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PROCESSO DE CANDIDATURA À ADOPÇÃO
CERTIFICADO DE ADOPTABILIDADE
CADUCIDADE
COMPETÊNCIA MATERIAL
Sumário
Sumário: (da responsabilidade da relatora, ao abrigo do artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil): - A competência do tribunal, fixada com referência à data da propositura da acção, é aferida em função dos termos em que a acção é proposta, seja quanto aos seus elementos objectivos, pedido e causa de pedir, seja quanto aos seus elementos subjectivos, as partes; - O processo de candidatura à adopção é um processo de cariz administrativo regulado pelo Regime Jurídico do Processo de Adopção aprovado pela Lei 143/2015 de 08.09, em que o tribunal apenas é chamado a decidir em caso de recurso da decisão que rejeita a candidatura à adopção, altura em que aprecia a pertinência ou não dos fundamentos invocados pelo organismo da segurança social para a rejeição; - O arquivamento do processo de candidatura por caducidade do certificado de selecção dos candidatos à adopção é acto de natureza administrativa, pois não envolve qualquer decisão susceptível de ser impugnada para o juízo de família e menores, sendo a sua apreciação da competência dos tribunais administrativos.
Texto Integral
ACORDAM NA 8ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
I-RELATÓRIO
I.... e L... intentaram no Juízo de Família e Menores de Lisboa a presente acção declarativa de processo comum contra a Santa Casa de Misericórdia de Lisboa, com sede no Largo Trindade Coelho, 1200-470 Lisboa, pedindo que seja revogada a decisão da requerida, datada de 9/5/2023, a qual deverá ser substituída por outra que determine a renovação do certificado de selecção e mantenha os autores como candidatos à adopção, com o prosseguimento do processo de adopção até à sua fase final.
A 6/9/2023 foi proferido despacho que determinou a notificação das partes, ao abrigo do art. 3º, nº 3 do CPC para, querendo se pronunciarem sobre a incompetência do tribunal.
Os autores responderam defendendo a competência do tribunal, atento o disposto no art. 46º, nº 1 da Lei nº 143/2015, já que a decisão da ré, que decidiu pela caducidade do certificado de selecção equivale a uma das possíveis formas de rejeição da candidatura à adopção. Se assim não se entender, deve atender-se ao facto de o art. 45º da referida Lei remeter para o art. 43º, que dispõe sobre a candidatura à adopção. Assim, se se aplica o mesmo procedimento à renovação do certificado de selecção não há razão para não aplicar o disposto no nº 1 do art. 46º previsto para a rejeição da candidatura.
Ordenada a citação da ré, esta contestou, defendendo a incompetência do tribunal em razão da matéria, sendo competentes os tribunais administrativos.
Os autores responderam à excepção de incompetência invocada, pugnando pela sua improcedência.
O MºPº aderiu aos argumentos apresentados pela ré na contestação.
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Foi, então, proferido despacho saneador que decidiu julgar verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria e, em consequência, declarou o Juízo de Família e Menores de Lisboa incompetente para, em razão da matéria, conhecer da presente acção, dela absolvendo a ré da instância.
