HERANÇA JACENTE
HERANÇA INDIVISA
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
Sumário

I-A lei confere personalidade judiciária à herança jacente, a qual não se confunde com a herança indivisa ou por partilhar;
II-Aceite a herança, cessa a personalidade judiciária atribuída à herança jacente e, quem pode intervir como partes são os respectivos titulares, enquanto herdeiros do de cujus, ou o cabeça-de-casal naquelas situações em que a lei expressamente o prevê.
III-A falta de personalidade judiciária constitui uma exceção dilatória insuprível, isto é, uma exceção que não consente suprimento.

Texto Integral

Acordam os Juízes da 8ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO:
A - Partes:
Autores: AA, BB, CC e Assembleia de Deus DD em ...
Ré: Herança Ilíquida e indivisa aberta por óbito de EE
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B - Objeto do litígio: na presente ação de simples apreciação positiva os autores vieram pedir que seja reconhecido aos autores a qualidade de legatários em comum e nas percentagens de trinta por cento para o BB, trinta por cento para a AA, quinze por cento para a CC e vinte e cinco por cento para a Assembleia de Deus Pentecostal em ..., do prédio urbano composto por casa de rés do chão para habitação e logradouro, com a área coberta de 105 m2 e descoberta de 400m2, sito em ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ..., inscrito na matriz urbana da freguesia da ... sob o artigo …, por legado de EE, e seja reconhecida capacidade aos autores para, em conjunto, procederem à venda do prédio identificado na alínea anterior, nos termos e condições que entenderem convenientes, requerendo previamente os atos de registo predial e demais documentos necessários à realização da mesma venda; ¬ para tanto alegaram que o autor da herança EE, falecido em 20.07.2016, no estado de solteiro, outorgou testamento no qual os instituiu legatários, declarando não ter descendentes nem ascendentes e distribuir toda a herança em legados, e que a casa e recheio bem como o terreno situados na ..., em ..., devem ser vendidos e o produto da venda deverá ser distribuído na proporção acima indicada; ao pretenderem proceder ao registo do prédio na Conservatória do Registo Predial em seu nome foram confrontados com a recusa da Conservadora, o que os impossibilita de alienar o prédio conforme vontade do testador, de acordo com a qual, o prédio que possuía na ..., passasse por sua morte para a esfera jurídica dos autores; ¬ citada editalmente a herança aberta por óbito de EE, e cumprido o disposto no artigo 21.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, o Ministério Público contestou, alegando que os autores, na sua qualidade de legatários enquanto sucessores de EE, aceitaram os legados que este lhes deixou em testamento, não tendo sido alegados factos dos quais resulte que a herança em causa dispõe de personalidade judiciária. Concluiu pedindo a absolvição da instância da ré invocando que a citação edital foi indevidamente empregue (artigo 188.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil), pedindo que seja declarada nula a citação e nulos os atos subsequentes ou, caso assim não se entenda, seja dado sem efeito a citação do Ministério Público nos termos do artigo 21.º, n.º 1, do Código de Processo Civil ou, caso assim não se entenda, seja a ação julgada procedente ou improcedente, conforme a prova produzida; ¬ os autores responderam, alegando desconhecer «se existe algum acervo hereditário, bem como quem são os herdeiros legítimos, porquanto o testador não deixou herdeiros legitimários, nem instituiu herdeiros testamentários», desconhecendo ainda se tais herdeiros aceitaram a herança e, «não tendo a herança sido declarada vaga, teremos de classificar a herança como “jacente”», concluíram pedindo que se considere que a herança em causa tem personalidade judiciária.
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Foi proferido despacho saneador sentença que decidiu julgar procedente a exceção de falta de personalidade judiciária da ré, absolvendo-se a mesma da instância. *
Inconformados com tal decisão, dela interpuseram recurso os Autores, concluindo da forma seguinte:
1 – Os ora recorrentes não se conformam com a decisão recorrida, porquanto consideram ter havido falta de decisão de mérito, que deveria ter sido proferida.
2 – Não deveria ter sido proferida decisão de absolvição da instância, por falta de personalidade judiciária da ré.
3 – A falta de personalidade judiciária da herança indivisa pode ser sanada através da intervenção na ação de todos os herdeiros.
