii) Mais se considera prejudicada a apreciação da reconvenção.
iii) Absolver a Autora como litigante de má fé.
iv) Custas da acção a cargo da Autora – art. 527º CPC.
v) Custas do incidente de litigância de má fé a cargo da Ré OO – art. 527º CPC.
Notifique e registe».
1.9. Inconformada, apelou a A., pedindo a revogação daquela sentença e a sua substituição por outra que «declare a ação totalmente procedente e em consequência, condene os recorridos nos precisos termos pedidos inicialmente», formulando, para tanto, as seguintes conclusões:
«1.ª Incorreu o tribunal a quo em manifesto erro na apreciação da matéria de facto, designadamente do ponto 27 da matéria de facto provada e das alíneas ix) e x) da matéria de facto não provada, assim como procedeu a errada aplicação das normas jurídicas aplicáveis no caso concreto;
2.ª No que concerne à apreciação das alíneas ix) e x), as mesmas deviam ter sido julgadas como provadas, em face das declarações da administradora da recorrente – Cf. minutos 20:19 a 22:55 e 30:38 a 32:40 das suas declarações – bem como do depoimento da testemunha PP – Cf. minutos 1:31:54 a 01:38:56 do seu depoimento – as quais se encontram ainda fundamento no documento junto pela recorrente na réplica;
3.ª Dos referidos meios probatórios, resulta, pois, a existência de um projeto único e inovador no nosso país, desenvolvido em colaboração com a Universidade de Évora, relativo à transplantação de sobreiros, cuja implementação foi estudada para o prédio da recorrente;
4.ª A fundamentação do tribunal a quo, já que o que foi alegado – e provado – não foi a existência de qualquer contrato, sociedade ou negócio formalizado/concluído, mas tão-só a colaboração, as conversações entre as partes envolvidas e o estudo do prédio da recorrente para esse efeito, justificada pelo elevado potencial lucrativo na região, em particular tendo em conta a futura construção do aeroporto, o qual irá implicar a necessidade de abate de sobreiros, sendo o seu transplante uma alternativa viável e geradora de lucros;
5.ª Assim, o facto de à data da celebração do negócio não existir um contrato formalizado, não descaracteriza nem, muito menos, invalida a intenção da recorrente em colaborar neste projeto, pelo que, referindo-se as al. ix) e x) dos factos não provados a uma mera colaboração e demonstrativa de uma intenção concreta, entende-se que os mesmos resultaram provados e como tal, carecem de ser incluídos no elenco de factos provados;
6.ª Tendo ainda em conta que na nossa lei vigora o princípio do consensualismo, isto é, de liberdade de forma, não tendo o tribunal, para decidir o presente pleito, de qualificar as relações jurídicas existentes entre a recorrente, a testemunha PP e a Universidade de Évora.
7.ª O facto da recorrente ter declarado, na escritura de aquisição do seu prédio, celebrada em 1999, que este se destinava a revenda é inócuo, porquanto, nos 24 anos subsequentes não revendeu, nem beneficiou de qualquer isenção fiscal neste âmbito, tendo, em sentido contrário, evidenciado comportamento concludente no sentido de não revender, mas antes arrendando o mesmo para o exercício de actividades conexas com a agricultura e ali mantendo as árvores de fruto pré-existentes;
8.ª Pelo que, também tal argumento fica desprovido de qualquer sentido, não sendo daí possível retirar qualquer intenção de revenda do prédio da recorrente, já que esta, mercê do decurso do tempo, encontra-se caducada e frontalmente contrariada pelo comportamento concludente da recorrente ao longo dos últimos 24 anos;
9.ª Em suma e quanto às alíneas ix) e x) dos factos provados, ficou plenamente demonstrada a existência de relação da recorrente com terceiros, bem como a existência de um acordo consentâneo com a intenção da recorrente em afectar o seu prédio para esse fim, o que, não implicando, atenta a redacção das referidas alíneas, a existência de um negócio formal, nem revelando o comportamento da recorrente qualquer intenção de revenda, carece de ser revisto e alterado em conformidade;
10.ª No que respeita ao ponto 27 dos factos não provados, não pode o ser dado como provado que o prédio da recorrente tem aspecto abandonado, sem cultivo, só com ervas, silvas e mato, na estrita medida em que foi produzida prova em sentido contrário, nomeadamente, quanto à existência de árvores de fruto;
11.ª Com efeito, foram as testemunhas e as partes unânimes no sentido de confirmar que efectivamente existe um pomar de laranjeiras no terreno da recorrente, pomar esse que, tendo sido plantando pelos primitivos proprietários, aina hoje existe e é mantido, vindo a recorrente a colher os frutos ao longo de 24 anos para consumo dos seus administradores – Cf. minutos 19:43 a 20:14 das declarações da administradora da recorrente – Cf. minutos 01:01:16 a 1:01:50 das declarações do R. NN, minutos 42:09 a 42:59 do depoimento da testemunha QQ, minutos 1:38:56 a 1:40:12 do depoimento da testemunha PP e minutos 03:00 a 04:03 do depoimento da testemunha RR;
12.ª A existência de tal pomar, conjugada com a sua manutenção pela recorrente ao longo de 24 anos, assim como o aproveitamento dos frutos, consubstancia atividade agrícola, facto que vem contrariar e afastar o teor do facto constante do ponto 27 dos factos provados, assim impedindo que o mesmo, tal como está redigido, seja dado como provado;
13.ª Nem o artigo 1380.º nem a al. a) do artigo 1381.º exigem o exercício comercial da agricultura, pelo que entrou o tribunal a quo em manifesto excesso ao considerar que, para que exista agricultura no terreno, seria necessária uma afetação comercial;
14.ª Igualmente a fundamentação de Direito feita pelo tribunal a quo carece de revisão, desde logo por, conforme acima exposto, este partir de pressupostos fácticos incorrectos, nomeadamente, no que concerne à prova do facto constante do ponto 27 dos factos provados e à (não) prova dos factos constantes das alíneas ix) e x) dos factos provados;
15.ª Com efeito, caso o tribunal a quo tivesse considerado a existência do pomar de laranjeiras no prédio da recorrente, assim como da colaboração desta no projeto de transplantação de sobreiros, tal implicaria a modificação da decisão quanto à matéria de Direito, designadamente, afastando a aplicação da excepção prevista na al. a) do artigo 1381.º do Código Civil;
16.ª Porquanto verificada afectação agrícola, quer directamente através da manutenção e aproveitamento do pomar e da participação do projecto de natureza florestal, quer indirectamente através dos sucessivos arrendamentos para fins agrícolas (cortiça e alfaias agrícolas) está verificado muito mais do que a lei exige, que é a simples aptidão agrícola;
17.ª É a diferente entre potência (aptidão) e acto (cultivo real) a qual, completamente, escapa à sentença recorrida;
18.ª Olvida ainda o tribunal a quo que, à data da venda objecto dos presentes autos (2022) a única utilização permitida para o prédio da A. e para o prédio objecto da alienação era a utilização agrícola, não sendo permitida qualquer outra utilização pelo PDM vigente – Cf. Docs. 1 a 3 juntos com a petição inicial, conjugado com o teor do e-mail junto pelos recorridos em 3.10.2024 e referido no pronto 34 dos factos provados a contrario;
19.ª A referida prova documental demonstra que a área onde se localizam ambos os terrenos foi objecto, em 2024, de uma alteração do PDM de ... (D. L. 10/24) o qual veio reclassificar o solo rústico em solo urbano para fins industriais, preenchidas que estivessem as condições previstas no artigo 27.º, n.º 7 do PDM de ...;
20.ª E ainda assim, desde que cumpridas as condições e requisitos ali fixados e durante os próximos 5 anos.
21.ª Não cumpridas as condições mão há alteração do uso.
22.ª Não preenchidos os requisitos não há alteração do uso.
23.ª Não sendo cumpridas as condições e preenchidos os requisitos durante os próximos 5 anos, caduca a possibilidade agora vigente.
24.ª AGORA VIGENTE.
25.ª Não vigente em 2022.
26.ª Ou seja, a contrario antes de 2024, nomeadamente, em 2022, ambos os prédios apenas podiam ser destinados a fins agrícolas, pelo que, nunca podia, fosse quem fosse o comprador, dar-lhe utilização diferente;
27.ª Sendo a agricultura a única afectação permitida, sempre os prédios terão que ser classificados como rústicos, nomeadamente o prédio da recorrente, já que todas as construções nele implantadas são de mero apoio à agricultura e nunca vice-versa, sendo o uso actualmente permitido pelo PDM totalmente irrelevante, porquanto, o que releva é o quadro jurídico existente à data em que a recorrente devia ter exercido do seu direito de preferência e não o actual;
28.ª Igualmente não acerta a sentença quando decide que nunca a recorrente podia afectar o prédio à agricultura, por não ter esse objecto social, incorrendo em flagrante erro jurídico;
29.ª O princípio da especialidade das pessoas coletivas encontra-se consagrado nos artigos 160.º do Código Civil e 6.º do Código das Sociedades Comercial, sendo certo que, da conjugação destes dois preceitos legais e se atentarmos em particular ao disposto no n.º 7 do referido artigo 6.º, resulta que o objecto social não determina ou delimita a capacidade da sociedade, sendo admissível a prática de actos não englobados no objecto social;
30.ª Por outro lado, importa notar que ninguém precisa ser agricultor para que exista actividade agrícola em propriedade sua, já que, pode arrendar para fins agrícolas, para o que a junção de prédios confinantes é favorável;
31.ª De onde resulta que o objecto social da recorrente em nada releva para aferir da real afectação do prédio à data da celebração do negócio em causa nos autos;
32.ª Por fim e quanto à interpretação do disposto na al. a) do artigo 1381.º do Código Civil, note-se que a expressão adotada pelo legislador é “se destine a algum fim que não seja o cultivo”, sendo certo que daqui não decorre qualquer obrigatoriedade do prédio estar efetiva e totalmente cultivado, nem que tenha que ser o seu proprietário a realizar esse cultivo, mas antes que é necessária a existência de uma mera aptidão agrícola;
33.ª A este propósito, tem considerado a jurisprudência (acima exemplificada) que basta que exista essa aptidão agrícola e que não seja possível alterar o respetivo uso para que seja afastada a excepção prevista no artigo 1381.º, al. a) do Código Civil;
34.ª In casu, não só há aptidão agrícola, como ainda era, em 2022, impossível afectar o terreno para outro fim, mercê do PDM em vigor, acrescendo ainda o facto de ser efectivamente intenção da recorrente explorar o prédio para fins agro-florestais, encontrando-se, como já visto, a desenvolver diligências nesse sentido;
35.ª Encontrando-se, assim, reunidos todos os pressupostos legais para o reconhecimento do direito de preferência da A., previsto pelo artigo 1380.º do Código Civil e da sua violação pelos recorridos vendedores;
36.ª Finalmente, quanto às considerações relativas à aplicação do instituto do abuso de direito tecidas pelo tribunal a quo, não podem as mesmas proceder, porquanto:
a. Conforme acima alegado, a expressão relativa à revenda ínsita na escritura de compra e venda do prédio da recorrente, outorgada em 1999, ficou totalmente esvaziada pelo comportamento concludente desta no sentido de, durante 24 anos, não vender;
b. Não é verdade que a recorrente tenha gozado de qualquer benefício fiscal, pois há muito se encontra ultrapassado o prazo legal para a revenda, plasmado no artigo 7.º do Código do IMT, pelo que é manifesto que pagou o imposto;
c. O objecto social da recorrente em nada releva para o exercício da actividade agrícola, já que esta, não só pode praticar actos fora do seu objecto social, como ainda pode exercer tal actividade de forma indireta, através da celebração de arrendamentos para o efeito;
37.ª Em suma, não assiste razão ao tribunal a quo, mostrando-se preenchidos todos os pressupostos factuais e jurídicos que permitem a aplicação do direito de preferência dos confinantes ao caso dos autos, o qual carece de ser reconhecido superiormente».