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Inconformada com a decisão, veio a requerente interpor recurso, finalizando com as seguintes conclusões, que se transcrevem: “a) Vem o recurso interposto da decisão proferida pelo Tribunal a quo, que julgou verificada a exceção dilatória da incompetência absoluta do tribunal, em razão da matéria e, em consequência, declarou o “Juízo de Família e Menores de Lisboa incompetente, em razão da matéria, para os termos da presente ação, absolvendo da instância a Ré.”, considerando materialmente competente o Tribunal Administrativo e Fiscal. b) Com o devido respeito, os Apelantes não concordam com a decisão proferida e entendem que o Tribunal de Família Menores de Lisboa, onde a ação foi instaurada, é materialmente competente para dirimir o presente litígio. c) A Apelada proferiu uma decisão no sentido da alegada caducidade do certificado de seleção à adoção, de que os Apelantes eram (deveriam ser!) titulares, sem considerar o pedido de renovação apresentado pelos Apelantes, pelo que haverá que apreciar os fundamentos que levaram ao arquivamento/rejeição da candidatura, ao contexto em que a mesma ocorreu e a sua conformidade, ou não, com a lei aplicável, não estando em causa uma mera formalidade legal. d) Perante o pedido expresso de renovação do certificado apresentado pelos Apelantes deveria a Apelada ter tomado as diligências subsequentes, nos termos previstos no art.º 45.º n.º 1 e 2 do RJPA, o que, manifestamente, a Apelada não fez, limitando-se a proferir uma decisão de arquivamento da candidatura por alegada caducidade que não ocorreu. e) A avaliação efetuada pela Apelada, quanto aos pressupostos da caducidade do certificado não foi correta, o que terá de ser necessária e devidamente apreciado pelo douto Tribunal. f) A caducidade do certificado é uma forma de rejeição da candidatura / que conduz a tal resultado, nos termos art.º 45.º n.º 1 da RJPA, estando a competência material para dirimir tais conflitos prevista art.º 46 do mesmo diploma, que prevê que “Da decisão que rejeite a candidatura apenas cabe recurso, a interpor no prazo de 30 dias, para o tribunal competente em matéria de família e menores da área da sede do organismo da segurança social ou da instituição particular autorizada.” g) Se assim não se entender, o que não se concede e apenas de equaciona por dever de patrocínio, decorre do artigo 45.º, n.º 2 do RJPA, que “A renovação do certificado de seleção pressupõe a reapreciação da candidatura, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no artigo 43.º.” (destaque nosso), não restando dúvidas de que à renovação do certificado de seleção se aplica, com as necessárias adaptações, o previsto quanto à candidatura à adoção. h) Por maioria de razão, à recusa da renovação não tem como não se aplicar o disposto quanto à rejeição, e concretamente, o artigo 46.º, n.º1, do regime jurídico sub judice, que atribui competência ao Tribunal de Família e Menores para dirimir sobre o litígio. i) Estão em causa figuras que comportam as mesmas consequências, precedem do mesmo regime e reconduzem-se ao mesmo objetivo, que devem ser dirimidas e julgadas pelo mesmo Tribunal, o de Família e Menores, prevalecendo o RJPA sobre a lei geral (Lei da Organização do Sistema Judiciário, doravante, “LOSJ”), assegurando a certeza e a segurança jurídicas. j) A acrescer, a respeito das regras de competência material emergentes do CPC, o artigo 64.º que prevê que a competência em razão da matéria é “atribuída aos tribunais judiciais, quando as causas não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”, k) Sendo as leis de organização judiciária as responsáveis por determinar “quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e secções de competência especializada, nos termos e para os efeitos do artigo 65.º do mesmo Código”, cfr. artigo 65.º do CPC. l) Se se considerar que a caducidade não é uma forma de rejeição de candidatura, o que não se concede, mas por mero dever de patrocínio se equaciona, será, então, um caso omisso para efeitos do artigo 6.º do diploma preambular da Lei 143/2015, sendo, portanto, aplicáveis “as regras de processo civil que não contrariem os fins da jurisdição de família e menores.” (destaque nosso). m) O artigo 123.º da LOSJ dispõe sobre a competência dos Tribunais de Família e Menores, competindo a estes juízos intervir em questões relacionadas com o processo de adoção, nomeadamente "constituir o vínculo da adoção", nos termos e para os efeitos da al. c) do n.º 1. n) Prevendo o n.