EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
INSOLVÊNCIA CULPOSA
Sumário


I - É de indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo devedor quando este, dentro dos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, tiver vendido os dois únicos bens imóveis que integravam o seu património, dando destino desconhecido ao produto da venda.
II - Nessa situação, subsumível à previsão do artigo 186º, n.º 2, alínea d), do CIRE, aplicável por força do artigo 238º, n.º 1, alínea e), do mesmo diploma legal, presume-se, “iuris et de iure”, não só o carácter doloso ou gravemente negligente da conduta do devedor, como o nexo de causalidade entre essa conduta e a criação ou agravamento da situação de insolvência.

Texto Integral


Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO:

Inconformados com o despacho que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante que formularam no requerimento inicial de apresentação à insolvência, AA e BB interpuseram recurso, concluindo a sua alegação nos seguintes termos:

1. DO ERRO DE JULGAMENTO - NA FIXAÇÃO DOS FACTOS:
QUANTO AOS FACTOS DADOS COMO PROVADOS:
2. Consideram os recorrentes que o ponto dos factos dados como provados – “Foram reclamados créditos num total de 670.786,64 €uros, com as datas de constituição e de incumprimento infra descritos:”
3. DEVERÁ SER ALTERADO PARA “Foram reclamados créditos num total de 670.786,64 € euros, com as datas de constituição e de incumprimento infra descritos, os quais têm a sua origem, à exceção de um crédito da Banco 1... oriundo no incumprimento de contrato de compra e venda com mútuo e hipoteca, no facto de os devedores se terem constituído como avalistas e principais pagadores de todas as obrigações assumidas como mutuários, em diversos mútuos, contraídos por diversas empresas das quais eram sócios, e cujos negócios se revelaram deficitários e de fraca solvabilidade.”
4. Decorre do relatório do Ex.mo Administrador de Insolvência que “Sem embargo, resulta da douta p.i. que resulta fundamentalmente do facto de os devedores se terem constituído como avalistas e principais pagadores de todas as obrigações assumidas como mutuários, em diversos mútuos, contraídos por diversas empresas das quais eram sócios, e cujos negócios se revelaram deficitários e de fraca solvabilidade. Contratos esses incumpridos, o que lhes causou um sobre-endividamento, que resultou num incumprimento e falta de solvabilidade dos seus encargos financeiros.”
5. Da Relação de Créditos Reconhecidos – documento 1 (que agora se junta, uma vez que do articulado junto aos autos (em 27/12/2021 (referência ...56)) não foram juntos todos os anexos enviados aos credores via e-mail em 27/12/2021) -, resulta a apreciação detalhada de todos os créditos reconhecidos, a qual se afigura imprescindível para contextualizar as questões em apreço, concretamente:
- Autoridade Tributária e Aduaneira - Valor do Crédito– € 145,90 (Cento e quarenta e cinco euros, noventa cêntimos).
O crédito foi reclamado nos termos do artigo 128.º do CIRE, como resultante da falta de pagamento de taxas de portagem.
- Banco 2... S.A. - Valor do Crédito– € 28.290,58 (vinte e oito mil, duzentos e noventa euros, cinquenta e oito cêntimos).
O crédito foi reclamado nos termos do artigo 128.º do CIRE, como resultante do (i) incumprimento de um contrato de mútuo celebrado com a sociedade “EMP01..., Unipessoal Lda.”, e avalizado pelos devedores através de uma livrança; (ii) de garantia bancária subscrita a favor de “EMP02..., S.A.”, já honrada, tendo sido entregue uma livrança avalizada pelos devedores para garantia do bom cumprimento da referida garantia bancária; (iii) e saldo devedor de conta à ordem.
- Banco 3... S.A. - Valor do Crédito– € 216.666,87 (duzentos e dezasseis mil, seiscentos e sessenta e seis euros, oitenta e sete cêntimos)
O crédito foi reclamado nos termos do artigo 128.º do CIRE, como resultante do incumprimento de: (i) duas livranças subscritas pela sociedade “EMP01..., Unipessoal Lda.”, e avalizadas pelos devedores; (ii) de um contrato de abertura de crédito sob a forma de Conta Corrente, no qual os devedores são avalistas; (iii) de um “Contrato de Confirming on time Pagamentos”, tendo sido, como garantia, subscrita uma livrança por “EMP01..., Unipessoal Lda.”, e avalizada pelos devedores; (iv) conta de depósitos à ordem, tendo sido, como garantia, subscrita uma livrança por “EMP01..., Unipessoal, Lda.”, e avalizada pelos devedores; (v) três garantias bancárias, cujos beneficiários são “EMP03... S.A.”; EMP04... Lda. e “EMP05... Lda.”
- Banco 4... SA - Valor do Crédito– € 77.008,40 (setenta e sete mil, oito euros, quarenta cêntimos)
O crédito foi reclamado nos termos do artigo 128.º do CIRE, como resultante do incumprimento de: (i) dois contratos de empréstimo celebrados com a sociedade “EMP01..., Unipessoal Lda.”, tendo os devedores avalizado duas livrança, a qual foi subscrita para garantia do bom cumprimento desse contrato; (ii) um contrato de locação financeira celebrado com a sociedade “EMP01..., Unipessoal, Lda.”, tendo os devedores assumido a qualidade de avalistas em livrança subscrita para garantia do bom cumprimento daquele contrato; (iii) um contrato de crédito celebrado com “EMP06..., Lda.”, tendo os devedores avalizado uma livrança, a qual foi subscrita para garantia do bom cumprimento desse contrato.
- Banco 5...– € 113.284,92 (cento e treze mil, duzentos e oitenta e quatro euros, noventa e dois cêntimos)
O crédito foi reclamado nos termos do artigo 128.º do CIRE, como resultante da falta de pagamento de oito livranças subscritas pelas sociedades comerciais “EMP01..., Unipessoal Lda.”, “EMP07..., Lda..”, “EMP08... Lda..” e “EMP09... Lda.”, avalizadas pelos devedores.
- Banco 1.... SA - Valor do Crédito– € 172.203,26 (cento e setenta e dois mil, duzentos e três euros, vinte e seis cêntimos)
Contrato de mútuo com hipoteca:
Capital - € 117.275,14
Juros de mora € 26,01
SUBTOTAL € 117.301,15
O crédito foi reclamado nos termos do artigo 128.º do CIRE, como resultante do incumprimento de contrato de compra e venda com mútuo e hipoteca e ainda de falta de pagamento de cinco livranças subscritas pela sociedade comercial “EMP01..., Unipessoal Lda.” e avalizadas pelos devedores.
- Instituto da Segurança Social IP - Apesar de não ter sido reclamado nos termos do artigo 128º do CIRE, o crédito consta da Relação de Credores apresentada pelos Insolventes, resultando de um processo de reversão contra o devedor.
- CC - O crédito foi reclamado nos termos do artigo 128.º do CIRE, como resultante da falta de pagamento de rendas (Março, Abril, Outubro, Novembro e Dezembro de 2020) no âmbito do contrato de arrendamento comercial em que o devedor interveio na qualidade de fiador.
- EMP10... SA - O crédito foi reclamado nos termos do artigo 128.º do CIRE, como resultante de duas livranças subscritas pela sociedade comercial “EMP01..., Unipessoal Lda.” e avalizadas pelos devedores. As livranças foram subscritas e avalizadas como garantia do bom cumprimento de duas garantias autónomas prestadas pela credora a favor do Banco 4..., S.A., as quais ainda não foram accionadas.
6. Desta forma afigura-se claro que dos créditos reclamados, apenas o crédito da Banco 1..., relativo a um contrato de mútuo com hipoteca, no valor de € 117.275,14, se deveu a obrigação pessoal/singular dos insolventes, aqui recorrentes.
7. Pois, TODOS os demais créditos tiveram a sua origem em avais, conferidos pelos recorrentes a sociedades comerciais.
8. POSTO ISTO, o ponto dos factos dados como provados – “Foram reclamados créditos num total de 670.786,64 €uros, com as datas de constituição e de incumprimento infra descritos:”, DEVE SER ALTERADO PARA “Foram reclamados créditos num total de 670.786,64 € euros, com as datas de constituição e de incumprimento infra descritos, os quais têm a sua origem, à exceção de um crédito da Banco 1..., no valor de € 117.275,14, oriundo no incumprimento de contrato de compra e venda com mútuo e hipoteca, no facto de os devedores se terem constituído como avalistas e principais pagadores de todas as obrigações assumidas como mutuários, em diversos mútuos, contraídos por diversas empresas das quais eram sócios, e cujos negócios se revelaram deficitários e de fraca solvabilidade.”

