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REIVINDICAÇÃO
DOMÍNIO PÚBLICO
DIREITO REAL PARCIÁRIO PÚBLICO
DICATIO AD PATRIAM
INTANGIBILIDADE DA OBRA PÚBLICA
Sumário
(i) O art. 615/1, b), refere-se à sentença em si mesma, como um todo, harmonizando-se com o art. 607/3 e 4. Tanto a decisão de provado/não provado como a respetiva motivação constituem fundamentos de facto. A falta absoluta de qualquer um deles tem como consequência a nulidade da sentença. Já a sua mera deficiência apenas afeta o valor doutrinal da sentença. (ii) A sentença é nula, por contradição entre os fundamentos e a decisão, nos termos previstos no art. 615/1, c), 1.ª parte, quando os fundamentos de facto e/ou de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão. Na 2.ª parte da alínea c) do n.º 1 do citado art. 615 estão em causa as situações em que o sentido da decisão não é percetível (obscuridade) ou em que se presta a interpretações diferentes (ambiguidade), sendo assim ininteligível. (iii) A alínea b) do n.º 1 do art. 640 do CPC impõe ao recorrente que impugne a decisão da matéria de facto o ónus de efetuar a correspondência direta, concreta e objetiva, entre os meios probatórios por si indicados e a justificação (por eles representada) para a modificação dos pontos de facto considerados incorretamente valorados. A observância desse ónus não se basta com a mera reunião aglomerada dos diversos meios de prova entendidos por relevantes, feita genericamente e em estilo descritivo, numa amálgama indiferenciada, sem nenhuma referência concreta e objetiva aos pontos de facto em causa, individualmente identificados. (iv) A ação de reivindicação pressupõe uma cumulação real de pedidos, uma vez que o autor pretende a procedência de dois efeitos jurídicos: a um tempo, a declaração de existência do direito; a outro, a condenação na restituição. A procedência do primeiro é condição necessária, ainda que não suficiente, da procedência do segundo. (v) A constituição de um direito parciário público sobre um prédio rústico propriedade de um privado e a sua subsequente integração no domínio público pressupõe um ato de disposição, que deve observar a forma legal prevista, sob pena de nulidade. (vi) Se, não obstante essa nulidade formal, o ente público tiver realizado, num quadro de ausência de culpa ou de culpa leve, com o consentimento do titular do direito de propriedade sobre o prédio, as obras ou investimentos que lhe seriam permitidos se tivesse adquirido aquele direito, não deve proceder a pretensão reivindicativa deduzida por este. Em semelhante quadro fáctico, a exigência de restituição, com a reposição do prédio no status quo ante, configura uma atuação em flagrante contradição com a conduta anterior (venire contra factum proprium) do proprietário, integradora de abuso do direito.
Texto Integral
I.
1). AA intentou, com o consentimento do respetivo cônjuge, BB, a presente ação declarativa, sob a forma comum, contra a União de Freguesias ... e ..., pedindo:
Ø O reconhecimento do direito de propriedade sobre o prédio rústico, constituído por pinhal, com área de 3 800 m2, sito no Lugar ..., da extinta freguesia ..., atual União de Freguesias ... e ..., concelho ..., a confrontar a norte com Limite da Freguesia, a sul e de poente com CC e a nascente com DD, omisso na Conservatória do Registo Predial e inscrito na matriz predial respetiva sob o atual artigo ...92, o qual teve origem no artigo ...06/...;
Ø A condenação da Ré a restituir ao Autor o prédio identificado e a desocupá-lo de bens, no prazo máximo de 15 (quinze) dias, a contar do trânsito em julgado da sentença que a obrigar e, no caso de não cumprir tal obrigação, a pagar ao Autor a quantia diária de € 50,00 por cada dia de atraso na entrega do mesmo bem imóvel;
Ø A condenação da Ré a pagar ao Autor a quantia de € 5 000,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos com a violação do seu [do Autor] direito de propriedade, acrescida dos juros de mora à taxa legal de 4% desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.
Alegou, em síntese, que: adquiriu o direito de propriedade sobre o identificado prédio por sucessão mortis causa; de qualquer modo, por si e antepossuidores, está no gozo e fruição de tal prédio, à vista de todos e sem oposição de ninguém, pelo tempo suficiente para a aquisição originária do direito de propriedade por usucapião; em meados de 2017, o Presidente da Junta da União de Freguesias ... e ... pediu-lhe autorização para a construção de um depósito de água, destinado ao combate aos incêndios florestais, numa parcela do prédio; considerando as razões invocadas, deu essa autorização, com a condição de ser assegurado o fornecimento de água do depósito para a rega da parte do prédio que não fosse por ele ocupada; o depósito foi construído e inaugurado no dia 27 de setembro de 2018, ocupando uma área de 1 000 m2; em abril de 2021, a Ré interrompeu o fornecimento de água à parte do prédio não ocupada pelo depósito, não o retomando, apesar das sucessivas interpelações do Autor; por outro lado, para construir o depósito, a Ré procedeu ao corte de várias árvores; o comportamento da Ré provocou-lhe “um grande desgosto, justificada revolta, transtorno e grave depressão.”
Citada, a Ré apresentou contestação, na qual, depois de impugnar, por desconhecimento, a aquisição, pelo Autor, do direito de propriedade sobre o identificado prédio, alegou que: o Autor cedeu, a título gratuito, uma parcela de terreno “do seu prédio” (sic), com a área de 870 m2, para a instalação de um depósito de água; o Autor não impôs, como condição para a cedência, que a água do depósito servisse também para a rega da parte sobrante do prédio; depois da cedência, seguindo instruções do Autor, procedeu ao abate das árvores existentes na parcela, cortou-as em toros e rachou-as para lenha, que transportou para uma indústria de madeiras; na sequência, contruiu o depósito, com um subsídio obtido junto da Câmara Municipal ...; procedeu ainda à construção de um muro de pedra no prédio do Autor, no que despendeu € 2 120,00, e à pavimentação do acesso a este, no que despendeu € 20 895,25; a água colocada no depósito provém de nascente situada num prédio de que é proprietária, destina-se ao combate aos incêndios florestais e ao abastecimento de equipamentos da freguesia; finalmente, ao reivindicar a parcela, depois de a ter cedido, o Autor excede manifestamente os limites da boa fé, agindo em abuso do direito, o que deve levar à paralisação deste.
Pediu, ademais da improcedência da ação, a condenação do Autor, como litigante de má-fé, no pagamento de multa e de indemnização, esta de valor não inferior a € 5 000,00.
O Autor apresentou resposta ao pedido de condenação como litigante de má-fé, reiterando o alegado na petição inicial e pugnando pela improcedência do mesmo.
A Ré ampliou para € 10 000,00 o pedido de indemnização com fundamento na litigância de má-fé que imputou ao Autor, tendo este renovado os fundamentos da sua oposição.
Dispensada a audiência prévia, foi proferido, com data de 20 de abril de 2022, despacho a: afirmar tabularmente a verificação dos pressupostos processuais; fixar, em € 5 000,01, o valor processual; dispensar a delimitação do objeto do litígio e o enunciado dos temas da prova; admitir os meios de prova indicados pelas partes.
