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EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO DO CONTRATO
MÁ FÉ
Sumário
I - Dar-se como provado um facto que devia ter sido considerado não provado ou dar-se como não provado um facto que devia ter sido considerado provado e as razões que estão subjacentes a tal entendimento, não traduz qualquer obscuridade da sentença, antes se tratando de situações que se reconduzem “a erros de julgamento de facto”, passíveis de ser superados mediante impugnação da decisão de facto, observados os ónus do art.º 640º e eventual modificação da decisão de facto, nos termos do n.º 1 do art.º 662º, ambos do CPC. II – Tendo em consideração o n.º 4 do art.º 607º do CPC na fundamentação (de facto) da sentença, só devem constar factos e não matéria de direito e/ou conclusões ou matéria genérica. III - Haverá contradição da decisão de facto quando o conteúdo de um dado ponto de facto for incompatível, for a antítese, for o contrário de outro ponto de facto. IV - Os enunciados de facto devem ser ordenados de acordo com a sequência lógica e cronológica que é conforme à realidade histórica que é suposto ser retratada. V - Por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto se entender que os concretos factos objecto da impugnação, atentas as circunstâncias do caso e as várias soluções plausíveis de direito, não têm relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual inútil. VI - A exceptio non adimpleti contractus tem lugar nos contratos com prestações correspectivas ou correlativas, isto é, interdependentes, sendo uma o motivo determinante da outra. É o que se verifica nos contratos tradicionalmente chamados bilaterais ou sinalagmáticos. VII – Uma defesa numa acção judicial assente numa omissão de factos relevantes para a decisão da causa e, deste modo, no que se vem a apurar ser uma meia-verdade, no sentido em que só é parte da verdade total, não pode deixar de ser considerada, tendo em consideração que as acções humanas são orientadas pela racionalidade e o ambiente em que tal ocorre – acção judicial -, como tendo sido apresentada com o propósito de fazer acreditar que representa a verdade total e, assim, não é possível deixar de considerar que se traduziu na apresentação necessariamente dolosa de uma defesa cuja falta de fundamento não se devia ignorar,
Texto Integral
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES
1. Relatório
EMP02... Sl intentou procedimento de injunção contra EMP01... Lda, pedindo o pagamento da quantia de € 6.652,29 sendo € 5.430,00 de capital, € 1.120,29 de juros de mora e € 102,00 de taxa de justiça.
No lugar destinado à identificação do “contrato” inscreveu “compra e venda” e no lugar destinado à “data do contrato” inscreveu “02-06-2021”.
Alegou que é uma sociedade comercial espanhola que tem por objecto a fabricação e comercialização de cintas transportadoras para pedreiras e indústria em geral; a requerida é uma sociedade comercial que tem por objecto a exploração de pedra e transformação de granito e rochas afins; no exercício da sua actividade comercial vendeu e entregou à requerida, a pedido desta, a cinta transportadora especificada na factura que indica e que, enviada à requerida, não foi paga.
A requerida, notificada deduziu oposição invocando por excepção, a ineptidão da petição inicial por falta de causa de pedir e o não cumprimento/cumprimento defeituoso do contrato, dizendo a este respeito e em síntese que adquiriu à requerente uma cinta para prossecução do seu objecto social, com as características que indica e conforme orçamento de € 9.550,00; a cinta foi fabricada e transportada pela requerida até às instalações da mesma, onde posteriormente seria instalada pela “requerida” (sic); no momento em que foi adquirida, ficou acordado que seria feito um pagamento de € 3.820,00; ficou ainda acordado, conforme email de 28 de Maio de 2021, que estava incluída a instalação e montagem nas instalações da requerida por dois funcionários da requerente e que teria de ser a requerida a assegurar o transporte; a requerida pagou o montante acordado, a requerida levantou a conta e transportou-a, a fim de ser instalada pela requerente, a requerente não cumpriu o contrato, encontrando-se a cinta arrumada e por instalar; a requerida, por diversas vezes, tentou contactar a requerente para que esta procedesse à instalação da cinta; foi com surpresa que recebeu uma interpelação para pagar o remanescente do preço, a que respondeu, informando que se encontrava a aguardar a instalação, discorrendo de seguida sobre o cumprimento defeituoso e a exceptio non adimpletus contractus.
Distribuídos os autos, foi ordenada a notificação da A. para, querendo, responder às excepções, o que a mesma fez, dizendo, quanto à excepção de não cumprimento /cumprimento defeituoso, que enviou um primeiro orçamento à Ré; no dia seguinte e na sequência de negociações entre as partes, a A. enviou um segundo orçamento rectificativo do anterior, que previa o preço de € 9.550,00, sem transporte e com instalação incluída, sendo que, com a confirmação da encomenda deveria ser pago pela R. 40% do preço e quando a cinta estivesse pronta para entrega, mas antes de sair das instalações da A., a Ré deveria pagar os 60% restantes; a Ré aceitou este orçamento e a A. emitiu a factura relativa a 40% do preço, no valor de € 3.820,00, que a Ré pagou; posteriormente, quando a cinta já estava pronta para entrega, houve uma alteração das condições acordadas, tendo ficado combinado o preço de € 8.750,00, sem instalação ou montagem por parte da A., acrescido de 500,00 pelo transporte da cinta até instalações da R., num total de € 9.250,00, mantendo-se a obrigação da Ré de pagar 60% do preço antes da cinta sair das instalações da A., pelo que emitiu a factura no valor de € 5.430,00, cujo valor se reclama; a R. garantiu à A. que pagaria a factura assim que recebesse a cinta transportadora; a A. confiou na Ré e pagou o transporte desde as suas instalações em Espanha até às instalações da Ré em Portugal; a R. recebeu a cinta, mas não a pagou, nem o transporte; a Ré tem conhecimento que a instalação da cinta é um processo simples, cujo valor económico é inferior ao crédito da A., pelo que nada justificaria o incumprimento da sua obrigação de pagar o preço em falta.
Foi proferido despacho saneador que julgou improcedente a excepção de ineptidão da petição inicial, julgou verificados os demais pressupostos processuais e designou data para audiência final.
Realizou-se a audiência final, no âmbito da qual a Mmª Juiz a quo suscitou a possibilidade de condenação de uma das partes em litigância de má fé e deu a palavra às partes para se pronunciarem, o que as mesmas fizeram, tendo ainda sido ordenada a conclusão dos autos a fim de ser proferida sentença por escrito, o que sucedeu, tendo a sentença proferida o seguinte decisório: “Nos termos e com os fundamentos acima expostos, julga-se totalmente procedente a presente acção, por provada e, em consequência: a. Condeno a Ré, EMP01..., Lda., a pagar à Autora, EMP02..., S.L., a quantia de € 5.430,00 (cinco mil, quatrocentos e trinta euros), acrescida dos juros de mora à taxa de juros comerciais em vigor, contados desde 09.07.2021 até efectivo e integral pagamento; b. Condeno a ré no pagamento da multa processual de quatro unidades de conta, por litigância de má-fé.
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Custas pela Ré, nos termos do art. 527.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil.”
A Ré interpôs recurso, pedindo seja julgada procedente a excepção de não cumprimento do contrato estabelecido entre as partes, absolvendo-se a Recorrente da instância e improcedente o pedido de condenação da Recorrente como litigante de má-fé, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões: A. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida pela M.ma Juiz “a quo” que, julgando procedente a ação e condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de € 5.430,00€ (cinco mil, quatrocentos e trinta euros), acrescida dos juros de mora à taxa de juros comerciais em vigor, contados desde 09.07.2021 até efetivo e integral pagamento, bem como condenação da Ré no pagamento da multa processual de quatro unidades de conta, por litigância de má-fé. B. O Apelante considera, salvo melhor e douta opinião de Vossas Excelências, incorretamente julgado e decidido o caso ora em apreço. C. Entende muito humildemente o Réu que a douta sentença padece de ambiguidade e/ou obscuridade na parte que deu como provados os factos constantes nos pontos 9., 11. e 12 e como não provados os factos constantes das alíneas A), C), D) e E), da sua fundamentação quanto ao julgamento da matéria de facto D. Está convicto o recorrente que a Sentença não foi convenientemente fundamentada. E. Entende a Recorrente que os factos dados como provados constantes dos pontos 9., 11. e 12 cujo teor da motivação deste recurso supra aqui se dão por integralmente reproduzido, deveriam ter sido dados como não provados, como adiante se justificará. F. Nos factos vertidos no Ponto 9 dados como provados, socorrendo-nos nas Declarações de Parte do Legal Representante da Ré, do dia 01/07/2024, das 10:15h às10:52h, min 05:44 a 09:42, deve ser dado como não provado, pois é claro, e resulta tanto das declarações de legal representante da Ré, como das regras de experiência comum, não ia a Ré fazer uma encomenda de uma máquina/tapete/cinta cuja forma técnica de funcionamento e montagem desconhece, pelo que não ia alterar as condições para “sem montagem”. Aliás, resulta diretamente dos min 05:44 a 06:40 o desconhecimento da Ré de como proceder à instalação correta da dita cinta, pelo que deve ser dado como não provado o facto provado nº 9; G. Nos Factos vertidos no Ponto 11 dados como provados, nos termos das Declarações de Parte do Legal Representante da Ré, do dia 01/07/2024, das 10:15h às10:52h, min 12:49 a 13:51, percebemos claramente que a Ré foi apanhada de surpresa com a entrega da cinta por parte da Autora. A Ré estava preparada para ir buscar a dita cinta, contudo, a Autora antecipou-se, pelo que seria completamente impossível à Ré pagar a totalidade do preço antes daquela sair, uma vez que desconhecia tal expedição. Alias, se assim fosse, a Autora jamais entregaria a dita cinta nas instalações da Ré. Assim, deve o ponto 11 dos factos dados como provados ser dado como não provado. H. Nos Factos vertidos no Ponto 12 dados como provados, nos termos das Declarações de Parte do Legal Representante da Ré, do dia 01/07/2024, das 10:15h às10:52h, min 05:17 a 06:03, ficou combinado a Autora vir proceder à montagem. O fornecimento de bens e serviços ainda não estava concluído. A Ré, se já tinha pago uma parte, como resulta da factualidade dada como provada, pagaria o remanescente assim que estivesse concluído o dito fornecimento de bens e serviços. Faltava a montagem, logo, nesta relação sinalagmática, faltava a ultima parte da Autora – montagem. Assim, o facto 12 dado como provado deve, sem ulteriores considerações, ser dado como não provado. I. Entende também humildemente a aqui recorrente que assim os factos dados como não provados constantes das alíneas A), B), D) E) cujo teor consta da motivação deste recurso supra aqui se dão por integralmente reproduzidos, deveriam ter sido dados como provados como adiante se justificará. J. Nos Factos ALÍNEA A) dados como não provados, nos termos das Declarações de Parte do Legal Representante da Ré, do dia 01/07/2024, das 10:15h às10:52h, min 01:49 a 09:42, assim como min 29:26 a 29:54, mas também nos termos do Depoimento da testemunha AA, do dia 01/07/2024, das 11:44h às 12:00h, min 02:07 a 05:46, ficou sim acordada a instalação e montagem da cinta por parte da Autora. Também resulta serem máquinas industriais específicas e que necessitam sempre de técnicos especializados e de manual para poder montá-las e deixá-las a funcionar corretamente, o que fazia parte desta relação contratual sinalagmática. Assim, o facto não provado C deveria ser dado como provado, uma vez que foi, tal como resulta do exposto, acordada entre as partes a instalação e montagem da cinta pela Autora. K. Nos Factos ALÍNEA C) dado como não provado, partindo das Declarações de Parte do Legal Representante da Ré, do dia 01/07/2024, das 10:15h às10:52h, min 16:32 a 19:38 assim como min 31:51 a 31:59, além do Depoimento da testemunha AA, do dia 01/07/2024, das 11:44h às 12:00h, min 07:30 a 07:41, humildemente entende a recorrente que os factos constantes da ALÍNEA C) dados como não provados deveriam ser dados provados. Na verdade, e no seguimento da linha de raciocínio, a referida cinta nunca foi instalada e continua por instalar, encontrando-se a mesma arrumada e por instalar. Assim, o facto não provado constante da ALÍNEA C) deveria ser dado como provado. L. Nos Factos ALÍNEA D) dado como não provado, articulando as Declarações de Parte do Legal Representante da Ré, do dia 01/07/2024, das 10:15h às10:52h, min 21:00 a 21:17, bem como min 24:08 a 25:33, humildemente entende o recorrente que os factos constantes da alínea D) dados como não provados deveriam ser dados provados. Resulta das declarações do legal representante da Ré ter reclamado várias vezes por telefone, bem como não ter pago o remanescente uma vez que não foi realizada a instalação e montagem. Assim, o facto não provado ALINEA D deveria ser dado como provado. M. Por fim, o Facto ALÍNEA E) dado como não provado, analisando o Depoimento da testemunha AA, do dia 01/07/2024, das 11:44h às 12:00h, min 04:47 a 05:51, o envio de uma carta, por parte da Ré, como derradeira tentativa de resolução do problema, à qual não houve qualquer resposta por parte da Autora e encontrando-se, nos dias que correm, “por resolver. Tal também encontra sustento na prova documental carreada para os autos, bem com nos factos provados nºs 16. e 17. Deve, assim, ser dado como provado o facto dado como não provado na ALÍNEA E). N. A completa apreciação do presente recurso - mesmo em termos de recurso da matéria de facto - não termina sem que se ponderem e analisem também alguns factos sob a perspectiva do direito aplicável e que se passaram a expor: O. O iter negotii caracteriza-se por envolver duas fases distintas, a negociatória, constituída pelos actos tendentes à celebração do contrato, e a decisória, constituída pela conclusão do acordo, devendo as partes, durante todo o percurso do caminho contratual, proceder segundo as regras da boa fé, conforme prescreve o art. 227.º do CC. P. A relação pré-contratual estabelecida com os contactos e negociações entre as partes e os deveres (integrados nessa relação) de elas se comportarem com lealdade, probidade, correcção e boa fé, implicam que, se no decurso das negociações uma das partes faz surgir na outra confiança razoável de que o contrato que negoceiam será concluído e, posteriormente, interrompe as negociações ou recusa a conclusão do contrato sem justo motivo, fica obrigada a reparar os danos sofridos pela outra parte com a aludida ruptura, que é livre, mas não pode ser arbitrária. Q. Não podem restar dúvidas que foi pré negociado entre as partes o fabrico, instalação e montagem de uma cinta por parte da Recorrida, mediante contrapartida monetária por parte da Recorrente. Não podem também restar dúvidas, porque resulta da prova produzida, que a referida cinta foi fabricada pela Recorrida e que se encontra nas instalações da Recorrente. Todavia, a cinta não foi instalada nem montada nas instalações da Recorrente, o que consubstancia o Não cumprimento/cumprimento defeituoso do contrato. R. Não há dúvida que o contrato, previamente negociado entre as partes, não foi cumprido por parte da recorrida, uma vez que não procedeu à instalação e montagem da referida cinta, estando assim, a Recorrente, na faculdade de se recusar no pagamento integral do preço até que o vício seja sanado. S. No que concerne à previsão geral da condenação a título de litigância de má-fé encontra-se no art.º 456.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, nos termos do qual “Tendo litigado de má-fé, a parte será condenada em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir”. T. Estabelece, por outro lado, a alínea a) do n.º 2 do citado artigo que “Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave (...) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar”. U. Como observa Duarte Nazaré, citado por José Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, volume II, 3ª edição, pág. 256, “O vencimento ou a perda de uma causa depende às vezes de bem pouco”, sendo esse bem pouco, o mais das vezes, o resulta imprevisível de uma prova testemunhal de conhecida volubilidade”. V. Não basta, por isso, que uma pretensão seja infundada para que haja má-fé, é necessário dolo ou negligência grave na pretensão apresentada. A este propósito, é tradicional – vide, J. A. dos Reis, op. cit., pág. 262 – a distinção de 4 tipos de conduta processual: - Lide cautelosa;- Lide simplesmente imprudente, Lide temerária, Lide dolosa. W. Tendo presente a distinção acima exposta, será de concluir que o “tipo geral” da litigância de má-fé apenas permite sancionar as duas últimas condutas referida, ou seja, a lide temerária e a lide dolosa. X. Ora, no caso, não se afigura existir qualquer razão para a condenação da Recorrente a título de litigância de má-fé, nada havendo nos autos que permita formular um juízo de censura sobre a respectiva conduta processual. Y. Aliás, se assim fosse, existiria na maioria das demandas uma litigante de má-fé, que seria sempre a vencida…. Z. Pelo que, por tudo supra exposto, sempre deverá improceder a condenação da recorrente como A A. contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões: A. Veio o recurso interposto da decisão do Tribunal de 1ª instância que julgou a ação procedente, e nessa conformidade condenou a Ré a pagar à ora Recorrida, a quantia de 5.430,00€, acrescida dos juros de mora à taxa de juros comerciais em vigor, contados desde 09.07.2021 até efetivo e integral pagamento, bem como no pagamento de multa processual de quatro unidades de conta, por litigância de má-fé. B. Alega a Recorrente que a douta sentença proferida pelo tribunal a quo, padece de ambiguidade e/ou obscuridade na parte que deu como provados os factos constantes nos pontos 9º, 11º e 12º e como não provados os factos constantes das alíneas A), C), D) e E). C. Alega ainda que a sentença não foi convenientemente fundamentada, que a decisão proferida seguiu um caminho diverso daquele que apontavam os fundamentos e que o Tribunal a quo conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento. D. Não assiste razão à Apelante, que não pretende mais do que adiar o desfecho da presente ação, tal e como tem vindo a fazer desde o início dos autos. E. A prova dos factos constantes nos pontos 9º, 11º e 12º dos factos provados da douta sentença recorrida, resulta dos docs. nº1 a nº11 juntos pela Recorrida com a Resposta à contestação da Recorrente, posteriormente traduzidos e juntos via citius, através de dois requerimentos da Recorrida de 21 de junho de 2024; F. E resulta ainda das Declarações prestadas pela Testemunha BB, no dia 01/07/2024, das 10:53h às 11:43h, administrativo da Autora que explicou de forma clara, coerente e credível as diferentes fases das negociações celebradas entre as partes para a compra pela Ré da cinta transportadora fabricada pela Autora e como, uma vez que a cinta transportadora encomendada pela Recorrente já tinha sido fabricada pela Recorrida e estava pronta para entrega, houve uma alteração nas condições acordadas entre as partes, e ficou combinado um preço de 8.750,00€ pela cinta, sem instalação ou montagem por parte da Recorrida, acrescido de 500,00€ pelo transporte da cinta até as instalações da Recorrente, num total de 9.250,00€ (nove mil duzentos e cinquenta euros), mantendo-se a obrigação da Recorrente pagar o 60% do valor restante do preço, antes de que a cinta saísse das instalações da Recorrida com destino às instalações da Recorrente, - cfr Minutos 13:32 a 14:07; Minutos 14:09 a 16:03; Minutos 16:04 a 17:23; Minutos 18:42 a 19:18; Minutos 24:22 a 25:30; Minutos 43:57 a 45:20; Minutos 48:56 a 50:01 da gravação de depoimento desta testemunha -. G. Também o Legal Representante da Recorrida, o senhor CC, ouvido em declarações de parte no dia 01/07/2024, das 9:58h às 10:14h, explicou, de forma clara e descomprometida, que foi o senhor DD, legal representante da Ré, quem lhe manifestou que seria a empresa EMP03... a montar a cinta transportadora, - cfr. Minutos 6:53 a 7:19; Minutos 9:01 a 9:44 da gravação de depoimento desta testemunha. H. Negou ainda esta testemunha que Recorrente tivesse contatado a Recorrida por diversas vezes, para que esta procedesse à instalação da cinta, a fim de, finalizada a instalação, pagar o preço, e confirmou, consequentemente, que não foram rejeitadas pela Recorrida quaisquer tentativas de contato por parte da Recorrente, uma vez que não as houve – cfr. Minutos 6:37 a 6:58 44 da gravação de depoimento desta testemunha -., I. Das declarações prestadas pelo legal representante da Recorrida, claramente resulta que, contrariamente ao alegado pela Recorrente, não foi acordado entre as partes que a instalação e montagem da cinta transportadora iria ser feita pela Recorrida; a Recorrente não tentou contatar a Recorrida por diversas vezes, para que esta procedesse à instalação da cinta, a fim de, finalizada a instalação, pagar o preço, a Ré não tentou uma vez más estabelecer contacto com a Autora, a fim de resolver o problema e por tanto não foram rejeitadas pela mesma todas as tentativas de contato. J. Não podendo assim ser dados como provados os factos das alíneas A, D e E dos factos não provados, como pretende a Recorrente. K. Quanto ao Facto da alínea C dos factos não provados, nomeadamente, “Que a cinta se encontre “arrumada” e por instalar”, pretende a Recorrente que seja dado como provado com base nas Declarações de Parte do Legal Representante da Ré (DD) do dia 01/07/2024, das 10:15h às 10:52 h, min 16:32 a 19:38 e ainda com base nas declarações da testemunha da Ré, AA, do dia 01/07/2024, das 11:44 h às 12:00h, min 7:30 a 7:41. L. Contudo, das próprias transcrições das gravações dos depoimentos destas testemunhas, constantes das alegações da Recorrente, resulta que, enquanto o legal representante da Ré afirma “Está lá a máquina no meio do parque, ali à água, à chuva, ao vento, porque foi o sitio onde se descarregou “(minuto 00:18:59) ; “ Ainda me está a ocupar terreno que ……. (minuto 00:18:59), a Testemunha da Ré, AA, quando questionada pela Magistrada Judicial sobre a máquina, afirma que a máquina está envolvida, guardada e arrumada (minutos 07:37 a 07:42). M. Do que só se pode concluir que estas duas testemunhas estão a faltar à verdade, uma vez que nem sequer coincidem na forma e no lugar em que a máquina se encontra nas instalações da Recorrente, pelo que os seus depoimentos não poderão servir para fazer prova dos factos não provados constantes na douta sentença recorrida sob as alíneas A, C, D e E, como a Recorrente pretende. N. Sendo certo que quanto a este último facto, nenhuma prova fez a Recorrente de ter realizado várias tentativas de contato a fim de resolver “o problema”, isto é a montagem da máquina, que a Recorrente insiste em afirmar que deveria ter sido realizada pela Recorrida. O. De facto, o que ficou provado com o depoimento das testemunhas da Recorrida, acima referidas, foi que a Recorrente nunca respondeu aos emails enviados pela Recorrida, - docs. nº 8 a 11º da prova documental da Recorrida junta aos autos -, solicitando-lhe o pagamento do remanescente do preço em falta P. Relativamente à prova documental que a Recorrente juntou sob o doc.- nº6 da sua contestação relativa à sua resposta , em novembro de 2023, a uma carta de uma empresa de cobranças, a mesma não é mais do que uma resposta defensiva da Recorrente, a fim de salvaguardar algum tipo de prova documental para o caso de que viesse a ser confrontada com uma ação judicial, tal e como acabou por acontecer com a a presente ação interposta pela Recorrida. Q. Não se mostra de tudo credível que a Ré não tenha feito nenhuma reclamação à Autora antes dessa data e que tenha aguardado mais de dois anos, desde a entrega da máquina nas suas instalações, para comunicar à Recorrida que estava à espera que esta procedesse à sua montagem, enquanto a máquina, segundo declarações do legal representante da Recorrida, estava lá parada “no meio do parque, ali à água, à chuva, ao vento, porque foi o sitio onde se descarregou ; ……”Ainda a ocupar terreno . R. E principalmente porque o legal representante da Recorrente afirmou em juízo que a Ré fez um investimento de 1.000.000,00€ para colocar um linha de montagem nas suas instalações, a qual ficou concluída, tendo faltado só instalar a máquina da Autora para tirar as sobras das pedras, as quais estão a ser tiradas “ à mão”, “temos tipo um ferrozinho com uma espatolazinha e puxamos as pontas que eram para ir para o tapete e metemos num caixote manualmente” – cfr. declarações de parte do Legal Representante da Ré do dia 01/07/2024 das 10:15h às 10:52h, min 16:32 a 19:38 e min 24:08 a 25:33, transcritas pela Recorrente nas sua alegações de recurso - . S. Nada disto é credível, coerente, nem lógico. T. Conforme afirma a Meritíssima Juiz a quo na douta sentença recorrida, o legal representante da Ré, DD, ao contrário do legal representante da Autora, depôs de forma desonesta, repleta de incongruências, infirmada pela prova documental junta aos autos e pelas regras da experiência comum. U. Quanto à testemunha, AA, funcionário da Ré, o seu depoimento não foi espontâneo, nem se mostrou isento, limitando-se a corroborar o teor da contestação formulada nos autos pela sua entidade patronal. V. Logo desde o início dos autos que a Recorrente se tem servido de manobras dilatórias a fim de protelar a decisão final, começando com a contestação ao Requerimento de injunção, na qual invocou que o mesmo carecia de causa de pedir, pretendendo assim que fosse declarada à nulidade de todo o processo e à absolvição da Ré, bem sabendo que carecia de qualquer fundamento. W. Também, no artigo 27º da sua contestação, a Recorrente afirmou que tinha sido ela própria a transportar para as suas instalações a cinta fabricada pela Recorrida, sendo que na audiência de julgamento o legal representante da Recorrente assumiu que essa informação era falsa, ao declarar em juízo que quem tinha transportado a cinta para as instalações da Ré, tinha sido a Autora. X. E ainda na Contestação, a Ré, ora Recorrente, omitiu vários documentos com relevância para a decisão da causa, nomeadamente os docs. nº1, nº2 e nº5, posteriormente juntos aos autos pela Recorrida, reveladores da negociação celebrada entre as partes, da sua sequência cronológica e do seu resultado e consequente acordo final ao que as partes chegaram quando a cinta transportadora já tinha sido fabricada pela Autora e estava pronta para entrega, tendo nessa altura ficado combinado um preço de € 8.750,00 pela cinta, sem instalação ou montagem por parte da Autora, acrescido de € 500,00 pelo transporte da cinta até as instalações da Ré, num total de € 9.250,00 (nove mil duzentos e cinquenta euros), mantendo-se a obrigação da Ré pagar o 60% do valor restante do preço, antes de que a cinta saísse das instalações da Autora com destino às instalações da Ré; Y. A Recorrente, com o único propósito de deturpar e ocultar o que efetivamente tinha sido combinado entre as partes, chegou mesmo a juntar sob o doc. nº1 da sua contestação um orçamento incompleto e inválido, bem sabendo que o mesmo tinha sido substituído pelo orçamento junto aos autos sob o doc. nº5 da prova documental da Recorrida. Z. De todo o exposto tem que se concluir que os factos alegados pela Recorrente para fundamentar a exceção de não cumprimento do contrato que invoca, não resultaram provados, nem podiam, uma vez que os mesmos não correspondem à verdade.
2. Questões a apreciar
O objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso, cuja apreciação ainda não se mostre precludida.
O Tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas (isto é, questões que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis” (cfr. António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, p. 139).
Pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, pelo que não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida.
No corpo das alegações a recorrente começa por invocar a nulidade da sentença nos termos das alíneas c) e d) do n.º 1 do art.º 615º, sustentada na alegação, por um lado e em síntese, de que a sentença padece de ambiguidade ou obscuridade ao dar como provados os factos 9, 11 e 12 e como não provados os factos constantes das alíneas A), C), D) e E), que a mesma não foi convenientemente fundamentada e que o tribunal conheceu de questão que não podia conhecer, invocando para tanto que o tribunal considerou provados factos que não encontram qualquer sustento na prova produzida.
Nas conclusões a recorrente limita-se a invocar que a sentença padece de ambiguidade e/ou obscuridade na parte em que deu como provados os factos 9, 11 e 12 e como não provados os factos constantes das alíneas A), C), D) e E) e que a sentença não foi convenientemente fundamentada - o que não é a mesma coisa que dizer-se que a sentença não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, o que integraria a alínea b) do n.º 1 do art.º 615º do CPC, que em momento algum foi invocada -, não fazendo qualquer referência ao facto de o tribunal ter conhecido de questão que não podia conhecer nem à nulidade da sentença.
Como se deixou referido, o objecto do recurso, ou seja, as questões que cabe ao tribunal ad quem conhecer, é balizado pelas conclusões.
Assim e face ao teor das conclusões, muito embora nelas não seja feita qualquer referência à nulidade da sentença, uma vez que uma das causas da mesma é a sentença padecer de alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, confrontar-se-á a sentença com o disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 615º do CPC.
Destarte, as questões que cumpre apreciar de acordo com a sua precedência lógica, são:
- a sentença é nula à luz do disposto na 2ª parte da alínea c) do n.º 1 do art.º 615º do CPC?
- os pontos 9, 11 e 12 dos factos provados devem ser considerados não provados e as alíneas a), c), d) e e) devem ser consideradas provadas?
- deve ser julgada verificada a excepção de não cumprimento do contrato?
- deve ser revogada a decisão que condenou a Ré como litigante de má fé?
3. Da nulidade da sentença 3.1. Enquadramento jurídico
Dispõe a alínea d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC: 1. É nula a sentença quando: (…) c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; (…)”
A sentença pode ser vista como trâmite ou como acto: no primeiro caso, atende-se à sentença no quadro da tramitação da causa; no segundo, considera-se o conteúdo admissível ou necessário da sentença.
As nulidades da sentença e dos acórdãos referem-se ao conteúdo destes actos, ou seja, estas decisões não têm o conteúdo que deviam ter ou têm um conteúdo que não podiam ter (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, in O que é uma nulidade processual? in Blog do IPPC, 18-04-2018, disponível em https://blogippc.blogspot.com/search?q=nulidade+processual).
A alínea c) tem dois fundamentos distintos- a contradição e a ininteligibilidade – que não se confundem.
A primeira (contradição): verifica-se quando ocorre incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, CPC Anotado, I, 2ª edição, pág. 763).
A contradição entre fundamentos e a decisão é estritamente no plano lógico da construção da decisão. Coisa diversa é o próprio silogismo estar errado no seu mérito, por conter uma contradição com os factos ou com o direito: trata-se, então, de erro de julgamento, por o juiz decidir contra os factos ou contra “lei” que lhe impunha uma decisão diversa (Rui Pinto, Manual do Recurso Civil, AAFDL Editora, pág. 83).
Se a decisão sobre determinados pontos da matéria de facto for contraditória, a solução passa pela aplicação do disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 662º do CPC.
A este respeito afirmam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC Anotado, Vol. 2, 3ª edição, pág. 736-737; “Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se.” A ininteligibilidade verifica-se quando ocorre alguma ambiguidade ou obscuridade, ou seja, respectivamente, quando da decisão se puder extrair mais de um sentido ou quando não se puder retirar um sentido lógico, racional e coerente.
Cabe aqui perguntar qual o sentido da expressão “decisão” e, concretamente, se tem em vista o decisório e/ou também os fundamentos.
Referia Alberto dos Reis in CPC Anotado, Vol. V, pág. 151 que “a sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. (...) É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é suscetível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo, qual o pensamento do juiz”.
Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in CPC Anotado, I, pág. 734 entendem que a ininteligibilidade apenas tem em vista “a parte decisória da sentença”, referindo mais adiante (pág. 735) que “[n]o regime actual, a obscuridade ou ambiguidade, limitada à parte decisória, só releva quando um declaratário normal, nos termos dos art.ºs 236-1 CC e 238-1 CC, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar”; e ainda (pág. 741) que “[o] actual Código (…) passou a considerar causa de nulidade da sentença a ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (art. 615-1-c), o que significa, (…) que a ambiguidade ou obscuridade da respectiva fundamentação (…) não pode ser arguida nos termos do art. 615 “.
Já Francisco Ferreira de Almeida in Direito Processual Civil, II, 3ª edição, pág. 454 refere que “a sentença padece de obscuridade quando algum dos seus passos enferma de ambiguidade, equivocidade ou falta de inteligibilidade: de ambiguidade quando alguma das suas passagens se presta a diferentes interpretações ou pode comportar mais do que um sentido, quer na fundamentação, quer na decisão; de equivocidade quando o seu sentido decisório se perfile como duvidoso para um qualquer destinatário normal. Mas só ocorre a causa de nulidade do 2º segmento da al. c) do n.º 1 do art.º 615º, se tais vícios tornarem a decisão ininteligível ou incompreensível.”
E Remédio Marques in Ação Declarativa à Luz Do Código Revisto, 3ª edição, pág. 667 refere que a ambiguidade da sentença “exprime a existência de uma plurissignificação ou de uma polissemia de sentidos (dois ou mais) de algum trecho, seja da sua parte decisória, seja dos respetivos fundamentos” e, quanto à obscuridade, “traduz os casos de ininteligibilidade da sentença”.
Em primeiro lugar, não há dúvidas que a sentença é um acto jurídico (é um acto a que a lei atribui relevância e efeitos jurídicos), a que se aplicam as regras reguladoras dos negócios jurídicos (ex vi art.º 295º do Código Civil), pelo que as normas que disciplinam a interpretação da declaração negocial (artigos 236º, nº 1 e 238º, nº 1, do CC), são igualmente válidas para a interpretação daquela.
Assim, a interpretação da sentença deve fazer-se de acordo com o sentido que um declaratário normal, colocado na situação do real declaratário, possa deduzir do conteúdo nela expresso, ainda que menos perfeitamente (artºs 236º, nº. 1 e 238º, nº. 1 do Código Civil)
Mas sendo um acto formal, não pode a mesma valer com um sentido que não tenha na respectiva letra um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (cfr. Ac. do STJ de 03/02/2011, proc. 190-A/1999.E1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj). Ou seja: a interpretação tem como limite o texto decisório, apenas sendo lícito extrair dele o significado permitido pelas normas sobre interpretação dos actos processuais.
Além disso, a sua interpretação não pode assentar, apenas, no teor literal da respetiva parte decisória, impondo-se, também, considerar os respectivos fundamentos, os quais são constitutivos e determinantes da decisão, ou seja, a decisão só se compreende à luz dos respectivos fundamentos (no sentido de tudo o até aqui exposto, os Acs. do STJ de 23/01/2019, proc. 4568/13.3TTLSB.L2.S1 e de 01/07/2021, proc. 726/15.4T8PTM.E1.S1, ambos consultáveis in www.dgsi.pt/jstj).
Assim também Francisco Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, II, 3ª edição, pág. 765: “É da sentença no seu todo que hão-de extrair-se os verdadeiros sentido, conteúdo e objeto do julgado; importa, por isso, ponderar e sopesar devidamente os motivos, isto é, a parte justificativa (motivatória) da decisão, em ordem a surpreender nela uma qualquer restrição ou ampliação do dispositivo, ou mesmo a concluir que determinadas questões não foram objeto de resolução explícita ou sequer implícita (apesar da amplitude da redação da parte dispositiva) ou ainda, e ao invés, que foram consideradas e decididas questões não compreendidas na parte dispositiva. No fundo, tornar-se-á, amiúde, necessário recorrer ao arrazoado da sentença para captar o verdadeiro pensamento do julgador.”
Neste contexto, a ambiguidade ou obscuridade tanto se pode verificar nos fundamentos, como no próprio decisório.
Mas verificando-se nos fundamentos, não pode ser objecto de invocação autónoma para efeitos da alínea c) do n.º 1 do art.º 615º. Só se a ambiguidade ou obscuridade “torn[ar] a decisão ininteligível”, ou seja, só se se alguma delas se projectar, repercutir no decisório.
Neste sentido o Ac. do STJ de 31.03.2022, processo 812/06.1TBAMT.P1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj onde se afirma: “A ambiguidade ou obscuridade relevante não é apenas aquela que possa afectar a decisão (o dispositivo), podendo encontrar-se nos respectivos fundamentos. No entanto, e conforme resulta da construção verbal da disposição legal, não é qualquer ambiguidade ou obscuridade que provoca a nulidade da sentença, mas apenas aquela que torna a decisão ininteligível. Ou seja, quando a decisão e o raciocínio que lhe está subjacente (o silogismo judiciário) não se logra entender, por surgir como enigmático, impenetrável, inacessível.”
De notar que apenas se tem em vista os fundamentos de direito, porquanto se estiver em causa uma obscuridade ao nível dos factos, não é aplicável o disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 615º do CPC, mas sim a alínea c) do n.º 2 do art.º 662º do CPC: o tribunal ad quem suprirá a obscuridade se tiver elementos para tal ou anulará a decisão de facto.
3.2. Em concreto
Em primeiro lugar há que superar incoerências porquanto no corpo das alegações a recorrente, depois de invocar que a sentença padece de ambiguidade e/ou obscuridade:
i) invoca que a sentença não foi convenientemente fundamentada, invocando o disposto no art.º 205º da CRP e art.º 154º do CPC, normativos normalmente invocados no âmbito da nulidade da sentença prevista na alínea b) do n.º 1 do art.º 615º, que ocorre quando a sentença não especifica, de forma absoluta, os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, nulidade que em momento algum foi invocada pela recorrente;
ii) refere-se à 1ª parte da alínea c) do n.º 1 do art.º 615º, a qual, como ficou visto, se refere à contradição.
E abreviando razões é patente e manifesto que o singelamente invocado pela recorrente não encontra qualquer acolhimento no enquadramento jurídico feito no ponto anterior.
Dar-se como provado um facto que devia ter sido considerado não provado ou dar-se como não provado um facto que devia ter sido considerado provado e as razões que estão subjacentes a tal entendimento, não traduz qualquer obscuridade da sentença, antes se tratando de situações que se reconduzem “a erros de julgamento de facto”, passíveis de ser superados mediante impugnação da decisão de facto, observados os ónus do art.º 640º e eventual modificação da decisão de facto, nos termos do n.º 1 do art.º 662º, ambos do CPC.
No entanto e desde já se consigna que a recorrente não indicou qualquer obscuridade nos pontos 9, 11 e 12 dos factos provados ou nas alíneas a), c), d) e e) dos factos não provados que cumpra apreciar oficiosamente à luz da mencionada alínea c) do n.º 2 do art.º 662º do CPC.
Em face do exposto e sem necessidade de outras considerações por absolutamente desnecessárias, improcede a nulidade da sentença à luz da 2ª parte da alínea c) do n.º 1 do art.º 615º do CPC.
4. Fundamentação de facto
4.1. O tribunal a quo considerou: A) Factos Provados
Resultaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:
1. A autora é uma sociedade comercial espanhola que tem por objecto a fabricação e comercialização de cintas transportadoras para pedreiras e indústria em geral;
2. A ré é uma sociedade comercial que tem por objecto a exploração de pedra e transformação de granito e rochas afins;
3. No exercício da sua actividade comercial a autora vendeu e entregou à ré, a pedido desta, a cinta transportadora especificada na factura nº...88 emitida em 09.07.2021, com vencimento na mesma data, no valor de € 5.430,00;
4. A factura descrita em 3) foi enviada à ré e esta, apesar de interpelada pela autora para proceder ao seu pagamento, até à presente data não pagou;
5. A Ré pretendia comprar à Autora uma cinta transportadora de 7000x650, pelo que em 27.05.2021 a Autora enviou à Ré um primeiro orçamento;
6. No dia seguinte e na sequência das negociações entre as partes, a Autora enviou à Ré um segundo orçamento rectificativo do anterior que previa o preço de € 9.550,00, sem transporte e com instalação incluída;
7. Sendo que com a confirmação da encomenda, deveria ser pago pela Ré 40% do preço e quando a cinta estivesse pronta para ser entregue, mas antes de sair das instalações da Autora, a Ré deveria pagar os 60% restantes;
8. A Ré aceitou este orçamento, e dado que com a confirmação da encomenda tinha que pagar 40% do preço, a Autora emitiu a Fatura nº...97 de 02.06.2021, no valor de € 3.820,00, relativa aos referidos 40% do preço de € 9.550,00 estipulado, que a Ré pagou;
9. Posteriormente, quando a cinta transportadora encomendada pela Ré já tinha sido fabricada pela Autora e estava pronta para entrega, houve uma alteração nas condições acordadas entre as partes, e ficou combinado um preço de € 8.750,00 pela cinta, sem instalação ou montagem por parte da Autora , acrescido de € 500,00 pelo transporte da cinta até as instalações da Ré, num total de € 9.250,00 (nove mil duzentos e cinquenta euros), mantendo-se a obrigação da Ré pagar o 60% do valor restante do preço, antes de que a cinta saísse das instalações da Autora com destino às instalações da Ré;
10. Pelo que a Autora emitiu a factura nº...88 de 09.07.2021 no valor de € 5.430,00, relativa ao valor em falta, uma vez deduzidos do referido preço de € 9.250,00 os € 3.820,00 da factura nº ...97 que a Ré tinha pago ao encomendar a cinta transportadora;
11. A Ré tem perfeito conhecimento que deveria ter pago a referida factura antes de que a cinta transportadora saísse das instalações da Autora em Espanha;
12. Contudo, garantiu à Autora que efectuaria o pagamento assim que recebesse a cinta transportadora nas suas instalações;
13. A Autora confiou na Ré, pelo que contratou e pagou o transporte da cinta transportadora desde as suas instalações em Espanha até as instalações da Ré, em Portugal, transporte que debitou à Autora na factura nº...88 de 09.07.2021, cujo pagamento se reclama;
14. A Ré recebeu a cinta transportadora, mas não a pagou, assim como também não pagou o transporte da mesma, apesar das repetidas interpelações da Autora, pelo que ainda se encontra em dívida a factura nº...88 de 09.07.2021 no valor de € 5.430,00;
15. Por carta datada de 30 de Outubro de 2023, a Ré recebeu, por parte da autora, representada pela EMP04... S.L.U., uma interpelação para o pagamento do remanescente do preço;
16. A ré respondeu àquela missiva, indicando que nunca tinha sido instalada a cinta, não obstante os diversos telefonemas para o efeito, dando conta que a não instalação da dita cinta provocou graves prejuízos a nível de produção e comercial;
17. Mais indicando que “a cinta não foi ainda colocada e continuamos à espera que a coloquem nas nossas instalações em 16.11.2023”.
B) Factos Não Provados
Com relevo para a decisão da causa os factos não provados são os seguintes:
a) Que tenha sido acordada entre as partes a instalação e montagem da cinta transportadora pela autora;
b) Que a ré tenha levantado e transportado a cinta, a fim de ser instalada pela autora, conforme acordado entre as partes no momento da celebração do contrato;
c) Que a cinta se encontre “arrumada” e por instalar;
d) Que a ré, por diversas vezes, tenha tentado contactar a autora para que esta procedesse à instalação da cinta, a fim de, finalizada a instalação, pagar o preço;
e) Que a ré tenha tentado uma vez mais estabelecer contacto com a autora, a fim de resolver o problema e que tenham sido rejeitadas pela mesma todas as tentativas de contacto.
4.2. Patologias da decisão de facto
A decisão de facto pode apresentar as seguintes patologias:
i) - conter asserções conclusivas, genéricas ou matéria de direito;
ii) - revelar-se excessiva;
iii) - ser deficiente, obscura ou contraditória;
iv) - carecer de ampliação;
v) - não estar devidamente fundamentada;
vi) - haver erro de apreciação da prova, isto é, pode o tribunal a quo ter dado como provados factos que face à prova produzida deviam ter sido considerados não provados ou vice-versa.
As patologias referidas nos pontos i) a v) são de conhecimento oficioso, na medida em que constituem aplicação do direito processual; a patologia referida no ponto vi) carece de ser invocada, mediante impugnação da decisão de facto, referida no art.º 640º do CPC. 4.3. Matéria conclusiva 4.3.1. Enquadramento jurídico
Como referido, uma das possíveis patologias da decisão de facto é conter asserções conclusivas, vagas, genéricas ou matéria de direito.
Tal patologia é de conhecimento oficioso, na medida em que constitui aplicação do direito processual, pois o n.º 4 do art.º 607º do CPC dispõe: “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados….”
Assim, na parte citada, este normativo dirige um comando ao juiz cujo sentido é este: na fundamentação (de facto) da sentença, só devem constar factos e não matéria de direito e/ou conclusões ou matéria genérica.
Já ensinava Alberto dos Reis in Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 4ª ed., Coimbra Editora, pág. 12 que a atividade do juiz se deve circunscrever ao apuramento dos factos materiais, devendo evitar que no questionário entrem noções, fórmulas, categorias ou conceitos jurídicos, inserindo apenas, nos quesitos e na matéria de facto assente, factos materiais e concretos.
E Manuel Tomé Soares Gomes, in Da Sentença Cível, CEJ, 2014, in https://elearning.cej.mj.pt/mod/folder/view.php?id=6202, pág. 19-22, no que diz respeito à “linguagem dos enunciados de facto”, 19-22, refere (sublinhados nossos) que deve “ser expurgada de valorações jurídicas, de locuções metafóricas e de excessos de adjetivação.”
Contendo a sentença asserções conclusivas, genéricas ou de cariz jurídico, coloca-se a questão de saber como resolver.
Muito embora hoje não exista nenhum normativo idêntico ao antigo artigo 646º, n.º 4 do CPC revogado, que determinava terem-se por não escritas as respostas do tribunal colectivo sobre questões de direito e que se aplicava, por analogia, à matéria conclusiva, o princípio que estava subjacente ao preceito não desapareceu, como resulta do disposto no n.º 4 do art.º 607º, já supra referido e, em consequência, devem ser eliminadas da fundamentação de facto as asserções conclusivas, vagas ou genéricas ou que contenham matéria de direito, como, aliás, é jurisprudência constante (cfr. Ac. do STJ de 28/09/2017, proc. 809/10.7TBLMG.C1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj; Ac. desta RG de 20.09.2018, proc.778/16.0T8BCL.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg; Ac. desta RG de 11.10.2018, proc. 616/16.3T8VNF-D.G1, consultável no mesmo sitio do anterior; Ac. do STJ de 19/01/2023, processo 15229/18.7T8PRT.P1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj).
4.3.2. Em concreto
O tribunal a quo considerou provado: 3. No exercício da sua actividade comercial a autora vendeu e entregou à ré, a pedido desta, a cinta transportadora especificada na factura nº...88 emitida em 09.07.2021, com vencimento na mesma data, no valor de € 5.430,00;
Relativamente ao ponto 3 saber se a autora vendeu…à Ré…a cinta transportadora… traduz-se numa qualificação jurídica do contrato, que não tem cabimento nos factos provados, mas na fundamentação de direito.
Destarte e enquanto qualificação jurídica deve ser eliminada dos factos provados.
A emissão da factura é um facto.
Porém, o mesmo consta do ponto 10.
Neste apenas não se refere que a factura tem como data de vencimento a data da emissão.