Sem prescindir,

QUANTO AOS FACTOS PROVADOS A ADITAR:
9. ADEMAIS, decorre do acima alegado que o incumprimento dos créditos reclamados não se deveu a culpa dos recorrentes, mas sim das sociedades subscritoras de tais créditos, avalizados pelos devedores, porquanto, não figurando os aqui recorrentes como devedores originários dos créditos reclamados nestes autos, mas antes como como avalistas e principais pagadores de todas as obrigações assumidas, não tinham os mesmos qualquer obrigação primária de cumprimento de tais créditos.
10. Conforme os recorrentes alegaram na sua petição inicial (ponto 5), o recorrente exercia atividade de gerente nas sociedades comerciais EMP01... - UNIPESSOAL LDA, titular do NIPC ...46; EMP07... - LDA, titular do NIPC ...64; EMP08... - LDA, titular do NIPC ...47; EMP11... - LDA, titular do NIPC ...10; EMP09... - LDA, titular do NIPC ...05 e EMP06..., LDA, titular do NIPC ...71.
11. Mais alegaram (ponto 10) que à data da sua apresentação à insolvência a sociedade EMP01... tinha sido citada para uma ação de declaração de insolvência, e ainda (ponto 11) que as sociedades EMP07... – LDA. e EMP09... – LDA., à semelhança da EMP01... – UNIPESSOAL LDA., cessaram totalmente a sua atividade – por inviabilidade económica – no presente mês (outubro de 2021).
12. Referiram ainda em tal articulado (ponto 23), que desde agosto/setembro de 2021, e atento o incumprimento das obrigações bancárias, pelas sociedades citadas, foram os ora recorrentes interpelados, pelo Banco 5..., no sentido de regularizar os montantes em mora.
13. Aliás, impõe-se recordar que, o único crédito reclamado que teve como devedores originários, os aqui recorrentes, foi o crédito da Banco 1..., no valor de € 117.275,14, oriundo no incumprimento de contrato de compra e venda com mútuo e hipoteca, e, nesse conspecto, apraz referir que, tal crédito não apresentava qualquer incumprimento, à data da apresentação à insolvência, conforme decorre do quadro síntese indicado na douta decisão.
Vejamos,
14. No descrito do quadro verifica-se que o crédito de 2016 não tem incumprimento declarado. Pela descrição dada pelo AI na Relação de créditos reconhecidos – ex. vi documento 1 -, facilmente se verifica que esse crédito se refere ao crédito do mútuo e hipoteca
15. POSTO ISTO deve ser aditado à base de factos provados que:
16. “Dos incumprimentos descritos, constata-se que os devedores não tiveram qualquer ação direta, nem contribuíram para tais incumprimentos.” E
17. “Dos créditos reclamados, o único crédito que teve como beneficiários diretos, os aqui devedores, foi o crédito da Banco 1..., no valor de € 117.275,14, oriundo no incumprimento de contrato de compra e venda com mútuo e hipoteca, o qual, à data da apresentação à insolvência não apresentava qualquer incumprimento.”
18. Ademais, entendem os recorrentes ser essencial para a apreciação da questão decidenda que se dê como provado que:
19. “Nos presentes autos não foi aberto o incidente de qualificação da insolvência como culposa”
20. Tal conhecimento decorre da atividade do Tribunal e deve ser aditado à base de factos provados, uma vez que a decisão sobre a exoneração do passivo restante deve apreciar os requisitos para a qualificação da insolvência como culposa, mesmo que adaptados ao caso.
21. Deve ainda ser aditado à base factual dada como provada que:
22. “Entre os anos 2009 a 2021 os aqui devedores constituíram-se como avalistas e principais pagadores de todas as obrigações assumidas como mutuários, em diversos mútuos, contraídos por diversas empresas das quais eram sócios.”
23. Tal facto decorre da douta decisão, por via do quadro síntese, bem ainda da Relação de créditos reconhecidos – ex. vi documento 1 -.
24. Tendo em conta que a douta decisão considera os incumprimentos e as competentes datas, bem ainda que considera que, por via do seu comportamento os recorrentes pretenderam desviar património, afigura-se essencial, para uma rigorosa apreciação, que se identifique a concreta capacidade de crédito dos devedores.
25. Por fim, deve ainda ser aditado à factualidade provada, conforme decorre da petição inicial dos presentes autos, que:
26. “Os aqui recorrentes, eram sócios e o ora recorrente gerente/administrador das sociedades comerciais EMP01... - UNIPESSOAL LDA, titular do NIPC ...46; EMP07... - LDA, titular do NIPC ...64; EMP08... - LDA, titular do NIPC ...47; EMP11... - LDA, titular do NIPC ...10; EMP09... - LDA, titular do NIPC ...05 e EMP06..., LDA, titular do NIPC ...71.”
27. Tal facto decorre do relatório do Ex.mo administrador de Insolvência, bem ainda do articulado de petição (ponto 4 e 5), onde foram alegados tais factos e indicados os códigos de certidão permanente de todas as sociedades.
28. O mesmo afigura-se relevante para a discussão em causa, uma vez que se encontra diretamente ligado aos créditos reclamados.
29. DO ERRO DE JULGAMENTO – DA ERRO DE INTERPRETAÇÃO E SUBSUNÇÃO DOS FACTOS E DO DIREITO
30. É convicção dos aqui recorrentes que quando o Tribunal decidiu indeferir liminarmente o pedido de exoneração pelos recorrentes formulado, com fundamento na alínea e), do n.º 1 do art. 238º do CIRE, cometeu um erro de direito.
31. As causas de indeferimento liminar do pedido de exoneração encontram-se taxativamente enumeradas no n.º 1 do artigo 238º do CIRE.
32. Desde logo, cumpre mencionar que como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE, Anotado, 3.ª Edição, Quid Juris, 2015, a pág. 855, não é ao devedor que incumbe fazer prova dos requisitos previstos no n.º 1, cabendo aos interessados invocar e demonstrar que não se verificam, ali indicando vária jurisprudência, nesse sentido.
33. Na verdade, nos termos da alínea e), do n.º 1 do artigo 238º do CIRE, “o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrado da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do art. 186º”.
34. Da leitura deste normativo decorre assim que estão em causa comportamentos do devedor que tenham contribuído ou agravado a sua situação de insolvência, sob a forma de atuação indiciariamente culposa.
35. Deste modo, conforme flui de forma clara deste preceito, para que seja indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, é necessário que à data em que esse pedido é indeferido in limine, constem já dos autos de insolvência factos e elementos de prova de tais factos, ou que tenham sido alegados pelo administrador de insolvência ou pelos credores factos e elementos de prova de tais factos dos quais resulte indiciado “com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do art. 186º”.