1.10. Os 1.ºs, 2.ºs, 3.ª, 5.ºs, 6.ª, 7.ºs, 8.º e 9.ª RR. contra-alegaram, defendendo a manutenção da sentença recorrida, com base nas seguintes conclusões:
«I- Os RR acompanham a interpretação que o tribunal a quo efectuou da prova assente e da aplicação do direito;
II- Não se verifica qualquer erro na apreciação da prova;
III- Na perspectiva dos ora RR foi correctamente julgada e fundamentada a matéria de facto referenciada na sentença recorrida à qual se adere na íntegra;
IV- Os RR. não concordam com a interpretação efectuada pela A quanto aos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e ainda os meios probatórios;
V- O legislador o que procurou com a presente lei de preferência foi reduzir o minifúndio pelo emparcelamento e dessa forma aumentar a produtividade agrícola.
VII- E actividade agrícola entende-se como produção e cultivo designadamente de hortícolas, frutas, floresta, cereais, etc.
VIII- Armazenar cortiça ou alfaias numa propriedade não é seguramente actividade agrícola
IX- Seria estranho que uma empresa com o objecto social de uma imobiliária sem qualquer relação com a agricultura, que não cultivou de facto a propriedade, que os seus legais representantes não sendo conhecidos por exercer qualquer actividade agrícola, mas sim activiadade do comércio automóvel pudesse exercer o direito de preferência de prédio confinante com fundamento no exercício de actividade agrícola.
X - A A não está proibida por vicio de ilegalidade de fazer da sua propriedade depósito de cortiças, de máquinas agrícolas ou de arrendar os referidos armazéns para essa actividade mas não são essas actividades que lhe concedem o direito ao emparcelamento.
XI- O emparcelamento parte do princípio que cultivar uma área continua de 50 hectares de cenoura é mais rentável economicamente que cultivar pequenas parcelas de cenouras descontinuas de 50 hectares. É esse o racional da lei.
XII- O legislador não atende em saber qual a área de um depósito de cortiça ou de máquinas e da sua rentabilidade económica.
XIII- A A pretende conclui que o fim agrícola de um prédio se pode determinar pela existência de um pequeno pomar com 15 a 20 laranjeiras conforme o confirmado pela testemunha QQ minuto 42.09 a 42.59
XIV- Para se determinar se o prédio tem um destino agrícola há que determinar a afectação essencial económica do prédio.
XV- No caso em apreço a propriedade da A tem 28.500 m2, cfr facto 1 dado como provado, e o pomar tem 15 a 20 árvores, claramente um pomar que não representa a actividade económica dominante nesse prédio.
XVI- Esteve bem o tribunal a quo ao concluir que : “ Assim, na óptica do Tribunal, preenchida a excepção prevista no art. 1381º, alínea a) CC, não utilizando a Autora, de forma efectiva, o prédio confinante de que é proprietária, para um fim de cultura, a mesma não detinha legalmente direito de preferência, devendo, por via disso, improceder a presente acção
XVII - A sentença não violou qualquer noma legal ou princípio de direito.
XVIII- Impõe-se assim a este Venerando Tribunal a manutenção na sentença nos exactos termos».
1.11. O 10.º R. também contra-alegou, defendendo a manutenção da sentença recorrida, alinhando as seguintes conclusões:
«1ª- Não deve ser alterado o sentido dado ao ponto 27 dos factos tidos como provados na sentença, aqui posto em crise pela Rte.;
2ª- Nem o sentido dado às alíneas ix e x da matéria de facto tida como não provada, uma vez que nada de novo a Rte. trouxe aos autos, não manifestando a douta sentença qualquer erro na apreciação da matéria de facto;
3ª- Assistindo ao juiz reconhecida liberdade de apreciação da prova, cabe-lhe, no entanto, ponderar o resultado de toda a produzida nos autos, designadamente testemunhal e documental, no sentido de obter uma decisão não só justa, como compatível com as regras da ciência, experiência e lógica das coisas, para além de em conformidade com as disposições legais que tutelam a prova;
4ª- De acordo com a prova produzida e sua análise crítica, não poderia ser imposta, dada a ausência de erro, decisão diversa, não estando desta forma ao alcance deste douto Tribunal decidir em sentido contrário, estando a interpretação dada aos factos de acordo com uma imaculada ponderação e livre convicção pessoal do julgador;
5ª- De igual premissa e rigor releva o sentido do Direito aplicado aos factos. Outra análise ou subsunção destes às normas aplicáveis tenderia a dar uma incorreta gestão da Justiça, contrariando o sentido do Direito e entendimento que sobre esta matéria amiúde a jurisprudência e doutrina se debruçam e manifestam;
6ª- Quem invoca um direito cabe-lhe fazer a prova dos factos constitutivos do mesmo (art.342º, n.º1 do Cód. Civil), pelo que à Autora/Apelante cabia a prova dos factos por si alegados, com vista à eventual procedência da ação, o que não satisfez;
7.ª- Quanto aos Réus, por sua vez, lograram, para além do mais, demonstrar à saciedade a verificação da exceção vertida na alínea a) do artigo 1381º do Cód. Civil;
8ª- Terá assim sido feita uma correta interpretação e aplicação da lei aos factos, não havendo, por conseguinte, qualquer erro na apreciação da matéria de facto ou das normas jurídicas aplicáveis, não existido, por conseguinte, qualquer violação de disposições legais, mormente das normas vertidas nos arts.1380º e 1381º do Cód. Civil, pois a decisão está de acordo com o seu legítimo entendimento, em perfeita consonância não só com a matéria alegada e/ou provada (ou não) nos autos, como dentro da abrangência da lei, à luz da doutrina e jurisprudência;
9ª- Subsidiariamente, ainda que assim se não entendesse, o que se não concede, sempre ocorreria a verificação da exceção perentória do abuso do direito, conforme também reconhecido na sentença;
10ª- A sentença deve assim ser mantida, porquanto não padecer de qualquer erro, contradição, má interpretação, deficiência ou obscuridade que a invalide».
1.12. Já nesta Relação, foi proferido despacho com o seguinte teor:
«Tendo em conta as várias soluções plausíveis da questão de direito, afigura-se possível que esta Relação venha a ter que conhecer do mérito do pedido reconvencional deduzido pelo 10.º R., em substituição do tribunal recorrido (que considerou o seu conhecimento prejudicado pela solução que deu ao litígio).
Assim sendo, e a fim de evitar decisões-surpresa, ao abrigo do disposto no art. 665.º, n.º 2 do CPC, determino a notificação das partes para, querendo, em 10 dias, alegarem o que tiverem por conveniente quanto a tal questão (cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., 2022, p. 387 e segs.)».
1.13. O reconvinte/recorrido NN, pronunciou-se, defendendo que «Caso, por mera hipótese académica vier eventualmente a final o Tribunal a se pronunciar de forma definitiva pela procedência da ação, deve, porém, ser julgado totalmente procedente e provado o pedido reconvencional deduzido e, por via do mesmo, ser a Autora/Reconvinda condenada a pagar ao Réu/Reconvinte, para além do preço constante no título de aquisição, o montante de €:13 042,06 (treze mil e quarenta e dois euros e seis cêntimos), bem como em juros à taxa legal, até efetivo e integral pagamento, desde a notificação da reconvenção» e «Reconhecido a favor do aqui Réu/Recorrido, direito de retenção sobre o prédio dos autos, até se ver ressarcido do seu crédito».
1.14. A reconvinda/recorrente CORTE VELHA – EMPREENDIMENTOS IMOBILIÁRIOS, S.A., defendeu que «…no caso de ser concedido provimento ao recurso interposto pela recorrente, deverá o pedido reconvencional ser julgado totalmente improcedente e em consequência, ser a A. reconvinda absolvida de todo o peticionado», com base nos fundamentos por si sumariados nas seguintes conclusões:
«1.ª) Não assiste direito ao R. reconvinte, ora recorrido, a ser indemnizado nos valores peticionados em sede de pedido reconvencional, referentes a custos com a escritura, registos, impostos e trabalhos de desmatação, limpeza e melhoramentos no prédio.
2.ª) No que respeita às despesas com a escritura, registo e respetivos impostos, as mesmas terão de improceder por inexistir qualquer fonte da obrigação indemnizatória por parte da A. reconvinda.
3.ª) A responsabilidade contratual está excluída porquanto nunca existiu qualquer contrato válido e eficaz entre o R. reconvinte e a A., sendo esta última totalmente alheia à relação contratual entre os RR. vendedores e o R. reconvinte.
4.ª) Quaisquer despesas realizadas por conta do contrato de compra e venda deverão, pois, ser imputadas a quem era parte no contrato e sobre os quais impedia deveres específicos daí decorrente, mormente aos RR. vendedores.
5.ª) Também a responsabilidade extracontratual está excluída como fonte da obrigação de indemnizar, porquanto não se verifica a prática de qualquer facto ilícito por parte da A.; pelo contrário: a eventual substituição na titularidade do prédio advém do exercício de um direito legítimo legalmente consagrado, não podendo qualquer responsabilidade lhe ser assacada a este título.
6.ª) No mais, igualmente tal obrigação poderá ser imputada a título de enriquecimento sem causa, uma vez que inexistiu qualquer aumento patrimonial ou poupança de despesas para A. do pagamento das referidas despesas pelo R. reconvinte, já que a A., na mesma e no caso de procedência do pedido principal, terá que suportar todos os encargos e impostos com a transmissão da propriedade, de forma independente e autónoma, já se encontrando tais valores depositados à ordem dos presentes autos.
7.ª) Em suma, o pagamento destas despesas e impostos pelo R. reconvinte é total e completamente indiferente e inútil para a posição da A.
8.ª) Já no que concerne às despesas com os trabalhos de desmatação, limpeza e melhoramentos no prédio, não poderão as mesmas proceder, porquanto não logrou o R. reconvinte provar – como lhe competia – os concretos valores que despendeu a este título, que é elemento essencial.
9.ª) Em segundo lugar, igualmente não logrou este provar quando foram os mesmos realizados e concluídos, e, por conseguinte, que se encontrava de boa-fé, uma vez que, entre o requerimento submetido junto da autoridade municipal e a citação no âmbito dos presentes autos, decorreu apenas 1 mês, não sendo crível que os trabalhos tenham sido realizados e concluídos em momento anterior à citação.
10.ª) Em terceiro e último lugar, importa ainda levar em consideração que, resultando provado que o R. reconvinte se dedica à atividade da construção civil e que era sua intenção afetar o prédio à mesma, os trabalhos foram realizados com o exclusivo propósito de lá instalar um estaleiro e depósito de materiais, o que fez.
11.ª) Consequentemente, verifica-se que este retira, desde meados de 2022, benefício económico substancial dos trabalhos realizados, correspondentes à utilidade económica de tal utilização (estaleiro e depósito de materiais) no âmbito da sua atividade comercial.
12.ª) Na eventualidade de ser julgado procedente o pedido principal, verifica-se, pois, que as despesas realizadas pelo R. reconvinte com as referidas benfeitorias encontram-se totalmente compensadas e ressarcidas pelo benefício económico que o R. reconvinte retira das mesmas, desde meados de 2022, para o exercício da sua atividade profissional».
1.15. Colhidos os vistos, importa decidir.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Decorre do disposto nos arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do CPC, que as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pág. 105 a 106).
Assim, atendendo às conclusões supra transcritas, as questões essenciais a decidir consistem em saber:
a) se deve ser alterada a matéria de facto provada e não provada nos pontos impugnados;
b) se assiste à A. o direito de preferência invocado e, em caso afirmativo, se o seu exercício não é abusivo;
c) se o 10.º R./reconvinte tem direito ao reembolso, por parte da A., das despesas que suportou com a aquisição do prédio e das benfeitorias nele realizadas.
III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
3.1. A sentença sob recurso considerou provada a seguinte matéria de facto:
«1) A A. é legítima possuidora e proprietária do prédio rústico sito em ..., com a área total de 28.500 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... com o nº ..., da freguesia de ... e inscrito na matriz cadastral sob o artigo ...º da secção ..., com parte urbana inscrita na matriz predial urbana sob os artigos 942.º, 943.º e 946.º da mesma freguesia, conforme ap. n.º 2 de 1999/06/30.
2) Os 1.º a 9.º RR. eram, até 31 de Maio de 2022, legítimos possuidores e proprietários do prédio rústico sito em ..., com área total de 9.750 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete com o n.º 1924 da freguesia de ... e inscrito na matriz cadastral sob o artigo 55.º da secção "AS” da mesma freguesia, na qualidade de herdeiros de SS.