Destarte:
- o ponto 3 dos factos provados deve ser eliminado dos factos provados;
- a fim de conferir coerência à decisão de facto, impõe-se alterar o ponto 10, introduzindo nele a referência à data de vencimento da factura, passando o mesmo a ter o seguinte teor: 10. Pelo que a Autora emitiu a factura nº...88 de 09.07.2021, com vencimento na mesma data, no valor de € 5.430,00, relativa ao valor em falta, uma vez deduzidos do referido preço de € 9.250,00 os € 3.820,00 da factura nº ...97 que a Ré tinha pago ao encomendar a cinta transportadora;
Neste ponto importa referir que na sequência do ponto 3 dos factos provados o tribunal considerou provado que: 4. A factura descrita em 3) foi enviada à ré e esta, apesar de interpelada pela autora para proceder ao seu pagamento, até a presente data não pagou;
Como refere António Abrantes Geraldes in “A sentença cível”, disponível em Publicações - Supremo Tribunal de Justiça (stj.pt), pp. 10-11, “na enunciação dos factos apurados o juiz deve observar uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da ação. Por isso, é inadmissível (…) que se opte pela enunciação desordenada de factos, uns extraídos da petição, outros da contestação ou da réplica, sem qualquer coerência interna.”
Destarte, os enunciados de facto devem ser ordenados de acordo com a sequência lógica e cronológica que é conforme à realidade histórica que é suposto ser retratada (cfr. Ac. desta RG de 10/07/2023, processo 4607/21.4T8VNF-A.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg).
Eliminado que deve ser o ponto 3, não só o ponto 4 fica sem referencial, como a sua parte inicial - “4. A factura descrita em 3) foi enviada à ré...” – fica deslocada, antes tendo cabimento lógico e cronológico a seguir ao ponto 10, onde é referida a emissão da factura ...88 e a segunda parte – “…e esta, apesar de interpelada pela autora para proceder ao seu pagamento, até a presente data não pagou” – consta do ponto 14.
Assim e na senda da eliminação do ponto 3 dos factos provados, a fim de conferir coerência lógica à factualidade provada, impõe-se eliminar o ponto 4 da factualidade e aditar um ponto 10 A com o seu conteúdo útil: “10 – A - A factura descrita em 10) foi enviada à ré.”
O tribunal também considerou provado: 11. A Ré tem perfeito conhecimento que deveria ter pago a referida factura antes de que a cinta transportadora saísse das instalações da Autora em Espanha;
Saber se a Ré tinha conhecimento de que deveria ter pago a factura a que se refere o ponto 10 dos factos provados depende, essencialmente, da factualidade constante dos pontos 9 (“9. Posteriormente, quando a cinta transportadora encomendada pela Ré já tinha sido fabricada pela Autora e estava pronta para entrega, houve uma alteração nas condições acordadas entre as partes, e ficou combinado um preço de € 8.750,00 pela cinta, sem instalação ou montagem por parte da Autora , acrescido de € 500,00 pelo transporte da cinta até as instalações da Ré, num total de € 9.250,00 (nove mil duzentos e cinquenta euros), mantendo-se a obrigação da Ré pagar o 60% do valor restante do preço, antes de que a cinta saísse das instalações da Autora com destino às instalações da Ré”, sendo o sublinhado nosso) e do ponto 10 (10. Pelo que a Autora emitiu a factura nº...88 de 09.07.2021 no valor de € 5.430,00, relativa ao valor em falta, uma vez deduzidos do referido preço de € 9.250,00 os € 3.820,00 da factura nº ...97 que a Ré tinha pago ao encomendar a cinta transportadora).
Destarte, o ponto 11 deve ser eliminado.
Uma vez que o inicio do ponto 12 estabelece uma ligação com o ponto 11, impõe-se adequar a sua redacção, que passa a ser 12. A Ré garantiu à Autora que efectuaria o pagamento assim que recebesse a cinta transportadora nas suas instalações;
Em face do exposto, decide-se: a) eliminar os pontos 3 e 11 dos factos provados, ficando prejudicada a reapreciação da decisão quanto ao ponto 11; b) alterar o ponto 10 dos factos provados, o qual passa a ter o seguinte teor: 10. Pelo que a Autora emitiu a factura nº...88 de 09.07.2021, com vencimento na mesma data, no valor de € 5.430,00, relativa ao valor em falta, uma vez deduzidos do referido preço de € 9.250,00 os € 3.820,00 da factura nº ...97 que a Ré tinha pago ao encomendar a cinta transportadora; c) aditar um ponto 10 A aos factos provados com o seguinte teor: “10 – A - A factura descrita em 10) foi enviada à ré.” d) alterar a redacção do ponto 12 que passa a ser: 12. A Ré garantiu à Autora que efectuaria o pagamento assim que recebesse a cinta transportadora nas suas instalações; 4.4. Decisão de facto contraditória 4.4.1. Enquadramento jurídico
Alberto dos Reis in CPC Anotado, IV, pág. 553 referia: “…as respostas são contraditórias quando têm um conteúdo logicamente incompatível, isto é, quando não podem subsistir ambas utilmente. (…).“
O actual figurino da decisão de facto não contem respostas, porque hoje não existem quesitos.
Mas o ensino do insigne professor é perfeitamente aplicável considerando-se que haverá contradição quando o conteúdo de um dado ponto de facto for incompatível, for a antítese, for o contrário de outro ponto de facto. 4.4.2. Em concreto
O tribunal a quo considerou provado que (negritos nossos):
5. A Ré pretendia comprar à Autora uma cinta transportadora de 7000x650, pelo que em 27.05.2021 a Autora enviou à Ré um primeiro orçamento;
6. No dia seguinte e na sequência das negociações entre as partes, a Autora enviou à Ré um segundo orçamento rectificativo do anterior que previa o preço de € 9.550,00, sem transporte e com instalação incluída;
7. Sendo que com a confirmação da encomenda, deveria ser pago pela Ré 40% do preço e quando a cinta estivesse pronta para ser entregue, mas antes de sair das instalações da Autora, a Ré deveria pagar os 60% restante; 8. A Ré aceitou este orçamento, e dado que com a confirmação da encomenda tinha que pagar 40% do preço, a Autora emitiu a Fatura nº...97 de 02.06.2021, no valor de € 3.820,00, relativa aos referidos 40% do preço de € 9.550,00 estipulado, que a Ré pagou;
9. Posteriormente, quando a cinta transportadora encomendada pela Ré já tinha sido fabricada pela Autora e estava pronta para entrega, houve uma alteração nas condições acordadas entre as partes, e ficou combinado um preço de € 8.750,00 pela cinta, sem instalação ou montagem por parte da Autora , acrescido de € 500,00 pelo transporte da cinta até as instalações da Ré, num total de € 9.250,00 (nove mil duzentos e cinquenta euros), mantendo-se a obrigação da Ré pagar o 60% do valor restante do preço, antes de que a cinta saísse das instalações da Autora com destino às instalações da Ré;
Mas por outro lado considerou não provado sob a alínea a) dos factos não provados: a) Que tenha sido acordada entre as partes a instalação e montagem da cinta transportadora pela autora;
Este enunciado, entendido como facto, está em contradição, é incompatível com os pontos 6 e 7 dos factos provados, onde se considerou provado (e não foi objecto de impugnação) que, depois de um primeiro orçamento, de 27/05/2021, no dia seguinte foi apresentado um segundo orçamento, que incluía a instalação e que foi aceite pela Ré.
Ora, não tendo sido impugnada por nenhuma das partes a factualidade dos pontos 6 e 7, não há dúvidas que pelo menos em determinada altura as partes acordaram que a aquisição era acompanhada da instalação do equipamento adquirido, pelo que, neste contexto, a alínea a) dos factos não provados não se pode manter e deve ser eliminada.
Note-se que outra questão, bem diferente, é saber se posteriormente àquele segundo acordo, as partes o alteraram, deixando a venda de incluir a montagem, para passar a incluir o transporte, matéria que é objecto do ponto 9 dos factos provados e que está impugnada.
Note-se ainda que o que consta do ponto 6 e 7 não interfere com o que consta do ponto 9 a não ser do ponto de vista da conclusão jurídica: caso a impugnação do ponto 9 seja julgada procedente, face à factualidade constante dos pontos 6 e 7 há-de concluir-se (juridicamente) que entre as partes foi acordada a instalação e montagem da cinta transportadora pela autora; caso a impugnação do ponto 9 seja julgada improcedente, há-de concluir-se (juridicamente) que entre as partes não foi acordada a instalação e montagem da cinta transportadora pela autora.
Mas a ser assim, a alínea a) dos factos não provados terá um cariz jurídico, pelo que também por tal fundamento deve a mesma ser eliminada.
Destarte e em face do exposto, determina-se a eliminação da alínea a) dos factos não provados, ficando prejudicada a sua impugnação.
4.5. Da impugnação de facto 4.5.1. Enquadramento jurídico - Requisitos
Dispõe o art.º 640º do CPC, cuja epígrafe é “Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto”: “1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
(…)”
As exigências legais visam uma clara e inequívoca delimitação do objecto do recurso em matéria de facto e conferir efectividade ao princípio do contraditório, pois só na medida em que se sabe o que é que é objecto de impugnação, quais os meios de prova convocados, é que será possível à parte contrária exercer o contraditório.
Abrantes Geraldes in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pág. 197-199, procede a uma análise das exigências legais da impugnação da decisão de facto, nomeadamente quanto ao “lugar” (alegações ou conclusões) em que as mesmas devem ser observadas e que são:
a) o recorrente deve indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (alínea a) do n.º 1 do art.º 640º), com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões, dizendo em nota (335) que são as conclusões que delimitam o objecto do recurso, conforme dispõe o art.º 635º, de modo que a indicação dos pontos de facto cuja modificação é pretendida pelo recorrente não poderá deixar de ser enunciada nas conclusões;
b) deve ainda especificar, na motivação, os concretos meios de prova (alínea b) do n.º 1 do art.º 640º), constantes do processo (documentos ou confissões reduzidas a escrito) ou de registo (depoimentos que não foi possível gravar, mas que foram reduzidos a escrito, como sucede com cartas rogatórias) ou gravação nele realizada (depoimentos orais prestados em audiência que ficaram gravados em áudio ou vídeo), que no seu entender determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos objecto de impugnação;
c) relativamente a pontos de facto cuja impugnação tenha por base, no todo ou em parte, a prova gravada, cumpre ainda ao recorrente indicar (alínea a) do n.º 2 do art.º 640º) com exactidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere pertinentes, sob pena de imediata rejeição do recurso;
d) o recorrente deixará, expresso, na motivação a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas (alínea c) do n.º 1 do art.º 640º), tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos (cfr. o AUJ n.º 12/2023, proferido no processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1, publicado no Diário da República, 1.ª série, n.º 220, de 14 de novembro de 2023 e objecto de Declaração de retificação n.º 25/2023, publicada no Diário da República, 1.ª série, n.º 230, de 28 de novembro de 2023, uniformizou jurisprudência no seguinte sentido: “Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640º do Código de Processo Civil, o recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.”) 4.5.2. Em concreto
O recorrente:
i) indicou nas conclusões a pretensão de impugnação da factualidade enunciada nos pontos 9) e 12) dos factos provados ( o ponto 11 foi, entretanto eliminado, estando prejudicada a sua apreciação) e nas alíneas c), d) e e) dos factos não provados (a alínea a) foi entretanto eliminada, estando prejudicada a sua apreciação).
ii) indicou nas conclusões que a factualidade enunciada nos pontos 9) e 12) dos factos provados devia ser considerada não provada e que a enunciada nas alíneas c), d) e e) dos factos não provados devia ser considerada provada.
iii) indicou nas alegações os meios de prova com base nos quais entende que a solução deveria ter sido outra (declarações de parte do legal representante da Ré e depoimento da testemunha AA);
v) e indicou, no corpo das alegações, as passagens da gravação relevantes.
Destarte, a recorrente cumpriu de modo suficiente os requisitos da impugnação da decisão de facto.
4.6. Da inutilidade da reapreciação da decisão de facto 4.6.1. Enquadramento jurídico
Dispõe o art.º 130º do CPC que não é licito realizar no processo actos inúteis.
Tal normativo tem aplicação à reapreciação da matéria de facto: se a modificação dos pontos de facto impugnados não tiver a virtualidade de, segundo as diversas soluções plausíveis das várias questões de direito, conduzir, de per si ou conjugados com outros factos, à alteração do julgado, não faz sentido proceder à sua reapreciação.
Neste sentido o recente Ac. de 28/09/2023, processo 2509/16.5T8PRT.P1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj sumariado nos seguintes termos: Por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto se entender que os concretos factos objecto da impugnação, atentas as circunstâncias do caso e as várias soluções plausíveis de direito, não têm relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual puramente gratuita ou diletante.
E anteriormente o Ac. do STJ de 17/05/2017, processo 4111/13.4TBBRG.G1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj onde se afirma: “Definido o processo jurisdicional, do ponto de vista estrutural, como uma sequência de actos jurídicos logicamente encadeados entre si, ordenados em fases sucessivas com vista à obtenção da providência judiciária requerida pelo autor (Castro Mendes, Manual de Processo Civil, 1963, pág. 7, e A. Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2ª ed.,1985, pág.11), cabe ao juiz, no âmbito da sua função de direcção e controlo do processo, obviar a que nele sejam produzidos ou produzir actos inúteis. O princípio da limitação de actos, consagrado no artigo 130º do Código de Processo Civil para os actos processuais em geral, proíbe a sua prática no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – desde que não se revelem úteis para este alcançar o seu termo. Trata-se de uma das manifestações do princípio da economia processual, também aflorado, entre outros, no artigo 611º, que consagra a atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes, e no artigo 608º n.º 2, quando prescreve que, embora deva resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, o juiz não apreciará aquelascuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Nada impede que também no âmbito do conhecimento da impugnação da decisão fáctica seja observado tal princípio, se a análise da situação concreta em apreciação evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual, cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir. Com efeito, aos tribunais cabe dar resposta às questões que tenham, directa ou indirectamente, repercussão na decisão que aprecia a providência judiciária requerida pela(s) parte(s) e não a outras que, no contexto, se apresentem como irrelevantes e, nessa medida, inúteis. Para se aferir da utilidade da apreciação da impugnação da decisão fáctica importa considerar se os pontos de facto questionados se não apresentam de todo irrelevantes, se a eventual demonstração dos mesmos é susceptível de gerar um juízo diferente sobre a questão de direito, se é passível de influenciar e, porventura, alterar a decisão de mérito no quadro das soluções plausíveis da questão de direito.”
4.6.2. Em concreto
O tribunal considerou não provado sob a alínea c) o seguinte facto: c) Que a cinta se encontre “arrumada” e por instalar;
Não é discutido entre as partes que a A. vendeu e entregou à Ré uma cinta transportadora.
O cerne do dissidio situa-se numa única questão: saber se, como alega a Ré, as partes acordaram que a A. procederia à instalação da cinta, ou não, como alega a A., invocando ter havido uma modificação do acordo, que se traduziu na eliminação da instalação.
E em função da resposta que for dada, coloca-se a questão jurídica de saber se há lugar à excepção de cumprimento do contrato ou não.
Para tal conclusão é irrelevante saber se a cinta se encontra “arrumada e por instalar”, pois, ainda que se considerasse tal facto como provado, o mesmo não teria qualquer relevância jurídica para a verificação ou inverificação da excepção de não cumprimento do contrato.
Em face do exposto e por manifesta inutilidade não se procede à reapreciação da alínea c) dos factos não provados. 4.7. Da modificabilidade da decisão de facto 4.7.1. Enquadramento jurídico
O art.º 662º do CPC, com a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, dispõe (sublinhado nosso): “1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.” (…)”
Está em causa saber como deve a Relação mover-se no domínio da modificabilidade da decisão de facto motivada pela impugnação da decisão de facto.
A apreciação, pela Relação, da decisão de facto impugnada não visa um novo julgamento global ou latitudinário da causa, mas, antes, uma reapreciação do julgamento proferido pelo tribunal a quo com vista a corrigir eventuais erros da decisão (cfr. o Ac. do STJ de 01/07/2021, processo 4899/16.0T8PRT.P1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj) quanto a pontos determinados.