36. Acontece que ao remeter para o artigo 186º, daqui resulta que o regime previsto na alínea e), do n.º 1 do artigo 238º (ambos do CIRE), tem de ser completado e aferido por referência ao regime jurídico enunciado no citado art. 186º, no qual se fixam os requisitos para a qualificação da insolvência como culposa.
37. Descendo ao caso concreto, verificamos que in caso, a douta decisão recorrida, não deu como verificada qualquer alínea/ponto do artigo 186.º, situação que deve de imediato inviabilizar o indeferimento liminar do pedido de exoneração decidido.
38. Da douta decisão recorrida decorre que o Tribunal a quo assentou a sua convicção, unicamente no facto de os aqui recorrentes terem, em maio de 2020, celebrados dois contratos de compra e venda com uma sociedade administrada pelo aqui recorrente.
39. Aliás, o Tribunal a quo refere (mal) que com tais negócios os devedores esvaziaram o seu património, o que não é verdade, pois, como o Tribunal a quo bem sabe e não pode ignorar (pelos documentos juntos aos autos e diversos avais subscritos pelos devedores), os aqui devedores em 2020 eram titulares da totalidade das quotas societárias de seis sociedades (ex. vi documento 1), concretamente EMP01... - UNIPESSOAL LDA, titular do NIPC ...46; EMP07... - LDA, titular do NIPC ...64; EMP08... - LDA, titular do NIPC ...47; EMP11... - LDA, titular do NIPC ...10; EMP09... - LDA, titular do NIPC ...05 e EMP06..., LDA, titular do NIPC ...71.
40. Sociedades que, atentas as operações bancárias realizadas e avalizadas pelos devedores (ex. vi documento 1), concretamente, mais de dez livranças; locação financeira; contratos de crédito; contrato de abertura de crédito sob a forma de Conta Corrente, Contrato de Confirming on time Pagamentos, etc., tudo num valor global de cerca de 500 mil euros, tinham, em 2020, crédito na banca e um valor comercial, contabilístico e financeiro elevado!
41. Por outro lado, impunha-se que o Tribunal reportasse as vendas em causa à data a que as mesmas ocorreram, porquanto, não podemos esquecer que em maio de 2020 o nosso país estava literalmente parado e todos desconhecíamos o desfecho económico do país, das empresas, etc.
42. Assim, o que os recorrentes não aceitam, por não ser razoável, nem logicamente assente, é que o Tribunal quo possa ter a convicção de que, em maio de 2020, os aqui recorrentes, com o seu comportamento, entenda-se a venda à sociedade EMP12..., contribuíram para dificultar a satisfação dos credores constituídos em 2021!
43. Quando, em maio de 2020 os devedores nunca poderiam imaginaram que, em outubro de 2021, estariam a apresentar a sua insolvência, eles que, pouco tempo antes, eram pessoas com valor na banca, na sociedade empresarial e no comércio com os demais intervenientes comerciais.
44. Essa é que é a verdade dos factos e a ilação lógica a retirar de um casal que, aquando da sua apresentação à insolvência, apenas apresenta um único crédito onde os mesmos figuram como devedores originários e os demais créditos devem-se a avais de cerca de 500 mil euros!
45. Os aqui recorrentes em 2021 estavam a realizar operações bancárias (veja-se reclamação créditos do Banco 4... SA e do Banco 5...), pelo que não se alcança como o Tribunal a quo pode considerar que em maio de 2020 os recorrentes pretenderam esconder património dos credores, quando essas operações bancárias demonstram que os recorrentes acreditavam nas suas sociedades e continuavam a tudo fazer para as manter em atividade.
46. Andou mal o Tribunal a quo quando acreditou que, em maio de 2020 (plena pandemia), os devedores que geriam mais de seis sociedades com crédito na banca calculado em, pelo menos, mais de 500 mil euros, realizaram a compra e venda com a sociedade EMP12... para dificultar a ressarcimento dos seus credores.
47. Os ora recorrentes apenas insolveram, por via das empresas a que se encontravam ligados, e salvo o devido respeito, não é lógico, nem aceitável, que se entenda que os devedores tinham o conhecimento de que todas as empresas, por si detidas, iriam colapsar e que, por via disso, os mesmos iriam insolver!!
48. Os aqui recorrentes não podem aceitar, que se considere (sem mais) que qualquer venda de património, posteriormente resolvida em favor da massa insolvente, seja fundamento da existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência!
49. Ademais, também o facto de tal venda ter sido realizada a sociedade que o recorrente administrava, não pode ser fator decisivo para o preenchimento do indeferimento liminar da exoneração do passivo restante.
50. In caso, o Tribunal a quo tinha de averiguar, era se é possível imputar aos devedores, aqui recorrentes, uma conduta dolosa ou com culpa grave, com reflexos na criação ou agravamento da sua situação de insolvência.
51. De acordo com a alínea e) do artigo 238º do CIRE é isso que se pretende!
52. Entendemos que não.
53. O que releva, para a questão da concessão ou não do benefício da exoneração do passivo restante, é a conduta dos recorrentes e não a resolução do negócio em si!
54. Salvo o devido respeito por contrário entendimento, resulta dos factos que em 2020 os devedores tinham crédito na banca e eram sócios e várias sociedades, as quais geriam.
55. A verdade é que em 2020 os devedores não tiveram (com as vendas realizadas) qualquer intenção de ocultar ou esconder património!
56. Aliás, não decorre da factualidade assente nos autos elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa dos devedores na criação ou agravamento da situação de insolvência!
57. Pelo que efetuou o Tribunal a quo uma errónea aplicação da alínea e) do artigo 238º do CIRE.
58. Por conseguinte, reafirma-se, para que o Tribunal a quo pudesse concluir pela verificação do fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração da alínea e), do n.º 1 do artigo 238º do CIRE, teria de existir no processo a prova dos factos base da presunção do artigo 186º do mesmo dispositivo legal, o que não se verificou, pelo que mal andou a 1ª Instância em concluir pela verificação do fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração previsto na alínea e), do n.º1 do artigo 238º do CIRE.
59. POSTO ISTO, Deve este Tribunal “ad quem” revogar a decisão recorrida e deferir o pedido de exoneração do passivo restante dos ora recorrentes.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