4 – O Mmo Juiz a quo deveria ter convidado os AA. a, querendo, retificar a identificação dos RR. e não avançar de imediato para uma decisão de absolvição da instância, atuando o poder-dever resultante dos Artigo 6º, nº2, e 726º, nº4, do Código de Processo Civil.
5 - Termos em que deve dar-se provimento ao presente recurso, sendo a decisão recorrida revogada e substituída por despacho que convide os AA. a, querendo, chamarem aos AA. como RR. os restantes herdeiros, em substituição da Herança Ilíquida e Indivisa, prosseguindo os autos para ser proferida uma decisão de mérito.
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O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo da forma seguinte:
1.Por sentença proferida nos autos em epígrafe, foi julgada procedente a exceção de falta de personalidade judiciária da ré (herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de EE), absolvendo-se a mesma da instância, nos termos do disposto nos artigos nos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea c), 578.º e 278.º, n.º 1, alínea c), todos do Código de Processo Civil;
2. As questões suscitadas no recurso relacionam-se com o estado da herança aberta por óbito de EE e com os poderes-deveres do Tribunal a quo;
3. EE celebrou testamento em 30/03/2016, nos termos do qual, declarou que não tinha ascendentes nem descendentes e distribuiu toda a sua herança em legados;
4. Do testamento resulta que foi legado aos ora recorrentes o produto da venda do prédio sito na ...”, na ..., em diferentes proporções;
5. A personalidade judiciária consiste na suscetibilidade de ser parte;
6. A lei confere personalidade judiciária à herança jacente, conforme prevê o artigo 12.º, alínea a), do Código de Processo Civil;
7. Nos termos do artigo 2046.º do Código Civil “Diz-se jacente a herança aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado”;
8. A herança jacente não se confunde com a herança indivisa ou por partilhar;
9. A aceitação da herança pode revestir forma expressa ou tácita, nos termos dos artigos 217.º, 2056.º e 2057.º, todos do Código Civil;
10. No caso concreto, os herdeiros encontram-se determinados no testamento e aceitaram a herança conforme o disposto no artigo 2056.º, n.º 2, do Código Civil, ao intentarem a ação e por previamente terem realizado tentativas da prática de atos relativamente ao bem legado;
11. Não se verifica a situação de jacência prevista no artigo 2046.º, do Código Civil pelo que a decisão do Tribunal a quo de não reconhecimento da personalidade judiciária à herança não nos merece censura;
12. Ademais, os recorrentes invocam que a falta de personalidade judiciária da herança indivisa poderia ter sido sanada através da intervenção de todos os herdeiros;
13. Ao abrigo do princípio da autorresponsabilidade das partes, os ora recorrentes tinham o ónus de identificar corretamente os sujeitos processuais, não podendo imputar ao Tribunal a correção da sua omissão;
14. Contudo, à luz do princípio do inquisitório, cabe ao juiz ordenar e realizar todas as diligências que se revelem necessárias ao apuramento da verdade e à justa composição do litígio;
15. Conforme dispõe o artigo 30.º, do Código de Processo Civil, o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar e o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer;
16. No caso vertente, os ora recorrentes não podem ser autores e réus ao mesmo tempo na ação porquanto tal implicaria a violação do princípio da dualidade das partes e do contraditório;
17. Não se vislumbra qual o interesse que possam ter em contradizer os herdeiros da herança em relação àquilo que é peticionado pelos Autores, uma vez que não são estes que estão a levantar qualquer impedimento à conduta que os mesmos pretendem levar a cabo;
18. A falta de personalidade judiciária constitui uma exceção dilatória insuprível, isto é, uma exceção que não consente suprimento.
19. É certo que as dificuldades práticas que a questão da personalidade judiciária da herança indivisa levanta tem levado os tribunais, apesar da afirmação da impossibilidade de sanação do vício de falta de personalidade judiciária, a decisões no sentido de permitir o prosseguimento das ações, recorrendo a uma interpretação bondosa dos termos em que a ação é proposta.
20. E, nesse seguimento, a fazer-se uma interpretação da petição inicial de modo a que a ação possa ser aproveitada, evitando-se uma absolvição da instância por razões meramente formais, de modo a que haja prevalência do fundo sobre a forma.