O sentido deste normativo é o de impor à Relação o dever de modificar a matéria de facto, sempre que, havendo impugnação da mesma e no respeito do princípio do dispositivo quanto ao objecto do recurso, os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, entendendo-se que:
i) incumbe ao Tribunal da Relação formar o seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em 1.ª instância e objecto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir [cfr. nº 2, als. a) e b) do citado art.º 662º], à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607.º, n.º 5, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC (cfr. o Ac. do STJ de 01/07/2021, processo 4899/16.0T8PRT.P1.S1 e em sentido semelhante os Ac.s do STJ de 14/09/2021, proc. 60/19.0T8ETZ.E1.S1, e de 13/04/2021, proc. 2395/11.1TBFAF.G2.S1 todos consultáveis in www.dgsi.pt/jstj) assumindo-se o mesmo como tribunal de instância (Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pág. 334);
ii) no processo de formação de uma convicção autónoma, a Relação não está adstrita “aos meios de prova que tiverem sido convocados pelas partes e nem sequer aos indicados pelo tribunal recorrido” (o Ac. do STJ, de 20.12.2017, proc. 3018/14.2TBVFX.L1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj), tendo plena aplicação o disposto no art.º 413º do CPC.
De referir, ainda, que, na sequência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, caso a Relação proceda à alteração da mesma e se verifique ser necessário, em função da reapreciação conjunta e global dos factos, alterar algum facto não impugnado, pode a Relação fazê-lo a bem da coerência daquela decisão (cfr. Ac. do STJ de 29/04/2021, proc. 684/17.0T8ABT.E1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj).
Importa, ainda, neste âmbito, ponderar o princípio da livre apreciação da prova e que também se aplica à Relação na reapreciação da prova.
O n.º 4 do art.º 607º do CPC dispõe que “ Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.”
A análise crítica das provas a que se refere o n.º 4 citado, significa, em primeiro, uma análise conjugada de toda a prova produzida e, em segundo, uma análise segundo os critérios de valoração racional e lógica do julgador e da experiência, dispondo, a este respeito, o n.º 5 do art.º 607º que o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, o que tem em vista a prova por declarações de parte, salvo na parte em que constituam confissão, a prova documental escrita a que falte algum dos requisitos exigidos na lei, a prova pericial, a prova por inspecção e a prova testemunhal, provas relativamente às quais a lei dispõe, expressamente (cfr. artºs 466º n.º 3 do CPC e art.ºs. 366º, 389º, 391º e 396º do CC, respectivamente), que estão sujeitas à livre apreciação do tribunal.
O n.º 4, ao determinar que o juiz especifique os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, impõe que o juiz explique como se convenceu com as provas que se produziram, que motive a decisão de facto.
Assim, a motivação consiste em exarar o raciocínio do tribunal para uma dada decisão de facto e deve conter, para além da indicação dos concretos elementos probatórios que lograram aceitação por parte do tribunal, as razões ou motivos dessa aceitação.
São estes dois factores - o convencimento e a dificuldade de apurar a verdade - que se misturam e impõem que o juiz explique como se convenceu com as provas que à sua frente se produziram.
A este respeito refere Manuel Tomé Soares Gomes in Da Sentença Cível, CEJ, 2014, https://elearning.cej.mj.pt/mod/folder/view.php?id=6202, pág. 29:
“A motivação do julgamento de facto tem como matriz um discurso argumentativo problemático, parcelado na órbita de cada juízo probatório, sem prejuízo da sua compatibilização no universo da trama factual, e rege-se por razões práticas firmadas na análise dos resultados probatórios, à luz das regras da experiência comum ou qualificada e dos padrões de valoração (prova bastante e prova de verosimilhança) estabelecidos na lei.”
Por outro lado, no que tange à formulação dos juízos probatórios, importa não esquecer que a prova “não é uma operação lógica visando a certeza absoluta (a irrefragável exclusão da possibilidade de o facto não ter ocorrido ou ter ocorrido de modo diferente)… a demonstração da realidade de factos desta natureza, com a finalidade do seu tratamento jurídico, não pode visar um estado de certeza lógica, absoluta,… A prova visa apenas, de acordo com os critérios de razoabilidade essenciais à aplicação prática do Direito, criar no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto” (cfr. Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª Edição, Revista e Actualizada, p. 435 a 436).
Ou seja: a prova judicial não tem que criar no espírito do juiz uma certeza absoluta acerca dos factos a provar; a prova judicial nunca é a realidade naturalística das coisas; o que a prova judicial deve determinar é um grau de probabilidade (do facto) tão elevado que baste para as necessidades da vida.
Como refere Manuel Tomé Soares Gomes, in ob. cit. pág. 25, “… a valoração da prova, por parte do tribunal, consubstancia[-se] na formação de juízos de razoabilidade sobre os factos controvertidos relevantes para a resolução do litígio, em função do material probatório obtido através da atividade instrutória, à luz das regras da experiência e da coerência lógica dum raciocínio pragmático sobre as ocorrências da vida. “
E mais adiante, pág. 26: “prova judicial tem como objetivo lograr uma compreensão suficientemente provável da realidade em causa, nos limites de tempo e condições humanamente possíveis, que satisfaça a resolução justa e legítima do caso.“
Importa atentar que o disposto no art.º 607º também é aplicável à Relação nos termos do disposto no art.º 663º n.º 2 do CPC, com as devidas adaptações, porquanto, muito embora na eventual reapreciação da decisão da matéria de facto caiba à Relação formar a sua própria convicção quanto à prova produzida, tal reapreciação não visa um novo julgamento global ou latitudinário da causa, mas, antes, uma reapreciação do julgamento proferido pelo tribunal a quocom vista a corrigir eventuais erros da decisãorelativamente aos concretos pontos de facto impugnados.
É, aliás, a interpretação que se coaduna com o n.º 1 do art.º 662º quando dispõe que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa (neste sentido o Ac. desta RG de 04/02/2021, proc. 184/19.4T8AMR.G2, consultável in www.dgsi.pt/jtrg).
Uma vez que é perante si que toda a prova é produzida, o juiz da 1ª instância encontra-se numa posição privilegiada para proceder à sua valoração, já que, através da imediação, tem acesso ao comportamento das partes e das testemunhas, o que lhe permite aferir, de forma cabal, da respectiva espontaneidade e credibilidade.
Tal não sucede com a Relação, que apenas dispõe do registo de som e não também de imagem.
Mas essa é uma consequência das opções assumidas pelo legislador.
E, como tem vindo a ser sublinhado (nomeadamente Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pág. 349 e jurisprudência citada na nota 552, pág. 350), não pode ser invocado como óbice a uma plena e efectiva reapreciação dos meios de prova.
Como afirma Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, pág. 350 “se a Relação, procedendo à reapreciação dos meios de prova postos à disposição do tribunal a quo, conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, a convicção acerca da existência de erro, deve proceder à correspondente modificação da decisão. E para isso tem de pôr em prática as regras ditadas acerca da impugnação e reapreciação da decisão da matéria de facto.”
Destarte e em síntese incumbe à Relação apreciar a impugnação da decisão da matéria de facto e formar a sua própria convicção, com base nos elementos que lhe estão acessíveis e motivar a decisão de alterar ou não alterar a decisão da 1ª instância, expressando a análise critica das provas produzidas, com base nas regras da experiência e normalidade. 4.7.2. Em concreto
Importa, em primeiro lugar, enquadrar a questão à luz do alegado pelas partes e do que ficou provado.
A Ré, na contestação, invocou que tinha ficado acordada a montagem da cinta e para tanto invocou, apenas e tão só, o orçamento de 28/05/2021 que, inclusive, juntou de forma incompleta, faltando-lhe a segunda página, como se afere do documento junto pela A. com a resposta às excepções sob o doc. n.º 2, que constitui fls. 24-25v dos autos físicos e está traduzido a fls. 67v-69 dos mesmos autos, página aquela onde se refere, por exemplo: “Montagem incl. p/2 trabalhadores” e “Transporte para as vossas instalações não incluído”.
A A. na resposta às excepções veio invocar que:
- a 27/05/2021 enviou um primeiro orçamento (como está provado no ponto 5 dos factos provados e não foi impugnado: 5. A Ré pretendia comprar à Autora uma cinta transportadora de 7000x650, pelo que em 27.05.2021 a Autora enviou à Ré um primeiro orçamento;) que, conforme resulta do email junto pela A. com a resposta às excepções como doc. 1 e que constitui fls. 22-23v dos autos físicos e está traduzido a fls. 63-64v dos mesmos autos, não incluía a montagem;
- a 28/05/2021 enviou um segundo orçamento que modificava o anterior, que a Ré aceitou (como está provado nos pontos 6, 7 e 8 dos factos provados que não foram impugnados: 6. No dia seguinte e na sequência das negociações entre as partes, a Autora enviou à Ré um segundo orçamento rectificativo do anterior que previa o preço de € 9.550,00, sem transporte e com instalação incluída; // 7. Sendo que com a confirmação da encomenda, deveria ser pago pela Ré 40% do preço e quando a cinta estivesse pronta para ser entregue, mas antes de sair das instalações da Autora, a Ré deveria pagar os 60% restante; // 8. A Ré aceitou este orçamento, e dado que com a confirmação da encomenda tinha que pagar 40% do preço, a Autora emitiu a Fatura nº...97 de 02.06.2021, no valor de € 3.820,00, relativa aos referidos 40% do preço de € 9.550,00 estipulado, que a Ré pagou).
- a 09/07/2021 houve uma nova modificação contratual, em que no essencial a A. se obrigava a transportar a cinta já fabricada mas já não a proceder à montagem, continuando a Ré obrigada a pagar os restantes 60% antes de que a cinta transportadora saísse das instalações da Autora em Espanha, como ficou provado nos pontos 9, 10, 10-A e 12 dos factos provados objecto de impugnação: 9. Posteriormente, quando a cinta transportadora encomendada pela Ré já tinha sido fabricada pela Autora e estava pronta para entrega, houve uma alteração nas condições acordadas entre as partes, e ficou combinado um preço de € 8.750,00 pela cinta, sem instalação ou montagem por parte da Autora , acrescido de € 500,00 pelo transporte da cinta até as instalações da Ré, num total de € 9.250,00 (nove mil duzentos e cinquenta euros), mantendo-se a obrigação da Ré pagar o 60% do valor restante do preço, antes de que a cinta saísse das instalações da Autora com destino às instalações da Ré; // 10. Pelo que a Autora emitiu a factura nº...88 de 09.07.2021, com vencimento na mesma data, no valor de € 5.430,00, relativa ao valor em falta, uma vez deduzidos do referido preço de € 9.250,00 os € 3.820,00 da factura nº ...97 que a Ré tinha pago ao encomendar a cinta transportadora. // 10 – A - A factura descrita em 10) foi enviada à ré. // 12. A ré garantiu à Autora que efectuaria o pagamento assim que recebesse a cinta transportadora nas suas instalações.
O tribunal recorrido motivou a decisão de facto do seguinte modo: “Em tribunal, o legal representante da autora, CC, prestou declarações de parte. E fê-lo de modo claro, sereno, esclarecedor e corroborado, não só pelos documentos juntos aos autos, designadamente a troca de emails, missivas e facturas juntas aos autos, como também pela prova testemunhal e regras da experiência comum. Explicou que o negócio de fabrico e venda da cinta transportadora, pela autora à ré, iniciou-se através de um contacto com um outro cliente da autora, que lhes indicou que a empresa EMP01... queria encomendar uma cinta igual àquela que a autora havia fabricado e vendido a esse cliente. O depoente explicou todos os passos relativos à negociação efectuada com a ré, referindo que houve lugar a três orçamentos, com formas de pagamento diferentes, tendo ficado estabelecido que inicialmente seria pago quarenta por cento do preço da máquina e quando esta saísse das instalações da autora, seriam pagos os restantes sessenta por cento. No entanto, como o Sr. DD queria ver a máquina fisicamente, a autora acedeu a que pagasse o montante restante, aquando da entrega, pagamento esse que nunca foi realizado. Referiu, ainda, que desde o dia que enviaram a máquina, os representantes da autora nunca mais atenderam o telefone, nem responderam aos vários emails enviados. Explicou, também, que a autora não incumpriu o contrato porque foi acordado, a final, que a montagem não estava incluída, sendo que a mesma é simples, sendo apenas necessário ligar a máquina à corrente eléctrica e, para quem pretenda fixá-la ao chão, colocar um ou dois parafusos. Cabe referir que esta explicação, assim como o valor indicado para montagem da máquina - € 900,00 – inicialmente, suscitou-nos algumas dúvidas. Todavia, analisando os documentos juntos aos autos, concluímos que o depoente falou com verdade. Veja-se que acaba por ser irrelevante se a montagem é simples ou não. Releva sim, o que efectivamente foi contratado entre as partes! E se atendermos às três propostas e orçamentos juntos 10-verso e seguintes, constatamos que o primeiro era no valor de € 8.725,00, sem montagem e sem transporte incluídos (vide orçamento de fls. 23, que curiosamente foi omitido pela ré na sua oposição), o segundo foi de € 9.550,00 (fls. 10-verso, omitindo a ré o verso do orçamento, e completo a fls. 25, tendo sido junto pela autora) -, conforme email de fls. 24 do dia 28.05.2021, que diz expressamente “nova oferta modificada” -, que incluía a montagem, mas não o transporte; e o terceiro a fls. 28, no valor de € 8.750,00, mais € 500,00 de transporte, que não inclui a montagem (comprovado pelo email de fls. 27 datado de 09.07.2021, no qual se refere que não inclui a montagem, porque quem a vai fazer é a empresa EMP03...). Ora, tal como o depoente referiu, este último orçamento, com estas condições, foi negociado entre a autora e a ré, tendo-lhe sido transmitido que seria a EMP03... a fazer a montagem (empresa de ... que pôs a autora em contacto com a ré, inicialmente). E uma vez que isto se encontra redigido no email enviado pela autora à ré, resulta das regras da experiência comum que assim tenha acontecido. Não faria qualquer sentido que a autora inventasse que a montagem seria feita por um terceiro, se tal não tivesse sido combinado entre as partes. Por fim, para além de ter descrito as características da máquina em causa nos autos e da sua forma de trabalhar e montagem, o depoente esclareceu que não foi entregue o manual de instruções à autora (manual supra referido que se encontra junto aos autos), porquanto só o fazem após o pagamento estar completo. Em tribunal prestou declarações de parte o legal representante da ré, DD. E ao contrário do primeiro, depôs de forma desonesta, repleta de incongruências, infirmada pela prova documental junta aos autos e pelas regras da experiência comum. Vejamos. Em primeiro lugar, cabe mencionar que durante o seu depoimento, designou a cinta transportadora (máquina que pesa cerca de mil e quinhentos quilos, conforme declarações do legal representante da autora), de “tapete”. E cremos que o fez de modo propositado, como que desvalorizando o objecto da presente acção. O seu depoimento foi repleto de desculpas “de mau pagador”, passo a expressão. Primeiramente, o negócio “foi feito pelo telefone” (como se um negócio feito pelo telefone não tivesse qualquer valor legal), “o tapete chegou tarde” (querendo com isto indicar que não chegou no prazo acordado, pelo que está no pleno direito de não pagar o montante em falta) e “primeiro eram para ir buscar a máquina num camião da ré, mas depois a autora enviou a máquina por um camião espanhol”, nas suas palavras. E através desta última frase, começamos por perceber a má-fé com que a ré litiga nestes autos. Veja-se que para além de ter omitido vários documentos com relevância para a decisão da causa, juntando, inclusive orçamentos incompletos, para tentar ludibriar o tribunal acerca do que efectivamente foi combinado entre as partes, na oposição à injunção, no ponto 27), refere que a cinta foi transportada pela requerida até às suas