Realizou-se a audiência final e, após o seu encerramento, foi proferida sentença, datada de 4 de novembro de 2024, a: julgar a ação improcedente, absolvendo a Ré dos pedidos formulados pelo Autor; condenar o Autor como litigante de má-fé, no pagamento de multa, fixada em € 2 500,00, e de indemnização à Ré, “em quantia a liquidar em execução de sentença” (sic); e a condenar o Autor no pagamento das custas processuais, “fixando-se a taxa de justiça, na totalidade dos pedidos em discussão nos autos, face à complexidade da ação e dos pedidos e ao número significativo de sessões (6 – seis) de audiência final de discussão e julgamento, em 6 UC (Seis Unidades de Conta processual), e fixando-se taxa sancionatória excecional de 10 UC (Dez Unidades de Conta processual) em virtude de a presente ação ser manifestamente improcedente e o Autor não ter agido com a prudência e/ou a diligência devidas (artigo 531º do cit. CPC).” (sic).
***
2). Inconformado, o Autor (daqui em diante, Recorrente) interpôs o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):
“(…)[1]
5. Em primeiro lugar, lendo a decisão recorrida não podemos deixar de reconhecer que a mesma enferma de deficiências várias, não possuindo o conteúdo nem patenteando o cuidado exigível numa decisão judicial.
6. Não só faltam factos importantes e mesmo necessários para o conhecimento do mérito das questões que foram conhecidas e mesmo das questões cujo conhecimento foi igualmente omitido.
7. Desde logo, na sentença recorrida o Meritíssimo juiz a quo começa por elencar os factos dados como provados e não provados, no entanto relativamente à explanação da motivação que levou a tais conclusões, o Meritíssimo juiz a quo limitou-se a afirmar, sem muitas delongas, que conferia credibilidade ao depoimento do legal representante da Ré, em detrimento das declarações prestadas pelo Autor.
8. Sem efetuar, como devido respeito, qualquer raciocínio lógico na narrativa sequencial dos factos alegados pelo Autor, o que efetivamente não se pode aceitar.
9. Assim, conforme é possível analisar pela leitura da sentença recorrida, a mesma não procedeu a uma análise crítica das provas, não indicou as ilações tiradas dos factos essenciais e instrumentais e não especificou os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.
10. Na situação em apreço, conforme se referiu, o tribunal recorrido ao ser omisso quanto ao juízo crítico dos factos, o que significa que estamos perante uma insuficiente fundamentação da sentença de que se recorre, determinando que a mesma seja nula, nulidade expressamente se argui para todos os devidos efeitos legais.
11. Pelo exposto, entendemos que a decisão recorrida é nula por violação do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil.
12. Em segundo lugar, a sentença recorrida dá como provado os factos alegados pelo Autor, no sentido de que o legal representante da Ré questionou o Autor se dava autorização para construir o depósito no seu terreno e, subsequentemente o Autor autorizou a referida construção.
13. Não obstante, na motivação apresentada e na decisão final a sentença recorrida considera que não existiu qualquer autorização de construção do depósito, mas antes uma cedência […] gratuita da parcela de terreno em apreço, da parte do Autor.
14. Portanto, a conclusão alcançada, a decisão, não é, claramente, a conclusão lógica que decorre dos referidos factos dados como provados e dos fundamentos vertidos, verificando-se um vício de raciocínio.
15. Na verdade, existe contradição entre factos quando eles se mostrem incompatíveis entre si, de tal modo que não possam coexistir entre si, sendo certo que se vem entendendo que essa incompatibilidade deve existir entre os próprios factos provados, (vide, por todos, Ac. da RC de 22/02/2000, in “CJ, Ano XXV, T1 – 29”; Ac. do STJ de 22/02/2000, in “Sumários, nº. 38º - 22”; Ac. do STJ de 08/02/2000, in “Sumários, nº. 38º - 14”; e Ac. da RC de 26/05/1992, in “BMJ, nº. 417 – 835”.
16. Pelo exposto, entendemos que a decisão recorrida é nula por violação do disposto no artigo 615.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil. 17. Em terceiro lugar, com o devido respeito, que é muito, Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento na apreciação da prova.
18. Senão vejamos, o Recorrente considera que foram incorretamente julgados os factos considerados como provados, por referência à petição inicial, em 1, na parte respeitante a “com área não concretamente apurada”, sendo que por referência à Contestação considera o Recorrente que foram incorretamente julgados os factos considerados como provados os seguintes factos: 11.º, 12.º, 13.º, 14.º na parte após tal cedência, 21.º, 23.º, 25.º, 27.º, 30.º, 34.º, 42.º, 46.º, 47.º, 48.º, 49.º, 50.º, 51.º, 52.º e 53.º atento ao teor dos articulados, a prova documental e a prova testemunhal produzida em audiência e discussão e julgamento e depoimento de parte prestado pelo Recorrente, impor sobre esses concretos pontos da matéria de facto impugnada uma decisão diversa da recorrida, concretamente, os factos supra mencionados e que foram dados como provados, deveriam ter sido dados como não provados, com infra iremos ver e analisar.
19. Além disso, o Recorrente considera que foram incorretamente julgados os factos considerados como não provados, por referência à petição inicial 1., 3. 4, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 22, 25, 28, 30, 38 e 39 em atento ao teor dos articulados, a prova documental, prova testemunhal produzida em audiência e discussão e julgamento e depoimento de parte prestado pelo Recorrente, impor sobre esses concretos pontos da matéria de facto impugnada uma decisão diversa da recorrida, concretamente, os factos supra mencionados e que foram dados como não provados, deveriam ter sido dados como provados, com[o] infra iremos ver e analisar.
20. Ora, atenta as declarações de parte prestadas pelo Autor, bem como o depoimento das testemunhas que infra se irão transcrever, é possível de constatar, sem mais, que o tribunal recorrido, com o devido respeito, andou mal.
21. Assim, o Autor começa por afirmar, num discurso completamente descomprometido e simples, atenta a relação de confiança e de amizade que tinha com o Presidente da Junta de Freguesia, que foi por este contatado no sentido de autorizar a construção do reservatório numa pequena parcela de terreno que era sua propriedade, em cerca de 30 a 40 m2.
22. Tendo o Autor consentido na referida construção, mas nunca pensou em ceder, vender ou doar qualquer parcela de terreno, porquanto sempre teve estima pelos bens que lhe foram deixados em herança dos seus falecidos pais.
23. Refere ainda que o Presidente da Junta de Freguesia nunca se expressou no sentido de ser uma qualquer doação ou cedência gratuita, tendo entregue o documento em branco onde ele assinou, devido à relação de amizade e confiança que os unia.
24. Na verdade, ouvindo as declarações do Autor conseguimos facilmente perceber a genuinidade na sua fala, no seu discurso fácil e descomprometido.
25. De facto, claramente que o Autor foi enganado para a Junta de Freguesia conseguir proceder à construção do reservatório.
26. Refere que autorizou a construção do reservatório e em contrapartida poderia ter acesso à água, tendo sido este o acordo firmado.
27. A isto acresce que, decorre das declarações prestadas pelo Autor que após a autorização para a construção do reservatório, a Junta de Freguesia, na pessoa do seu legal representante, procedeu ao abate de eucaliptos, sendo que afirma expressamente o Autor que não foi entregue no seu estaleiro toda a lenha que resultou do tal abate.
28. Mais o Autor afirma que após a construção do reservatório sempre utilizou a água, tendo sido o próprio Presidente da Junta de Freguesia que disse ao Autor para comprar um motor para conseguir extrair água do reservatório.