21. Assim, têm existido decisões que, estando todos os herdeiros devida e inequivocamente identificados na ação, se admite o prosseguimento da ação contra os mesmos, fazendo-se uma correção da legitimidade passiva.
22. Ainda que com recurso a uma interpretação bondosa, não poderia o Tribunal considerar que quem deveria figurar como Réus eram os herdeiros da herança ilíquida e indivisa em causa, não se impondo qualquer correção.
23. Por todo o exposto, é nosso entendimento que Tribunal a quo atuou dentro dos limites da lei, sem qualquer violação dos princípios e normas processuais aplicáveis.
Deste modo, a decisão recorrida não merece qualquer reparo, devendo ser mantida na íntegra e, consequentemente, deve ser negado provimento ao recurso interposto pelos recorrentes.
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C - Questões que cumpre solucionar :
Nos presentes autos importa apreciar a exceção da falta de personalidade judiciária da ré e bem assim se essa excepção é passível de suprimento.
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II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A – Dos relevantes, dão-se por assentes os seguintes factos, com base no acordo das partes (expresso ou tácito) e no teor dos documentos que infra se discriminam (autênticos ou não impugnados), tudo nos termos dos artigos 371.º do Código Civil e artigos 574.º, n.ºs 2 e 3, e 587.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil:
1. EE faleceu no dia 20 de julho de 2016, na freguesia de ..., concelho de Lisboa, no estado de solteiro, com a última residência habitual na ... – documento 1 junto com a p. i. (certidão de óbito)
2. EE deixou testamento outorgado em 30 de março de 2016, exarado de fls. 90 a fls. 91 do Livro de Testamentos n.º 7-T do Notário FF, com Cartório na Av. ... Lisboa – documento n.º 2 junto com a p. i. (certidão do testamento público).
3. No mencionado testamento o falecido EE declarou «que não tem ascendentes nem descendentes e que faz o seu testamento, distribuindo toda a sua herança em legados do seguinte modo:
1. A casa e respetivo recheio bem como o terreno, situados na ...” em ..., devem ser vendidos e o produto da venda deverá ser distribuído da seguinte forma:
a) Lega vinte e cinco por cento à congregação denominada “Assembleia de Deus” da ... – religião que os seus pais professaram até ao fim da vida; b) Lega trinta por cento ao amigo BB; c) Lega trinta por cento à colaboradora e amigo AA; e d) Lega quinze por cento à colaboradora e amiga CC
2. Lega ao seu primo GG, residente em ... (ou aos seus herdeiros, caso este já tenha falecido) os valores depositados em contas bancárias à ordem ou a prazo e quaisquer outros tipos de aplicações ou produtos financeiros, titulados em seu nome, existentes na Caixa Geral de Depósitos, Santander Totta (anteriormente Totta & Açores) e Banco BPI (anteriormente Banco Fonsecas & Burnay).
3. Lega, em comum e partes iguais, aos seus primos HH e II, residentes na ... (ou aos seus herdeiros, casos estes já tenham falecido) a fração autónoma correspondente ao 5.ºA do prédio urbano, sito na ..., ou o seu valor e respetivo recheio.
4. Lega em comum e partes iguais, aos seus afilhados e amiga, respetivamente, JJ, residente em ..., KK, residente no ..., e LL, residente em ..., a fração autónoma correspondente ao 3.º B direito, do prédio urbano, sito na ..., ou o seu valor e respetivo recheio. Que revoga todos os testamentos que anteriormente haja feito. Que, deste modo, dá por concluído o seu testamento.» – documento n.º 2 junto com a p. i. (certidão do testamento público).
4. O prédio descrito em 3., ponto 1, corresponde a uma casa de rés do chão para habitação e logradouro, com a área coberta de 105 m2 e descoberta de 400 m2, sito em ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º …, inscrito na matriz urbana da freguesia da ... sob o artigo …. Documentos n.ºs 4 e 5 juntos com a p. i. (certidão do Registo Predial e Caderneta. 5. Em 11.04.2022 foi subscrito pelo “Conservador de Registos”, relativamente à apresentação n.º ... de 2022-03-30 da ficha …, freguesia da ..., o seguinte despacho de recusa: «O registo requerido pela apresentação supra foi recusado por não estar titulado nos documentos apresentados. No título base a registo – um testamento –, o testador não instituiu os legatários aí mencionados como beneficiários do prédio requerido, mas dispôs que o mesmo prédio deveria ser vendido e o produto (d)a sua venda distribuído pelos mesmos, nas proporções indicadas no título. Consequentemente o conteúdo do testamento é um legado obrigacional que não pode basear a aquisição do prédio em questão, tal como foi requerido. Artºs. 69º, 69º nº 1 al. b) e 71º todos do CRP.» - documento n.º 6 junto com a p. i. (despacho de qualificação).