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II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO:

Como é sabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objecto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
No caso vertente, as questões a decidir que relevam das conclusões recursórias são as seguintes:
- Se ocorre erro de julgamento da matéria de facto;
- Se ocorre erro de direito, devendo revogar-se a decisão recorrida e ordenar a substituição desta por outra que admita, liminarmente, o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes.
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III. FUNDAMENTAÇÃO:

Os factos
Recorda-se o teor do despacho recorrido:
“(…)
Na parte dedicada às disposições específicas da insolvência das pessoas singulares, o Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, adiante designado por CIRE veio estabelecer um mecanismo designado por «exoneração do passivo restante» (artigos 235.º a 248.º do citado Código) contendo os seguintes elementos essenciais:
a) - A exoneração dependerá de pedido expresso do insolvente e implicará a cessão aos credores, através de um fiduciário, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, do rendimento disponível do insolvente;
b) - Durante este período, o insolvente fica obrigado a um conjunto de deveres destinados a assegurar a efectiva obtenção de rendimentos para cessão aos credores, designadamente as obrigações de exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, de procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto, bem como de informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego e ainda sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
c) - Caso o devedor incumpra, culposamente ou com negligência grave, os deveres estabelecidos para o período de cessão, o juiz poderá declarar a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante.
Este procedimento de exoneração do passivo restante corresponde a uma filosofia da «fresh start» em que ocorre a extinção das dívidas e a libertação do devedor por forma a que este não fique inibido de começar de novo e poder retomar a sua actividade económica.
A concessão efectiva da exoneração do passivo restante pressupõe que (artigo 237.º do CIRE):
a) - Não exista motivo para o indeferimento liminar do pedido;
b) - O juiz profira despacho declarando que a exoneração será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no artigo 239.º durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência;
c) - Não seja aprovado e homologado um plano de insolvência;
d) - Após o período mencionado na alínea b), e cumpridas que sejam efectivamente as referidas condições, o juiz emita despacho decretando a exoneração definitiva.
A conjugação destas condições e a evidente desnecessidade de duas delas permite concluir que, em definitivo, a concessão efectiva da exoneração do passivo restante depende, afinal de contas, somente, de que estejam verificados os requisitos para que seja proferido o designado despacho de exoneração.
Contudo, a decisão liminar de exoneração do passivo restante não traduz a oportunidade de o devedor iniciar a vida de novo, liberado das dívidas, mas a oportunidade de se submeter a um período probatório que, no final, pode resultar num desfecho que lhe seja favorável sendo certo que esse desfecho favorável depende totalmente da sua actuação durante os próximos cinco anos.
Este despacho destina-se a aferir da existência de condições mínimas para aceitar o pedido de exoneração do passivo restante.
O despacho inicial determina apenas que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período da cessão), o rendimento disponível que os devedores venham a auferir se consideram cedidos a um fiduciário, escolhido pelo tribunal de entre os inscritos na lista oficial de administradores de insolvência (artigo 239.º, n.os 1 e 2 do CIRE).
São estabelecidas duas consequências fundamentais: - estabelecer um ónus a cargo dos devedores e transferir para o fiduciário o rendimento disponível que os devedores venham a auferir durante esses cinco anos subsequentes ao encerramento do processo.

Dispõe o art.º Artigo 238.º - Indeferimento liminar – que:
1 - O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
a) For apresentado fora de prazo;
b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza;
c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência;
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica;
e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º;
f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data;
g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.
2 - O despacho de indeferimento liminar é proferido após a audição dos credores e do administrador da insolvência nos termos previstos no n.º 4 do artigo 236.º, exceto se o pedido for apresentado fora do prazo ou constar já dos autos documento autêntico comprovativo de algum dos factos referidos no número anterior.
Durante o período da cessão, os devedores ficam ainda adstritos a cumprir um determinado conjunto de obrigações previstas no artigo 239.º, n.º 4 do CIRE:
É assim estabelecido um conjunto de obrigações a cargo dos devedores, destinadas a garantir a transparência da situação patrimonial e pessoal do insolvente (alíneas a), e d)); a garantir que o devedor é diligente na procura da manutenção de um rendimento que possa vir a satisfazer os credores (alíneas b), e d)) e a atestar a probidade e lisura de comportamento do próprio devedor (alíneas a), c), e e)).
A exoneração dos devedores importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam na data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, não afectando a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência contra os condevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas poderão agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos (artigos 245.º e 217.º, n.º4).
O devedor que apresente um pedido de exoneração do passivo restante beneficia também do diferimento do pagamento das custas até à decisão final desse pedido, na parte em que a massa insolvente e o seu rendimento disponível durante o período da cessão sejam insuficientes para o respectivo pagamento integral, o mesmo se aplicando à obrigação de reembolsar o Instituto de Gestão Financeira e Patrimonial da Justiça das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do fiduciário que este instituto tenha suportado (artigo 248.º, n.º 1).
*
Deduzido o pedido de exoneração do passivo restante na petição inicial, contra se manifestaram os credores Banco 4..., SA; Banco 1...,SA; Banco 3...,SA; Banco 5...,SA e CC.
Fundamentam a sua oposição nas alíneas d), e) e g) do nº 1 do artigo 238º do CIRE.
Quanto à tempestividade nada há a apontar ao pedido formulado, não se preenchendo igualmente os insolventes nenhuma das circunstâncias a que se refere o disposto nas al. a), b), c), e f) do art. 238º do CIRE.
Esta prevê o indeferimento se constarem já no processo ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência nos termos do art. 186º.
Assim e atenta a factualidade constante dos autos resulta provado que:
- Os insolventes apresentaram-se a insolvência em 21-10-21.
- os prédios id. infra foram transmitidos pelos insolventes a favor da sociedade EMP12..., S.A., ... , cujos administradores são os próprios, ele como Presidente do Conselho de Administração e a devedora como Vicepresidente, em 22/05/2020.
- O Sr. AI procedeu à resolução em benefício da massa insolvente deste negócio, incidente sobre as:
Verba 1: Raíz ou nua propriedade do prédio misto composto por “casa de rés do chão e andar” com logradouro e “Campo ...” de cultivo, sito no lugar ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...04 da freguesia ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...40 e na matriz predial rústica sob o artigo ...80.
Verba 2: Fracção Autónoma designada pela letra “M”, correspondente à habitação do segundo andar esquerdo, do Tipo ..., com entrada pelo n.º ...5 da Rua ..., com direito a uma dependência privativa e uma garagem fechada para garagem ou arrumos, a qual faz parte do prédio urbano sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...87... da freguesia ..., e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...8 da União das Freguesias ..., ... e ....
- O Sr. AI juntou aos autos a comunicação de resolução em benefício da massa do negócio que teve por objecto os bens supra identificados, por requerimento de 16.05.2022.
- O insolvente marido exerce funções na sociedade por quotas com a firma — " EMP01..., Unipessoal, Lda.", na qualidade de sócio-gerente, mediante um vencimento mensal base de € 665,00 (seiscentos e sessenta e cinco euros), o equivalente ao SMN, o qual acrescido de subsídio de alimentação, e dos duodécimos dos subsídios de férias e de Natal, se cifra num valor líquido, mensal, aproximado de € 775,00 (setecentos e setenta e cinco euros), conforme recibo de vencimento junto pelo próprio.
- A insolvente mulher, encontra-se desempregada, tendo-lhe sido atribuído, em 30/09/2020, por um período de 510 dias, subsídio de desemprego no montante diário de € 15,56, a que corresponde um valor mensal líquido de € 466,80 (quatrocentos e sessenta e seis euros, oitenta cêntimos), cfr. docs juntos com a petição inicial.
- Foram reclamados créditos num total de 670.786,64 €uros, com as datas de constituição e de incumprimento infra descritos:

Titular                                                                      Data de constituição                            Data de incumprimento
Autoridade Tributária e Aduaneira                           Entre 2019 e 2021                               Entre 2019 e 2021  
Banco 2..., SA                                                               17/10/2020                                           25/10/2021
                                                               12/05/2014                                            07/12/2020

Banco 3..., SA                                  19/03/2020                                            16/07/2020
                                                                                      29/04/2020                                            28/07/2020
                                                                                     21/02/2011                                            Não apurado
                                                                                     16/04/2015                                           Não apurado
                                                                                     29/09/2016                                           Não apurado
                                                                                    31/12/2009                                            Não apurado
                     
Banco 4..., SA                                        14/06/2016                                             04/09/2021
                                                                                   20/12/2017                                             20/03/2020
                                                                                   19/06/2018                                             01/10/2020
                                                                                  09/03/2021                                              25/10/2021

Banco 5...                           14/07/2014                                             25/10/2021
                                                                                  17/05/2021                                             25/10/2021
                                                                                   
                                                         25/09/2017                                              25/10/2021
                                                                                19/06/2015                                              25/10/2021
                                                                                18/05/2021                                           25/10/2021
                                                                                18/05/2021                                           25/10/2021
                                                                                06/06/2016                                           25/10/2021
                                                                                02/09/2019                                           25/10/2021
       
Banco 1..., SA                               21/04/2016                                           Não apurado
                                                                               03/04/2020                                           01/09/2020
                                                                               17/04/2020                                           20/10/2020
                                                                               14/05/2020                                           15/11/2020
                                                                               23/06/2020                                           01/12/2020
                                                                              03/07/2020                                           03/01/2021

Instituto da Segurança Social, IP                         Não apurado                                       Não apurado

CC                                          Entre Março e                                   Entre Abril de 2020 e
                                                                             Dezembro de 2020                            Janeiro de 2021   
                                                                            
EMP10..., SA   14/06/2016
                                                                                 20/12/2017                                      Sem incumprimento