3. O prédio da A. confina a norte com o prédio anteriormente pertencente aos 1 .º a 9.º RR. e identificado em 2).
4. A Autora tem como objecto social, “compra, venda e administração de imóvel e revenda dos adquiridos para esse fim”.
5. O presidente do conselho de administração da A., TT, foi contactado telefonicamente por QQ, mediador imobiliário da sociedade Imoromão, Lda, o qual transmitiu ter para venda o terro identificado em 2) com o da A., pertencente aos 1.º a 9.º RR., pelo preço de cerca de € 70.000,00.
6. Posteriormente, e após ter a Autora informado verbalmente não ter interesse, e pelo menos 15 dias depois, ocorreram duas reuniões presenciais, na qual o ou os administradores da Autora, reuniram com o referido mediador imobiliário num pequeno contentor de promoção imobiliária.
7. Tendo este informado que havia outro interessado no terreno que teria feito proposta de compra pelo preço de € 65.000,00.
8. Perante esta proposta, os administradores da A. expressa e imediatamente disseram ao mediador imobiliário que, por esse preço, pretendiam preferir na compra.
9. Na segunda reunião presencial estando presente outro mediador imobiliário, UU, os legais administradores procuraram obter novas informações sobre o estado do negócio.
10. Nesse momento, foram informados da celebração de um contrato promessa de compra e venda do citado prédio, pelo preço de € 65.000,00.
11. Os administradores da A. voltaram a reiterar a sua vontade em adquirir o terreno pelo preço convencionado, e que queriam exercer a sua preferência.
12. Veio a ser contactado o Réu AA, o qual veio a declarar que já se tinha comprometido com o comprador, o Réu NN, e manteria a sua palavra.
13. Sem notícias, em 25 de Maio de 2022, a administradora da A. remeteu e-mail à imobiliária, conforme documento de fls. 14 dos autos e cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos
14. Ao qual a imobiliária respondeu que iria fazer chegar uma cópia do referido e-mail aos vendedores, “de modo a mais uma vez reforçar a vossa intenção”.
15. Desde essa data, os administradores da A. nunca mais foram contactados, nem pela imobiliária, nem pelos 1.º a 9.º RR.
16. No dia 31 de Maio de 2022, foi outorgada escritura pública de compra e venda do prédio pela qual os 1.º a 9.º RR. venderam ao 10.º R., pelo preço de € 65.000,00.
17. A Autor tomou conhecimento desta escritura em Junho de 2022.
18. Os contactos para a acordo de mediação foi realizado pelo Réu AA.
19. Os RR FF e VV não tiveram qualquer intervenção no negócio de mediação ou nas condições acordadas, apenas assinando o contrato promessa e a escritura de compra e venda.
20. O prédio identificado em 2) foi no passado utilizado para efeitos agrícolas, designadamente para vinha, o que não sucede há largos anos.
21. A Autora e seus legais representantes não são conhecidos por exercerem qualquer actividade de exploração agrícola.
22. O legal representante da Autora, TT, é conhecido no âmbito do comércio automóvel.
23. O prédio identificado em A) nunca foi pela Autora cultivado ou semeado, nem a mesma comercializou qualquer produto agrícola daí proveniente.
24. O prédio da Autora dispõe de construções, como seja um armazém e casas anexas.
25. A Autora manteve, no passado, o prédio como depósito ou parqueamento de viaturas, mormente pesadas e máquinas agrícolas.
26. Mais foi usado para depósito, mormente de cortiça, actividade explorada por terceira pessoa, o que se manteve durante período não aferido, mas por largos anos.
27. Manteve a Autora o prédio identificado em 1) com aspecto abandonado, sem cultivo e com ervas, silvas e mato.
28. O prédio da Autora manteve mormente à data da venda do prédio identificado em 2), uma placa com a identificação de uma agência imobiliária e com o contacto telefónico respectivo.
29. O Réu NN exerce desde novo a actividade de empreiteiro de construção civil, dedicando-se em exclusivo a tal actividade.
30. O Réu NN pretendia, com a aquisição do prédio identificado em 2) transferir o seu “estaleiro” e depósito de materiais para as suas obras, bem como as suas viaturas, mais tendo a intenção de construir um armazém para melhor os acondicionar.
31. Antes da aquisição o Réu NN dirigiu-se à Câmara Municipal de ..., com QQ, para tentar perceber o que poderia ser construído naquele prédio, tendo-lhe sido dito de forma informal que poderia ser autorizado a construir um armazém.
32. O Ré despendeu com a aquisição do prédio identificado em 2): i) € 545,06, referente à escritura pública de compra e venda; ii) € 3250,00, referente a IMT; iii) € 8727,00, referente a imposto de selo.
33. O Réu NN procedeu ainda à desmatação, limpeza e melhoramentos como colocação de manilhas na vala, maquinaria, preparação para saneamento e electricidade.
34. A CM de ... veio remeter a informação que consta do email de 2.10.2024, fls. 262 e ss e cujo teor se dá por reproduzido».
3.2. A sentença sob recurso considerou não provada a seguinte matéria de facto:
«i) Aquando do primeiro contacto telefónico da imobiliária, pelo legal representante da Autora foi dito estar interessado na aquisição do prédio identificado em 2).
ii) Quando o Réu AA declarou pretender manter a venda a favor do 10º R, NN, o vendedor aconselhou a cumprir os trâmites legais, atendendo à vontade expressa do exercício de preferência por parte da A.
iii) A Autora manteve o prédio identificado em 1) à venda na imobiliária ERA.
iv) A Autora pretendia revender o prédio identificado em 1).
v) O valor dos trabalhos realizados pelo Réu NN no prédio identificado em 2) após a sua aquisição ascendeu a € 8.764,00.
vi) Dentro do armazém edificado no prédio 1), encontram-se armazenadas alfaias agrícolas.
vii) A Autora sempre quis afectar o prédio identificado em 1) à actividade agrícola.
viii) A Autora deu início à cultura agrícola no prédio identificado em 1), a qual fora planeada mas veio a atrasar-se devido às vicissitudes da pandemia bem como pela dificuldade em encontrar mão de obra.
ix) A Autora encontrava-se a colaborar com privados no âmbito de um projeto de financiamento europeu em parceria com a Universidade de Évora, de proteção da cultura arvense autócne, para um projeto de transplantação de árvores.
x) Estando a ser estudado há algum tempo a utilização do terreno da Autora para esse fim».
IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
4.1. Comecemos pela impugnação da decisão relativa à matéria de facto.
4.1.1. Como é consabido, o regime processual vigente restringe a possibilidade de revisão da matéria de facto a questões de facto controvertidas, relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do recorrente, admitindo-se, apenas, a reapreciação de concretos meios probatórios relativos a determinados pontos de facto impugnados.
Rejeitaram-se, desta forma, quer soluções maximalistas que determinam a repetição de julgamentos ou a reapreciação de todos os meios de prova anteriormente produzidos, quer a possibilidade de recursos genéricos contra a decisão de facto (cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 7.ª ed., 2022, p. 194 e segs.).
Assim, versando o recurso sobre a decisão relativa à matéria de facto, o art. 640.º do CPC estabelece que o recorrente deve, obrigatoriamente, indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões) e, fundando-se a impugnação em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, especificar, na motivação, aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos, devendo, ainda, consignar, na motivação do recurso, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos (cfr. Abrantes Geraldes, Ob. Cit., p. 197 e 198).
No caso dos autos, a recorrente considera que o facto vertido no n.º 27 deve ser dado como não provado e que os factos constantes das als. ix) e x) dos factos não provado devem ser dados como provados.
Tais factos têm a seguinte redacção:
«27. Manteve a Autora o prédio identificado em 1) com aspecto abandonado, sem cultivo e com ervas, silvas e mato».
«ix) A Autora encontrava-se a colaborar com privados no âmbito de um projeto de financiamento europeu em parceria com a Universidade de Évora, de proteção da cultura arvense autócne, para um projeto de transplantação de árvores».
«x) Estando a ser estudado há algum tempo a utilização do terreno da Autora para esse fim».
A recorrente cumpriu, suficientemente, os ónus de impugnação referidos, pelo que cumpre conhecer do mérito do recurso.
4.1.2. No que respeita ao n.º 27 dos factos provados, a recorrente defende que das declarações de parte da legal representante da A., das declarações de parte do 10.º R. e dos depoimentos das testemunhas QQ, PP e RR decorre a existência de um pomar de laranjeiras no prédio da recorrente, o que, conjugado com a sua manutenção pela recorrente ao longo de 24 anos e com o aproveitamento dos respectivos frutos, consubstancia actividade agrícola (frutícola), realidade que contraria e afasta o ponto 27 dos factos provados (cfr. conclusões 10.ª a 12.ª).
A respeito do n.º 27 dos factos provados, a sentença recorrida considerou que foram essenciais «…os depoimentos de QQ, RR e WW, todos moradores ou com exploração na zona, conhecedores da área há largos anos/décadas, e que esclareceram de forma clara, escorreita e consentânea o aspecto e a utilização (ou não utilização) dos dois prédios».
Ora, é certo que das declarações e depoimentos referidos e citados pela recorrente resultou que existem umas laranjeiras no prédio da recorrente, em número não apurado (apenas a testemunha QQ avançou o número de 15 a 20 laranjeiras, mas fê-lo de forma conjectural, deixando claro que não sabe ao certo). No entanto, a existência dessas laranjeiras e até o alegado aproveitamento dos seus frutos para consumo próprio não contraria, nem afasta, contrariamente ao pretendido pela recorrente, o facto n.º 27, posto que um prédio pode ter algumas laranjeiras e, ainda assim, ter um “aspecto abandonado, sem cultivo e com ervas, silvas e mato”.
Tal como se refere na sentença recorrida «a legal representante, XX, manteve sobre este segmento um discurso mais evasivo e titubeante, pretendendo dar destaque a um pomar, que veio a verificar-se ser diminuto (face á dimensão do prédio), não ser para exploração agrícola, já existir ao tempo da aquisição e tratar-se de um laranjal».
Temos, pois, que a sentença recorrida valorou essas declarações, no que concerne à afirmação sobre a existência de um pomar, mas entendeu que as mesmas não abalavam a realidade que descreveu no n.º 27 dos factos provados, decorrente, como se referiu, dos depoimentos de QQ, RR e WW, que revelaram, sobre esta matéria, uma razão de ciência consistente e segura e depuseram de forma forma clara, escorreita e consentânea.
Repare-se que a recorrente não propugna pelo aditamento aos factos provados de um facto relativo à existência das laranjeiras e ao seu aproveitamento, limitando-se a invocar essa existência como argumento demonstrativo de erro na apreciação da matéria de facto quanto ao ponto 27, o que não procede, por, como se viu, estarmos perante factos ou realidades perfeitamente compatíveis.
Improcede, pois, o recurso nesta parte.
4.1.3. No que concerne às als. ix) e x) dos factos não provados, entende a recorrente que tal factualidade foi confirmada pelas declarações de parte da legal representante da A., pelo depoimento da testemunha PP e pelo documento junto com a réplica sob o n.º 1 (cfr. conclusões 1.ª a 9.ª).
A sentença recorrida fundamentou a sua decisão, quanto aos pontos de facto mencionados, da seguinte forma:
«Quanto ao projecto com a Universidade de Évora, [a legal representante, XX] foi igualmente pouco consistente, aludindo que o projecto ficou parado porque seria necessário mais terreno e o que está em causa nos autos ter sido vendido.
A testemunha YY, arrolado pela Autora, confirmou ter mantido parceria com a Universidade de Évora, explicitando de forma genérica o projecto, mas admitiu que tal projecto já cessara e o objectivo seria carrear o know-how adquirido e as “suas máquinas” e fazer novo projecto em parceria com a Autora. Todavia, quanto aos contornos desse negócio o seu discurso foi mais incerto e menos seguro, vindo a declarar tratar-se ainda de “acordo de cavalheiros” ou “pre-entendimento”, em que a Autora “entraria” com os terrenos.
Ora, por outro lado, os documentos apresentados pela Autora – fls. 129 verso e ss, relacionados com o projecto então acordado com a Universidade de Évora – datado de 2015, e que não em concreto com o invocado projecto da Autora.
Verifica-se, assim, que inexistia qualquer projecto minimamente consistente ou formalizado.