º 3 do mesmo artigo que "Nos casos em que a lei reserve a competência referida nos números anteriores a outras entidades, a competência dos juízos de família e menores respeita à reapreciação das decisões dessas entidades", sendo com esta reapreciação que se prende a ação instaurada pelos Apelantes, no sentido da reapreciação da decisão de arquivamento da candidatura, por alegada caducidade do certificado, proferida pela ora Apelada. o) O facto de o ato em causa ter sido praticado por uma pessoa coletiva de utilidade pública administrativa não conduz, necessária e inevitavelmente, à incompetência material do Tribunal de Família e Menores, não existindo qualquer relação obrigatória de causa-efeito nesse sentido. p) Tem sido entendido pela doutrina e jurisprudência que o processo de adoção compreende procedimentos de natureza administrativa e outros de natureza judicial, pelo que, embora o certificado de seleção possa consubstanciar um ato de natureza administrativa, daí não decorre que o processo de adoção seja um processo administrativo, a ser dirimido, necessariamente, junto dos Tribunais Administrativos e Ficais. q) Os tribunais competentes para estabelecer o vínculo da adoção são os Tribunais de Família e Menores e são igualmente competentes para conhecer dos incidentes que possam ser suscitados durante o processo, nomeadamente, os relacionados com o certificado de seleção. r) Ao contrário do que resulta da decisão recorrida, os Apelantes não instauraram qualquer ação, com idêntico pedido e causa de pedir, no Tribunal Administrativo, sob pena de alegada litispendência que nunca foi sequer suscitada, precisamente pelo facto de não ter sido instaurada a dita ação. s) A alegada “petição inicial” mencionada pela Apelada é somente a impugnação administrativa apresentada pelos Apelantes, dirigida à entidade que proferiu a decisão, ora Apelada, com C/c de “Sua Excelência Ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social” e “Exma. Senhora Presidente do Conselho Diretivo do Instituto da Segurança Social, IP” e não uma petição inicial apresentada junto do Tribunal Administrativo. t) Importa também atender à essência da matéria em causa nos autos – a constituição do vínculo da filiação, matéria de natureza verdadeiramente familiar, que envolve, quer a proteção da instituição família, constitucionalmente tutelada na nossa lei fundamental nos artigos 36.º e 67.º -, integração e desenvolvimento de crianças em situação de adotabilidade num agregado familiar estável, saudável e feliz, cujo superior interesse cabe aos Tribunais de Família e Menores (também) garantir. u) Estes são os Tribunais, efetivamente, melhor posicionados para garantir os mencionados interesses, decidindo sobre as matérias relacionadas com Menores e decisões inerentes aos respetivos processos. Termos em que deverá o presente recurso de apelação ser julgado totalmente procedente, por provado, revogando-se, em consequência, a decisão proferida pelo Tribunal a quo, e substituindo-a por outra que considere o Tribunal de Família e Menores de Lisboa, competente, em razão da matéria, para os termos da presente ação, assim se fazendo a costumada Justiça!”.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
A única questão a apreciar consiste em saber qual se o tribunal a quo é materialmente competente para julgar e decidir a presente acção.
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III-FUNDAMENTAÇÃO
1. Os Factos
Os factos a considerar são os que constam do relatório, a que acrescem os seguintes, resultantes dos documentos juntos com a petição inicial e que relevam para a decisão:
- No dia 9/3/2020 foi emitido, pela Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, “CERTIFICADO DE SELEÇÃO À ADOÇÃO”, nos termos do art. 44º do RJPA, atestando que I...e L..., foram seleccionados em 6/3/2020 como candidatos à adopção de uma ou uma fratria de duas crianças, conforme documento nº 1 junto com a p.i. e que aqui se dá por reproduzido;
- Do referido certificado consta que este tem a validade de três anos, a contar da data de selecção, podendo ser renovado por sucessivos e idênticos períodos a pedido expresso dos candidatos e que a ausência de manifestação de interesse expresso pelos candidatos prévia ao termo do certificado implica a caducidade do mesmo, procedendo-se ao respectivo arquivamento do processo de candidatura à adopção;
- Por email datado de 9/3/2022, os autores transmitiram à Santa da Casa da Misericórdia que estavam disponíveis para adoptar crianças ucranianas; este email obteve resposta, também por email, datado de 10/3/2022, dando conta que não havia crianças ucranianas disponíveis para adopção; novamente por email, datado de 23/3/2022, a Santa Casa de Misericórdia de Lisboa informa os autores que “as crianças que chegarem a Portugal não serão para adoção, uma vez que em tempo de guerra as crianças não podem ser adotadas, nomeadamente porque não se sabe qual será a sua situação real no concerne à sua família de origem” – doc. nº 4 junto com a p.i., que aqui se dá por reproduzido;