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DE DIREITO:
Por sentença proferida nos autos em epígrafe, foi julgada procedente a exceção de falta de personalidade judiciária da ré (herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de EE), absolvendo-se a mesma da instância, nos termos do disposto nos artigos nos artigos 576.º, n.ºs 1 e 2, 577.º, alínea c), 578.º e 278.º, n.º 1, alínea c), todos do Código de Processo Civil;
Neste âmbito, a única questão submetida a apreciação é a de saber se a Ré Herança Ilíquida e Indivisa aberta por óbito de EE dispõe de personalidade judiciária (como sustenta os apelantes) ou, ao invés, se, conforme decidido pelo tribunal a quo, a mesma é destituída de personalidade judiciária, com a consequente absolvição da instância dos RR., pois que se trata, de forma indiscutida, de excepção dilatória.
E ainda com os poderes-deveres do Tribunal a quo;
A lei, no art. 12º do CPC, onde se prevêem excepções ao princípio da correspondência entre personalidade jurídica e personalidade judiciária previsto no art. 11º n.º 2, atribui na alínea a) de tal preceito personalidade judiciária à herança jacente, isto é, à herança cujo titular ainda não esteja determinado (art. 2046º e sgs. do C. Civil).
Como se sabe a personalidade judiciária é, como refere CASTRO MENDES, “ Direito Processual Civil ”, AAFDL, 1980, II volume, pág. 13, o pressuposto dos restantes pressupostos processuais subjectivos relativos às partes.
Dispõe o artigo 11.º, nº 1 do Código de Processo Civil (adiante designado apenas por CPC), que a personalidade judiciária consiste na susceptibilidade se ser parte, sendo que, quem tiver personalidade jurídica tem igualmente personalidade judiciária – cfr. nº 2 do citado preceito
Ora, a personalidade judiciária acha-se normalmente associada à personalidade jurídica, consistente na susceptibilidade de ser titular de direitos e obrigações, como resulta inequivocamente do citado n.º 2 do artigo 11º.
Acontece que, esta regra de correspondência, ou seja, da coincidência ou da equiparação, entre a personalidade jurídica e a personalidade judiciária, não se verifica na situação inversa, pois que, em certas situações a lei confere personalidade judiciária a determinadas entidades carecidas de personalidade jurídica, como é v.g. o caso da herança jacente (cfr. artigos 12º a 14.º do CPC.)
Esta extensão da personalidade judiciária a quem não possui ou é duvidoso que possua personalidade jurídica, «é uma forma expedita de acautelar a defesa judiciária de legítimos interesses em crise, nos casos em que haja qualquer situação de carência em relação à titularidade dos respectivos direitos (ou dos deveres correlativos).» Vide A. VARELA, MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO e NORA, “ Manual de processo Civil ”, 2ª edição, pág. 111
Para o caso que ora importa dirimir, estatui o artigo 12.º do CPC que:
“ Têm ainda personalidade judiciária:
a) A herança jacente e os patrimónios autónomos semelhantes cujo titular não estiver determinado. [corresponde, sem alterações, ao anterior art. 6º, al. a)- do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pelo DL n.º 180/96 de 25.09.]
Este citado art. 6º tinha na redacção anterior à revisão processual operada pelo DL n.º 329-A/95 de 12.12. e DL n.º 180/96 de 25.9, a seguinte formulação:
“ A herança cujo titular ainda não esteja determinado e os patrimónios autónomos semelhantes, mesmo que destituídos de personalidade jurídica, têm personalidade judiciária ”.
Portanto, no domínio do Código do Processo Civil anterior aos citados diplomas legais, a herança em relação à qual se verificasse a indeterminabilidade do respectivo titular gozava de personalidade judiciária
Evidentemente que, sendo a herança um património autónomo, cumpre salientar que somente na primeira parte do citado preceito - “ herança cujo titular ainda não esteja determinado ”- se pretendia abranger aquela realidade constituída pelo conjunto de relações jurídicas, inseridas na esfera jurídica do de cujus, que são transmissíveis e que constituem precisamente a herança de uma pessoa falecida.