instalações, informação falsa, que acabou por assumir em juízo. Afirmou, ainda, que o acordado entre as partes era a montagem da máquina pela autora e que a cinta está lá pousada se funcionar. Ora, analisemos esta afirmação. Estamos no ano de 2024 e é ponto assente, porque resulta dos vários documentos juntos aos autos, designadamente das facturas de transporte, que a autora entregou a máquina nas instalações da ré, em Julho de 2021. Então, é legítimo perguntar: é normal que a ré, mesmo tendo pago apenas quarenta por cento do preço acordado, tenha uma máquina parada durante três anos nas suas instalações, sem que nada faça a esse respeito? Se a ré adquiriu a referida cinta transportada, era porque necessitava da mesma para a sua actividade. É crível que tenha lá a cinta parada durante três anos? A resposta é negativa. E assim é, porque resulta das regras da experiência comum que se o combinado fosse a autora montar a máquina e se esta estivesse em incumprimento, a ré não teria ficado inerte todo este tempo. O normal seria a ré ter respondido aos emails da autora, juntos aos autos. Existem vários emails datados de Julho, Agosto e Setembro de 2021 a solicitar o pagamento do remanescente do preço e não há nenhuma resposta da ré. É certo que, no final do ano de 2023, quando a ré recebeu uma missiva da empresa de cobranças, contratada pela autora para esse efeito, respondeu de acordo com o exposto nos pontos 15) a 17) (a troca de missivas juntas aos autos, comprova estes factos). Todavia, constata-se que esta resposta já se trata de uma resposta claramente defensiva e antecipando uma acção judicial. Não se trata de uma resposta honesta, compatível com os juízos da normalidade, pois estes ditam que se fosse verdade que a autora se encontrava em incumprimento, este teria sido logo reportado, após o primeiro email enviado, o que não ocorreu. Ademais, também não é crível que a máquina esteja parada nas instalações da ré. Não faz qualquer sentido. A corroborar o supra exposto e a falta de honestidade deste depoimento, está o facto de o depoente ter sido confrontado com os documentos de fls. 65-verso e 67, escudando-se no facto de não os conseguir ler; ao ser confrontado com o email datado de 09.07.2021, referiu não se recordar da data da entrega da máquina; referiu, ainda, que o trabalho que era para ser feito pela cinta transportadora está a ser feito manualmente (?!); que reclamou várias vezes com a autora, pelo telefone (?!) e não pagou o restante, porque o tapete não está em marcha… E questionado pelo tribunal, relativamente aos emails enviados pela autora a solicitar o pagamento, não os negou ter recebido, mencionando que não respondeu aos mesmos, porque estava à espera que viessem montar a máquina… Ora, nada disto é coerente, claro ou verídico, motivo pelo qual o depoente não nos mereceu qualquer credibilidade. Em tribunal, prestou depoimento a testemunha EE, administrativo na empresa da autora desde 2003. A testemunha demonstrou conhecimento dos factos por ser responsável pelo envio e emissão das facturas e orçamentos. Depôs com honestidade, explicando com detalhe o envio dos três orçamentos, os motivos pelos quais foram enviados e aquilo que cada um incluía. Foi confrontado com as facturas juntas aos autos tendo dado explicações sobre o seu teor. Relativamente ao transporte, explicou que foi efectuado pela empresa EMP05... e que a autora pagou o valor de € 450,00 pelo mesmo. No tocante à factura documento nº 6, explicou que a mesma não foi paga pela ré e que a testemunha enviou vários emails à ré, fez telefonemas, sem resultado. Inicialmente atendeu-lhe o telefone uma funcionária, que lhe disse que ia falar com o Sr. DD e a partir daí nunca mais atenderam. No que respeita ao email de Julho em que é dito que é a EMP03... que vai fazer a montagem, explicou que foi o Sr. DD que telefonou ao Sr. CC a dizer isto e a pedir para retirar o valor da montagem. Por fim, fez menção a algo muito importante, que a EMP04... é uma empresa encarregue da cobrança das facturas da autora e que um advogado da autora foi às instalações da ré e viu a máquina a trabalhar, referindo que esta estava muito utilizada. É certo que não podemos ter em consideração esta parte do depoimento, porquanto não foi a testemunha que viu a máquina a ser utilizada. Porém, tal como já referimos supra, a propósito das regras da experiência comum, não é credível que a máquina esteja parcialmente paga e há três anos parada, sem que a ré (que necessita da mesma para a sua actividade) nada fizesse a fim de solucionar este problema. Formamos a nossa convicção de que efectivamente a máquina está a trabalhar e que desta forma, a ré está a beneficiar de uma máquina para a sua actividade, pagamento menos sessenta por cento do preço acordado. Por fim, em tribunal inquirimos a testemunha AA, funcionário da ré desde 2012. A testemunha veio, em suma, corroborar o depoimento do legal representante da ré, no sentido de que o acordado com a autora foi a entrega com montagem e que esta última trabalho manualmente: os seus colegas vão puxando as sobras das pedras das máquinas. Ora, esta testemunha depôs com total falta de espontaneidade e isenção, sendo contrariada elas regras da experiência comum e temos por certo que se tratou de um depoimento “a pedido”. Assim, para formação da convicção do tribunal acerca dos factos constantes dos pontos 3) a 14) foi relevante a conjugação das declarações de parte do legal representante da ré, com o depoimento da primeira testemunha, documentos juntos aos autos e regras da experiência comum, e ainda a forma como o legal representante da ré e a última testemunha depuseram, totalmente desprovida de sentido e de lógica. Em suma, o Tribunal ficou convencido da veracidade dos factos, tal como resultaram provados, sendo que nesta produção testemunhal sobrelevou-se a coerência dos factos relatados com os documentos juntos aos autos e que acima demos conta, bem como o conhecimento pessoal e directo dos factos perguntados, a isenção, sinceridade e a honestidade denotadas pelas testemunhas, bem como a convicção e transparência dos mesmos. No que concerne aos factos não provados, cabe referir que o tribunal assim o entendeu, face à total ausência de prova acerca dos mesmos, ou à prova de factos contrários, conforme supra demos conta (designadamente, foi total a falência probatória da versão apresentada pela ré).” A recorrente pretende que se considere não provada a factualidade constante dos pontos 9 e 12 e se considere provada a factualidade constante das alíneas d) e e).
Para sustentar a pretendida modificação, a recorrente limitou-se a invocar as declarações de parte do legal representante da R. e da testemunha AA sem
produzir uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se impunha a formação de uma convicção no sentido pretendido, sobretudo num caso como o dos autos em que o tribunal a quo não conferiu qualquer credibilidade a tais declarações - “Ora, nada disto é coerente, claro ou verídico, motivo pelo qual o depoente não nos mereceu qualquer credibilidade.” – e a tal depoimento testemunhal – “Ora, esta testemunha depôs com total falta de espontaneidade e isenção, sendo contrariada elas regras da experiência comum e temos por certo que se tratou de um depoimento “a pedido”.
Dito de outra forma: a recorrente não apresentou qualquer discurso argumentativo que apresentasse as razões por que considera que tais declarações e depoimento devem, ao contrário do que afirmou o tribunal, ser merecedoras de credibilidade e, assim, impor que este tribunal se convença da necessidade de alteração dos pontos 9 e 12 dos factos provados e das alíneas d) e e) dos factos não provados.
Não se pretende aqui entrar na discussão de saber se tal análise critica é exigida pelo art.º 640º do CPC, questão que mereceu resposta negativa por parte do STJ nos Ac’s de 17/12/2019, proc. 363/07.7TVPRT-D.P2.S1, de 27/04/2023, proc. 1342/19.7T8AVR.P1.S1, de 04/07/2023, proc. 7997/20.2T8SNT.L1.S1 e de 16/01/2024, proc. 3674/21.5T8VIS.C1.S1, todos consultáveis in www.dgsi.pt/jstj.
Pretende-se apenas afirmar que a mesma é materialmente relevante à luz dos princípios da boa fé (a invocação daquelas razões confere transparência e seriedade ao exercício do direito ao recurso em matéria de facto), da cooperação (sem prejuízo de caber à Relação formar o seu próprio juízo probatório sobre cada um dos factos julgados em 1.ª instância, objecto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e das que lhe for lícito ainda renovar ou produzir, à luz do critério da sua livre e prudente convicção, e sem prejuízo de no processo de formação de uma convicção autónoma, a Relação não estar adstrita “aos meios de prova que tiverem sido convocados pelas partes e nem sequer aos indicados pelo tribunal recorrido” e de também não estar adstrita a uma eventual análise critica dos elementos probatórios que as partes indicarem – o que em parte sucede com o juiz da 1ª instância quanto às alegações orais previstas na alínea e) do n.º 3 do art.º 604º -, a invocação daquelas razões são, por um lado, um ponto de partida para o labor do tribunal no que respeita à reapreciação da prova e permite uma visão mais abrangente da problemática) e do contraditório (a invocação daquelas razões garante uma efectiva participação da contraparte, mediante a possibilidade de, em plena igualdade, influir na reapreciação da decisão de facto, contrapondo a sua análise critica).
Vejamos, começando por analisar a prova documental junta com a resposta da A. às excepções.
Temos um primeiro orçamento, que acompanha o email de 27/05/2021, e que constitui fls. 22-23v dos autos físicos e está traduzido a fls. 63-64v dos autos físicos, onde não consta a montagem.
Temos um segundo orçamento, que acompanha o email de 28/05/2021 e que constitui fls. 24-25v dos autos físicos e está traduzido a fls. 67v-69, onde consta a montagem.
E temos um terceiro email de 09/07/2021, que constitui fls. 27-27v dos autos físicos e está traduzido a fls. 75-75v, o qual refere “Boas, enviamos em anexo proposta alterada da cinta fabricada, tirando a mão de obra da montagem porque não somos nós que a vamos montar, mas a EMP03.... Acrescentamos o custo do transporte” eo orçamento que acompanha o referido email e que constitui fls. 28-28v dos autos físicos e que está traduzido a fls. 76-77 e onde consta (negrito nosso) “cinta transportadora (…) Preço: 8.750 €”; transporte da cita até às suas instalações – 500 €”; “montagem não incluída” e “Forma de pagamento: - 40% na confirmação da encomenda; 60% na entrega antes da saída do material.”
De referir que a Ré, notificada da resposta à excepção, não impugnou nenhum dos referidos documentos.
Procedeu-se à integral audição da prova gravada, como não podia deixar de ser.
O legal representante da A. (que se expressou em espanhol/galego e cuja tradução, na primeira sessão, apresentou complexidades, sem reflexo no entendimento das declarações, dada a acessibilidade da língua em que o declarante se expressou), prestou declarações de parte em que, no que releva, explicou que o processo negocial teve três momentos:
- no primeiro momento a Ré declarou que não precisava de montagem;
- num segundo momento a Ré declarou que era melhor incluir a montagem;
- e finalmente um terceiro momento em que a Ré diz que não precisa de montagem porque a EMP03..., empresa de ... que indicou a A. à Ré e estava a fazer um trabalho para a última, a realizaria.
A testemunha BB, que trabalha na A. como administrativo, desde 2003 e que conhece a Ré como cliente da A., declarou, em síntese, que é o encarregado de mandar os orçamentos e as facturas; tendo sido confrontado com os documentos juntos com a resposta às excepções, confirmou o seu teor; referiu que a Ré contactou a A. para lhe fornecer uma cinta por indicação da EMP03...; o segundo orçamento incluiu a montagem a pedido do Sr. DD; a Ré demorou um mês a pagar o montante correspondente a 40%; enquanto o montante inicial não for pago, não começam a fabricar a cinta; referiu ainda que o Sr. DD contactou telefonicamente o legal representante da A. a dizer para não incluir a montagem no orçamento porque seria a EMP03... a fazê-la e para a A. fazer o transporte e incluir o valor na factura, o qual seria € 500,00, sendo o valor total – da cinta e do transporte - € 9.250,00; referiu que apesar de estar estipulado que a Ré deveria pagar 60% antes da cinta sair das instalações da A., o legal representante da Ré disse que era um homem pagador e que queria ver a máquina primeiro, senão não pagava; a A., por um acto de boa fé, mandou a máquina; nunca o fazem, com ninguém; fizeram-no porque vinha recomendado de um cliente da A. que é a EMP03...; não havia qualquer problema em fazerem a montagem, cobrando o respectivo valor; identificou ainda no documento n.º 7 da empresa transportadora a entrega da cinta; não tendo sido paga a factura ...88 contactou telefonicamente a Ré, tendo falado com uma senhora, que disse que ia falar com o Sr. DD, nunca tendo recebido qualquer contacto; posteriormente tentou contactar telefonicamente a Ré, não mais o tendo conseguido; foi ainda confrontado com os emails de 30v-32, enviados a 12/07/2021, 20/07/2021, 06/08/2021 e 29/09/2021 traduzidos a fls. 83, 84v, 86 e 87v, que confirmou, email’s em que a A. reclama o pagamento, os quais nunca obtiveram qualquer resposta, nem nunca lhes foi pedida a montagem; não fazem montagens grátis; o transporte foi combinado com o Sr. DD; foi o Sr. DD que pediu para excluir a montagem informando que ia ser a EMP03... a fazer a montagem.
Quanto às declarações do legal representante da Ré, o mesmo começou por referir que o negócio dos autos foi feito mediante um contacto telefónico; referiu também que o “tapete” adquirido à A. tinha de ser sincronizado com a máquina de corte e com o robot cuja instalação estava a ser feita pela EMP03... e enquanto esta ali estivesse; a montagem estava incluída porque ele não sabia como montar a cinta; não havia qualquer questão com o pagamento da factura quando tinha feito um investimento de 1 milhão de euros; tentou contactar várias vezes a A. para proceder á montagem, o que nunca conseguiu; quando a Ilustre mandatária da A. pretendeu confrontar o legal representante com os documentos juntos com a resposta às excepções, o mesmo declarou que não conseguia ler os documentos por não ter os óculos; depois de lidos os documentos pela Ilustre Mandatária da A. acabou por não os negar tendo até acabado por os referir para dizer que a A. já não queria ir fazer a montagem.
A testemunha AA, funcionário da Ré desde 2012, exercendo as funções de gestor de produto que começou por declarar que “tanto quanto julgo saber” a A. era uma presa contratada para fabricar e fornecer uma cinta, um tapete, que tinha sido solicitada pela gerência Ré; “tenho a sensação” que o orçamento era à volta de € 9.000,00; “tanto quanto julgo saber” o orçamento abrangia o fabrico, entrega e montagem; “tanto quanto julgo saber” a montagem não ocorreu; “tanto quanto julgo saber” foi solicitado ao fornecedor a montagem, nunca o tendo feito pessoalmente, antes tendo sido o Sr. DD que o fez e a colega de escritório deve ter mail’s a solicitar a montagem; foi confrontado com o documento 6 junto com a contestação, que é a carta de resposta à carta enviada pela EMP04... a 30/10/2023, em que interpela a Ré para proceder ao pagamento; o tapete não está instalado; não sabe qual era a função ou papel do produto adquirido; não sabia o que era uma cinta transportadora, nem sabe o produto que foi vendido.
Analisando criticamente a prova produzida diremos o seguinte.
As declarações de parte do legal representante da A. apresentaram consistência interna - demonstrou razão de ciência, na medida em que é o legal representante da A., depôs de forma simples, tranquila, espontânea e coerente, sem quaisquer sinais de enviesamento - e consistência externa - compaginam-se inequivocamente com a prova documental referida no inicio desta análise, com a qual foi confrontado e que confirmou, com o depoimento da testemunha BB, com as declarações de parte do legal representante da Ré, que declarou no início do seu depoimento que o “tapete” adquirido à A. tinha de ser sincronizado com a máquina de corte e com o robot cuja instalação estava a ser feita pela EMP03... e enquanto esta ali estivesse, sendo certo que não faria qualquer sentido à luz das regras da experiência comum e normalidade a A. referir no email de 09/07/2021 que era a EMP03... que ia fazer a montagem se isso não tivesse sido efectivamente combinado entre as partes.