- Por carta datada de 9/5/2023, os autores foram informados pelo Unidade de Adoção, Apadrinhamento Civil e Acolhimento Familiar da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa que tinha sido arquivada “a candidatura à adoção n.º …/2019AR, seleccionada a 06/03/2020, na ausência de manifestação expressa da V. parte para a renovação do certificado de selecção (…)”, mais informando que “O arquivamento da presente candidatura não impede a apresentação de uma nova candidatura à adoção, podendo solicitar a documentação necessária para o email (…), estando dispensada a frequência da sessão informativa (sessão A), bem como poderão ser aproveitados elementos de avaliação da candidatura anterior” – doc. nº 5 junto com a p.i., que aqui se dá por integralmente reproduzido;
- Por email datado de 2/6/2023, dirigido às “Exma. Senhora Directora Dra. ... e Exma. Senhora Coordenadora da Equipa, Dra. …” os autores responderam da seguinte forma:
“Vimos perante V. Exas responder à missiva recebida a 10 de Maio de 2023, que juntamos em baixo. Na verdade, sendo o email enviado a ambos, não foi recebido pela I… por o seu endereço de email estar errado. Só agora respondemos pois o oficio deixou-nos consternados, tendo demorado a interiorizar e recuperar do sofrimento que provocou. Compreendemos que, sendo os únicos a poder desencadear o processo de renovação do Certificado - passados três anos -, esse pedido demonstra a continuidade da nossa vontade em adoptar. Tratando-se para nos de um assunto de máxima importância, tínhamos registo dessa renovação nas nossas agendas. O facto é que a Mãe da I… faleceu a 13 de Dezembro passado em situação muito dolorosa e com vivência presencial e traumática pela I…. Acresce que o falecimento inesperado abalou muito todos os irmãos, sendo necessário um grande esforço conjunto para se manterem unidos. Esses acontecimentos levaram a que os primeiros meses de 2023 fossem de muita desorientação, quer pela I… quer por mim que a acompanhava num período de grande dor. Durante os últimos mais de três anos temos procurado saber o estado do processo de adopção, contactando por email, amiúde, a equipa que nos acompanha. Não insistimos muito para não ocupar o seu tempo de trabalho, mas sempre revelámos um claro interesse em continuar a aguardar pela adopção. Asseguramos-vos que a nossa vontade de adoptar é tão forte como sempre. Aliás, tal é notório pelo email que enviámos à equipa a 10 de Março de 2022, pouco tempo depois do início do êxodo de ucranianos, em que demonstrávamos a nossa disponibilidade em adoptar crianças refugiadas desse país. Juntamos em anexo esse email e a sua resposta. Assim, em face das atenuantes e justificações aqui expostas, vimos por este meio solicitar junto de V. Exas., a compreensão para o facto de não termos enviado o pedido de renovação de certificado atempadamente, e que permitam que o prazo de entrega do mesmo seja protelado. Nesse sentido, pedimos que aceitem este email como a manifestação de interesse expresso para a renovação do Certificado de Seleção à Adoção, ainda que fora de prazo. Desde já gratos, com os melhores cumprimentos, I… e L...” – doc. 7 junto com a p.i.;
- Os autores dirigiram à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa impugnação administrativa da decisão de arquivamento de candidatura à adopção (proc. nº 13/2019);
- A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa notificou os autores da improcedência da impugnação pelos motivos constantes do ofício datado de 18/10/2023, conforme documento apresentado com o ofício junto aos autos a 24/5/2024, que aqui se dá por reproduzido;
- M… faleceu no dia 13/12/2022 – certidão de óbito junta com a p.i., doc. nº 6.
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2. O Direito
O requisito da competência resulta do facto de o poder jurisdicional ser repartido, segundo diversos critérios, por numerosos Tribunais.
Cada um dos órgãos judiciários, por virtude da divisão operada a diferentes níveis, fica apenas com o poder de julgar num círculo limitado de acções e não em todas as acções que os interessados pretendam submeter à sua apreciação jurisdicional.
É para a delimitação do poder jurisdicional de cada Tribunal que existem regras de competência.
No plano interno, e para o que agora nos interessa, a repartição do poder jurisdicional faz-se, designadamente, em função da matéria.
O artigo 211º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa estabelece que os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais. Assim, aos tribunais judiciais é atribuída uma competência própria em matéria cível e criminal e uma competência residual quanto ao que não pertencer à competência de outras ordens jurisdicionais.
O princípio da competência residual dos tribunais judiciais mostra-se ainda consagrado no artigo 64º do CPC, onde se estatui que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, designadamente a dos tribunais administrativos e fiscais (artigos 209º, nº 1, al. b), e 212º da CRP).
A competência dos tribunais administrativos e fiscais encontra-se estabelecida no artigo 4º do ETAF.