De referir que na escritura de aquisição da Autora referente ao prédio identificado em 1), a Autora declarou que a compra seria para “revenda” o que não seria consentâneo com o projecto referenciado ou com o alegado destino “agrícola” por banda da Autora.
Assim, deu-se como não provado o elencado sob as alíneas vii) a xi».
Vejamos.
Das declarações de parte da legal representante da A. e do depoimento da testemunha PP (que disse ser industrial fabricante de máquinas, nomeadamente, para a indústria da cortiça) decorreu, apenas, que a A., o referido PP e a Universidade de Évora mantiveram contactos e conversas sobre um projecto de transplantação de árvores tendo em vista a eventual utilização do terreno da A., mas já não que tenham colaborado (o que tem o sentido de “trabalhar ou produzir algo em conjunto”, “participar em obra colectiva”, “agir com outrem para obtenção de determinado resultado”) nesse âmbito ou no âmbito de um projecto de financiamento europeu e que estivesse a ser estudada a utilização do terreno da A. para esse fim.
Com efeito, a legal representante da A. limitou-se a falar em “negociações” com uns “privados” (o engenheiro PP) para, em (eventual) parceria com a Universidade de Évora, com quem afirmou ter tido algumas reuniões, “montarmos uma situação de transplante de árvores, nomeadamente, sobreiros”. Não confirmou, portanto, que a A. estivesse a “colaborar”, no sentido referido, com aquele privado e/ou com a Universidade de Évora no âmbito de um qualquer projecto relacionado com o transplante de árvores, mas, apenas, que estava a ponderar o seu interesse noutras formas de rentabilização do seu prédio que lhe foram apresentadas. Das mesmas declarações resultou que as aludidas negociações nunca chegaram a ser concluídas e, portanto, que não existiu qualquer colaboração efectiva, tudo se tendo situado no campo das meras ideias, conversações e prospecções, constituindo, por conseguinte, a colaboração futura algo incerto, contigente ou condicional.
De resto, ainda que se pudesse ter por seguro que era intenção e interesse da A. colaborar com privados e/ou com a Universidade de Évora para implementação de um projecto de transplante de sobreiros, como pretende a recorrente, o certo é que a al. ix) dos factos não provados não se refere às intenções da A. (nem foi isso o alegado), mas a uma colaboração efectiva, que, como se disse, a legal representante da A. não confirmou (a mesma pode ter explicado, ainda que de forma vaga, a sua motivação subjacente ao projecto, como defende a recorrente, mas não confirmou a efectiva colaboração alegada na réplica).
Também a testemunha PP limitou-se a confirmar ter apresentado à A. a ideia de desenvolverem, em parceria, uma empresa para levar a cabo um projecto de transplante de sobreiros no terreno da A., mas dele não decorre que tenha havido qualquer colaboração ou sequer qualquer acordo ou entendimento (fosse ele formal ou, meramente, consensual) no sentido da sua implementação.
O documento n.º 1 junto com a réplica, datado de 20.11.2015, é relativo a um “Protótipo e Estudo de Metodologia Certificada Associada à Transplantação de Árvores”, denominado “Treemover”, cuja autoria e proveniência se desconhece. Tem aposto o nome de várias entidades, mas não o da A./recorrente, e dele não consta qualquer referência ou ligação aos prédios dos autos.
Do referido documento pode resultar, como pretende a recorrente, a existência de um projecto e a intervenção da Universidade de Évora no mesmo, mas não já a colaboração e estudo que vêm alegados e que são referidos nas als. ix) e x). Por conseguinte, desse documento não se extrai que tenha existido ou sequer que possa vir a existir uma colaboração da A./recorrente num projecto de financiamento europeu de proteção da cultura arvense ou de transplantação de árvore e, muito menos, que nele se preveja a utilização do terreno da A./recorrente para o efeito.
Enfim, a prova produzida não permite, com a segurança necessária, ter por certa a factualidade vertida nos pontos ix) e x) dos factos não provados.
E, assim sendo, importa concluir que o tribunal a quo não violou qualquer regra de direito probatório na apreciação dos meios de prova, antes tendo procedido a uma análise conjugada, crítica e exaustiva de toda a prova produzida, observando e aplicando as normas legais, os princípios e as regras da racionalidade, da lógica e da experiência comum que se impunham.
Não podemos esquecer-nos que, de acordo com o disposto no art. 607.º, n.º 5 do CPC o «juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto», com exclusão, apenas, dos factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, bem como daqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
O princípio da livre apreciação da prova impõe que o julgador proceda a uma valoração de cada meio de prova produzido, interligando-o com os demais elementos probatórios que constem dos autos, socorrendo-se dos conhecimentos científicos adquiridos e das regras de experiência comum da vida (cfr. Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, Conceito e Princípios Gerais à luz do Código Revisto, Coimbra, 1996, p. 157 e segs., e Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, II, p. 209).
A prova é, assim, apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, com recurso às regras da experiência e critérios de lógica. Neste sentido, escreve Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Reimpressão, 1993, p. 384, que «segundo o princípio da livre apreciação da prova o que torna provado um facto é a íntima convicção do juiz, gerada em face do material probatório trazido ao processo (bem como da conduta processual das partes) e de acordo com a sua experiência de vida e conhecimento dos homens; não a pura e simples observância de certas formas legalmente prescritas».
A prova idónea a alcançar um tal resultado é a prova suficiente, isto é, a que conduz a um juízo de certeza jurídica (e não uma certeza absoluta): a prova visa, apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto.
Tal não significa que a livre apreciação da prova se reconduza a arbitrária apreciação da prova. Na verdade, o julgador tem que identificar os concretos meios probatórios em que baseou a sua convicção, explicitando as razões justificativas da sua opção em face, nomeadamente, dos meios de prova de sinal oposto relativos ao mesmo facto (referindo, por exemplo, por que motivo deu mais crédito a uma testemunha do que a outra; por que razão se convenceu mais da veracidade da versão relatada por uma parte em detrimento da outra; por que motivo não deu como provado certo facto apesar de o mesmo ser referido em vários depoimentos, etc.). E, a este respeito, por referência a certo depoimento e a propósito do crédito que merece ou não, o juiz aludirá ao modo como o depoente se comportou em audiência, como reagiu às questões colocadas, às hesitações que teve ou não teve, à naturalidade e tranquilidade que teve ou não (vide Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 325).
É, por isso, comumente aceite que o juiz da 1ª Instância, perante o qual a prova é produzida, está em posição privilegiada para proceder à sua avaliação, e, designadamente, detectar no comportamento das testemunhas e das partes elementos relevantes para aferir da espontaneidade e credibilidade dos depoimentos, o que, frequentemente, não transparece da respectiva gravação.
Conforme se escreveu, lapidarmente, no acórdão da RC de 02.04.2019, in www.dgsi.pt «estando em discussão a matéria de facto nas duas instâncias, nada impede que o tribunal superior, fundado no mesmo princípio da livre apreciação da prova, conclua de forma diversa do tribunal recorrido, mas para o fazer terá de ter bases sólidas e objectivas. Não se pode olvidar que existe uma incomensurável diferença entre a apreciação da prova em primeira instância e a efectuada em tribunal de recurso, ainda que com base nas transcrições dos depoimentos prestados, a qual, como é óbvio, decorre de que só quem o observa se pode aperceber da forma como o testemunho é produzido, cuja sensibilidade se fundamenta no conhecimento das reacções humanas e observação directa dos comportamentos objectivados no momento em que tal depoimento é prestado, o que tudo só se logra obter através do princípio da imediação considerado este como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes de modo a que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da decisão. As consequências concretas da aceitação de tal princípio definem o núcleo essencial do acto de julgar em que emerge o senso; a maturidade e a própria cultura daquele sobre quem recai tal responsabilidade. Estamos em crer que quando a opção do julgador se centre em elementos directamente interligados com o princípio da imediação (v. g. quando o julgador refere não foram (ou foram) convincentes num determinado sentido) o tribunal de recurso não tem grandes possibilidades de sindicar a aplicação concreta de tal princípio. Na verdade, o depoimento oral de uma testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, reacções imediatas, o contexto em que é prestado o depoimento e o ambiente gerado em torno de quem o presta, não sendo, ainda, despiciendo, o próprio modo como é feito o interrogatório e surge a resposta, tudo isso contribuindo para a convicção do julgador. (…) Então, perguntar-se-á, qual o papel do tribunal de recurso no controle da prova testemunhal produzida em audiência de julgamento? Este tribunal poderá sempre controlar a convicção do julgador na primeira instância quando se mostre ser contrária às regras da experiência, da lógica e dos conhecimentos científicos. Para além disso, admitido que é o duplo grau de jurisdição em termos de matéria de facto, o tribunal de recurso poderá sempre sindicar a formação da convicção do juiz ou seja o processo lógico. Porém, o tribunal de recurso encontra-se impedido de controlar tal processo lógico no segmento em que a prova produzida na primeira instância escapa ao seu controle porquanto foi relevante o funcionamento do princípio da imediação. Tudo isto, sem prejuízo, como acima já referido, de o Tribunal de recurso, adquirir diferente (e própria) convicção (sendo este o papel do Tribunal da Relação, ao reapreciar a matéria de facto e não apenas o de um mero controle formal da motivação efectuada em 1.ª instância)».
Também Ana Luísa Geraldes, Impugnação e Reapreciação da Decisão sobre a Matéria de Facto, Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas, I, p. 609, refere que «em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira Instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte».
Desta forma, a alteração da matéria de facto só deve ser efectuada pelo Tribunal da Relação quando este possa concluir, com a necessária segurança, que a prova produzida aponta em sentido diverso e impõe uma decisão diferente da que foi proferida pelo tribunal a quo, isto é, quando tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento na matéria de facto.
Ora, no caso dos autos, após analisadas as provas produzidas, de forma crítica e conjugada, não podemos deixar de aderir à fundamentação aduzida pelo tribunal a quo.
A recorrente não logrou rebater a motivação da decisão recorrida, com a qual concordamos e que se insere numa linha coerente de julgamento.
Na verdade, a recorrente, nas suas alegações, não demonstra em que pontos o Tribunal a quo se afastou do juízo imposto pelas regras legais, dos princípios, das regras da racionalidade e da lógica ou da experiência comum, sendo certo que as passagens dos depoimentos que invocou não permitem colocar essa apreciação em dúvida.
Em face do exposto, mantêm-se inalterados os pontos de facto impugnados, improcedendo o recurso no que concerne à decisão sobre a matéria de facto provada e não provada.
4.2. Vejamos, agora, se, em face da facticidade provada, a sentença recorrida fez uma correcta aplicação do Direito.
4.2.1. Está em causa o exercício do direito de preferência na venda de prédios confinantes, previsto no art. 1380.º do CC, em cujo n.º 1 se estabelece que «Os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante».
Em face desta norma, tem sido entendimento pacífico na doutrina (cfr., por exemplo, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, 2.ª ed., em anotação ao artigo 1380.º do CC) e na jurisprudência (cfr. acórdãos infra citado) que constituem requisitos constitutivos do direito de preferência de terrenos rústicos confinantes:
a) que tenha sido vendido ou dado em cumprimento um prédio com área inferior à unidade de cultura;
b) que o preferente seja dono de prédio confinante alienado;
c) que o prédio do proprietário que se apresenta a preferir tenha área inferior à unidade de cultura;
d) que o adquirente do prédio não seja proprietário confinante.
Constituindo esses pressupostos elementos constitutivos do direito de preferência invocado, compete ao preferente/A., nos termos do art. 342.º, n.º 1, do CC, o ónus de alegação e prova de tais factos.
Ora, em face da factualidade provada (n.ºs 1 a 3 dos factos provados) e do que prevê a Portaria n.º 19/2019, de 15.01, que fixou a unidade de cultura, mostram-se preenchidos os referidos quatro requisitos constitutivos do exercício do direito de preferência (o que, aliás, as partes não colocam em causa).
Não obstante, a sentença recorrida concluiu que a A. não tinha o direito de preferência de que se arrogou, por estar preenchida a excepção prevista no art. 1381.º, al. a) do CC, uma vez que a A. não utiliza, de forma efectiva, o prédio confinante de que é proprietária para um fim de cultura.
Adoptou o tribunal a quo o entendimento de que o «prédio titularidade daquele que pretende preferir deve ser efectivamente utilizado para fins agrícolas, não bastando, pois, a mera indicação formal de que se encontra apto para tal finalidade».