O depoimento da testemunha BB também apresenta consistência interna – demonstrou razão e ciência por exercer funções administrativas na A. e depôs de forma fluida, espontânea, clara, objectiva e segura, sem quaisquer sinais de enviesamento – e consistência externa – o seu depoimento tem suporte nos documentos juntos pela A. com a resposta às excepções, com que foi confrontado e que confirmou, e nas declarações de parte do legal representante da A..
Relativamente às declarações de parte do legal representante da Ré, tirando o aspecto já referido supra, relativamente ao facto de a EMP03... estar a fazer uma instalação na Ré, as mesmas não têm consistência interna – como resulta da audição da gravação o declarante depôs de forma claramente defensiva, obscura, sem fluidez, tornando patente o seu enviesamento – e sobretudo não têm qualquer consistência externa – não se compaginam com quaisquer outros meios de prova, sendo certo que como veremos, o depoimento da testemunha AA também não tem qualquer consistência interna ou externa - antes se revelando absolutamente insusceptíveis de colocar em crise o que resulta da documentação junta pela A. e já referida supra, das declarações de parte do legal representante da A. e do depoimento da testemunha BB.
Importa apenas notar alguns aspectos.
A ser como pretende a Ré, ou seja, que a venda incluía a montagem e que o preço da cinta, com montagem incluída, era de € 9.550,00 (cfr. email e orçamento de 28/05/2021 e ponto 6 dos factos provados), então, tendo a R. pago € 3.820,00 (ponto 8 dos factos provados), o valor em dívida seria de € 5.730,00.
Porém, para pagamento do remanescente do preço e do transporte a A. emitiu a factura nº...88, também junta pela A. com a resposta às excepções e que constitui fls. 29 dos autos físicos e está traduzida a fls. 78, a qual também não foi impugnada pela Ré, onde consta o valor relativo à diferença entre o valor já pago pela R. de € 3.820,00 relativamente à cinta (cfr. ponto 8 dos factos provados) e o valor resultante do email referido no ponto imediatamente anterior - € 8.750,00 – ou seja, € 4.930,00 – acrescido do valor do transporte - € 500,00 – no valor total de € 5.430,00.
Não faz qualquer sentido, à luz da lógica e das regras de normalidade relativas a uma empresa comercial que busca o lucro, que a A. emitisse a factura nº...88 com o valor em dívida relativamente à cinta de apenas € 4.930,00, sendo certo que mesmo considerando incluído o custo do transporte, o total da factura é de € 5.430,00 havendo, portanto, uma diferença de € 300,00 relativamente ao valor que seria devido à luz da tese da manutenção do orçamento de 28/05/2021. Tal representaria um prejuízo para a A. e não foi apresentada, concretamente pela Ré, qualquer explicação lógico-racional para este facto.
Ainda a ser como pretende a Ré – que a venda incluía a montagem e que o tapete era importante para o funcionamento da pedreira, ao ponto de a sua falta lhe estar a causar prejuízos e de a mesma fazer parte dum investimento de 1 milhão de euros…. – tudo como afirmado pelo legal representante da Ré nas suas declarações de parte -, não tendo a mesma ocorrido, era expectável e normal a R. reclamar por escrito e, sabendo que não a tinha pago na integra, invocar, desde logo, a excepção de não cumprimento quanto à restante parte do preço.
E diz-se por escrito porque é a actuação normal nas relações comerciais e, naturalmente para a parte ficar dotada de prova em caso de o diferendo se transmutar em litigio judicial.
Porém, não foi alegada nem junta qualquer prova de uma reclamação escrita.
A Ré apenas actuou por escrito quando confrontada com a carta datada de 30/10/2023, enviada pela EMP04... em representação da A. a reclamar o pagamento da quantia em dívida acrescida de encargos, carta esta junta com a sua contestação e que constitui 14v dos autos físicos, enviando a carta também junta com a sua contestação e que constitui 15v dos autos físicos, sem data mas que, face ao registo junto, foi enviada a 28/11/2023, invocando a falta de montagem e que a mesma causou prejuízos que não identifica.
E quanto a reclamações verbais, se podem ocorrer quando as relações entre as empresas têm alguma regularidade, isso já não sucede quando está em causa um único fornecimento, como é o caso dos autos.
Por outro lado, caso tivesse havido alguma reclamação verbal e a mesma não tivesse tido a resposta desejada, as regras da normalidade no que diz respeito às relações comerciais sérias e transparentes, impunham uma reclamação por escrito, o que nem sequer foi alegado.
Aliás, o que sucedeu foi o contrário: a A. a reclamar o pagamento da referida factura, mediante os email’s juntos com a resposta às excepções e que estão juntos a fls. 31v-32 e traduzidos a fls. 83, 84v., 86 e 87v, também eles não impugnados.
De tudo flui que as declarações de parte do legal representante da Ré traduzem uma meia verdade, ou seja, só são parte da verdade total, pois se é certo que o orçamento de 28/05/2021 previa a montagem, não é menos certo que o processo negocial não terminou nesse momento, como revela o email de 09/07/2021, em que, estando a cinta já fabricada, é incluído o transporte e retirada a montagem.
Em face do exposto, as declarações de parte do legal representante da Ré não merecem credibilidade e, como tal, em nada relevam para a decisão de facto.
Finalmente o depoimento da testemunha AA revelou-se totalmente inconsistente do ponto de vista:
- interno – devido à absoluta falta de espontaneidade, fluidez e razão de ciência, tendo a testemunha se limitado a um repetido “tanto quanto julgo saber”, sem que se percebesse como é que sabia, nomeadamente, que o contrato celebrado com a A., incluía a montagem;
- e externo, por não se mostrar suportado em quaisquer outros elementos de prova, não o sendo certamente as declarações de parte do legal representante da Ré, as quais não merecem credibilidade.
Em face de tudo o exposto, a conclusão que se alcança é que tendo em consideração as declarações de parte do legal representante da A. CC, os documentos juntos aos autos e já analisados e o depoimento da testemunha BB, conjugados entre si e à luz do que é normal acontecer, nenhuma razão existe para alterar a decisão quanto aos pontos 9 e 12 dos factos provados, pelo que improcede esta pretensão recursória da Ré/Recorrente.
E quanto à factualidade que consta das alíneas d) e e) dos factos não provados, a mesma foi negada pelo legal representante da A. e pela testemunha BB, não merecendo qualquer credibilidade, por falta de consistência interna e externa, as declarações de parte do legal representante da Ré e o depoimento da testemunha AA, pelo que nenhuma razão existe para alterar a decisão quanto a tais alíneas e, deste modo, também improcede esta pretensão recursória da Ré/Recorrente.
4.7.3. Fundamentação de facto consolidada: A) Factos Provados
Resultaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:
1. A autora é uma sociedade comercial espanhola que tem por objecto a fabricação e comercialização de cintas transportadoras para pedreiras e indústria em geral;
2. A ré é uma sociedade comercial que tem por objecto a exploração de pedra e transformação de granito e rochas afins;
3. (eliminado)
4. (eliminado)
5. A Ré pretendia comprar à Autora uma cinta transportadora de 7000x650, pelo que em 27.05.2021 a Autora enviou à Ré um primeiro orçamento;
6. No dia seguinte e na sequência das negociações entre as partes, a Autora enviou à Ré um segundo orçamento rectificativo do anterior que previa o preço de € 9.550,00, sem transporte e com instalação incluída;
7. Sendo que com a confirmação da encomenda, deveria ser pago pela Ré 40% do preço e quando a cinta estivesse pronta para ser entregue, mas antes de sair das instalações da Autora, a Ré deveria pagar os 60% restante;
8. A Ré aceitou este orçamento, e dado que com a confirmação da encomenda tinha que pagar 40% do preço, a Autora emitiu a Fatura nº...97 de 02.06.2021, no valor de € 3.820,00, relativa aos referidos 40% do preço de € 9.550,00 estipulado, que a Ré pagou;
9. Posteriormente, quando a cinta transportadora encomendada pela Ré já tinha sido fabricada pela Autora e estava pronta para entrega, houve uma alteração nas condições acordadas entre as partes, e ficou combinado um preço de € 8.750,00 pela cinta, sem instalação ou montagem por parte da Autora , acrescido de € 500,00 pelo transporte da cinta até as instalações da Ré, num total de € 9.250,00 (nove mil duzentos e cinquenta euros), mantendo-se a obrigação da Ré pagar o 60% do valor restante do preço, antes de que a cinta saísse das instalações da Autora com destino às instalações da Ré;
10. Pelo que a Autora emitiu a factura nº...88 de 09.07.2021, com vencimento na mesma data no valor de € 5.430,00, relativa ao valor em falta, uma vez deduzidos do referido preço de € 9.250,00 os € 3.820,00 da factura nº ...97 que a Ré tinha pago ao encomendar a cinta transportadora;
10 – A - A factura descrita em 10) foi enviada à ré.
11. (eliminado)
12. A Ré garantiu à Autora que efectuaria o pagamento assim que recebesse a cinta transportadora nas suas instalações.
13. A Autora confiou na Ré, pelo que contratou e pagou o transporte da cinta transportadora desde as suas instalações em Espanha até as instalações da Ré, em Portugal, transporte que debitou à Autora na factura nº...88 de 09.07.2021, cujo pagamento se reclama;
14. A Ré recebeu a cinta transportadora, mas não a pagou, assim como também não pagou o transporte da mesma, apesar das repetidas interpelações da Autora, pelo que ainda se encontra em dívida a factura nº...88 de 09.07.2021 no valor de € 5.430,00;
15. Por carta datada de 30 de Outubro de 2023, a Ré recebeu, por parte da autora, representada pela EMP04... S.L.U., uma interpelação para o pagamento do remanescente do preço;
16. A ré respondeu àquela missiva, indicando que nunca tinha sido instalada a cinta, não obstante os diversos telefonemas para o efeito, dando conta que a não instalação da dita cinta provocou graves prejuízos a nível de produção e comercial;
17. Mais indicando que “a cinta não foi ainda colocada e continuamos à espera que a coloquem nas nossas instalações em 16.11.2023”.
B) Factos Não Provados
Com relevo para a decisão da causa os factos não provados são os seguintes:
a) (eliminada);
b) Que a ré tenha levantado e transportado a cinta, a fim de ser instalada pela autora, conforme acordado entre as partes no momento da celebração do contrato;
c) Que a cinta se encontre “arrumada” e por instalar;
d) Que a ré, por diversas vezes, tenha tentado contactar a autora para que esta procedesse à instalação da cinta, a fim de, finalizada a instalação, pagar o preço;
e) Que a ré tenha tentado uma vez mais estabelecer contacto com a autora, a fim de resolver o problema e que tenham sido rejeitadas pela mesma todas as tentativas de contacto.
5. Fundamentação de direito 5.1. Deve ser julgada verificada a excepção de não cumprimento do contrato?
Resulta da factualidade provada (ponto 1) que a autora é uma sociedade comercial espanhola que tem por objecto a fabricação e comercialização de cintas transportadoras para pedreiras e indústria em geral e que (ponto 2) a ré é uma sociedade comercial que tem por objecto a exploração de pedra e transformação de granito e rochas afins.
Resulta ainda da factualidade provada (ponto 5) que Ré pretendia comprar à Autora uma cinta transportadora de 7000x650, pelo que em 27.05.2021 a Autora enviou à Ré um primeiro orçamento e (ponto 6) no dia seguinte e na sequência das negociações entre as partes, a Autora enviou à Ré um segundo orçamento rectificativo do anterior que previa o preço de € 9.550,00, sem transporte e com instalação incluída, sendo que (ponto 7) com a confirmação da encomenda, deveria ser pago pela Ré 40% do preço e quando a cinta estivesse pronta para ser entregue, mas antes de sair das instalações da Autora, a Ré deveria pagar os 60% restante.
Ficou ainda provado (ponto 8) que a Ré aceitou este orçamento, e dado que com a confirmação da encomenda tinha que pagar 40% do preço, a Autora emitiu a Fatura nº...97 de 02.06.2021, no valor de € 3.820,00, relativa aos referidos 40% do preço de € 9.550,00 estipulado, que a Ré pagou.
Sucede que o itinerário negocial não terminou aqui, pois resulta da factualidade provada (ponto 9) que posteriormente, quando a cinta transportadora encomendada pela Ré já tinha sido fabricada pela Autora e estava pronta para entrega, houve uma alteração nas condições acordadas entre as partes, tendo ficado combinado o preço de € 8.750,00 pela cinta, sem instalação ou montagem por parte da Autora, acrescido de € 500,00 pelo transporte da mesma até as instalações da Ré, num total de € 9.250,00 (nove mil duzentos e cinquenta euros), mantendo-se a obrigação da Ré pagar os 60% do valor restante do preço, antes de que a cinta saísse das instalações da Autora com destino às instalações da Ré, pelo que (ponto 10) a Autora emitiu a factura nº...88 de 09.07.2021, com vencimento na mesma data, no valor de € 5.430,00, relativa ao valor em falta, uma vez deduzidos do referido preço de € 9.250,00 os € 3.820,00 da factura nº ...97 que a Ré tinha pago ao encomendar a cinta transportadora.
No entanto e apesar de ter sido estipulado que quando a cinta estivesse pronta para ser entregue, mas antes de sair das instalações da Autora, a Ré deveria pagar os 60% restante, está provado (ponto 12) que a Ré garantiu à Autora que efectuaria o pagamento assim que recebesse a cinta transportadora nas suas instalações.
E está ainda provado (ponto 13) que a Autora confiou na Ré, pelo que contratou e pagou o transporte da cinta transportadora desde as suas instalações em Espanha até as instalações da Ré, em Portugal, transporte que debitou à Autora na factura nº...88 de 09.07.2021 e (ponto 14) a Ré recebeu a cinta transportadora, mas não a pagou, assim como também não pagou o transporte da mesma, apesar das repetidas interpelações da Autora, pelo que ainda se encontra em dívida a factura nº...88 de 09.07.2021 no valor de € 5.430,00;
A sentença recorrida qualificou o contrato celebrado entre as partes como compra e venda, o que não é questionado no recurso nem, perante a factualidade provada, existem razões para alterar.
Assim, dispõe o art.º 874º do CC que compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço.
E nos termos do disposto no art.º 879º do CC a compra e venda tem como efeitos essenciais:
a) A transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito;
b) A obrigação de entregar a coisa;
c) A obrigação de pagar o preço.
Face à factualidade provada resulta que a A. entregou a cinta transportadora à Ré, pelo que cumpriu a sua obrigação (incluindo a de transporte), o que não sucedeu com a Ré, que não pagou o remanescente do preço - € 4.930,00 – nem o transporte - € 500,00.
A Ré invocou que o contrato incluía também a montagem da cinta transportadora pela A., o que não aconteceu, pelo que a mesma está em incumprimento, o que lhe permite invocar a excepção de não cumprimento do contrato.
A sentença recorrida analisou a referida excepção e julgou-a improcedente por, em essência, não ter ficado provado que a montagem da cinta transportadora tivesse sido contratada.
A Ré/recorrente recorre insistindo na mesma questão.
A alegação da Ré de que o contrato contemplava, além da entrega da cinta transportadora, a sua montagem, traduz-se na alegação de que a relação contratual estabelecida era complexa pois implicava dois deveres: um, resultante da lei – a entrega da coisa encomendada; outro, resultante do acordo das partes – a montagem da coisa encomendada.