Nos termos deste artigo (Âmbito da jurisdição), compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto questões relativas, nomeadamente, à “Tutela de direitos fundamentais e outros direitos e interesses legalmente protegidos, no âmbito de relações jurídicas administrativas e fiscais” e à “Fiscalização da legalidade de atos administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas não integrados na Administração Pública” (als. a) e c) do nº 1 do art. 4º).
A competência do tribunal, fixada com referência à data da propositura da acção, é aferida em função dos termos em que a acção é proposta, seja quanto aos seus elementos objectivos, pedido e causa de pedir, seja quanto aos seus elementos subjectivos, as partes (cfr. acórdão do STJ de 22/10/2015, proc. 678/11, disponível em www.dgsi.pt.).
Assim, importa analisar o pedido e causa de pedir, bem como a natureza das partes.
Na petição inicial os autores peticionaram a revogação da decisão da ré, Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), datada de 9/5/2023, que procedeu ao arquivamento do processo de candidatura à adopção, requerendo a substituição por outra por outra que determine a renovação do certificado de selecção e mantenha os requerentes como candidatos à adopção, com o prosseguimento do processo de adopção até à sua fase final.
A SCML é uma pessoa colectiva de direito privado e utilidade pública administrativa, de acordo com o art. 1º dos seus Estatutos aprovados pelo Decreto-Lei nº 235/2008 de 3/12. E, no que respeita aos processos de adopção, é um organismo de segurança social, para efeitos do RJPA, agindo na qualidade de entidade administrativa, a par do Instituto da Segurança Social, I.P., o Instituto da Segurança Social dos Açores, I.P.R.A e do o Instituto da Segurança Social da Madeira, IP- RAM. Como se diz na decisão recorrida o “processo de candidatura à adoção [é], um processo de cariz administrativo regulado pelo Regime Jurídico do Processo de Adoção (RJPA) aprovado pela Lei 143/2015 de 08.09”.
Efectivamente, assim é.
O regime jurídico da adopção encontra-se actualmente previsto na Lei nº 143/2015, de 8 de Setembro (doravante designado RJPA).
A adopção é, nos termos do disposto pelo artigo 1586º do CC, o vínculo que, à semelhança da filiação natural, mas independentemente dos laços do sangue, se estabelece legalmente entre duas pessoas nos termos dos artigos 1973º e seguintes do CC.
Nos termos do disposto pelo art. 1973º do CC, a adopção constitui-se por sentença judicial, sendo este o único meio para a constituição deste vínculo.
O respectivo processo é regulado na já citada Lei nº 143/2015 (RJPA).
O art. 2º, alínea h), do RJPA define o “processo de adopção” como o “conjunto de procedimentos de natureza administrativa e judicial, integrando designadamente actos de preparação e actos avaliativos, tendo em vista a prolação da decisão judicial constitutiva do vínculo da adopção, a qual ocorre na sequência de uma decisão de adotabilidade ou de avaliação favorável da pretensão de adopção de filho do cônjuge”.
Como decorre do seu art. 40º, a respectiva tramitação mostra-se repartida em três fases: a fase preparatória, a que aludem os arts. 41º a 47º e que “integra as atividades desenvolvidas pelos organismos de segurança social ou pelas instituições particulares autorizadas, no que respeita ao estudo de caracterização da criança com decisão de adotabilidade e à preparação, avaliação e seleção de candidatos a adoptantes”; a fase de ajustamento entre crianças e candidatos, a que aludem os arts. 48º a 51º e, por último, a fase final, que integra a tramitação judicial do processo de adopção, com vista à prolação de sentença que decida da constituição do vínculo.
O processo compreende assim procedimentos de natureza administrativa e outros de natureza judicial, os quais integram actos de preparação e actos de avaliação que relevam para a prolação da decisão judicial constitutiva do vínculo da adopção. Acresce que esta decisão só pode ser proferida na sequência de uma decisão de adoptabilidade e na sequência da avaliação favorável da pretensão de adopção.
Conforme decorre do art. 8º do RJPA, compete aos organismos de segurança social, entre outros, “c) Receber as candidaturas à adoção e instruir os respetivos processos; d) Preparar, avaliar e selecionar os candidatos a adoptantes”.