Apoiou-se, para tanto, no acórdão do STJ de 14.01.2021 (relatora Rosa Tching), disponível em www.dgsi.pt, em cujo sumário se pode ler que «o artigo 1380º, nº 1, do Código Civil vincula o exercício do direito de preferência à efetiva exploração dos terrenos rústicos para fins de cultura florestal e/ou agrícola, não se bastando com o facto de serem aptos para cultura».
A recorrente não se conforma com este entendimento, pelo que a questão que se coloca é a da eventual existência de factos impeditivos ao direito de preferência da A., mais, concretamente, a de saber se o terreno da A. se destina a fim que não seja a cultura (cfr. art. 1381.º, al. a), in fine, do CC).
4.2.2. O art. 1381º, al. a) do CC, sob a epígrafe “Casos em que não existe o direito de preferência”, dispõe, para o que ora releva, que:
«Não gozam do direito de preferência os proprietários de terrenos confinantes:
a) Quando algum dos terrenos constitua parte componente de um prédio urbano ou se destine a algum fim que não seja a cultura».
Estamos perante factos impeditivos do direito de preferência dos proprietários de terrenos confinantes, pelo que se exige que o réu demonstre uma de duas circunstâncias:
(i) constituir o terreno parte componente de prédio urbano;
(ii) ou se destine a algum fim que não seja a cultura.
No caso dos autos, está, apenas, em causa a segunda circunstância referida, posto que os prédios sub judice são ambos rústicos (cfr. n.ºs 1 e 2 dos factos provados).
Compete ao R., como se viu, provar tal circunstância: «É sobre aqueles que se arrogam titulares do direito de preferência e que pretendem que lhes seja judicialmente reconhecido esse direito que recai o ónus de alegação e prova de todos estes requisitos, nos termos do disposto no artigo 342º, nº1 do Código Civil, impendendo sobre aqueles contra quem é invocado este direito, nos termos das disposições conjugadas do nº 2 do citado artigo 342º, e 1381º, alíneas a) e b), do mesmo código, o ónus de provar factos dos quais se possa concluir pela verificação de alguma das exceções contidas nestas duas alíneas» (cfr. acórdão do STJ de 14.01.2021, in www.dgsi.pt) e «…desde que o autor faça prova de todos os pressupostos ou requisitos constitutivos desse direito de preferência previsto no art.º 1380º nº 1 do CC, o réu só logrará afastar o direito de preferência se provar que a sua aquisição preenche alguma das hipóteses mencionadas nas duas alíneas do art.º 1381º do CC» (cfr. Henrique Mesquita, Direito de Preferência, Parecer, CJ, ano XI, 1986, tomo 5, pág. 53).
No caso que nos ocupa, analisada a factualidade provada, impõe-se, inequivocamente, concluir que os RR. não lograram provar que algum dos prédios em causa se destine a um fim que não seja a cultura.
É que, contrariamente ao que se entendeu na sentença recorrida, sendo pressuposto fundamental para o exercício do direito de preferência pelos proprietários de terrenos confinantes que estes sejam considerados terrenos aptos para cultura, não é, contudo, necessário que estejam efectivamente cultivados.
Com efeito, o art. 1376.º do CC, relativo à proibição de fracionamento de prédios rústicos, refere-se, expressamente, a “terrenos aptos para cultura” e não “terrenos cultivados”, pelo que só pode entender-se que a lei se basta com a aptidão para cultura e não com o cultivo efectivo.
Acresce que a ratio legis da instituição do direito de preferência de prédios rústicos confinantes radica, essencialmente, em razões de ordem pública (atenuar a pulverização agrária e a dispersão da propriedade rústica) e não nos interesses privados e nas razões económicas dos proprietários dos prédios (cfr. acórdãos do STJ de 27.05.2015 e de 14.01.2021, ambos em www.dgsi.pt).
Aliás, como é consabido, a lei nem sequer exige a identidade de culturas dos prédios, pois, conforme se decidiu no Assento do STJ, de 18.03.1986, «…o direito de preferência conferido pelo art. 1380.º do código civil não depende da afinidade ou identidade de culturas nos prédios confinantes» para que o proprietário de um deles possa exercer o direito de preferência.
O entendimento perfilhado na sentença recorrida traduzir-se-ia na introdução de um novo requisito constitutivo do direito de preferência, que não é exigidos pelo art. 1380.º, n.º 1 do CC, pois que, para além de ter de provar os quatro requisitos supra mencionados, o A./preferente teria, ainda, que alegar e provar a efectiva exploração dos terrenos.
Acompanhamos, portanto, todos aqueles que consideram que o art. 1380.º, n.º 1 do CC, não exige, como requisito constitutivo do exercício do direito de preferência, a alegação e prova da efectiva exploração agrícola de qualquer dos prédios.
Veja-se, nesse sentido, o acórdão do STJ de 6.07.2023, in www.dsgi.pt, onde se decidiu que «pressuposto fundamental para o exercício do direito de preferência atribuído pelo artigo 1380º do CC aos proprietários de terrenos confinantes é de que estes sejam considerados terrenos aptos para cultura, não sendo necessário que eles sejam efectivamente agricultados», nele se explicitando que «fazendo uma interpretação do artigo 1381.º do CC à luz da teleologia do instituto do direito de preferência (propiciar o emparcelamento de terrenos com área inferior à unidade de cultura, com vista a alcançar-se uma exploração agrícola tecnicamente rentável e evitar-se, assim, a proliferação do minifúndio, considerado incompatível com um aproveitamento fundiário eficiente) e na senda daquilo que vem sendo decidido neste Supremo Tribunal de Justiça, deve entender-se que basta a aptidão do terreno para cultura para não poder ser afastado o direito de preferência».
Também o acórdão da RL de 15.06.2023, in www.dgsi.pt, entendeu que «Desde que o autor faça prova de todos os pressupostos ou requisitos constitutivos do direito de preferência previsto no art.º 1380º nº 1 do CC, o réu só logrará afastar o direito de preferência se provar que a sua aquisição preenche alguma das hipóteses mencionadas numa das duas alíneas do art.º 1381º do CC» e «A lei não exige, no art.º 1380º nº 1 do CC, como requisito constitutivo do exercício do direito de preferência, a alegação e prova da efectiva exploração agrícola de qualquer dos prédios. Recorde-se que no art.º 1376º nº 1 (que inicia a Secção VII relativa ao fracionamento e emparcelamento de prédios rústicos, onde se insere o ar.tº 1380º) se refere expressamente terrenos aptos para cultura e não terrenos cultivados».
Ainda a Relação de Lisboa, em acórdão de 23.05.2024, in wwwdgsi.pt, considerou que «o artigo 1380, n.º 1, do CC, não estabelece como pressuposto do direito de preferência a efetiva exploração agrícola ou florestal dos prédios confinantes. Esse normativo não distingue entre terrenos confinantes meramente aptos para o desenvolvimento de atividade agrícola e/ou exploração florestal e entre terrenos confinantes que são efetivamente utilizados para o desenvolvimento daquelas atividades. Tendo presente o objetivo visado com o direito de preferência consagrado no artigo 1380º do CC, e que é o de fomentar o emparcelamento de terrenos a minifundiários, criando objetivamente condições que, do ponto de vista económico, se consideram imprescindíveis à constituição de explorações agrícolas tecnicamente rendíveis, vemos que a lei, no artigo 1376º do CC, relativo à proibição de fracionamento de prédios rústicos, também se refere a “terrenos aptos para cultura” e não a terrenos efetivamente cultivados. Concluímos, assim, que o exercício do direito de preferência não pressupõe a efetiva exploração agrícola e/ou florestal do prédio, bastando a sua aptidão para esse efeito e, como tal, os Autores não tinham que fazer prova da mesma» (sublinhado nosso).
O acórdão do STJ de 14.01.2021, em que a sentença recorrida se baseou, não pode aplicar-se, sem mais, à situação dos autos.
É que, tal como foi, clara e sobejamente, demonstrado no acórdão da RL de 15.06.2023, já citado, «(…) o acórdão em questão (STJ de 14/01/2021, Rosa Tching) versou sobre uma situação diferente da que está em causa nos nossos autos. Na verdade, naquele aresto do STJ, colocava-se a questão de saber se um proprietário de um prédio misto, tem direito de preferência em relação à venda de um prédio rústico confinante. E, nesse acórdão, perante a designação do prédio como misto - constituído por uma parte urbana com a área bruta de construção de 175,30 m2, correspondente a “casa de rés do chão com 5 compartimentos para habitação, cozinha e dependência, com o valor patrimonial de €8180,00, e por uma parte rústica, com a área total de 29,11250 ha, composta por diversas parcelas classificadas com cultura arvense (a maior parte de Classe 4ª ), com a área de 20 ha; montado de sobro com a área de 8,4938 ha e oliveira e vinha, esta com 4 ha, tudo com o valor patrimonial de €557,22 - face à ausência dessa qualificação na lei civil, entendeu aplicar o critério da prevalência da afectação, ou seja, da função dominante do prédio para aferir se se tratava de prédio rústico ou de prédio urbano. E, perante a falta de demonstração da efectiva exploração agrícola, entendeu tratar-se de prédio (prevalecente) urbano e, daí, negou o direito de preferência. Pois bem, na linha do que ensina o Prof. Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, tomo II, Coisas, 2000, pág. 123 e segs.) há situações de fronteira em que não é fácil dilucidar se determinado prédio, designadamente se têm implantadas construções, é rústico ou urbano. E esse Professor faz referência a quatro teorias para alcançar essa distinção: (i) teoria do valor; (ii) teoria da afectação económica; (iii) teoria do fracionamento; e (iv) teoria da consideração social. E depois de analisar cada uma dessas teorias, propõe “Ficam-nos, pois, as noções do Código Civil: o prédio rústico é o terreno, ainda que com construções, desde que estas não tenham autonomia económica e, o urbano, um edifício com logradouro. Vamos avançar a partir da fórmula do art.º 204º nº 2, na linha da afectação económica. Duas precisões prévias devem ser feitas: para efeitos de qualificação civil, é indiferente o tipo de inscrição matricial, dada a especificidade dos critérios fiscais, bem como o tipo de descrição predial, além disso a lei não admite, aqui, o qualificativo do prédio misto.” (…) “Um terreno não construído é rústico; o terreno totalmente coberto por edifício é urbano.” (…) “A ideia de “logradouro” torna-se, assim, chave da distinção. O Supremo explica que “logradouro”, na falta de definição legal, surge como um conceito jurídico indeterminado, que só se torna preciso aquando da aplicação ao caso concreto.” (…) “O logradouro está afecto ao edifício, normalmente para habitação; dá apoio aos moradores. Mas pode também apoiar um edifício industrial ou comercial: parque de estacionamento, área de depósitos de materiais, jardim de resguardo ecológico, campos de desporto, pistas de ensaios ou, simplesmente, área verde exigida pelos planos de urbanização, como anexo às edificações.” (…) “O prédio rústico, poderá ter uma afectação agrícola; as construções que nele existam não prejudicam essa qualificação global se não tiverem autonomia económica, servindo a agricultura. Mas o prédio rústico poderá ser estéril, estar abandonado…” (…) A solução de recurso será sempre a seguinte: não se provando factos que permitam a qualificação como urbano, o prédio é rústico.” Pois bem, perante este ensinamento, percebe-se o porquê de naquele caso concreto decidido pelo STJ (ac. de 14/01/2021, Rosa Tching) ter sido entendido que tinha de ser invocada e provada a “efectiva exploração do terreno”».
Ora, no caso dos autos, a questão subjacente ao entendimento perfilhado no acórdão do STJ de 14.01.2021 não se coloca, porquanto o prédio vendido é um prédio rústico e mostram-se verificados os quatro requisitos constitutivos exigidos pelo art. 1380.º, n.º 1 do CC para o exercício do direito de preferência, que, como se viu, não exige, como requisito constitutivo do exercício do direito de preferência, a alegação e prova da efectiva exploração agrícola de qualquer dos prédios.
Terão, então, os RR., contra quem o direto de preferência foi invocado, logrado provar algum facto impeditivo do direito de preferência, como lhes competia (art. 342.º, n.º 2, do CC)?
Não cremos.