29. Além disso, relativamente ao calcetamento o Autor afirma que não fez qualquer pedido à Junta, até porque o pavimento não foi calcetado até à sua entrada.
30. Relativamente à construção do muro, apenas se deveu à necessidade, por força do decaimento de terras e, não resultou de qualquer pedido pelo Autor, como contrapartida da construção do reservatório.
31. Desta forma, é claro que o que o corte das árvores, a construção do muro e pavimentação não resultou de condições impostas pelo Autor, mas antes de necessidades que a Junta de Freguesia achou por bem satisfazer!
32. Atento que a única condição para o Autor ter concedido a autorização de construção do reservatório, foi unicamente a possibilidade de poder utilizar, sem qualquer limitação, a água do reservatório.
33. Além disso, resulta ainda do depoimento do Autor que após calcetarem o pavimento foi colocado um tubo subterrâneo para o Autor continuar a aceder à água.
34. Sendo certo que, o Autor mesmo após a pavimentação continuou a regar, utilizando o tal tubo.
35. Sucede que, o tubo apenas foi cortado posteriormente, por causa de um desentendimento do Presidente da Junta com o seu irmão, que se refletiu na sua pessoa. E, dessa feita, o tubo foi cortado e, o próprio Presidente da Junta de Freguesia transmitiu ao Autor que não lhe daria qualquer documento que o legitimasse a utilizar a água, conforme havia prometido e, aliás, haviam acordado!
36. Nessa sequência, o Autor viu-se obrigado a proceder à construção de um poço, tendo para o efeito contraído um empréstimo bancário na quantia de €5.000,00, para conseguir utilizar o terreno, onde fez obras, conforme foi dado como provado nos presentes autos.
37. Além de que, carecia de água para regar as plantações que, entretanto, também fez.
38. Pelo que, o Autor apenas fez as obras que fez convicto que poderia utilizar o terreno, porquanto teria acesso a água, o que não acontecia anteriormente, pois que tinha de levar garrafões de água.
39. Refere ainda que, nunca viu o documento de cedência que foi junto aos autos, nunca o leu, nunca assinou um documento com esse conteúdo.
40. Apenas o Presidente da Junta de Freguesia solicitou a sua assinatura, num documento em branco, tendo o Autor assentido, porquanto confiava naquele.
41. Com tudo isto, e sentindo-se enganado, defraudado e ludibriado, o Autor sentiu-se desgostoso e humilhado, porquanto na sua sincera consciência apenas autorizou a construção do reservatório, não tendo cedido qualquer parcela de terreno, muito menos naquela dimensão de cerca de 800 m2.
42. Além disso, convém ainda atentar nas próprias declarações do Presidente da Junta de Freguesia, a saber EE, que afirma expressamente que a situação era urgente e, que a negociação com o Autor demorou três dias.
43. Convém ter em atenção ainda no documento n.º 12 junto com a Contestação onde a Proteção Civil faz referência à escolha do local para a construção do reservatório, sendo claro que a escolha partiu da própria Proteção Civil, como sendo o local mais apropriado para a construção em apreço.
44. Efetivamente é criada a ideia que o local foi estudado, foi analisado qual o melhor local para efetivar a construção e, posteriormente cabia o Presidente da Junta convencer o Autor a ceder o terreno em apreço.
45. O que o Presidente da Junta parece que fez foi efetivamente não contar a verdade dos factos ao Autor, fazendo-o acreditar que apenas estava a autorizar a construção do reservatório.
46. Desconhecendo o Autor qual o procedimento inerente, se podia haver qualquer construção se o terreno não fosse cedido e, imbuído de boa-fé acreditou que apenas estava a autorizar a construção, mantendo a titularidade do terreno.
47. A isto acresce que a testemunha EE, Presidente da Junta de Freguesia, refere a instância do Dr. FF, que nunca pagou IMI do terreno alegadamente cedido.
48. Nem tão pouco procedeu a qualquer registo, mantendo-se a titularidade e totalidade do bem na propriedade do Autor, conforme é possível de perceber pela análise da caderneta predial junta com a petição inicial.
49. E, portanto, não foi efetuado qualquer registo da propriedade a favor da Junta de Freguesia.
50. A isto acresce que, nas próprias palavras do Presidente da Junta de Freguesia o mesmo afirma que entregou o documento de cedência ao Autor, enquanto trabalhava, sem tão pouco efetuar qualquer formalidade, marcando um horário de atendimento, explicando o que alegadamente estava a acontecer.
51. O que, por si só, já denota que haveria qualquer intuito enganatório na conduta do Presidente da Junta de Freguesia.
52. Ora, o Autor, estava convicto que apenas autorizava a construção do reservatório e, afirma que apenas assinou um documento em branco.
53. Mas, mesmo que se considere provado que assinou o documento em questão, sempre se diga que as palavras ceder e autorizar, não se compadecem com o que realmente era a pretensão da Junta de Freguesia.
54. Além disso, Presidente da Junta de Freguesia admite que o terreno não pertencia à Junta de Freguesia, havendo uma clara confissão! 55. Por fim, o Presidente da Junta de Freguesia confrontado com a falta de um levantamento topográfico anexo ao documento de cedência, afirma que apenas existe a planta junta.
56. Planta que efetivamente não corresponde a qualquer levantamento topográfico, inexistindo qualquer documento que caraterize a parcela de terreno que alegadamente foi cedida à Ré.
57. Além disso, devemos ainda atentar nas declarações prestadas pela testemunha GG, a instâncias do Sr. Dr. FF que conhece a realidade em concreto, conhecendo o terreno propriedade do Autor.
58. Afirma que era normal e recorrente fazerem pequenas “tainadas” naquela propriedade e, inicialmente não tinham água e tinham de levar garrafões de água para conseguirem cozinhar e lavar a loiça.
59. Posteriormente confirma expressamente que o prédio passou a estar dotado de água, fornecido por um motor que vinha do reservatório, o que denota que efetivamente o prédio do Autor foi abastecido de água advinda do reservatório.
60. A referida testemunha afirma ainda que existe um tubo por onde era ligado o acesso à água do reservatório até à propriedade do Autor.
61. Afirmando que era condição da autorização de construção do muro, a utilização e acesso à água para rega e uso do Autor na parte urbana do prédio.
62. Afirma que o Autor, mesmo após a construção do reservatório, fez uma utilização de todo o prédio na sua extensão como se fosse seu, dizendo que o Autor sempre disse que o prédio era seu e, na verdade sempre se que deslocavam a esse local estacionavam livremente os veículos junto ao reservatório, sem que nunca fossem impedidos por quem quer que fosse.
63. Por sua vez, a testemunha HH é por demais isenta e clara no seu depoimento, narrando de forma simples o que sucedeu.
64. Refere que inicialmente o prédio não era dotado de água e, que após a construção do reservatório o Autor passou a regar o prédio com acesso a essa água, com claro conhecimento e consentimento do Presidente da Junta de Freguesia.
65. Refere ainda que após calcetarem o prédio foi colocado um tubo para o Autor conseguir regar sem ter que colocar nenhuma bomba a motor.
66. Afirma que o Autor nunca iria ceder nem vender o prédio, porquanto tinha muita estima no mesmo, por o ter adquirido por partilha por morte dos seus pais.
67. Pelo que, apenas autorizou a construção do reservatório e, em troca foi concedido acesso à água do mesmo para regar e utilizar a água no seu prédio.