Da parte dos adoptantes o primeiro passo é a apresentação à segurança social da candidatura à adopção, como decorre do artigo 43º, nos termos do qual, quem pretender adoptar deve manifestar essa intenção, pessoalmente ou por via electrónica, junto de qualquer equipa de adopção dos organismos de segurança social ou instituição particular autorizada.
O procedimento de preparação, avaliação e selecção de candidatura, o qual deve estar concluído no prazo máximo de seis meses, é composto por sessões formativas, entrevistas psicossociais e aplicação de outros instrumentos de avaliação técnica complementar, designadamente de avaliação psicológica, tendo em vista a capacitação do candidato e a emissão de parecer sobre a pretensão. A avaliação da pretensão do candidato a adoptante e o correspondente parecer devem incidir, nomeadamente, sobre a personalidade, a saúde, a idoneidade para criar e educar a criança, a situação familiar e económica do candidato a adoptante e as razões determinantes do pedido (art. 44º, nºs 1, 2 e 3). Esta avaliação tem como principal objectivo avaliar a idoneidade dos candidatos à adopção e o contexto familiar e de vida em que irá desenvolver a criança, assim como permite perceber se os candidatos têm qualidades ou capacidades para responder de forma adequada aos desafios que vão ter de enfrentar ao acolher uma criança no seio do seu agregado familiar.
Concluídos estes procedimentos, o organismo de segurança social ou a instituição particular autorizada profere decisão fundamentada e notifica-a ao candidato e, em caso de aceitação da candidatura, é emitido certificado de selecção – art. 44º, nºs 6.
Este certificado tem a validade de três anos, podendo ser renovado por sucessivos e idênticos a pedido expresso do candidato, antes que decorra a respectiva caducidade, sendo que a renovação do certificado de selecção pressupõe sempre a reapreciação da candidatura, caso em que se aplicam, com as necessárias adaptações, o disposto no art. 43º (art. 45º, nº 1 e 2), com a actualização dos documentos apresentados, realização das entrevistas e visita domiciliária.
No caso de o organismo de segurança social ou a instituição particular autorizada, proferir decisão de rejeição da candidatura, apenas cabe recurso, a interpor no prazo de 30 dias, para o tribunal competente em matéria de família e menores da área da sede do organismo da segurança social ou da instituição particular autorizada – art. 46º, nº 1. O requerimento, com as respectivas alegações, é apresentado à entidade que proferiu a decisão, que pode repará-la. Caso não o faça, esta entidade, remete, no prazo máximo de 15 dias, o processo ao tribunal com as observações que entender convenientes - art. 46º, nº 1, 2 e 3 e art. 29º, b) do RJPA. Se o tribunal entender que a decisão deve ser revogada, o processo regressa ao organismo que emitiu a decisão de rejeição, para aí se proceder a nova avaliação da mesma candidatura, de preferência por outra equipa ou serviço (neste sentido, cfr. anotação ao art. 46º, in Regime Jurídico do Processo de Adoção Anotado, 2022, Coordenação Ana Rita Alfaiate e Paulo Guerra, pág. 185).
Como se viu, todo este procedimento de preparação, avaliação e selecção de candidatura tem natureza administrativa, sendo o tribunal chamado a decidir apenas em caso de recurso da decisão que rejeita a candidatura, apreciando então da pertinência ou não dos fundamentos invocados pelo organismo da segurança social, no fundo, dos fundamentos sobre a falta de idoneidade dos candidatos para serem considerados “aptos” para adoptar uma criança.
Segundo o tribunal a quo, o art. 46º do RJPA não é aplicável pois na previsão ali prevista o tribunal sindica uma decisão da entidade administrativa que rejeita uma candidatura, “fazendo uso do seu poder relativamente discricionário na avaliação feita, sujeita a ser reapreciada pelo tribunal de família e menores”. Acrescentando: “No caso dos autos, a SCML não se fez qualquer tipo de apreciação sobre a viabilidade ou rejeição da candidatura, pois que a renovação da validade da candidatura dos requerentes (renovação do certificado) não foi feita dentro dos 3 anos a que alude o art 45º nº1 da referida Lei. Ou seja, a SCML limitou-se a constatar a falta de cumprimento de um requisito legal, não estando previsto, nem fazendo sentido, que o Juízo de Família e Menores reaprecie tal decisão”.