A este respeito, os únicos factos relevantes que resultaram provados foram:
«20. O prédio identificado em 2) foi no passado utilizado para efeitos agrícolas, designadamente para vinha, o que não sucede há largos anos.
21. A Autora e seus legais representantes não são conhecidos por exercerem qualquer actividade de exploração agrícola.
22. O legal representante da Autora, TT, é conhecido no âmbito do comércio automóvel.
23. O prédio identificado em A) nunca foi pela Autora cultivado ou semeado, nem a mesma comercializou qualquer produto agrícola daí proveniente.
24. O prédio da Autora dispõe de construções, como seja um armazém e casas anexas.
25. A Autora manteve, no passado, o prédio como depósito ou parqueamento de viaturas, mormente pesadas e máquinas agrícolas.
26. Mais foi usado para depósito, mormente de cortiça, actividade explorada por terceira pessoa, o que se manteve durante período não aferido, mas por largos anos.
27. Manteve a Autora o prédio identificado em 1) com aspecto abandonado, sem cultivo e com ervas, silvas e mato.
28. O prédio da Autora manteve mormente à data da venda do prédio identificado em 2), uma placa com a identificação de uma agência imobiliária e com o contacto telefónico respectivo».
Esta factualidade não contraria a aptidão do prédio para a cultura, nem deles decorre que a A. não tenha intenção de o afectar a cultura ou que esteja precludida a possibilidade de, no futuro, vir a ser efectivamente desenvolvida a cultura, razão pela qual é inócua a factualidade vertida na parte final do n.º 20 e nos n.ºs 23 e 27 dos factos provados.
A utilização referida nos n.ºs 25 e 26 dos factos provados reporta-se a uma situação passada, que, quanto resulta da redacção desses números, não se mantinha à data da celebração da compra e venda em causa, sendo que as construções mencionadas no n.º 24 não descaracterizam o prédio como rústico.
O facto vertido no n.º 28, isoladamente, nada nos permite concluir, sendo certo que não se provou que a A. tivesse o prédio de que é proprietária à venda (cfr. al. iii) dos factos não provados).
De igual forma, nada pode retirar-se, validamente, do objecto social da A./recorrente (cfr. n.º 4 dos factos provados) ou dos factos descritos nos n.ºs 21 e 22, porquanto o objecto social da A. e a actividade dos seus legais representantes em nada releva para aferir da real afectação do prédio, à data da celebração do negócio em causa nos autos, nem da sua aptidão para a cultura.
Tal como bem defende a recorrente nas alegações, nada permite entender que a recorrente não possa afectar o prédio à agricultura, por não ter esse objecto social, quanto mais não seja, porque sempre o poderia fazer indirectamente através, por exemplo, da celebração de contratos de arrendamentos para fins agrícolas.
No acórdão da RE de 09.02.2023, disponível em www.dgsi.pt, também invocado na sentença recorrida, em apoio da tese que acolheu, demonstrou-se, contrariamente ao que ocorre nos presentes autos, que «…no quadro dos factos provados, resulta inevitavelmente que não destinariam o imóvel à exploração agrícola, estando a situação na esfera de protecção do 1381.º do Código Civil».
Importa, de resto, ter presente que «o sentido interpretativo a dar, à segunda parte da alínea a) do art. 1381º do CC, como excepção ao direito de preferência consagrado no art. 1380º, do CC, é o de que se exige: 1. a comprovação por qualquer meio da existência de uma efectiva intenção de utilização do prédio como urbano; 2. que a intenção de mudança do fim seja contemporânea da escritura e, 3. que a mesma seja legalmente possível» (cfr. acórdão da RP de 09.03.2023, in www.dgsi.pt)
No mesmo sentido, o acórdão da RP de 23.05.2024, in www.dgsi.pt, decidiu que «A exclusão ao exercício desse direito constante do art, 1381º, do CC basta-se com comprovação da efectiva intenção de utilização do prédio como urbano desde que esta seja legalmente possível e contemporânea da aquisição».
Agostinho Guedes, in Exercício do Direito de Preferência, UCP, Porto, 2006, pág. 125 e seg. concluiu que «(…) a intenção do adquirente de afectar a outro fim que não a cultura é relevante para excluir o direito de preferência do proprietário confinante. Todavia, não bastará a mera intenção, ainda que manifestada na escritura de compra e venda, sendo também necessário a prova da mesma, por qualquer meio, e ainda que o destino a dar ao imóvel pelo adquirente seja permitido por lei. Esta ressalva prende-se com os diversos institutos jurídicos de ordenamento do território que ultimamente começaram a ser publicados, aqui a expressão “lei” tem de ser entendida com maior amplitude, incluindo qualquer normativo de aplicação geral e abstracta que reja sobre a situação».
No caso dos autos, não decorre da factualidade provada que exista a intenção da A. de utilizar o prédio como urbano (como se disse, o que consta dos n.ºs 25 e 26 reporta-se ao passado e as construções referidas no n.º 24 não descaracterizam o prédio dos autos como rústico) nem que essa utilização fosse, à data da compra e venda, permitida por lei.
Repare-se que, tal como bem salienta a recorrente, à data do negócio (31.05.2022) a única utilização permitida para o prédio da A. e para o prédio objecto da alienação era a utilização agrícola, não sendo permitida qualquer outra utilização pelo PDM vigente, sendo que, apenas em 2024, ocorreu uma alteração do PDM de ..., que veio reclassificar o solo rústico em solo urbano para fins industriais, preenchidas que estivessem determinadas condições (cfr. n.º 34 dos factos provados).
Logo, não existia a possibilidade de afectar o terreno de cultura a uma finalidade diferente e essa afectação não dependia da mera intenção abstracta da A., mas sim de uma decisão administrativa, tomada em função dos interesses gerais da colectividade.
Enfim, os RR./recorridos não lograram provar qualquer facto ou circunstância relevante que exclua o direito de preferência da A., não se encontrando preenchida a previsão do art. 1381.º, n.º 1, al. a), in fine do CC, pelo que a questão da existência do direito de preferência deve ser decidida contra eles.
4.2.3. Entendeu, ainda, a sentença recorrida que «ainda que assim se não entendesse (…) poderia alcançar-se a mesma conclusão por via da procedência da excepção peremptória do abuso do direito», pois que «verificando-se que a Autora havia, aquando da aquisição, declarado pretender que tal imóvel fosse para revenda, beneficiando de benefício fiscal, nunca tendo mantido qualquer actividade efectivamente agrícola, e sendo que o objecto social não comporta tal tipo de actividade, a pretensão de preferência sairia beliscada».
Ou seja, o tribunal a quo concluiu pela existência de abuso do direito, para paralisar o exercício do direito de preferência da A./recorrrente, que retirou das seguintes circunstâncias:
- o objecto comercial da A. não permite qualquer actividade do ramo agrícola ou afim;
- a A. declarou, de forma expressa, aquando da aquisição do prédio de que é proprietária, que o mesmo se destinava a revenda;
- a A. gozou, por esse motivo, de isenção do imposto SISA (actualmente IMT);
- a A. nunca manteve qualquer exploração agrícola no prédio em causa.
Não sufragamos, salvo o devido respeito, este entendimento.
Como é consabido, o abuso de direito, expressamente previsto no art. 334.º do CC, consiste num exercício inadmissível de posições jurídicas ou, dito de outra forma, num exercício de posições permitidas, mas em termos tais que contrariam os valores fundamentais do sistema, expressos, por tradição, na boa-fé.
Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, Vol. I, 6.ª ed., p. 516, refere que «para que haja lugar ao abuso de direito é necessário a existência de uma contradição entre o modo ou o fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito».
Trata-se de uma válvula de segurança, de conhecimento oficioso, que obsta a situações de injustiça reprováveis para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social.
Existirá abuso do direito quando, admitido um certo direito como válido em tese geral, aparece, todavia, no caso concreto, exercitado em termos, clamorosamente, ofensivos da justiça e contrários ao seu fim (económico e social), ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito.
Muito embora o intérprete-aplicador da lei tenha uma lata disponibilidade na concretização da boa-fé, têm-se apontado dois instrumentos que conferem maior segurança na decisão: o princípio da tutela da confiança legítima e o princípio da materialidade subjacente.
Através do primeiro princípio, subjacente ao abuso de direito, protegem-se situações de confiança justificada ou plausível, alicerçada em elementos razoáveis, susceptíveis de provocar a adesão de um pessoa normal, com base na qual alguém actua de acordo com o que acreditava vir a acontecer (cfr. Baptista Machado, no estudo Tutela da Confiança e Venire Contra Factum Proprium, Obra Dispersa, Vol. I, p. 415 a 418, e RLJ anos 116, 117 e 118, n.º 3735, p. 171 e segs.). A protecção da confiança salda-se na constituição, a favor do confiante, de direitos que, de outra forma, não lhe assistiriam, permitindo assegurar uma solução justa ou equitativa.
Já a ideia que aflora do princípio da materialidade subjacente é a de que o Direito visa, através dos seus preceitos, a obtenção de certas soluções efectivas, para o que é insuficiente a adopção de condutas que só formalmente correspondem aos objectivos jurídicos. Ou seja, a boa-fé exige que os exercícios jurídicos sejam avaliados em termos materiais, de acordo com as efectivas consequências que acarretam, pois que o cumprimento formal de uma norma jurídica pode, materialmente, contrariar a boa fé ou traduzir-se num exercício desequilibrado de posições jurídicas.
Com recurso a tais princípios, a doutrina e a jurisprudência têm tipificado certos comportamentos inadmissíveis, entre os quais, para o que ora releva, se destaca o, denominado, “exercício em desequilíbrio de direitos”, em que existe uma desproporção inadmissível entre a vantagem própria do exercente e o sacrifício que impõe a outrem.
No caso dos autos, analisando o acervo de factos provados, não vislumbramos razões para que o exercício do direito de preferência por parte da A./recorrente, emergente do art. 1380.º, n.º 1 do CC, deva ser paralisado, pois que não encontramos quaisquer indícios objectivos de que tal exercício seja, manifestamente, violador dos limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Senão vejamos:
- não é verdade que o objecto social da A. não lhe permita afectar os prédios em causa a cultura, nomeadamente, a agricultura, pois que, como bem refere a recorrente e facilmente se compreende, a recorrente não precisa de ser agricultora para adquirir, ser proprietária e manter um terreno agrícola com essa afectação;
- o facto de a A. ter declarado, aquando da aquisição do prédio de que é proprietária, que o pretendia submeter a revenda (o que, diga-se, não consta do rol de factos provados, constando, ao invés, dos factos não provados – cfr. al. iv)), não significa que a A. o tenha que fazer e que não possa, mais tarde, vir a mudar de propósitos. Acresce que, tal como bem salienta a recorrente, «…a escritura de compra e venda foi outorgada em 1999, sendo que, desde então a A. não revendeu o prédio, pelo que a expressão ínsita na referida escritura, mercê do decurso do tempo, perdeu todo e qualquer significado»;
- do facto de a A. ter gozado de isenção fiscal (o que, também, não consta dos factos provados…) nada pode extrair-se, pois que tal isenção dependia da efectiva revenda do prédio no prazo de três anos, sendo que a única consequência decorrente do facto de A. não ter revendido o prédio traduziu-se na perda desse benefício fiscal, com o inerente pagamento do imposto (que se desconhece se ocorreu ou não, por nada constar dos factos provados…), sem qualquer perda de outros direitos;
- o direito de preferência em causa não está, como se viu, dependente da efectiva exploração agrícola do prédio, bastando-se com a mera aptidão para esse efeito.
Enfim, nada nos factos provados nos permite, legitima e seguramente, concluir quanto ao destino que, no futuro, a A. dará ao prédio, sendo que a paralisação de um direito decorrente da lei não pode assentar em meras especulações ou conjecturas.
E, assim sendo, conclui-se pela procedência da apelação, impondo-se a revogação da sentença recorrida e a procedência dos pedidos formulados pela A.
4.3. Atentemos, por fim, no pedido reconvencional deduzido pelo 10.º R. contra a A.
4.3.1. O 10.º R. deduziu reconvenção, nos seguintes termos:
«Se, por mera hipótese a ação vier a ser considerada total ou parcialmente procedente,
- Deve, porém, ser julgado totalmente procedente e provado o pedido reconvencional deduzido e, por via do mesmo, ser a Reconvinda condenada a pagar ao Reconvinte, para além do preço constante no título de aquisição, o montante de €:13042,06 (treze mil e quarenta e dois euros e seis cêntimos), bem como em juros à taxa legal, até efetivo e integral pagamento, desde a notificação da reconvenção e
- Deve ser reconhecido a favor do aqui Réu, direito de retenção sobre o prédio dos autos, até se ver ressarcido do seu crédito».