68. Refere ainda que o Autor e o Presidente da Junta tinham este acordo, porque eram muito amigos, mas desentenderam-se devido a quezílias entre este e um irmão do Autor e, a partir daí o tubo foi cortado e o Autor deixou de ter acesso à água.
69. Por sua vez, a instâncias do Sr. Dr. II a testemunha refere que anteriormente não existia qualquer muro, sendo que foi construído para sustentar as terras advindas das escavações prévias à construção do reservatório.
70. Por sua vez, a Testemunha JJ afirma a instâncias do Sr. Dr. FF consegue identificar concretamente o terreno em causa dos presentes autos, afirmando expressamente que o Autor não doou qualquer parcela de terreno, mas apenas autorizou a construção do reservatório em contrapartida com a possibilidade de aceder à água do mesmo para rega do seu prédio.
71. Afirma que o prédio não tinha água e, posteriomente à construção do reservatório passou a ter, vindo a água desse local.
72. Refere que os próprios calceteiros afirmaram que foi a mando do Presidente da Junta de Freguesia que foi colocado um tubo para o Autor ter acesso à água, após a pavimentação.
73. Esta testemunha afirma que ouviu o Presidente da Junta de Freguesia a dizer que iria entregar o papel ao Autor e para este não se preocupar que ninguém o iria impedir de regar.
74. O que efetivamente vai de encontro ao alegado pelo Autor, porquanto este não teve acesso nem conhecimento de quaisquer documentos, apenas sabendo que assinou uma folha em branco e, sempre solicitou ao Presidente a entrega do documento, documento que pensava ser um documento que titulasse a possibilidade de aceder à água, conforme havia acordado.
75. Refere que toda a freguesia sabe que o Autor nunca iria doar, em consciência, um prédio que herdou dos pais.
76. Além disso, afirma que só depois de ter acesso à água e, com a real expectativa de continuar a aceder à mesma é que o Autor procedeu à plantação de árvores de fruto.
77. Por sua vez, a Testemunha KK, na qualidade de Tesoureiro da Junta de Freguesia afirma que não procedeu ao pagamento de qualquer imposto, resultante da aquisição da parcela de terreno.
78. Afirma que a planta não está assinada pelo Autor.
79. Além disso, verifica-se uma clara divergência entre o que aconteceu e o alegado documento assinado pelo Autor.
80. Porquanto se a propriedade foi transmitida para a Ré em 29 de junho, porque razão teria o Autor de autorizar a utilização da parcela de terreno logo que necessário, conforme resulta do documento de cedência, não apresentando esta testemunha qualquer justificação válida.
81. Relativamente à colocação do tubo em conluio entre o Sr. Jardim e o Autor, esta testemunha afirma que o Sr. Jardim é uma pessoa cumpridora que ainda continua a prestar serviços para a Junta de Freguesia.
Ora, se tivesse procedido à colocação de um tubo, em contrariamente ao pretendido pelo Presidente e aos próprios interesses da Junta de Freguesia, faria sentido continuar a prestar serviços para esta instituição?
82. Pelo exposto, é por demais evidente que a versão trazida aos autos pelo Autor é a realidade dos factos.
83. O Autor é claro a afirmar como tudo sucedeu, que sempre disse que nunca doaria qualquer parcela de terreno, porquanto correspondia a um terreno que foi herdado dos seus falecidos pais.
84. Demonstrou que todo o procedimento alegadamente inerente à cedência da parcela de terreno não foi de todo o que legalmente se encontra estabelecido.
85. Relata, tal como referido pelo próprio Presidente da Junta de Freguesia, que apôs a sua assinatura, a pedido deste, que o interrompeu no trabalho, numa visita rápida e, sem grandes explicações.
86. Referido, ainda o Presidente da Junta que se tratou de uma situação urgente, tendo sido tudo tratado de forma célere, uma questão de dias!
87. Mas, mesmo que não se aceite, sempre se dirá que o documento de cedência junto, apenas refere que o Autor concede autorização, não refere qualquer doação, nem cedência definitiva.
88. Questiona-se se efetivamente dada a relação de confiança entre as partes não poderia o Autor crer numa realidade que não era a real intenção da Ré?
89.Mas, mesmo que não se aceite, sempre se dirá que o documento de cedência junto, apenas refere que o Autor concede autorização, não refere qualquer doação, nem cedência definitiva.
90. Aliás, caso se considere válida a transferência de propriedade, sempre se dirá, que para o Autor, titular apenas da quarta classe, a palavra ceder não significa qualquer ato de transmissão definitiva de propriedade. Não significa doar, não significa vender...
91. Significa apenas ceder, autorizar a utilização, como um simples ato de colocar algo à disposição de outrem.
92. O Autor na sua boa-fé, pensando honestamente que estava a praticar um ato benéfico para a freguesia, em prol do interesse público, autorizou a utilização do seu terreno e, a construção do reservatório.
93. Aliás, decorre expressamente da Declaração de cedência ao domínio público, junta com a Contestação, que o Autor cede, apenas, está escrita a palavra cede, não diz, vende, não diz doa.
94. E para o Autor, ceder, não é doar!
95. Tendo havido claramente um aproveitamento da condição social do Autor e da sua capacidade de compreender o que realmente estava a acontecer!
96. Veja-se que o Autor apenas como condição da autorização para a construção do reservatório apenas exigiu a possibilidade de utilizar a água, por o seu prédio não ter acesso a água.
97. Sendo que, a construção do muro e pavimentação não surgiram de qualquer pedido ou exigência do Autor, como bem ficou explícito nas transcrições supra identificadas.
98. Além disso, sempre se dirá que o Presidente da Junta de Freguesia nas próprias declarações reconhece que o prédio não é da Junta de Freguesia, não paga qualquer imposto sobre ele, não efetuou qualquer registo, não houve qualquer deliberação de aquisição plasmada em ata da assembleia de freguesia.
99. Ou seja, não foi efetuado qualquer procedimento de aquisição de um bem por parte da Ré.
100. Na medida, em que inexiste qualquer convocação de assembleia de freguesia onde tivesse sido discutida e aprovada qualquer deliberação que autorizasse a aquisição do prédio em apreço.
101. Pelo que, tem de ser aprovado por deliberação da junta de freguesia a aquisição de bens imóveis, o que, no caso em concreto, não sucedeu, padecendo assim a alegada transmissão de propriedade de nulidade, o que se invoca para todos os devidos efeitos legais.
102. Apenas existe um documento que o Autor afirma que não reconhece o conteúdo, que refere expressamente que o Autor dá autorização, não fala em qualquer doação, nem cedência de qualquer parcela de terreno.
103. Mais, o documento em si, não refere qualquer prédio, não identifica matricialmente o prédio objeto da alegada cedência, a sua localização, as suas confrontações, bem como se encontra desacompanhado de um levantamento topográfico devidamente assinado por técnico para o efeito.
104. Além disso, o Autor é casado e a sua esposa não prestou qualquer consentimento para a alegada disposição do bem, o que releva para efeitos de nulidade ou anulabilidade da hipotética cedência, caso este tribunal considere essa hipótese.
105. Com interesse, o art. 1682-A/1, a), diz que carece do consentimento de ambos os cônjuges, salvo se entre eles vigorar o regime de separação de bens, a alienação, oneração, arrendamento ou constituição de outros direitos pessoais de gozo sobre imóveis próprios ou comuns.