Só, pois, naquele enquadramento normativo, em caso de indeterminação dos respectivos titulares, uma qualquer massa patrimonial proveniente da esfera de pessoa falecida podia ser enquadrada no artigo 6.º do anterior Código de Processo Civil, e só nesse caso disporia de personalidade judiciária, ou seja, constituiria uma pessoa meramente judiciária, ainda que desprovida de personalidade jurídica.
Portanto, da concatenação, dos dois textos legais verifica-se que se procedeu à substituição da expressão “herança cujo titular ainda não esteja determinado” pelo sinónimo “herança jacente” estatuído no artigo 2046.º do Código Civil e aditou-se à expressão “patrimónios autónomos semelhantes” a expressão “cujo titular não estiver determinado”.
Como razão justificativa desta alteração da letra da lei refere J. LEBRE de FREITAS, “ Código de Processo Civil Anotado ”, I volume, 1999, pág. 20, que se «entendeu que a fórmula proposta pela comissão Varela, que abarcava igualmente a herança já aceite mas ainda não partilhada (art. 2050º do Código Civil), ia longe demais na atribuição da personalidade judiciária, que o facto de serem já conhecidos os sucessores tornava redundante.»
Nesse sentido, milita, ainda MIGUEL TEIXEIRA de SOUSA, “ As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa ”, Lex, 1995, pág. 18, quando refere que mesmo depois da herança partilhada, os bens herdados continuam a constituir um património autónomo (arts. 2068º e 2071º do Cód. Civil), «sem que alguma vez se tenha equacionado a questão de lhe [ao dito património autónomo] ser atribuída personalidade judiciária.» Vide, ainda, no mesmo sentido, após os citados DL n.º 329-A/95 e DL n.º 180/96, CARLOS LOPES do REGO, “ Comentários ao Código de Processo Civil “, 1999, pág. 32.
Resulta, assim do exposto que a lei só atribui personalidade judiciária à herança jacente que, como se referiu, não se confunde com herança por partilhar ou indivisa, pelo que, no caso que nos ocupa, só se a herança aberta por óbito de EE, puder ser considerada como herança jacente pode ela ser parte na presente acção por gozar então de personalidade judiciária.
No caso dos autos foi indicada como Ré a Herança Ilíquida e indivisa aberta por óbito de Raúl Batista Nunes e foi requerida a citação edital dos herdeiros legítimos.
Nos termos do artigo 2046.º do Cód. Civil “ Diz-se jacente a herança aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado ”.
Ora, permanecendo sem aceitação ou declaração de vacatura a favor do Estado (artigo 2132.º do Cód. Civil), a herança assume nesta situação transitória o lugar do de cujus sendo, pois, titular dos direitos e obrigações.
Todavia, esta personificação judiciária pode não a acompanhar até à partilha, cessando, como se referiu, com a aceitação por parte dos sucessores, efectuada nos termos previstos nos artigos 2050.º e segs. do Cód. Civil.
Claro que sempre se poderia questionar se apenas nestas situações, de jacência da herança, esta goza de personalidade judiciária, isto é, se não assistirá àquela, na fase de indivisão até à partilha, em que a mesma permanece, distinta do património dos herdeiros, e afecta a um fim próprio, a personificação judiciária que dispunha antes da respectiva aceitação por aqueles e, portanto, a possibilidade de ser parte processual activa e passiva em processo civil
Nesse sentido se pronunciava A. VARELA, op. cit., pág. 111, nota 1, defendendo, por aplicação analógica do disposto art. 6º, a persistência da personalidade judiciária da herança indivisa, estando em curso inventário judicial, com a consequência de as acções tendentes a defender/ atingir interesses do património hereditário terem de ser intentadas em nome ou contra a herança. Vide, neste sentido, AC RP de 20.02.1995, CJ, tomo 1, pág. 222
Cremos, não obstante, a pena autorizada daquele Ilustre Professor que assim não será.