A sentença recorrida considerou prejudicada a apreciação da reconvenção, por deduzida na eventualidade de a acção ser julgada procedente.
Ora, de acordo com o disposto no art. 665.º, n.º 2 do CPC, «se o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários».
O acórdão do STJ de 15.0.2023, in www.dgsi.pt, considerou que «resulta do n.º 2 do art. 665 do CPC que poderá haver supressão de um grau de jurisdição relativamente a questão de que o tribunal recorrido não tenha conhecido por estar prejudicada pela solução por ele dada a outra questão; reconhecendo o Tribunal da Relação dispor da matéria de facto (já julgada) relativa ao pedido reconvencional, pedido esse que apenas não fora conhecido pelo Tribunal de 1ª instância porque considerado prejudicado, deveria o Tribunal da Relação aplicar o Direito aos factos apurados, no que concerne à reconvenção deduzida pela R.».
Importa, pois, conhecer do pedido reconvencional deduzido (cfr. Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., 2022, p. 389), sendo certo que as partes foram, previamente, ouvidas.
Vejamos então.
O 10.º R. alegou ter despendido no prédio objecto do direito de preferência as seguintes verbas, de que pretende ser reembolsado:
- com a escritura de compra e venda e registo, € 545,06;
- com IMT, € 3.250,00;
- com Imposto de Selo, € 520,00;
- com a desmatação, limpeza e melhoramentos no prédio, € 8.727,00, sem IVA incluído.
Defendeu o R. que o dever de depósito o preço previsto no art. 1410.º, n.º 1 do CC, abarca não só o valor da transação (o preço), como as restantes despesas inerentes ao contrato, designadamente o valor da escritura, IMT, IS, registo, e ainda, o valor das benfeitorias levadas a cabo pelo adquirente sobre o prédio, na medida em que das mesmas o preferente irá beneficiar, evitando-se desta forma o seu enriquecimento indevido.
Alegou, ainda, que as benfeitorias por si realizadas melhoraram o terreno e aumentaram o seu valor e são impossíveis de ser levantadas sem detrimento da coisa (arts. 216.º e 1273.º do CC).
Fundou o pedido reconvencional no instituto do enriquecimento sem causa (o que reiterou nas 4.ª, 5.ª, 6.ª e 9.ª conclusões das alegações do recurso de apelação em separado que interpôs da decisão que julgou manifestamente improcedente o seu pedido reconvencional – apenso A).
De relevante sobre esta matéria, provou-se que:
«32. O Ré despendeu com a aquisição do prédio identificado em 2): i) € 545,06, referente à escritura pública de compra e venda; ii) € 3250,00, referente a IMT; iii) € 8727,00, referente a imposto de selo.
Note-se que a referência ao valor de € 8727,00 será, certamente, imputável a lapso, já que o Reconvinte alegou e comprovou – doc. n.º 29 junto com a contestação - que o valor do imposto de selo ascendeu a € 520,00, sendo o valor de € 8727,00 o por si alegado quanto a benfeitorias.
33. O Réu NN procedeu ainda à desmatação, limpeza e melhoramentos como colocação de manilhas na vala, maquinaria, preparação para saneamento e electricidade».
E não se provou que:
«v) O valor dos trabalhos realizados pelo Réu NN no prédio identificado em 2) após a sua aquisição ascendeu a € 8.764,00».
4.3.2. Comecemos pelas despesas suportadas pelo R. com a aquisição do prédio (escritura de compra e venda, registo, IMT e Imposto de Selo).
Estará a A. obrigada a reembolsar o 10.º R./reconvinte dessas despesas, em virtude do reconhecimento do seu direito de preferência ou recairá tal obrigação sobre o sujeito à obrigação de preferência (os 1.º a 9.º RR.)?
Na doutrina, Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, III, p. 374 e 375, a propósito do depósito do preço na acção de preferência, previsto no art. 1410.º, n.º 1 do CC, referem que o preferente deve depositar, além do preço da alienação, as demais despesas feitas pelo adquirente, mas apenas quando e na medida em que delas beneficie, o que parece significar que, no entendimento dos referidos autores, o preferente apenas está obrigado ao reembolso das despesas feitas pelo adquirente quando delas beneficie.
Também Carvalho Martins, Preferência, p. 74 e 75., defende que «o preferente deve delas (despesas: sisa e custo da escritura) indemnizar o adquirente, através do mecanismo do enriquecimento sem causa».
E Menezes Leitão, Direitos Reais, p. 524., considera que «…a solução correcta deve ser a de que apenas é exigido o depósito do preço devido, ainda que o preferente deva, no caso de ficar também sujeito às mesmas despesas com a sisa e a escritura e na medida em que o ficar, reembolsar ao terceiro as despesas por ele suportadas, sem o que haveria enriquecimento sem causa», acrescentando em nota (892) que «daí que se admita que o terceiro possa solicitar esse reembolso na acção de preferência em reconvenção ou posteriormente».
A jurisprudência não é consensual quanto à possibilidade do pedido de restituição das referidas despesas poder ser acolhido em sede de pedido reconvencional deduzido contra o preferente.
O acórdão do STJ de 15.02.2023, in www.dgsi.pt), considerou que, embora a expressão “preço devido” prevista no art. 1410.º, n.º 1 do CC (aplicável ex vi do art. 1380.º, n.º 4) corresponda, apenas, ao valor, em dinheiro, a pagar pelo preferente, como contrapartida da aquisição do imóvel, «…isso não significa que o preferente, no caso de procedência da acção, não tenha de satisfazer essas despesas acessórias. (…) No acórdão do STJ de 22-2-2005 [publicado na Colectânea de Jurisprudência, Acórdãos do STJ, ano XIII, tomo I, pág.. 92.] consignara-se ser opinião largamente dominante no STJ que o preço devido a que se refere o art. 1410 “diz apenas respeito à contraprestação que deve ser paga ao vendedor, não abrangendo quaisquer outras despesas deste, nomeadamente a sisa, despesas de registo ou de escritura”. Acrescentando-se que tal não significa que essas despesas não devam ser pagas ao vendedor, desde que pedidas em reconvenção (…)».
Tal entendimento havia sido já perfilhado no acórdão do STJ de 07.03.1995, www.dgsi.pt: «A expressão "preço devido" do artigo 1410 do CCIV66 refere-se apenas à contraprestação paga ao vendedor. Isto não quer dizer, porém, que o comprador, atento o princípio do enriquecimento sem causa, não tenha direito ao montante da sisa que pagou e às despesas com a escritura».
Outro sector da jurisprudência entende, contudo, que, por um lado, entre o preferente e o terceiro não existe qualquer relação jurídica concreta que vincule o primeiro a algum tipo de prestação a favor do segundo, sendo que, por outro lado, o exercício da preferência não representa um facto gerador de responsabilidade e não há qualquer enriquecimento sem causa do titular do direito à custa do adquirente: o preferente limita-se a exercer o direito de adquirir certo bem, com prioridade sobre terceiros, pagando o preço livremente aceite pelo sujeito passivo.
Para esta corrente, a relação jurídica de onde poderão emergir pretensões relativas a reembolso de despesas ou ressarcimento de prejuízos é a estabelecida entre o obrigado à preferência e o adquirente, resultante do contrato de alienação, contrato do qual, por ser ineficaz em relação ao preferente, não poderão resultar deveres para este. Desta forma, será do sujeito à obrigação de preferência que o adquirente deverá reclamar as despesas efectuadas por causa da aquisição, desde que para isso disponha do necessário fundamento.
Neste sentido, veja-se o acórdão da RP de 11.10.2016, www.dgsi.pt, que decidiu que:
«I - A substituição “ex tunc” decorrente da procedência da acção de preferência, respeita tão só à titularidade do direito, fundada na lei, e não constitui o substituto (preferente) em qualquer obrigação perante o substituído, mormente a de repor o “status quo ante” que ele tinha se não tivesse celebrado o negócio que veio a ser objecto da acção de preferência triunfante.
II – Entre o preferente e o terceiro/adquirente não existe qualquer relação jurídica concreta que vincule o primeiro a algum tipo de prestação a favor do segundo e, para além de não existir qualquer contrato entre o preferente e o adquirente, o exercício da preferência não representa um facto gerador de qualquer responsabilidade do primeiro relativamente ao segundo.
III- É sobre a vendedora que recai a obrigação de reembolsar a adquirente, desde que verificados os demais pressupostos da respectiva responsabilidade, que julgamos ser uma responsabilidade pré-contratual, cfr. art.º 227.º do C.Civil, por violação do princípio da boa-fé negocial, pelas despesas realizadas e não recuperáveis – como sejam as despesas com a realização da escritura e respectivo registo da aquisição, etc.
IV - A eficácia retroactiva da preferência não torna inexistente, não neutraliza ou apaga a posse efectiva do adquirente do bem durante o tempo em que o negócio esteve pendente da condição resolutiva, pelo que sendo durante esse período a adquirente a legítima possuidora do imóvel, em termos de sua proprietária, exercendo os poderes inerentes ao seu direito de propriedade sobre o prédio, tendo assim isso o uso e fruição do mesmo, logo, por força do disposto no art.º 8.º do CIMI, ela é a legitima sujeita passiva do pagamento do respectivo IMI».
Quanto a nós, acompanhamos o entendimento perfilhado no acórdão da RG de 03.10.2018, www.dgsi.pt: «a questão terá que ser resolvida pela verificação do preenchimento dos requisitos do enriquecimento sem causa, pois que é esse o fundamento jurídico da pretensão deduzida (…). Nesta medida, as considerações relativas ao enquadramento jurídico das relações estabelecidas entre o alienante, o adquirente e o preferente acabam por ficar em segundo plano, pois que não é com base nelas que a Recorrente fundamenta a sua pretensão».
Este último aresto, analisando os pressupostos do enriquecimento sem causa (1.º o enriquecimento de alguém; 2.º o consequente empobrecimento de outrem; 3.º o nexo causal entre o enriquecimento do primeiro e o empobrecimento do segundo; 4.º a falta de causa justificativa do enriquecimento), concluiu que «…no caso concreto, de acordo com a matéria de facto provada, não se consegue “descobrir” qual tenha sido a vantagem patrimonial concreta, de que o Autor possa ter beneficiado, pelo facto de a Ré/Recorrente ter efectuado as despesas que aqui pretende ver-se restituída. Com efeito, não se vislumbra, nem a Ré o demonstrou, conforme era seu ónus, que o pagamento daquelas despesas (notariais, fiscais e registrais) se tenha projectado no património do Autor, tornando-o mais valioso, seja pelo seu incremento, seja pela diminuição do passivo (não realização de despesas). Nesta conformidade, se é certo que a Ré/Recorrente ficou empobrecida na sequência do pagamento das despesas que efectuou, a verdade é que tal empobrecimento não encontra igual correspondência no património do Autor, já que não se mostra provado que este, por força daquele pagamento, tenha deixado de ter de proceder às mesmas despesas na sequência do exercício vencedor do direito de preferência. Julga-se, pois, que não foram alegados, nem provados quaisquer factos demonstrativos do enriquecimento do Autor, que, como decorre do exposto, é um dos requisitos que teria que ser preenchido para que a pretensão reconvencional da Ré pudesse ser acolhida. No fundo, e voltando ao que os Profs. A. Varela/P. Lima referem, a verdade é que o Autor, enquanto preferente, só teria que restituir, na acção de preferência, as despesas feitas pelo adquirente, “mas apenas quando e na medida em que delas beneficie”. Ora, foi justamente esta última factualidade que a Ré não logrou demonstrar, ou seja, se (e em que medida é que) os pagamentos efectuados beneficiaram o Autor. (…)
Nesta sequência, não se reconhecendo a existência de qualquer direito de crédito, fica igualmente prejudicada a possibilidade de reconhecer a constituição de um direito de retenção sobre os imóveis em discussão nos autos nos termos do art. 754º do CC
».