Tais factos resultam do processado, nomeadamente a escritura Contrato de compra e venda celebrado em ../../2020 entre os insolventes e EMP12... S.A., junta a 18-9 pelo Sr. AI.
Cumpre assim verificar o preenchimento das alíneas d) e e) do mencionado artigo. Estas preveem o indeferimento se:
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores e, sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica; e
e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º.
g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência.
Regressando ao assunto em análise temos que a apresentação à insolvência foi efectuada em Outubro de 2021.
No entanto, os insolventes já se encontravam em incumprimento com várias entidades bancárias, desde o ano de 2020 (como decorre do quadro supra).
Não foi, portanto, respeitado o prazo de 30 dias a que alude o art.º 18,1 CIRE, aplicável aos insolventes, enquanto titulares de empresa.
Cabe, agora, analisar se esse atraso na apresentação, adveio prejuízo para os credores.
Consideramos que não. O simples vencimento de juros comporta um aumentar da dívida, e consequentemente, um crescimento do passivo, mas não tem sido entendido pela jurisprudência como um acréscimo do prejuízo.
Nesse sentido, pode ler-se no Ac. do STJ, de 27-3-14 que “I - A apresentação do requerente à insolvência depois dos seis meses previstos no art. 238.º, n.º 1, al. d), do CIRE não constitui fundamento bastante para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo.
II - Não há prejuízo automático que decorra do retardamento na apresentação da insolvência – nomeadamente derivado do acumular dos juros associados aos créditos em dívida – uma vez que os juros, no actual regime da insolvência se continuar a contar, mesmo após a referida apresentação.
III - A existência de prejuízos decorrentes de qualquer apresentação tardia tem de ser demonstrada pelos credores ou pelo administrador de insolvência, nos termos do disposto no art. 342.º, n.º 2, do CC”.
Por outro lado, e no que tange à alínea e), cremos que decorre dos autos factualidade suficiente que demonstre a culpa dos insolventes na criação ou agravamento da insolvência.
Com efeito, o esvaziar do seu património, com a venda de dois bens imoveis de sua propriedade a empresa com eles especialmente relacionada, contribuiu para o agravar do défice do seu activo, afirmando na petição inicial por si apresentada que não eram proprietários de qualquer bem.
Com efeito, e como bem é focado pelo Sr. Adm. de Insolvência, da análise dos documentos juntos aos autos conclui-se que os insolventes alienaram o seu património, constituído por dois bens imóveis, a sociedade comercial consigo especialmente relacionada, actos entretanto resolvidos em favor da massa insolvente.
Ora, tal comportamento contribuiu para dificultar a satisfação dos credores, pois esvaziou o seu património.
Esses bens, objecto de resolução em beneficio da massa insolvente, renderam à massa o valor de €60.000,00 – verba 1 – e € 234.623,00 - verba 2. Ou seja, o prejuízo causado à massa com a conduta descrita pode contabilizar-se em 294.623 euros.
Os insolventes assumiram comportamento que diminuiu o seu passivo, bem sabendo, e não podendo desconhecer, que tal teria consequência na satisfação dos créditos por si contraídos.
Consequentemente, não se pode deixar de concluir se verificam, no caso concreto pressupostos para indeferir in limine o pedido de exoneração do passivo restante, ao abrigo do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 238.º do C.I.R.E.
(…)”
Vejamos.
Sem impugnar nenhum dos concretos factos considerados provados pela julgadora da 1ª instância, sustentam os recorrentes que um deles padece de incompletude e que se impõe aditar ao elenco correspondente cinco outros que também se mostram provados e são relevantes para a decisão em causa.
A impugnação da decisão sobre a matéria de facto é admitida pelo artigo 640º, n.º 1 do Código de Processo Civil (doravante CPC), segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impõem decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto.
Por sua vez, estatui o n.º 1 do artigo 662º do mesmo diploma legal que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Incumbe à Relação, como se pode ler no acórdão deste Tribunal de 07/04/2016, disponível, tal como os demais adiante citados, em www.dgsi.pt, “enquanto tribunal de segunda instância, reapreciar, não só se a convicção do tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os outros elementos constantes dos autos revelam, mas também avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento na matéria de facto”.
Apesar disso, não se pode olvidar que o juiz da 1ª instância, perante o qual a prova é produzida, está em posição privilegiada para a avaliar, surpreendendo no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir da espontaneidade e credibilidade dos depoimentos que frequentemente não transparecem da gravação, pelo que, como pertinentemente se observou no acórdão desta Relação de 19/12/2023, proferido no processo n.º 1526/22.0T8VRL.G1 e relatado por Maria João Matos, “em caso de dúvida (face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida), deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova”.
No caso em apreço, os recorrentes cumpriram satisfatoriamente os ónus impugnatórios que sobre si impendiam, pelo que nada obsta à apreciação do invocado erro de julgamento da matéria de facto, ainda que apenas por omissão, sendo de salientar que é esta a sede própria para o efeito e não, como frequentemente acontece, por via da arguição de nulidade da decisão por omissão de pronúncia.
Na verdade, como se afirmou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/03/2017  (proc. n.º 7095/10.7TBMTS.P1.S1), relatado por Tomé Gomes, “o não atendimento de um facto que se encontra provado ou a consideração de algum facto que não devia ser atendido (…) não se traduzem  em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, de per si, uma questão a resolver, nos termos do artigo 608, n.º 2 do Código de Processo Civil”.
No mesmo sentido, pode ler-se no acórdão da Relação de Coimbra de 20/01/2015 (processo n.º 2996/12.0TBFIG.C1), relatado por Henrique Antunes,  que “(…) os vícios da decisão da matéria de facto não constituem, em caso algum, causa de nulidade da sentença (…)”, explicitando-se que  “(…) a decisão da matéria de facto está sujeita a um regime diferenciado de valores negativos - a deficiência, a obscuridade ou contradição dessa decisão ou a falta da sua motivação - a que corresponde um modo diferente de controlo e de impugnação: qualquer destes vícios não é causa de nulidade da sentença, antes é susceptível de dar lugar à actuação pela Relação dos seus poderes de rescisão ou de cassação da decisão da matéria de facto da 1ª instância (…)”.
Pois bem.
Pretendem os recorrentes a ampliação do ponto de facto “Foram reclamados créditos num total de €670.786,64 Euros, com as datas de constituição e de incumprimento infra descritos”, mediante o aditamento do segmento “os quais têm a sua origem, à exceção de um crédito da Banco 1... oriundo no incumprimento de contrato de compra e venda com mútuo e hipoteca, no facto de os devedores se terem constituído como avalistas e principais pagadores de todas as obrigações assumidas como mutuários, em diversos mútuos, contraídos por diversas empresas das quais eram sócios, e cujos negócios se revelaram deficitários e de fraca solvabilidade”, e bem assim que sejam aditados ao elenco dos factos provados cinco novos pontos – que, por comodidade de exposição, numeramos de um a cinco –, com o seguinte teor:
1 - “Dos incumprimentos descritos, constata-se que os devedores não tiveram qualquer ação direta, nem contribuíram para tais incumprimentos”;
2 - “Dos créditos reclamados, o único crédito que teve como beneficiários diretos, os aqui devedores, foi o crédito da Banco 1..., no valor de € 117.275,14, oriundo no incumprimento de contrato de compra e venda com mútuo e hipoteca, o qual, à data da apresentação à insolvência não apresentava qualquer incumprimento”;
3 - “Nos presentes autos não foi aberto o incidente de qualificação da insolvência como culposa”;
4 - “Entre os anos 2009 a 2021 os aqui devedores constituíram-se como avalistas e principais pagadores de todas as obrigações assumidas como mutuários, em diversos mútuos, contraídos por diversas empresas das quais eram sócios”;
5 - “Os aqui recorrentes, eram sócios e o ora recorrente gerente/administrador das sociedades comerciais EMP01... - UNIPESSOAL LDA, titular do NIPC ...46; EMP07... - LDA, titular do NIPC ...64; EMP08... - LDA, titular do NIPC ...47; EMP11... - LDA, titular do NIPC ...10; EMP09... - LDA, titular do NIPC ...05 e EMP06..., LDA, titular do NIPC ...71”.
Fundamentam tal pretensão no relatório do Administrador da Insolvência, nomeadamente na relação de créditos reconhecidos anexa, de que juntam cópia[1].
Todavia, afigura-se-nos que não se impõe qualquer modificação do complexo fáctico fixado na decisão recorrida.
Desde logo, porque a parte final do complemento propugnado ao ponto dos factos provados atinente aos créditos reclamados e os dois primeiros pontos que pretendem ver aditados a esse elenco, incorporam juízos de valor ou conclusivos, pelo que jamais poderiam ser dados como provados e, se o tivessem sido, teriam de se considerar como não escritos, solução que constava expressamente do artigo 646º, n.º 4 do Código de Processo Civil pregresso e que, embora não conste do Código de Processo Civil em vigor, aprovado pelo DL  41/2013, de 26 de Junho, deve, na esteira da boa doutrina[2], extrair-se do respectivo artigo 607º, n.º 4, relativo à elaboração da sentença, segundo o qual “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados (…)” (sublinhado nosso) .
Depois, porque a matéria vertida na parte inicial do ajuizado complemento e a vertida nos três restantes pontos cujo aditamento propõem é absolutamente irrelevante para a economia da decisão.
Com efeito, o que releva para efeitos de tal decisão é o montante global do passivo, sendo indiferente que este resulte de dívidas contraídas pelos insolventes em seu próprio benefício ou de avais prestados a favor de sociedades de que eram sócios e/ou gerentes.
Ora, como salienta António Santos Abrantes Geraldes[3], um dos resultados a que a Relação pode chegar em sede de apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto é o de abster-se de dela conhecer “quando os factos impugnados não interfiram de modo algum na solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque dos factos provados ou não provados”.