Com efeito, cessando a situação de jacência, como supra se referiu, com a aceitação do chamamento por parte do sucessível ou sucessíveis, pode mesmo assim a herança continuar indivisa, não partilhada e, portanto, sem se verificar a definitiva confusão ou integração dos bens dela componentes no património do ou dos herdeiros, restringindo a personalidade judiciária, nos termos do art. 6º, à herança que, se bem que impartilhada, se mostre ainda não aceite - herança jacente. Vide, neste sentido, além de J. LEBRE de FREITAS, op. cit., pág. 20, M. TEIXEIRA de SOUSA, op. cit., pág. 18-19, C. LOPES DO REGO, op. cit., pág. 32, A. ABRANTES GERALDES, “ Personalidade Judiciária ”, CEJ, 1997, pág. 6 e segs… e a inúmera jurisprudência invocada nesta última obra.
De facto, como salienta, de forma claríssima, C. LOPES do REGO, op. cit., pág. 32, por via da alteração legislativa (DL n.º 329-A/95 de DL n.º 108/96) ao art. 6º do anterior Código de Processo Civil [que foi transposto para o actual art. 12ºa, al. a)], «afastou-se a maior amplitude da personalidade judiciária da herança que constava do n.º 3 do art. 61º do Ant. 1993 [a acima denominada Comissão Varela], onde se atribuía personalidade à “ herança ainda não partilhada ou cujo titular ainda não esteja determinado ”: na verdade, se já correu a aceitação da herança, o contraditório deve estabelecer-se necessariamente com os herdeiros que já a aceitaram, apesar de ainda se não ter procedido à respectiva liquidação e partilha, sem prejuízo dos casos excepcionais em que a lei substantiva atribui poderes de administração – e, portanto, de representação em juízo – ao cabeça-de-casal.»
Como assim, a herança indivisa ou não partilhada apenas enquanto se mantiver na situação de jacente goza de personalidade judiciária, passando a […] partir da cessação daquela situação, operada mediante a sua aceitação por parte dos sucessíveis chamados, a não dispor de tal prerrogativa processual pelo que não poderá, em seu próprio nome, desempenhar o papel de parte processual em lide forense, demandar ou ser demandada.
Portanto, aceite a herança, cessa a personalidade judiciária atribuída à herança jacente e, quem pode intervir como partes são os respectivos titulares, enquanto herdeiros do de cujus, ou o cabeça-de-casal naquelas situações em que a lei expressamente o prevê.
Aliás, isso mesmo resulta do artigo 2091,º, nº 1, do Cód. Civil, no qual se estatui que : “Fora dos casos declarados nos artigos anteriores, e sem prejuízo do disposto no art. 2078º, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros” ”
Ou seja, fora dos casos excepcionais em que se poderá verificar a intervenção do cabeça de casal, ou de qualquer herdeiro ou mesmo terceiro, casos esses previstos nos artigos 2075.º, 2078.º e 2087.º a 2089.º do mesmo diploma, as acções com interesses respeitantes ao acervo hereditário ainda por partilhar terão de ser intentadas por ou contra a totalidade dos herdeiros, actuando estes em litisconsórcio necessário, activo ou passivo – cfr. art. 33º, n.º 1 do CPC. Vide, neste sentido, inter alia, AC RP de 19.05.2010, relator Des. SILVIA PIRES, in www.dgsi.pt
Trata-se, portanto, de legitimidade imposta por lei, decorrente da falta de personalidade judiciária por parte da herança ilíquida e indivisa.

Destarte, estando os herdeiros já determinados e tendo os mesmos aceite a herança – e tocado, assim, o período de pendência da herança, portanto, o termo da herança jacente –, tornando-se inviável a essa massa patrimonial por si demandar ou contradizer, por falta de personalidade judiciária, necessário se torna que no lugar dela intervenham os respectivos titulares em bloco, seja, os ditos herdeiros que, mediante o competente acto de aceitação, nela se viram encabeçados.

Decorre, assim, do exposto, que o relevante, para efeitos de aferição da personalidade judiciária da Herança Ré, é saber, por um lado, se os seus herdeiros se encontram determinados e, ainda, se aceitaram eles a herança, pois que, assim sucedendo, será, a nosso ver, manifesto que a dita Herança (não sendo jacente) não dispõe de personalidade judiciária.
Vejamos.