106. Daqui resulta que, nos regimes de comunhão, legais ou convencionais, cada um dos cônjuges está impedido de dispor dos seus bens imóveis próprios e dos bens imóveis comuns sem o consentimento do outro.
107. A sanção é a anulabilidade do ato (art. 1687/1). Como é óbvio, também não pode dispor dos bens próprios do outro, sendo nula a disposição que faça de tais bens (arts. 892 e 1687/4).
108. De acordo com a doutrina, este regime – que não vale para os bens móveis (art. 1682/2) –, do qual resulta uma restrição à livre disponibilidade do cônjuge proprietário, “parecendo, assim, excessivo” (Cristina Araújo Dias, Do Regime da Responsabilidade cit., p. 450), evidencia como o Código Civil “continua a dar um relevo especial à chamada riqueza imobiliária ou fundiária; apesar de a evolução económica ter favorecido a valorização das ações, dos títulos em geral, o nosso legislador reconheceu que os imóveis continuam a ser os valores patrimoniais básicos das famílias portuguesas” (Francisco Pereira Coelho / Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família cit., p. 426).
109. Ora, do alegado documento de cedência não resulta qualquer consentimento prestado pela esposa do Autor, não podendo assim, considerar-se como válido e eficaz qualquer disposição ou negócio jurídico, mas antes considerar-se anulável o negócio jurídico em apreço, caso se considere válida o documento de cedência apresentado em juízo.
110. Ora pela prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, concretamente as declarações do Recorrente, pelas declarações das testemunhas arroladas supra transcritas e que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os devidos efeitos legais, ao que acresce a prova documental junta aos autos, que a ação deveria ter sido julgada como provada e, ser reconhecida a propriedade e a sua restituição ao Autor, no que respeita à parcela de terreno utilizada pela Ré.
96. Sendo certo que, tanto o Recorrente como as testemunhas por si arroladas, depuseram de forma calma, serena, isenta e lógica, pelo que os seus depoimentos merecem ser atendidos por este tribunal superior.
111. Pelo que, o tribunal recorrido deveria ter dado como não provados os factos constantes em atento ao facto de a prova produzida, concretamente a prova documental junta e a prova testemunhal, nomeadamente nas passagens de gravação de prova supra transcritas, que por uma questão de brevidade processual se dão aqui por integralmente reproduzidas para todos os devidos efeitos legais, impor uma decisão final totalmente diversa considerando como não provados os factos mencionados e, assim, a ação teria sido julgada procedente, por provada.
112. Pelo que, o tribunal recorrido deveria ter dado como provados os factos constantes atento ao facto de a prova produzida, concretamente a prova documental junta e a prova testemunhal, nomeadamente nas passagens de gravação de prova supra transcritas, que por uma questão de brevidade processual se dão aqui por integralmente reproduzidas para todos os devidos efeitos legais, impor uma decisão final totalmente diversa considerando como provados os factos mencionados e, assim, a ação teria sido julgada totalmente procedente, por provada.
113. Pelo exposto, o tribunal recorrido, ao ter dado como provados os factos por referência à Petição Inicial 1, na parte respeitante a “com área não concretamente apurada”, sendo que por referência à Contestação considera o Recorrente que foram incorretamente julgados os factos considerados como provados os seguintes factos: 11.º, 12.º, 13.º, 14.º na parte após tal cedência, 21.º, 23.º, 25.º, 27.º, 30.º, 34.º, 42.º, 46.º, 47.º, 48.º, 49.º, 50.º, 51.º, 52.º e 53.º, ao ter dado como não provados os factos por referência à petição inicial 1., 3. 4, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 22, 25, 28, 30, 38 e 39 com o devido respeito, incorreu num erro de julgamento sobre os aludidos concretos pontos de facto, os quais deverão ser alterados por este Tribunal Superior, (cf. artigo 640.º, n.º 1 als. a) e b) e 662, n.º 1 do C.P.Civil).
114. Como é sabido, mesmo que as partes não reclamem em sede de 1.ª Instância contra decisão proferida acerca da matéria de facto, não se sana o vício da decisão, pois a Relação, em recurso, pode oficiosamente ou a requerimento da parte recorrente reapreciar, anular e alterar a decisão proferida.
115. Pelo que, meramente à cautela e por mero dever de patrocínio, caso de considere manter a sentença, mesmo assim sempre se dirá que o Recorrente nunca agiu com dolo, pois que a sua versão dos factos corresponde à verdade e, não é o facto de não ter conseguido fazer prova, o que apenas se equaciona por mero dever de patrocínio, que leva a que preencha os requisitos da litigância de má-fé.
116. Por fim, resta-nos analisar a questão da matéria de direito, a subsunção dos factos ao direito, o seu enquadramento jurídico e a decisão final.
117. Ora, na sentença recorrida é referido que estamos perante uma cedência de uma parcela de terreno que se basta com um mero documento, referindo e exemplificando situações de cedências de terreno para alargamentos de caminhos.
118. No entanto, no caso em apreço, não estamos perante qualquer situação de uma alegada cedência de terreno para alargamento de caminhos, mas antes a considerar, por mero dever de patrocínio, a existência de uma cedência ou doação, para uma construção, para uma edificação.
119. Que não se pode bastar com uma mera declaração ou documento particular.
120. Ora, questiona-se como se encontra identificada a localização, o prédio, o artigo, a área de construção ou edificação do reservatório?
121. Tem de existir uma caderneta predial, um registo predial que identifique a construção, que não se pode bastar com uma mera declaração.
122. Pelo que, o caso em apreço, tem de ser analogicamente associado à criação de um loteamento, porquanto a existir a cedência de terreno, ocorreu um verdadeiro destaque de uma parcela de terreno, destinada à construção, à criação de um novo lote de terreno e à emissão de um alvará de loteamento e construção, que inexistem nos presentes autos.
123. Assim, desde logo o Tribunal recorrido decidiu sem ter nos autos acesso a toda a documentação necessária à boa decisão da causa.
124. A este respeito, note-se que o DL nº 400/84 de 31/12, bem como os dois diplomas legais que antecederam na regulação dos loteamentos urbanos são omissos em relação formalização da transferência de propriedade e ao estatuto jurídico das parcelas de terreno cedidas em operações de loteamento urbano e, daí ter-se concluído que era obrigatório a escritura pública para formalizar a transferência da respetiva propriedade (cf. Ac. STA de12.11.2009 acessível via www.dgsi.pt)
125. Significa, então, que a cedência dos terrenos através da escritura constituía um procedimento necessário para se operar a transferência de propriedade para Município.
126. Como se diz no Ac. deste Supremo de 17.01.2013, Relator: Cons. Bettencourt de Faria, acessível via www.dgsi.pt “Ao Supremo Tribunal de justiça cabe apenas exercer censura sobre o resultado interpretativo – sendo matéria de direito – quando haja que proceder à fixação do sentido juridicamente relevante da vontade negocial ou seja, a determinação do sentido a atribuir á declaração negocial em sede normativa, com recurso aos critérios fixados nos arts. 236 nº1 e 238 do CC: (i) tratando-se da situação prevista no art. 236 nº1 do CC, tal resultado não coincida com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, pudesse deduzir do comportamento do declarante, ou (ii) tratando-se de situações contempladas no art. 238 nº1, do citado CC, não tenha um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso”.
127. Entendeu-se na sentença recorrida, que a ação proposta é uma verdadeira e própria ação de reivindicação, tal como desenhada no artº 1311º, nº 2, do CC; uma ação, portanto, na qual compete ao autor provar que é dono da coisa reivindicada e que o réu não dispõe de título que legitime a sua posse e a recusa da restituição.