Os apelantes iniciam as suas alegações defendendo que a avaliação efectuada pela ré quanto aos pressupostos da caducidade do certificado não foi correcta, que houve um pedido de renovação do certificado efectuado pelos recorrentes, não apreciado pela ré, pelo que os fundamentos que determinaram o arquivamento da candidatura terão de ser reapreciados pelo tribunal.
Antes de mais cumpre afirmar que essa apreciação só terá de ser feita caso se considere o tribunal de família e menores materialmente competente para o efeito.
A questão a decidir prende-se apenas com a competência material do tribunal, pelo que não iremos entrar no fundo da questão (apreciação dos pressupostos da caducidade – ou da sua falta), como parece ser pretensão dos recorrentes.
Entendem os recorrentes que a caducidade do certificado é uma forma de rejeição da candidatura, pois conduz ao mesmo resultado nos termos do art. 45º, nº 1 do RJPA, pelo que deve ser o tribunal a dirimir o conflito ao abrigo do art. 46º.
Salvo devido respeito, não se vê como apoiar esta linha de raciocínio.
Como já referimos, a preparação, avaliação e selecção de candidatura integra uma fase administrativa do processo, sendo o tribunal chamado a decidir apenas em caso de recurso da decisão que rejeita a candidatura. Note-se que, antes disso, sendo previsível um parecer desfavorável por parte da segurança social, é obrigatória a audiência dos interessados em momento prévio ao da decisão da rejeição da candidatura, nos termos previstos no Código do Procedimento Administrativo (art. 44º, nº 4), o que reforça a ideia da natureza administrativa desta fase preparatória destinada à selecção dos candidatos.
A caducidade do certificado de selecção prevista no art. 45º, nº 1 é consequência da não apresentação, pelos candidatos, do pedido expresso de renovação antes que ocorram os três anos de validade daquele certificado. A caducidade ocorre pelo decurso do tempo. Não resulta de qualquer decisão do organismo de segurança social ou a instituição particular autorizada. Ou seja, estes não emitem qualquer decisão que exponha os motivos que determinam a não selecção de determinado candidato, como acontece com uma decisão de rejeição da candidatura, único caso em que se prevê a competência do tribunal de família e menores para, em sede de recurso, se pronunciar sobre a bondade de tal decisão – art. 46º, nº 1 (esta competência resulta, aliás, do disposto no art. 29º, b) do RJPA, segundo o qual “Compete, em especial, ao tribunal em matéria de adoção: (…) b) Apreciar e decidir os recursos das decisões de rejeição de candidatura a adoção proferidas pelos organismos de segurança social ou pelas instituições particulares autorizadas”).
Nem se diga que a caducidade do certificado de selecção tem a mesma consequência da rejeição de candidatura. É que neste caso, apenas cabe recurso a interpor no prazo de 30 dias, para o tribunal competente em matéria de família e menores da área da sede do organismo da segurança social ou da instituição particular autorizada – art. 46º, nº 1. A caducidade do certificado de selecção, não sendo impugnável para o tribunal, determina o arquivamento do processo de candidatura. Ainda assim, tal como é referido na carta que foi dirigida aos apelantes pela SCML, “O arquivamento da presente candidatura não impede a apresentação de uma nova candidatura à adoção, podendo solicitar a documentação necessária para o email (…), estando dispensado da frequência da sessão informativa (…) bem como poderão ser aproveitados elementos de avaliação da candidatura anterior”. Mesmo que os apelantes tivessem dirigido um pedido expresso de renovação do certificado de selecção antes de ocorrer a caducidade, tal como prevê o nº 1 do art. 45º do RJPA, ainda assim teria de ser efectuada a reapreciação da candidatura, aplicando-se com a necessárias adaptações o disposto no art. 43º.
É certo que se o tribunal de família e menores, depois de cumpridas as formalidades previstas no art. 46º, nº 2 e 3 (que não caso concreto não foram observadas), entender que a decisão deve ser revogada, o processo regressa ao organismo que emitiu a decisão de rejeição, para aí se proceder a nova avaliação da mesma candidatura (e não, como pretendem os apelantes com esta acção, determinar a renovação do certificado de selecção, mantendo os autores como candidatos, “com o prosseguimento do processo de adoção até à sua fase final”). Daí os apelantes defenderem em sede de recurso que os efeitos práticos de uma e outra situação são os mesmos.