Estas considerações são inteiramente válidas no caso dos autos, pois que o 10.º R./reconvinte não provou (desde logo, porque nem sequer alegou) que a A./reconvinda tenha tido um enriquecimento e que esse enriquecimento tenha sido obtido à sua custa, apenas provando ter feito as despesas descritas no n.º 32 dos factos provados, ou seja, o seu empobrecimento.
Nada na factualidade provada nos permite concluir que a realização dessa despesas trouxe vantagens ou beneficiou a A./reconvinda e, muito menos, que tenha ocorrido uma qualquer projecção positiva no seu património (quer tornando-o mais valioso, quer impedindo a sua desvalorização).
E, por conseguinte, não se encontrando verificados todos os pressupostos do enriquecimento sem causa (previstos no art. 473.º do CC e já supra sistematizados), improcede o pedido reconvencional nesta parte.
Saliente-se que, atenta a natureza subsidiária do instituto do enriquecimento sem causa, o reconvinte pode, ainda, ter ao seu dispor outros mecanismos legais para ser reembolsado das despesas efectuadas (agindo contra os vendedores ou até, eventualmente, contra a Autoridade Tributária, se se verificar duplicação do pagamento dos mesmos imposto).
4.3.3. Passemos, agora, às benfeitorias realizadas no prédio objecto de preferência.
Estará a A. obrigada a reembolsar/indemnizar o 10.º R./reconvinte das despesas com essas benfeitorias?
É incontornável que, durante o período de tempo em que foi proprietário do prédio em causa e em que procedeu «à desmatação, limpeza e melhoramentos como colocação de manilhas na vala, maquinaria, preparação para saneamento e electricidade», o 10.º R./reconvinte estava na posse do imóvel.
Ora, de acordo com o disposto no art. 1273.º, n.º 1, do CC, o possuidor (independentemente de estar ou não de boa fé) tem direito a ser indemnizado (pelo titular do direito) do valor das benfeitorias necessárias que haja feito, bem como a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possa fazer sem detrimento dela.
Por sua vez, de acordo com o art. 216.º do CC, são benfeitorias todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa, sendo necessárias as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa e úteis as que, não sendo indispensáveis para a conservação da coisa, lhe aumentam, todavia, o valor.
Sendo as benfeitorias voluptuárias (que servem, apenas, para recreio do benfeitorizante, não sendo indispensáveis para a conservação da coisa, nem lhe aumentando o valor), só o possuidor de boa fé tem direito a levantá-las não se dando detrimento da coisa, pois que, caso contrário, não as pode levantar, nem haver o valor delas (art. 1275.º do CC).
Pires de Lima e Antunes Varela, Ob. Cit., III, em anotação ao art. 1410º), consideram que «as regras sobre a posse deverão aplicar-se também às benfeitorias que o adquirente tenha entretanto introduzido na coisa sujeita à preferência».
No mesmo sentido, decidiu o acórdão do STJ de 17.11.2015, www,dgsi.pt, que «I. O adquirente preferido goza do direito ao reembolso das benfeitorias que tenha realizado, nos termos do art. 1273º do Código Civil. II. O valor das benfeitorias necessárias que o adquirente preferido realizou é calculado, tal como o das úteis, segundo as regras do enriquecimento sem causa, e não segundo as regras da responsabilidade civil. III. O reconhecimento judicial do direito de preferência tem efeito retroativo ao momento da alienação, sendo o adquirente substituído pelo preferente com eficácia ex tunc. IV. Embora o contrato de compra e venda celebrado entre o alienante e o adquirente produza a sua normal eficácia translativa, durante o período que medeia entre a celebração do contrato e a decisão proferida na ação de preferência o adquirente preferido detém também a qualidade de possuidor da coisa. V. Nesta medida, o adquirente preferido goza do direito de retenção sobre a coisa para garantia do pagamento do valor das benfeitorias necessárias que nela realizou».
Escreveu-se neste aresto que ««(…) não estamos aqui perante uma situação de reparação de um dano em decorrência de um ato gerador de responsabilidade civil (seja delitual, contratual, pelo risco ou por facto lícito), mas sim perante uma situação em que se visa obviar a um locupletamento injusto. Embora o nº 1 do art. 1273º (designadamente pela circunstância de aludir a “indemnização” e de, contrariamente ao que sucede com o nº 2, não se reportar expressamente ao enriquecimento sem causa) possa dar algum suporte literal a entendimento como o que foi adotado pelo tribunal recorrido, esse seria, no entanto, um entendimento erróneo. Na realidade, também as benfeitorias necessárias têm que ser reembolsadas segundo a aplicação das regras do enriquecimento sem causa, por isso que não têm como causante qualquer ato inserível ao conceito de responsabilidade civil. Concordantemente com o que acaba de dizer-se, expendem Pires de Lima e Antunes Varela (ob. cit., vol. I, anotação ao art. 480º) que “a lei confere ao possuidor o direito de ser indemnizado, segundo as regras do enriquecimento sem causa, das benfeitorias necessárias que haja realizado e ainda das benfeitorias úteis que não possam ser levantadas sem detrimento da coisa (art. 1273º)”. E Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª ed., pp. 515 e 516) aduz exatamente o mesmo, aí onde afirma que, tratando-se de benfeitorias necessárias ou úteis realizadas pelo possuidor, não está em causa a reparação do dano (essa reparação seria, acrescenta o ilustre professor, a finalidade própria da responsabilidade civil), mas sim “suprimir ou eliminar o enriquecimento de alguém à custa de outrem”. Também Menezes Leitão (Direitos Reais, 4ª ed., p. 147) significa que o reembolso das benfeitorias necessárias está igualmente submetido às regras do enriquecimento sem causa. Concordantemente, o mesmo autor expende em outro lugar (Direito das Obrigações, Vol. I, 4ª ed., pp. 413, 414 e 418) que no caso das benfeitorias úteis e necessárias a que alude o art. 1273º do CCivil se está perante um caso de enriquecimento sem causa resultante de despesas efeituadas por outrem (incremento de valor de coisas alheias), que dá origem a uma obrigação de restituir».
Vejamos, então, se à luz das regras do enriquecimento sem causa, a A./reconvinda está obrigada a restituir ao 10.º R. o que o mesmo despendeu com os trabalhos referidos no n.º 33 dos factos provados.
Cumpria ao 10.º R., que invocou o direito de ser indemnizado por benfeitorias, o ónus de alegar e provar factos que permitissem considerar preenchidos os requisitos de umas e outras, nomeadamente, que os trabalhos/obras que levou a cabo eram indispensáveis à conservação da coisa, com vista a evitar a sua perda, destruição ou deterioração, ou que lhe aumentaram o valor.
Por ouro lado, era, também, ao 10.º R./reconvinte que competia alegar e provar os pressupostos do enriquecimento sem causa, nomeadamente, a falta de causa da deslocação patrimonial e a existência do enriquecimento patrimonial da A. (cfr. art. 342.º, n.º 1, do CC).
Ora, desde logo, provou-se, apenas, que o R. procedeu à desmatação, limpeza e outros “melhoramentos”, como colocação de manilhas na vala, maquinaria, preparação para saneamento e electricidade, não se tendo provado que com esses trabalhos o R. tenha despendido a quantia que havia alegado (€ 8.764,00) ou qualquer outra.
Nada mais foi, concretamente, alegado ou provado que permita entender que tais trabalhos visaram evitar a perda, destruição ou deterioração do prédio (e que, por isso, eram necessários) ou que, não sendo indispensáveis, lhe aumentaram o valor (sendo, portanto, úteis).
Desconhece-se sequer, por falta da pertinente alegação, o estado em que se encontrava o prédio (para além do seu aspecto abandonado, sem cultivo, com ervas, silvas e mato – cfr. n.º 27 dos factos provados) e, por conseguinte, se eram necessários ou úteis os trabalhos nele feitos pelo 10.º R., se representavam para ele uma simples opção ou, ao invés, uma imposição ou se a A. sempre teria que executá-los e custeá-los caso o R. os não tivesse levado a cabo.
Por isso, aqui também, nada nos permite entender que ocorreu um enriquecimento da A. à custa do 10.º R.
Acresce que competia, ainda, ao 10.º R. alegar e provar que os trabalhos são insusceptíveis de serem levantados sem detrimento do prédio e que aumentaram o seu valor (facto que não decorre da mera constatação da sua realização), o que não fez (a não ser em termos puramente vagos e conclusivos – art. 76.º in fine da contestação), limitando-se a alegar os montantes que despendeu, isto é, a medida do seu empobrecimento.
Com efeito, conforme se decidiu no acórdão da RC de 24.01.2023, www.dgsi.pt, «iv) O direito primário do possuidor nas benfeitorias úteis é de as levantar; para o direito secundário de indemnização em valor deve o mesmo alegar e provar que o levantamento das benfeitorias realizadas na coisa causa a esta um dano significativo, sem prejuízo de uma apreciação objectiva pelo tribunal; v) Compete a quem reclama indemnização por benfeitorias que não se possam levantar o ónus da alegação e prova de que as obras/trabalhos por si realizadas aumentaram o valor do prédio».
Salienta-se, pertinentemente, neste aresto que «o direito a indemnização por benfeitorias não se confunde com o reembolso das respectivas despesas (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, II, pág. 757 e Acórdão do STJ de 27/09/2012, CJ, Ac. STJ, 3.º, pág. 63-72). É que, uma coisa é o custo duma despesa feita para melhorar a “coisa” e outra, diferente, o valor que tal despesa acrescentou à coisa. A indemnização por benfeitorias úteis é calculada segundo as regras do enriquecimento sem causa (artigo 1273.º do Código Civil) – com fundamento no princípio geral de direito que veda o enriquecimento injusto à custa de outrem – o que significa que o despendido funciona apenas como limite máximo, tendo porém o proprietário que pagar tão só (dentro de tal limite máximo) o valor que as benfeitorias aportaram para a coisa. Como refere Menezes Leitão (in Direito das Obrigações, Vol. I, Almedina, 2017, págs. 435-437), “em se tratando de benfeitorias úteis o enriquecimento não consiste na poupança da despesa pelo proprietário (pois este poderia não a realizar), mas antes no correspondente incremento de valor da coisa, que pode ser restituído através do ius tollendi (que corresponde à restituição em espécie, nos termos do art. 479º, nº1) ou através da restituição do valor correspondente, em caso de impossibilidade (art. 1273º, nº 2 e art. 479º).”».
Enfim, aqui também, não foram alegados e provados factos que permitissem concluir no sentido da existência de um enriquecimento da A. em virtude dos trabalhos descritos no n.º 33 dos factos provados, improcedendo, por isso, a pretensão do 10.º R. fundada no instituto do enriquecimento sem causa.
E, por consequência, não sendo o 10.º R./reconvinte titular do inovado direito de crédito, improcede, de igual forma, o pedido de reconhecimento do direito de retenção que formulou.
4.4. Os recorridos suportarão as custas do recurso, por terem ficado vencidos (art. 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).

V – DISPOSITIVO
Pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se a sentença recorrida, que se substitui por outra em que se decide o seguinte:
I – Julga-se a acção totalmente procedente, por provada, e, em consequência:
a) reconhece-se o direito de preferência da A. na venda, realizada no dia 31.05.2022, do prédio prédio rústico sito em ..., com área total de 9.750 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de Alcochete com o n.º 1924 da freguesia de ... e inscrito na matriz cadastral sob o artigo 55.º da secção "AS” da mesma freguesia, pelo preço de € 65.000,00 (sessenta e cinco mil euros);
b) substitui-se e coloca-se a A. na posição do 10.º R. no referido contrato de compra e venda, com efeito retroactivo a 31.05.2022, atribuindo-se ao 10.º R. a quantia de € 65.000,00 depositada nos autos;
c) ordena-se o cancelamento de todos os registos de aquisição e inscrições matriciais e cadastrais efectuadas a favor do 10.º R. com base na escritura referida no n.º 16 dos factos provados;
II – Julga-se a reconvenção totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, absolve-se a A./reconvinda dos pedidos contra si formulados pelo 10.º R./reconvinte.
III – Condenam-se todos os RR. nas custas da acção e o 10.º R. nas custas da reconvenção.
IV – Condenam-se os recorridos nas custas da apelação.
*
Lisboa, 26.06.2025
Os Juízes Desembargadores,
Rui Oliveira
Marília Fontes
Octávio Diogo