128. Pelo que, não tendo sido realizada a escritura pública de cedência, não se operou até à data qualquer transferência da propriedade para a Ré da parcela de terreno, pelo que com base nisto, e por não estar demonstrado nenhum dos títulos aquisitivos especificados no artº 1316º do CC, deveria ter-se decretado a procedência da causa.
129. Em primeiro lugar, e desde logo, não há notícia de qualquer discussão na doutrina ou de controvérsia jurisprudencial relevante, no domínio de vigência do DL 440/84, sobre a questão de saber se a transmissão para o domínio municipal de parcelas cedidas no âmbito de loteamentos aprovados opera automaticamente, por força do alvará emitido, ou depende de formalização subsequente através de escritura pública. Na busca efetuada não encontrámos uma única decisão dos tribunais, nem qualquer obra ou artigo doutrinal a sustentar, em face daquele diploma legal, a tese referida em primeiro lugar; e as obras consultadas a respeito do assunto dão implicitamente como assente o carácter inovador do artº 16º, nº 2, do DL 448/91.
130. Fernanda Paula Oliveira - Das Cedências e Compensações para o Domínio (Público) Municipal in Estudos de Direito do Ambiente e de Direito do Urbanismo (Intervenções no Curso de Pós-graduação de Especialização em Direito do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Urbanismo, Instituto de Ciências Jurídico-Políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Novembro de 2011 (www.icjp.pt), p. 265 e segs (no sentido de que, no regime pretérito, o alvará não tinha o efeito translativo da propriedade – cf. p. 276);
131. José Osvaldo Gomes - Manual dos Loteamentos Urbanos, 2ª edição revista, atualizada e ampliada, Coimbra, 1983, p. 448 a 451 (no âmbito da legislação anterior ao Decreto-Lei n.º 400/84, de 31 de dezembro e no sentido de que a cedência das áreas ao município ter de ser formalizada através de escritura pública, independentemente do fim a que se destinassem, nos termos do Código do Notariado);
132. Em segundo lugar, e como pode linearmente deduzir-se do exposto, é de igual forma patente que à face do DL 400/84 nunca seria viável, sem ostensiva violação das regras fundamentais que presidem à interpretação jurídica fixadas no artº 9º do CC, adotar a solução que veio a ser consagrada pelo DL 448/91.
133. Conclui-se, assim, na linha do já anteriormente decidido por este STJ – Ac. de 26/4/07 (Procº 1258/06) e de 20/3/14 (Procº 5528/05.TLRS.L1.S1, disponíveis em dgsi.stj.pt, o primeiro apenas o sumário e o segundo o texto completo - que sendo o DL nº 400/84 de 31/12, omisso quanto à formalização da transferência da propriedade e ao estatuto jurídico das parcelas de terreno cedidas em operações de loteamento urbano, a realização de escritura pública é indispensável para concretizar tal transmissão do domínio.
134. Veja-se ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Processo: 7815/05.1TBSTB.S1 Data do Acórdão: 01-12-2015: I – No domínio de aplicação do regime jurídico das operações de loteamento urbano consagrado no Dec.-Lei n.º 400/84, de 31 de Dezembro, a transferência para o domínio público (e também para o domínio privado) municipal, da propriedade das parcelas de cedência obrigatória, teria de ser feita por escritura pública, nos termos do então disposto na alínea a) do art.º 89.º do Código do Notariado. II – Tendo sido aprovado o loteamento e emitido o alvará de licenciamento respetivo, que foi publicitado e registado sem que tenha sido celebrada a escritura pública, as áreas de terreno aí indicadas como afetas ao uso direto e imediato do público não podem ter-se por excluídas do comércio jurídico, podendo ser objeto de direitos privados.
135. Por sua vez, o Ac. do S.T.A. de 29/10/2003, que, debruçando-se sobre uma situação de desafetação do domínio público municipal, afirma, porém, referindo posição concordante do Ministério Público, que “com a aprovação de um loteamento … foi integrada no domínio público municipal uma parcela de terreno”, defendendo o Apelante que o art.º 16.º do Dec.-Lei n.º 448/91 tem natureza interpretativa relativamente ao normativo que o precedeu – o art.º 42.º do Dec.-Lei n.º 400/84 -, integrando-o, ou, pelo menos, veio integrar uma lacuna que se verificava no anterior regime, que nada dispunha sobre esta matéria, tendo, por isso, aplicação aos loteamentos constituídos ao abrigo deste último Diploma Legal. 136. O Ac. do S.T.J. de 20/03/2014, dá conta que “o DL nº 400/84 de 31/12, bem como os dois diplomas legais que antecederam na regulação dos loteamentos urbanos são omissos em relação à formalização da transferência de propriedade e ao estatuto jurídico das parcelas de terreno cedidas em operações de loteamento urbano e, daí ter-se concluído que era obrigatório a escritura pública para formalizar a transferência da respetiva propriedade (cf. Ac. STA de 12.11.2009 acessível via www.dgsi.pt)”, concluindo “Significa, então, que a cedência dos terrenos através da escritura constituía um procedimento necessário para se operar a transferência de propriedade para o Município.
137. A escritura integra-se, assim, precisamente na operação de loteamento e no quadro do contrato de urbanização e visava sobretudo no âmbito do DL 289/73 de 6 de junho em vigor à data, operar a transferência do direito de propriedade do loteador para o domínio público municipal dos lotes destinados a equipamentos gerais” (ut Proc.º 5528/05.3TCLRS.L1.S1, Cons.º Tavares de Paiva, in www.dgsi.pt). Desta breve resenha jurisprudencial conclui-se que houve, de facto, decisões em sentido contrário, que se fundaram em entendimentos doutrinários também eles de sentido oposto.
138. No entanto, cumpre registar que, mesmo em face do Dec.-Lei n.º 448/91, e do catual 555/99, de 16 de dezembro (art.º 44.º) há Autores que defendem a necessidade de celebração da escritura pública quando esteja em causa a cedência de terrenos ao domínio privado do município – cf., v.g. Fernanda Paula Oliveira, (in “Direito do Urbanismo _ Perguntas de Bolso. Respostas de Algibeira”, Almedina 2013, pág. 26), e Maria José Castanheira Neves, et Al., (in “Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, Comentado”, Almedina, pág. 272/273).
139. Com efeito, porque não foi celebrada a escritura pública, não pode ter-se por validamente transferida a propriedade para o domínio público da parcela de terreno.
140. Assim, o Tribunal ao ter decidido como decidiu violou o disposto nos artigos 1311.º do Código Civil e o Dec.-Lei n.º 448/91, de 29 de novembro.
141. Por tudo acima exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente e ser a sentença recorrida revogada e substituída por outra que julgue a ação totalmente procedente, bem como julgue totalmente improcedente o pedido de litigância de má-fé, com as legais consequências daí advenientes.”
Pediu que, na procedência, este Tribunal da Relação revogue a sentença e julgue, a um tempo, a ação totalmente procedente e, a outro, o pedido de condenação do Recorrente como litigante de má-fé totalmente improcedente.
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3). A Ré apresentou resposta, na qual pugnou pela improcedência do recurso.