No entanto, não se pode negar que os efeitos jurídicos são distintos e importam, sem dúvida, uma diferente e importante apreciação ao nível da competência. E não é pelo facto de em ambos os casos estar em causa matéria de família, como é a constituição do vínculo da adopção, expressamente previsto no art. 123º, 1, c), que a questão deve ser dirimida.
No RJPA a intervenção do tribunal está expressamente prevista nos arts. 28º e 29º. Segundo o primeiro dos artigos citados “Os tribunais exercem no processo de adoção as funções que a Constituição lhes confere, garantindo o cumprimento da lei, assegurando a promoção e defesa dos direitos das crianças e fazendo prevalecer o seu superior interesse, sem prejuízo da consideração devida aos interesses legítimos das famílias biológicas e dos adotantes ou candidatos à adoção”.
E, nos termos do art. 29º: “Compete, em especial, ao tribunal em matéria de adoção: a) Presidir à prestação do consentimento prévio para a adoção; b) Apreciar e decidir os recursos das decisões de rejeição de candidatura a adoção proferidas pelos organismos de segurança social ou pelas instituições particulares autorizadas; c) Estando pendente processo de promoção e proteção ou tutelar cível, decidir sobre a conformidade da confiança administrativa com o interesse da criança; d) Nomear curador provisório logo que decretada a confiança com vista à adoção ou decidida a confiança administrativa e, bem assim, proceder à transferência da curadoria provisória para o candidato a adotante logo que identificado; e) Decretar a adoção e decidir sobre a composição do nome da criança adotada; f) Autorizar excecionalmente a manutenção de contactos pessoais entre o adotado e elementos da família biológica, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 1986.º do Código Civil, bem como determinar a sua cessação; g) Decidir do incidente de revisão da adoção; h) Conceder autorização para acesso a elementos da história pessoal do adotado nos termos previstos nos n.os 6 e 7 do artigo 6.º”.
A competência que é conferida aos tribunais ao abrigo da al. b) deste artigo insere-se na fase preparatória do processo de adopção que, como vimos, integra as actividades desenvolvidas pelos organismos de segurança social ou pelas instituições particulares autorizadas, nomeadamente a avaliação e selecção de candidatos a adoptantes.
Sendo esta fase eminentemente administrativa, os actos praticados no seu decurso são actos administrativos (cfr. art. 148º do Código Procedimento Administrativo), cabendo aos Tribunais Administrativos dirimir os conflitos que tenham por objecto as questões que os mesmos suscitam, designadamente as previstas nas als. a) e c) do art. 4º do ETAF, com a única excepção prevista no art. 46º, nº 1 do RJPA.
E, de acordo com o art. 51º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA) “são impugnáveis todas as decisões que, no exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos numa situação individual e concreta, incluindo as proferidas por autoridades não integradas na Administração Pública e por entidades privadas que atuem no exercício de poderes jurídico-administrativos”.
Deste modo, sem dúvida que no caso dos autos a apreciação relativa ao acto praticado pela SCML, que considerou como caducado o certificado de selecção dos autores como candidatos à adopção, é da competência dos tribunais administrativos e não dos juízos de família e menores (cuja competência é, como vimos, residual – art. 64º do CPC).
Nos termos do art. 96º do CPC, a infracção das regras de competência em razão da matéria determina a incompetência absoluta do tribunal, traduzindo-se numa excepção dilatória (art. 577º do CPC), de conhecimento oficioso do tribunal (art. 578º do CPC), que, consoante o tipo de processo e a fase processual em curso, acarreta a absolvição da instância ou o indeferimento liminar da petição inicial quando o processo o comportar (arts. 99º, n.º 1, 278º, n.º 1, al. a) e 577º, al. a), do CPC).
Assim, bem andou a primeira instância ao julgar verificada a excepção de incompetência absoluta do tribunal, absolvendo a ré Santa Casa de Misericórdia de Lisboa da instância.
O recurso improcede.
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IV - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso e manter a decisão recorrida.
Lisboa, 26/6/2025 (O presente acórdão não segue na sua redacção as regras do novo acordo ortográfico, com excepção das “citações” efectuadas que o sigam)
Carla Figueiredo
Amélia Ameixoeira
Maria Carlos Calheiros