A alegação de que a A. entregou a coisa encomendada, mas não procedeu à sua montagem, traduz-se na alegação de um cumprimento inexato pois a prestação foi realizada em parte com a entrega da coisa.
Sucede que, como já se deixou dito em sede de análise da impugnação da decisão de facto, a alegação da Ré é uma meia verdade, na medida em que é parte da verdade total, pois se é certo que o orçamento de 28/05/2021 previa a montagem (cfr. ponto 6 dos factos provados), não é menos certo que o processo negocial não terminou nesse momento, como revela o ponto 9 dos factos provados que tem o seguinte teor (sublinhado nosso): 9. Posteriormente, quando a cinta transportadora encomendada pela Ré já tinha sido fabricada pela Autora e estava pronta para entrega, houve uma alteração nas condições acordadas entre as partes, e ficou combinado um preço de € 8.750,00 pela cinta, sem instalação ou montagem por parte da Autora, acrescido de € 500,00 pelo transporte da cinta até as instalações da Ré, num total de € 9.250,00 (nove mil duzentos e cinquenta euros), mantendo-se a obrigação da Ré pagar o 60% do valor restante do preço, antes de que a cinta saísse das instalações da Autora com destino às instalações da Ré.
Destarte, impõe-se concluir que o acordo final não incluía a montagem.
Dispõe o art.º 428º do CC: “ 1. Se nos contratos bilaterais não houver prazos diferentes para o cumprimento das prestações, cada um dos contraentes tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo. 2. (...). “
Não é necessário analisar em profundidade a excepção de não cumprimento do contrato.
É suficiente para economia do recurso relembrar a análise do preceito dada por Pires de Lima e Antunes Varela, in CC Anotado, I, 3ª Edição, pág. 380 (anotação ao art.º 428º do CC): “A exceptio non adimpleti contractus a que se refere este artigo pode ter lugar nos contratos com prestações correspectivas ou correlativas, isto é, interdependentes, sendo uma o motivo determinante da outra. É o que se verifica nos contratos tradicionalmente chamados bilaterais ou sinalagmáticos. (...) É evidente, por outro lado, que mesmo estando o cumprimento das prestações sujeito a prazos diferentes, a exceptio poderá sempre ser invocada pelo contraente cuja prestação deva ser efectuada depois da do outro, apenas não podendo ser oposta pelo contraente que devia cumprir primeiro. (…) Para que a exceptio se aplique, não basta que o contrato seja obrigatório ou crie obrigações, para ambas as partes: é necessário que as obrigações sejam, como se disse, correspectivas ou correlativas, que uma seja o sinalagma da outra (..) “
Caso o acordado entre as partes fosse no sentido de que a montagem estava incluída na compra e venda, poder-se-ia considerar que a entrega da cinta transportadora e a sua montagem tinham como correspectivo o pagamento do preço acordado e, deste modo, o cumprimento inexato, ou seja, a realização apenas da entrega da coisa, sem a montagem, conferiria à Ré a faculdade de recusar a sua prestação, ou seja e no caso, o pagamento do remanescente do preço, enquanto a A. não efectuasse a montagem.
Porém, e como se viu, o acordado por último entre as partes não incluía a montagem, pelo que é manifesta a improcedência da invocada excepção de não cumprimento do contrato pelo que improcede a pretensão recursiva da Ré de a ver julgada verificada. 5.2. Deve ser revogada a decisão que condenou a Ré como litigante de má fé?
A decisão recorrida julgou verificada a litigância de má fé da Ré e condenou-a na multa de 4 UC’s com os seguintes fundamentos: “(…) Neste caso, é inequívoco que a ré deduziu oposição cuja falta de fundamento não podia ignorar. Alterou a verdade dos factos, apresentando em juízo orçamento que sabia perfeitamente não se tratar do definitivo e, para além do mais, não juntou o orçamento completo, de forma a que o tribunal não pudesse ter conhecimento das condições que constavam do verso. A ré sabia perfeitamente o que havia contratado pela autora e na oposição, chegou ao cúmulo de invocar falsamente que o transporte da máquina foi feito por si, quando em juízo, o seu legal representante acabou por assumir que foi a autora a fazer o transporte. Ao actuar desta forma, a ré actuou, dolosamente, de má fé. Tendo litigado de má fé (substancial), será condenada em multa (artigo 542º, nº 1 do Código de Processo Civil), o que se determina. Atendendo à natureza do processo, factos em causa, e ainda a que a ré litiga, não apenas com mera negligência grosseira, mas sim dolosamente, entende-se adequado condená-la em 4 UC’s de multa. “
A ré pugna pela revogação de tal condenação
Vejamos
Qualquer pessoa que se considere titular de um direito pode solicitar a intervenção judicial para o ver reconhecido ou para alcançar a sua realização coerciva - arts. 20° da Constituição da República Portuguesa e 2° do Cód. Proc. Civil -, assim como qualquer pessoa demandada pode usar os meios processuais existentes para se defender.
A ordem jurídica põe a tutela jurisdicional à disposição de todos os titulares de direitos, sendo indiferente que, no caso concreto, o litigante tenha ou não razão: num e noutro caso gozam dos mesmos poderes processuais.
Mas uma realidade é o direito abstracto de acção ou de defesa; outra é o exercício concreto desse direito.
O primeiro não tem limites, é um direito inerente à personalidade humana.
O segundo tem as limitações impostas pela ordem jurídica.
Como refere Paula Costa e Silva, in Responsabilidade por conduta processual – litigância de má fé e tipos especiais, Almedina, pág. 45 “o direito de acção, como qualquer outro direito subjectivo, não traduz uma liberdade absoluta: ainda que o direito a agir configure uma permissão normativa genérica, não pode significar uma possibilidade de actuação sem fronteiras de licitude. O direito de acção, como qualquer situação jurídica, está, desde logo, limitada pelos fins da sua atribuição.”
Uma dessas limitações traduz-se nesta exigência: as partes devem agir de boa-fé, como estabelece o art.º 8º, cuja epígrafe é “Dever de boa fé processual”, e devem observar os deveres de cooperação resultantes do preceituado no artigo 7º.
Se a parte procedeu de boa fé, sinceramente convencida de que tinha razão, a conduta é perfeitamente lícita; se não tiver sucesso na sua pretensão, suporta unicamente o encargo das custas, como risco inerente à sua actuação.
Mas se a parte procedeu de má-fé, determina o art.º 542°, n°1 do Cód. Proc. Civil a sua condenação em multa e numa indemnização à parte contrária, se esta a pedir.
E nos termos do n.º 2 do art.º 542º do CPC: 2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.
Decorre da conjugação do n.º 1 com o n.º 2, que a condenação por litigância de má fé exige a verificação de elementos subjectivos e elementos objectivos.
Quanto aos elementos subjectivos, a norma contempla quer o dolo, quer a negligência grave.
Nem sempre foi assim.
O art.º 465º do CPC de 1939 dispunha: Deve considerar-se litigante de má-fé não só o que tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não podia razoavelmente desconhecer, como também o que tiver conscientemente alterado a verdade dos factos ou omitido factos essenciais e o que tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal ou de entorpecer a acção da justiça ou de impedir a descoberta da verdade.
A citada norma era interpretada como punindo, apenas, as actuações dolosas e não as actuações com culpa grave (neste sentido Alberto dos Reis, CPC Anotado, Vol. II, pág. 262).
O CPC alterado em 1961 estabelecia a litigância de má-fé no art.º 456º de forma quase idêntica, dispondo: 2. Diz-se litigante de má-fé não só o que tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não ignorava, como também o que tiver conscientemente alterado a verdade dos factos ou omitido factos essenciais e o que tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal ou de entorpecer a acção da justiça ou de impedir a descoberta da verdade.
Destarte, e quanto a esta norma, mantinha-se válida a interpretação de Alberto dos Reis e também a de Manuel de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, 1003, pág. 356.
Porém, o DL 329-A/95, de 12 de Dezembro veio mudar o paradigma, passando a dispor no corpo do n.º 2: 2 - Diz-se litigante de má-fé quem, com dolo ou negligência grave:…
Esta norma corresponde hoje ao n.º 2 do art.º 542º.
Assim, e actualmente, o elemento subjectivo tanto abrange o dolo, como a negligência grave.
O CPC não contém qualquer norma definidora de tais conceitos.
Alberto dos Reis, in CPC Anotado, II, pág. 262 distinguia quatro tipos de conduta processual, sendo que, no que releva face à norma actual, apenas os dois últimos interessam:
- lide temerária – a parte embora convencida da sua razão, incorreu em erro grosseiro ou culpa grave, ajuizando a acção com desconsideração de motivos ponderosos, de facto ou de direito, que comprometiam a sua pretensão – e que podemos hoje fazer corresponder à negligência grave;
- lide dolosa – a parte, apesar de estar ciente de que não tinha razão, litigou e deduziu pretensão ou oposição conscientemente infundada.
No domínio das obrigações e para efeitos de responsabilidade, Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, 6ª edição, vol. I, pág. 532-542 integra nas condutas dolosas:
- o dolo directo – o agente prefigura determinado efeito do seu comportamento e quer esse efeito como fim da sua actuação;
- o dolo necessário – o agente, não querendo directamente o facto ilícito, prevê-o como consequência necessária e segura da sua conduta;
- o dolo eventual – caracterizado pelo facto de o agente prever a produção do facto ilícito como consequência possível da sua conduta, conformando-se com o resultado.
Paula Costa e Silva, in Responsabilidade…, pág. 344, refere que o dolo “revela-se numa intencionalidade da parte quer na dedução de pretensão ou oposição infundada, quer na alteração ou omissão de factos, quer na violação do dever de cooperação, quer, por fim, na utilização maliciosa ou abusiva do processo ou dos meios processuais com vista a conseguir um objectivo ilegal ou de entorpecer a acção da justiça. Assim e consoante os tipos, age dolosamente a parte que sabe que não tem razão quando deduz determinada pretensão ou oposição, a parte que sabe que procede a uma descrição dos factos essenciais não coincidente com a realidade, a parte que viola intencionalmente o dever de cooperação bem como a parte que sabe estar a fazer um uso reprovável, porque disfuncional, dos meios processuais ou do processo.”
Quanto à negligência, em termos gerais, consiste na omissão da diligência devida num caso concreto.
Mas, face à norma em apreço, só releva a culpa grave, que é a negligência grosseira, escandalosa, intolerável, em que só cai um homem anormal ou extraordinariamente descuidado – Nuno Manuel Pinto Oliveira, Princípios de direito dos contratos, pág. 434-435 (cfr. o conjunto de exemplos jurisprudenciais recenseados por Paula Costa e Silva, in Responsabilidade…, pág. 345).
A doutrina distingue ainda má-fé, dolosa ou com culpa grave, substancial - deduz-se pretensão ou oposição cuja improcedência não poderia ser desconhecida, altera-se a verdade dos factos, omite-se um elemento essencial – da má-fé instrumental - faz-se, dos meios e poderes processuais, um uso manifestamente reprovável.
Quanto aos elementos objectivos, traduzem-se nas condutas identificadas nas várias alíneas do n.º 2, às quais está subjacente um conjunto de deveres processuais, cuja violação constitui o fundamento da condenação por litigância de má-fé e que radicam no dever processual geral, imposto a todas as partes, de agir de boa-fé.
A decisão recorrida não indicou as alíneas do n.º 2 do art.º 542º em que Ré incorreu para a condenar como litigante de má fé.
Mas os fundamentos indicados são os que constam das alíneas a) e b) do n.º 2 do art.º 542º.
De acordo com a alínea a) a parte actuará ilicitamente se souber ou devia saber que a sua, no que releva, defesa, quer atendendo aos aspectos de facto, quer aos efeitos que deles são retirados, não é compatível com aquilo que o sistema jurídico dita.
Como refere Paula Costa e Silva in ob. cit., pág. 389, na evolução deste tipo, o conhecimento efctivo quanto à falta de fundamento da defesa foi substituído pela exigibilidade desse conhecimento; e bastando-se a lei com a exigibilidade do conhecimento, a sua prova pode ser feita a partir de índices externos, construídos sobre a parte “média”.
A alínea b) diz respeito à manipulação da matéria de facto, tendo em vista a dedução de uma pretensão ou de uma defesa que não tem fundamento, e contempla dois subtipos:
- a alteração da verdade dos factos – a parte invoca factos relevantes para a decisão da causa, que a beneficiam, vindo a provar-se não só que os mesmos não ocorreram, como ocorreram factos contrários aos alegados, que beneficiam a parte contrária;
- a omissão de factos relevantes para a decisão da causa, os quais, uma vez alegados e provados, prejudicariam a parte que os omite e beneficiariam a contraparte.
Do ponto de vista subjectivo, pode precisar-se que a alteração ou omissão de factos pode ser intencional ou pode resultar de uma grosseira e manifesta falta de cuidado na indagação da realidade.
Vejamos em concreto
Como já ficou referido em sede de impugnação da decisão de facto, a invocação pela Ré de que o contrato incluía a montagem constitui uma meia verdade porque é parte da verdade total, pois se é certo que o orçamento de 28/05/2021 previa a montagem (cfr. ponto 6 dos factos provados), não é menos certo que o processo negocial não terminou nesse momento, como revela o ponto 9 dos factos provados, que tem o seguinte teor: 9. Posteriormente, quando a cinta transportadora encomendada pela Ré já tinha sido fabricada pela Autora e estava pronta para entrega, houve uma alteração nas condições acordadas entre as partes, e ficou combinado um preço de € 8.750,00 pela cinta, sem instalação ou montagem por parte da Autora, acrescido de € 500,00 pelo transporte da cinta até as instalações da Ré, num total de € 9.250,00 (nove mil duzentos e cinquenta euros), mantendo-se a obrigação da Ré pagar o 60% do valor restante do preço, antes de que a cinta saísse das instalações da Autora com destino às instalações da Ré.
Meia verdade que, diga-se, assentou na omissão de factos relevantes para a decisão da causa, concretamente e no caso, o acordo final constante do ponto 9 dos factos provados, o qual, caso tivesse sido alegado pela Ré impediria que a mesma invocasse que havia sido acordada a montagem da cinta transportadora e, assim, a excepção de não cumprimento do contrato.
Destarte, impõe-se considerar que a omissão da referida factualidade foi instrumental da dedução da defesa nos termos em que foi apresentada.
Uma defesa numa acção judicial assente numa omissão de factos relevantes para a decisão da causa e, deste modo, no que se vem a apurar ser uma meia-verdade, no sentido em que só é parte da verdade total, não pode deixar de ser considerada, tendo em consideração que as acções humanas são orientadas pela racionalidade e o ambiente em que tal ocorre – acção judicial -, como tendo sido apresentada com o propósito de fazer acreditar que representa a verdade total e, assim, não é possível deixar de considerar que se traduziu na apresentação necessariamente dolosa de uma defesa cuja falta de fundamento não se devia ignorar,
Em face do exposto impõe-se considerar que a Ré incorreu nos tipos objectivos de litigância de má fé previstos nas alíneas a) e b) do n.º 2 do art.º 542º do CPC, pelo que não merece censura a sentença recorrida quando assim o considerou e condenou a Ré em multa, cujo montante não vem questionado e em consequência também nesta parte o recurso deve ser julgado improcedente.
5.3. Custas
Dispõe o art.º 527º, n.º 1 do CPC que: 1 - A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito. 2 - Entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
A recorrente ficou totalmente vencida, pelo que é integralmente responsável pelas custas.
6. Decisão
Termos em que acordam os Juízes da 1ª secção da Relação de Guimarães em manter a decisão recorrida e em consequência julgar a apelação improcedente.
Custas da apelação pela recorrente.
Notifique-se
*
Guimarães, 05/06/2025
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
Relator: José Carlos Pereira Duarte
Adjuntos: Maria Gorete Roxo Pinto Baldaia de Morais
Gonçalo Oliveira Magalhães