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4). O recurso foi admitido como apelação, com subida nos autos e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
No despacho de admissão, o Tribunal a quo pronunciou-se, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 617/1 do CPC, nos seguintes termos: “Por manifestamente improcedentes e dando-se aqui, por economia processual, por inteiramente reproduzidos os fundamentos de facto e de direito expendidos na Sentença (…), através dos quais este Tribunal justificou a decisão proferida, indefere-se as nulidades invocadas nas alegações de recurso do Autor (…), apresentadas sob a ora cit. Refª ...17 (artigos 615º, a contrario sensu, e 617º/1e 2, ambos do Código de Processo Civil com as legais consequências daí advenientes.” (sic)
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5). Realizou-se a conferência, previamente à qual foram colhidos os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
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II.
1). As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas (art. 608/2, parte final,ex vi do art. 663/2, parte final, do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Ressalvam-se, em qualquer caso, as questões do conhecimento oficioso, que devem ser apreciadas, ainda que sobre as mesmas não tenha recaído anterior pronúncia ou não tenham sido suscitadas pelo recorrente ou pelo recorrido, quando o processo contenha os elementos necessários para esse efeito e desde que tenha sido previamente observado o contraditório, para que sejam evitadas decisões-surpresa (art. 3.º/3 do CPC).
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2). Importa considerar, à luz das considerações precedentes, que o Recorrente sustenta, nas conclusões 104 a 109 – com apoio numa transcrição integral e sem menção de origem, de segmentos da fundamentação de RG 11.07.2024 (2152/23.2T8GMR.G1[2]), do presente Relator, inclusive no que respeita às referências doutrinais –, que, sendo casado segundo o regime de comunhão de adquiridos, o ato de cedência da parcela de terreno em que a Ré construiu o depósito de água carecia do consentimento do respetivo cônjuge, por força do disposto no art. 1682-A/1, a), do Código Civil. Não tendo esse consentimento sido prestado, tal ato é anulável (art. 1687/1 do Código Civil).
Esta é, como claramente se percebe, uma questão nova, não colocada à consideração do Tribunal a quo. Não é, por outro lado, uma questão do conhecimento oficioso, atenta a natureza (anulabilidade) do vício em questão (cf. art. 287/1 do Código Civil).
Deste modo, temos de concluir que estamos perante uma questão que deve ter-se como excluída do objeto do recurso, não havendo, portanto, que conhecer dela, com o que fica prejudicado saber se o Recorrente – que supostamente praticou o ato de disposição sem o consentimento do respetivo cônjuge – tem legitimidade para arguir a anulabilidade (cf. arts. 287/1 e 1687/1).
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3). Partindo do que antecede, podemos enunciar as questões que constituem objeto do recurso do seguinte modo:
1.ª: Nulidade da sentença recorrida por falta de fundamentação (art. 615/1, b), do CPC);
2.ª: Nulidade da sentença recorrida por contradição entre os respetivos fundamentos e a decisão (art. 615/1, c), 1.ª parte, do CPC);
3.ª Impugnação da decisão da matéria de facto: (1.) observância dos ónus que recaem sobre o impugnante; (2.) utilidade da impugnação para a decisão do recurso; e (3.) erro sobre a matéria de facto, no que tange à apreciação das provas (cf. art. 662/1 do CPC);
4.ª Repercussões das modificações introduzidas na decisão da matéria de facto no aspeto jurídico da causa no que tange à improcedência da ação e à condenação do Recorrente como litigante de má fé;
5.ª Erro sobre a matéria de direito, mais concretamente por a sentença recorrida, ao julgar a ação improcedente, ter violado “o disposto no art. 1311 do Código Civil e no DL n.º 448/91, de 29.11” (sic)
Daqui decorre que, na lógica do Recorrente, a apreciação do segmento da sentença recorrida que julgou procedente o pedido da respetiva condenação como litigante de má-fé pressupõe a prévia modificação da decisão da matéria de facto em que se fundamenta – tanto mais que não foi discriminada uma violação autónoma das normas jurídicas convocadas a esse propósito na sentença recorrida. Se a decisão da matéria de facto se mantiver, ficará prejudicada a análise do seu enquadramento jurídico.
Já a apreciação do segmento da sentença recorrida que julgou a ação improcedente deve ocorrer, tanto no que tange à decisão da matéria de facto, como ao seu enquadramento jurídico. Significa isto que, mesmo que a decisão da matéria de facto não sofra alteração, sempre teremos de analisar se a sentença recorrida enferma do error iuris que lhe aponta o Recorrente de forma autónoma.
***
III.
1). Antes de avançarmos com a resposta às questões enunciadas, respigamos a fundamentação de facto da sentença recorrida.
Assim, foram considerados como factos provados os seguintes enunciados (transcrição):
“A) Da PETIÇÃO INICIAL sob a Refª ...34
1. O Autor é dono e legítimo proprietário e possuidor de um prédio rústico, constituído por pinhal, com área concretamente não apurada, sito no Lugar ..., da extinta freguesia ..., atual União de Freguesias ... e ..., concelho ..., a confrontar de Norte com Limite da Freguesia, de Sul e de Poente com CC e de Nascente com DD, omisso na Conservatória do Registo Predial e inscrito na matriz predial respetiva sob o atual artigo ...92, o qual teve origem no artigo ...06/....
2. O mencionado prédio adveio para a propriedade do Autor mediante escritura pública de Habilitação e Partilha celebrada a 04 de janeiro de 2010, do extinto Cartório Notarial ..., do Notário LL, lavrada de folhas ... a folhas ... verso, do livro de notas para escrituras diversas número ...89-A.
7. Em meados do ano de 2017, o Autor foi contactado pela Ré, na pessoa do Presidente da Junta de Freguesia, o Sr. EE, o qual expôs que seria instalado na freguesia, atenta a localização da mesma, um Ponto de Água.
8. Esse Ponto de Água deveria ser localizado numa zona alta e de fácil acesso aos helicópteros, uma vez que se trata de um depósito para abastecimento de água para combate a incêndios florestais.
9. Atendendo à localização do prédio do Autor, o identificado Presidente da Junta de Freguesia questionou o Autor no sentido de este autorizar a construção do referido depósito no prédio rústico supra identificado.
10. Por força dos motivos invocados, o Autor autorizou a construção do depósito em causa, o qual veio a ser inaugurado a 27 de setembro de 2018 e denominado “Ponto de Água – ... / Quinta ...”.
11. O Autor autorizou a construção do referido depósito, o qual ocupa área de 870 m2, da propriedade do Autor, tendo sido arruada parte da propriedade como forma de acesso terrestre ao referido depósito.
12. O referido Ponto de Água é utilizado por helicópteros em auxílio ao combate de incêndios, tendo igualmente uma boca de incêndio.
13. Os excedentes são encaminhados para o cemitério.
18. Após a construção do depósito, o caminho de acesso à propriedade do Autor foi calcetado.
20. O Autor, atentas as condições de acesso ao prédio, procedeu na área remanescente a obras de melhoramento.
21. O Autor instalou na área remanescente uma mesa, uma churrasqueira, edificou uns anexos e plantou várias árvores, tendo assim um espaço para passar os tempos livres no verão.
27. De modo a permitir a construção do depósito, o Autor teve se proceder ao corte, pelo menos, de um eucalipto que existia no local, de madeira grossa e com várias toneladas de peso.
31. Apesar das sucessivas interpelações do Autor, a Ré não permitiu ao Autor o acesso à água do depósito.
33. A Ré ocupa a parcela de terreno onde está implantado o depósito, com área de 870 m2.
*
B) Da CONTESTAÇÃO sob a Refª ...07
7º A Ré é dona de um terreno florestal, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ....