No mesmo sentido, vaticinou-se no acórdão desta Relação de 02/03/2023 (proc. n.º 189/20.2T8ALJ.G1), relatado por Jorge Teixeira, que “Não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação não forem susceptíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (…)”.
Indeferimos, por conseguinte, o aditamento ao elenco dos factos provados da matéria vertida nos pontos acima enunciados sob os números 1 e 2, bem como da vertida na parte final do complemento propugnado ao ponto de facto atinente aos créditos reclamados, e abstemo-nos de conhecer da impugnação deduzida contra a omissão neste último ponto da matéria vertida na parte inicial do dito complemento, talqualmente da omissão naquele elenco da matéria vertida nos pontos acima enunciados sob os números 3, 4 e 5.
Aqui chegados, importa apreciar o erro de direito também imputado ao despacho recorrido.
Os recorrentes insurgem-se contra o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Como se lê no preâmbulo do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), a propósito desse instituto, regulado no artigo 235º e seguintes, “o Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa-fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido ente nós (…)”.
Segundo a definição proposta por Catarina Serra[4], “Trata-se de uma medida de proteção do devedor, libertando-o das suas obrigações, permitindo realizar uma espécie de azeramento da sua posição passiva, para que, depois de «aprendida» a lição, ele possa retomar a sua vida e, se for caso disso, o exercício da sua actividade económica ou empresarial. O objectivo é, por outras palavras, dar ao sujeito a oportunidade de (re)começar do zero, de um «fresh start»”.
Por outro lado, como observam Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões[5], na esteira de Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, “a referência a uma exoneração dos créditos sobre a insolvência não é correcta, uma vez que a exoneração diz respeito não aos créditos, situações jurídicas activas do credor, mas às dívidas a que esses créditos correspondem, enquanto situações jurídicas passivas da esfera do devedor”.
O pedido deve, por norma, ser deduzido no requerimento de apresentação à insolvência ou, se esta for requerida por terceiro, nos 10 dias posteriores à citação e deve conter, nos termos do artigo 236º, n.º 3 do CIRE, a declaração do devedor de que preenche os requisitos e se dispõe a observar as condições exigidas nos artigos seguintes.
Salvo se tiver sido deduzido após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa desta, após os 60 dias subsequentes à sentença que tenha declarado a insolvência, caso em que será sempre rejeitado, o juiz deve admitir o pedido para discussão e decide após dar aos  credores e ao administrador da insolvência a possibilidade de sobre ele se pronunciarem.
Nesta fase, não existindo motivo para indeferimento liminar e se, entretanto, não tiver sido aprovado e homologado um plano de insolvência, o juiz profere despacho declarando que a exoneração será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no artigo 239º do CIRE durante os três anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência.
Como refere Menezes Leitão[6], “(…) não se trata de verdadeiro despacho liminar, uma vez que, em muitas situações, pode ser necessário fazer prova dos factos que impedem o prosseguimento deste processo e que se encontram previstos nas alíneas do n.º 1” do artigo 238º.
É ainda pacífico que os fundamentos de indeferimento liminar são apenas os elencados, taxativamente, nas várias alíneas do n.º 1 do artigo 238º do CIRE e que cabe aos credores o ónus da prova dos factos correspondentes, por serem impeditivos do direito à exoneração do passivo restante.
Retornemos ao caso vertente.
O pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos recorrentes foi indeferido com o fundamento previsto na alínea e) do n.º 1 do artigo 238º do CIRE, onde se prevê que o juiz tome essa atitude quando “Constarem já do processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186º”.
Segundo estabelece o n.º 1 do artigo 3º do mesmo diploma legal “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.
Por sua vez, sob a epígrafe “Insolvência culposa”, dispõe o citado artigo 186º que:
“1 - A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência”.
2 - Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
(…)
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
(…)
4 - O disposto nos números 2 e 3 é aplicável, com as necessárias adaptações, à actuação de pessoa singular insolvente e seus administradores, onde a isso não se opuser a diversidade das situações”
(…)”.
Comentando este preceito, Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões[7] consideram que, além da “cláusula geral e aberta” contida no n.º 1, o mesmo prevê, nos dois números seguintes, situações de presunção de insolvência culposa, inilidíveis no primeiro e ilidíveis no segundo.
Importa ainda salientar que perfilhamos o entendimento de que nas situações elencadas no n.º 2 se presume, não só a culpa, mas também o nexo causal entre o comportamento do devedor ou dos seus administradores e a criação ou agravamento do estado de insolvência – nesse sentido, acórdão desta Relação de 27/06/2024 (proc. n.º 2396/21.1T8VNF-B.G1), relatado por Pedro Maurício, em cujo sumário se escreveu que “I - Constitui entendimento pacífico e unânime que, nas diversas alíneas do nº 2 do art. 186º do C.I.R.E., o legislador consagrou presunções inilidíveis (ou factos-índices) de insolvência culposa, donde resulta que, verificado algum dos comportamentos elencados numa daquelas alíneas, o Juiz, ope legis, sem admissão de prova em contrário, tem sempre que classificar a insolvência como culposa. II - Constitui igualmente entendimento pacífico e unânime que as presunções inilidíveis (ou factos-índices) estatuídos nas diversas alíneas do nº2 do art. 186º do C.I.R.E. abrangem a culpa e também a existência do nexo de causalidade entre a actuação e a criação ou agravamento do estado de insolvência deste”.
Pois bem.
A julgadora da 1ª instância considerou preenchido o fundamento de indeferimento previsto na alínea e) do n.º 1 do artigo 238º do CIRE, acima transcrito, porquanto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, os recorrentes venderam os dois únicos bens imóveis de que eram proprietários, esvaziando, desse modo, o seu património e dificultando a satisfação dos direitos dos credores.
Muito embora não a tenha invocado expressamente, infere-se com meridiana clareza que, em seu entender, a situação descrita seria subsumível à previsão da alínea d) do n.º 2 do artigo 186º do mesmo diploma legal[8][9], onde se estatui que se considera sempre culposa a insolvência quando o devedor tenha disposto dos seus bens em proveito pessoal ou de terceiro, devendo entender-se que o faz em proveito pessoal quando afecta o produto da venda à satisfação das suas próprias necessidades ou lhe dá um destino desconhecido, em detrimento dos credores, e que o faz em proveito de terceiro quando a transferência dos bens não envolve qualquer contrapartida ou envolve uma contrapartida inferior à devida, beneficiando o adquirente.
Como se pode ler no sumário do acórdão da Relação do Porto de 11/02/2025 (proc. n.º 380/24.2T8STS.P1), relatado por Rui Moreira, “I – O devedor que vende duas fracções de um prédio que constituíam o único património apto a satisfazer, ainda que parcialmente, as suas dívidas, menos de três anos antes da respectiva declaração de insolvência, que é encerrada por insuficiência da massa insolvente, destinando o capital que com isso obteve a fim desconhecido, incorre na previsão da alínea d) do nº 2 do art. 186º do CIRE. II - Consequentemente, não pode beneficiar da exoneração do passivo restante, por efeito do disposto no art. 238º, nº 1, al. e) do CIRE”.
Ainda a propósito do proveito pessoal e da adaptação desse conceito, prescrita no n.º 4 do artigo 186º do CIRE, ao devedor que seja pessoa singular, afirmou-se no acórdão da mesma Relação de 22/02/2022 (proc. n.º 3219/14.3TBMTS.P1), relatado por João Ramos Lopes, que tal adaptação “(…) impõe se considere o conceito (‘proveito pessoal’) como significando detrimento ou prejuízo do património que, nos termos do art. 601º do CC, responde pelas suas obrigações e responsabilidades. Ínsita ao conceito de proveito pessoal está a ideia de prejuízo para o património do devedor (no conceito funcional de garantia de cumprimento de obrigações) – prejuízo que não pode resumir-se à simples modificação da composição do património, por alteração/substituição dos bens que o compõem”.
Por sua vez, sintetizando os dois indicados conceitos, pode ler-se no sumário do acórdão desta Relação de 10/07/2023 (proc. n.º 4607/21.4T8VNF-A.G1), relatado por Maria João Matos, que “A presunção inilidível de insolvência culposa da al. d), do n.º 2, do art. 186.º do CIRE, exige que os actos de disposição de bens da insolvente, praticados pelos seus administradores nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, tenham redundado em proveito pessoal dos seus autores ou de terceiros; e isso pressupõe que não tenham contrapartida (sejam gratuitos), ou a mesma seja inferior ao valor real dos bens, ou não venha a reverter em proveito dos credores da insolvente antes proprietária”.
Assim, resultando dos factos provados que os recorrentes, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, venderam os dois únicos bens imóveis de que eram proprietários[10], dando destino desconhecido ao produto da venda, em detrimento dos credores, temos por líquido que se mostra preenchida a previsão do normativo em análise e, consequentemente, verificado o fundamento de indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante invocado na decisão sob censura, anotando-se que não obsta ao indeferimento a circunstância de não ter sido aberto o incidente de qualificação da insolvência[11],  o que apenas sucederia se, aberto tal incidente, se tivesse qualificado a insolvência como fortuita – nesse sentido acórdão desta Relação de 29/05/2024 (proc. n.º 6314/22.1T8VNG.G1), relatado por José Alberto Moreira Dias, e acórdão da Relação do Porto de 06/09/2021 (proc. n.º 2184/20.2T8STS-D.P1), relatado por Joaquim Moura.