Que os herdeiros se encontram determinados não existem quaisquer dúvidas pois que assim se encontram identificados no testamento que os instituiu herdeiros dos legados ai indicados.
E a nosso ver, é patente, ainda, que os mesmos herdeiros aceitaram a dita herança.
A aceitação da herança pode ser expressa ou tácita – art. 2056º, n.º 1 do Cód. Civil.
A aceitação, como manifestação de vontade positiva, pode ser feita expressa ou tacitamente, é irrevogável e, na modalidade de expressa, não está sujeita à forma […]exigida para a alienação da herança – cfr. arts. 2056º e 2063º, «a contrario sensu», e 2061º, todos do Cód. Civil.
A distinção entre a declaração expressa ou tácita tem a ver com a natureza directa ou indirecta da declaração
Em função deste critério, ensinava MANUEL de ANDRADE, “ Teoria Geral da Relação Jurídica ”, 1987, II volume, pág. 129-134, que “ ser expressa a declaração que se destina unicamente ou em primeira linha a exteriorizar certa vontade negocial (declaração directa ou imediata); e tácita a que se destina unicamente ou em via principal a outro fim, mas «a latere» permite concluir com bastante segurança uma dada vontade negocial (declaração indirecta ou mediata).”
E, ainda, “ na declaração tácita o comportamento declarativo não aparece como visando directamente a exteriorização da vontade que se considera declarada por essa forma…
Apenas dele se infere que o declarante, em via mediata, oblíqua, lateral, quis também exteriorizar uma tal vontade – ou pelo menos teve consciência disso. Costuma falar-se, a este propósito, em procedimento concludente, em factos concludentes (facta concludentia : facta ex quibus voluntas concludi potest), acrescentando-se que tais factos devem ser inequívocos.»
O art. 2056º, n.º 2 do Cód. Civil define apenas a aceitação expressa.
Já quanto à aceitação tácita deixa o nosso Código ao intérprete a integração do conceito.
No entanto, conforme resulta da lição antes exposta, será de considerar aceitação tácita da herança aquela que se deduz de factos que, com toda a […]probabilidade, a revelem ou que não poderiam ser praticados senão nesse pressuposto (a aceitação), embora se excluam os actos de administração praticados pelo sucessível (art. 2056º, n.º 3 do Cód. Civil), na medida em que estes podem traduzir o cuidado em acautelar ou defender os bens da herança, sem significarem a defesa de um direito próprio.
No caso dos autos, como já se referiu, os herdeiros autores através da propositura da presente acção e os seus termos manifestam de forma (tácita) inequívoca essa aceitação.
Desta forma, dúvidas não existem, a nosso ver, que a HERANÇA Ré não é jacente e, em razão disso, face ao antes exposto, não dispõe de personalidade judiciária. Vide, neste sentido, e cuja lição aqui se segue, AC RP de 9.06.2009, relator Des. Cândido Lemos, AC RP de 13.12.2011, relator Des. JOÃO RAMOS LOPES e AC RP de 19.10.2015, relator Des. MANUEL DOMINGOS FERNANDES, ambos in www.dgsi.pt.
E assim sendo, constituindo a aludida falta de personalidade judiciária, excepção dilatória insuprível (vide, neste sentido, por todos, A. ABRANTES GERALDES, “ Temas da Reforma do Processo Civil, II volume, 4ª edição, pág. 60, AC RP de 9.06.2009 e AC RP de 13.12.2011, ambos já citados), nenhuma censura merece a decisão proferida pelo tribunal a quo, que é, pelo exposto, de manter.
Acresce salientar que não só não há lugar a qualquer possibilidade de suprimento da falta de personalidade judiciária, que como dissemos é insuprível, como não está em causa uma questão de ilegitimidade passiva, essa sim passível de suprimento, nos termos do art.6º, nº2, do CPC.
Dai que, ainda que tal normativo legal se aplicasse apenas nesta fase do recurso, é prévio à apreciação da legitimidade a existência de personalidade judiciária, que, como vimos, não existe nos autos.
Em tudo o mais se acolhe o decidido na decisão objecto de recurso, para cujos termos se remete.

DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes da 8ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas a cargo dos Apelantes.

Lx, 26 de Junho de 2026
Maria Amélia Ameixoeira
Carla Figueiredo
Maria Carlos Duarte Calheiros