Importa ainda salientar que, como acima explicitamos, a exoneração do passivo restante é um benefício concedido ao devedor singular que esteja de boa fé, pelo que não pode ser concedido a quem pratique actos prejudiciais à massa e que, por isso, foram resolvidos em favor desta (resolução essa que, no caso que nos ocupa, nem sequer foi impugnada) – nesse sentido acórdão da Relação do Porto de 30/01/2024 (proc. n.º 8651/21.3T8VNG-D.P1), relatado por Alexandra Pelayo.

Acresce que, como também se sublinhou nesse aresto, não releva para este efeito a circunstância de o Administrador da Insolvência ter evitado o prejuízo, por via da resolução do negócio e consequente reconstituição da situação que existiria se o mesmo não tivesse sido celebrado, nos termos do artigo 126º do CIRE.
Improcede, pois, a apelação.
De acordo com a regra geral inscrita no artigo 527º do CPC, os recorrentes, como parte vencida, suportarão as custas do recurso.
*
IV. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pelos recorrentes
Guimarães, 05 de Junho de 2025

João Peres Coelho
Relator
Gonçalo Oliveira Magalhães
1º Adjunto
Rosália Cunha
2ª Adjunta


[1] Por constituir mera cópia da relação de créditos reconhecidos apresentada nos termos do artigo 129º do CIRE e de que os recorrentes foram notificados juntamente com o relatório elaborado pelo Administrador da Insolvência ao abrigo do artigo 155º do mesmo diploma legal, nada há a determinar a respeito da junção.
[2] Defendida, entre outros, no acórdão do STJ de 28/09/2017 (proc. n.º 809/10.7TBMLG.C1.S1), no qual se decidiu que “Muito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos”.
[3] Recursos em Processo Civil, Novo Regime, 2010, 3ª edição, página 337.
[4] O Novo Regime Português da Insolvência – Uma Introdução, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2010, página 155.
[5] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 2013, página 649
[6] Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 5ª edição, Almedina, Coimbra, 2009, página 241.
[7] Obra citada na nota 5, página 508.
[8] A circunstância de os devedores terem disposto dos indicados bens a favor de uma empresa com eles “especialmente relacionada”, concretamente uma sociedade anónima de que eram administradores, não releva para efeitos de eventual preenchimento da alínea b) do n.º 2 do citado artigo 186º, cujos demais requisitos não estão demonstrados, embora integre a presunção de má fé do terceiro adquirente, estabelecida no n.º 4 do artigo 120º do CIRE para efeitos de resolução condicional do negócio em causa, entretanto operada pelo Administrador da Insolvência.
[9] Sendo certo que nada impedia que considerássemos preenchida a previsão do artigo 238º, n.º 1 alínea e), por referência a uma alínea do n.º 2 do artigo 186º diversa da considerada pela 1ª instância e que, dada a singeleza dos factos relevantes para o efeito, claramente enunciados na decisão recorrida e sobre os quais os recorrentes já tiveram oportunidade de se pronunciar, sempre seria de rejeitar o exercício prévio do contraditório relativamente a esse hipotético enquadramento, por manifesta desnecessidade, nos termos do artigo 3º, n.º 3 do Código de Processo Civil.
[10] De tal forma que, como se sublinhou na decisão recorrida, se apresentaram à insolvência despojados de quaisquer bens.
[11] Ainda que seja qualificada como fortuita para efeitos de encerramento do processo de insolvência, nos termos do artigo 233º, n.º 6 do CIRE.