8º A Ré procedeu à limpeza de tal terreno no segundo semestre de 2017, tendo desobstruído três nascentes aí existentes, com o objetivo inicial de encaminhar a respetiva água para o parque público e o cemitério de ....
9º No início de 2018, a Ré decidiu pedir um parecer ao Município ... e à Proteção Civil acerca da possibilidade de construção de um ponto de água naquela zona, uma vez que a área florestal no local é de grande dimensão e só existia um ponto de água ativo.
10º A Ré obteve parecer favorável e diligenciou no sentido de encontrar um local para a colocação do referido ponto de água.
11º A Ré entrou então em contacto com o Autor, sendo que este disponibilizou-se a ceder, a título gratuito, uma parcela de terreno do seu prédio adequada à pretensão da Ré.
12º Autor e Ré procederam então à definição da parcela onde seria colocado o ponto de água, com área de 870 m2, sendo que para o efeito foi realizado um levantamento topográfico.
13º Definida a parcela, o Autor declarou ceder a mesma ao domínio público, a título gratuito, e formalizou essa vontade através de documento escrito assinado em 29/06/2018.
14º Após tal cedência, a Ré providenciou pelo abate de, pelo menos, um eucalipto de madeira grossa e com várias toneladas de peso, existente na mencionada parcela.
15º A Ré, com o auxílio de várias pessoas, procedeu, pelo menos, ao corte do eucalipto em toros e rachou-os para lenha.
16º Essa madeira foi transportada, a pedido do Autor, para uma indústria de transformação de madeiras de que o mesmo Autor era dono e sita na Rua ..., na freguesia ..., do concelho ....
17º Após solicitar subsídio à Câmara Municipal ..., em julho de 2018, a Ré deu início aos trabalhos de construção do tanque/ponto de água na parcela cedida pelo Autor.
18º Em setembro de 2018, foi ainda efetuada a ligação de água entre as nascentes referidas em 8º e o ponto de água, sendo que despendeu no total a quantia de 61.289,31 Euros.
19º e 20º Em outubro de 2018, foi realizada a ligação de água entre o ponta de água e o parque público e o cemitério de ..., e foi ainda sido colocada uma boca de incêndio a cerca de 100 metros do ponto de água.
21º Como forma de agradecimento pela cedência gratuita da parcela, a Ré, apesar de a isso não estar vinculada, pagou na íntegra a construção de um muro em pedra no prédio do Autor e despendeu para o efeito a quantia de 2.120,00 Euros.
22º Em fevereiro de 2021, a Ré procedeu à pavimentação da Rua ... até à entrada do prédio do Autor, de modo a melhorar o respetivo acesso, e despendeu para o efeito 20.895,25 Euros.
23º Desde a cedência da parcela, para depósito de água, por parte do Autor, a Ré, de forma exclusiva, tem procedido à manutenção e à limpeza da mesma parcela, cortando a erva, limpando as saídas de água, etc.
25º O Autor cedeu ume parcela do seu prédio ao domínio público para a colocação de um ponto de água.
27º
A cedência da parcela, por parte do Autor, foi gratuita.
28º A água depositada no referido ponto pertence única e exclusivamente à Ré, dado que provém de nascentes situadas num prédio de que é dona.
29º A construção do ponto de água por parte da Ré teve como único objetivo prosseguir finalidades públicas, como o apoio ao combate a incêndios e o abastecimento de equipamentos da freguesia.
30º A Ré nunca teve qualquer intenção de destinar parte de tal água à rega de terrenos particulares.
34º Após a construção do depósito de água, o Autor nunca teve acesso à água contida no mesmo e pertença da Ré.
41º O Autor tem a perfeita noção do investimento realizado pela Ré na construção do ponto de água e na realização das respetivas ligações, bem como na construção do muro em pedra no próprio prédio do Autor.
42º Esses trabalhos apenas foram realizados pela Ré, porque o Autor cedeu àquela, para tal efeito, uma parcela do seu prédio rústico ou terreno.
46º O Autor, no decurso da sua petição inicial e das suas(seu) declarações/depoimento de parte prestadas(o) em audiência final, altera conscientemente a verdade dos factos e faz um uso reprovável do presente processo.
47º O Autor sabe perfeitamente que nunca foi acordado, entre Autor e Ré, o estabelecimento duma ligação de água do depósito ou ponto de água em causa à área remanescente do prédio do Autor.
48º O Autor sabe perfeitamente que não suportou qualquer custo com o corte de, pelo menos, um eucalipto existente na parcela cedida à Ré.
49º A conduta processual do Autor obrigou a Ré a um esforço adicional para acautelar os seus direitos.
50º a 53º A conduta processual do Autor obrigou a Ré a realizar despesas que de outro modo não existiriam, quer quanto ao trabalho desenvolvido pelo I. Mandatário da Ré (o qual foi obrigado a intervir nos presentes autos com as respetivas peças processuais e com a sua participação em audiência final de discussão e julgamento, bem como se viu, consequentemente, obrigado a acautelar de modo redobrado, ao longo de todo o processo, a posição da sua constituinte e ora Ré), quer quanto à necessidade de reunir elementos de prova, designadamente quanto ao contacto com testemunhas e à localização de documentos.
*
D) Do Requerimento da Ré sob a Refª ...07
2- A Declaração junta com a Contestação como Doc. 1 foi livremente assinada pelo Autor, o qual estava perfeitamente ciente do seu teor e do seu alcance, sendo que a mesma correspondia à vontade por si manifestada.”
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2). Foram considerados como factos não provados os seguintes enunciados (transcrição):
“C) Da PETIÇÃO INICIAL sob a Refª ...34
1. O Autor é dono e legítimo proprietário e possuidor de um prédio rústico, constituído por pinhal, com área de 3800 m2.
3. O Autor, por si e seus antepossuidores que representa, vem, há mais de 20, 30, 40 e 50 anos, possuindo, detendo, fruindo, tudo extraindo e fazendo seus, com exclusão de outrem, todos os seus rendimentos, proveitos, utilidades e interesses, procedendo à sua respetiva limpeza, mantendo-o demarcado, e cuidado e, ainda, pagando os respetivos impostos pelo mesmo devido.
4. O Autor sempre o fez à vista e conhecimento de toda a gente e sem oposição de quem quer que seja.
13. Os excedentes são encaminhados para a rega de um prédio rústico.
14.O Ponto de Água, desde a sua inauguração, apenas foi utilizado uma única vez.
15. e 16. O Autor autorizou a referida construção com a condição de a Ré, mediante a construção erigida, assegurar a existência de uma ligação entre o depósito e a restante propriedade do Autor, como forma de compensação, de modo a que a área remanescente, não ocupada pelo depósito, fosse regada pela água existente naquele depósito.
17. Tal veio a suceder.
18. A referida ligação foi feita subterraneamente.
19. O acordo prévio que o Autor fez com a Ré, na pessoa do Presidente da União de Freguesias ... e ..., foi no sentido de o Autor autorizar a construção do depósito na sua propriedade mediante a condição de poder usufruir da água existente no mesmo para a rega do seu terreno.
22. Em abril de 2021, o prédio do Autor, na parte desocupada pelo depósito, deixou de ser irrigado pelas águas provenientes do mesmo.
25. O Autor apenas autorizou a construção do depósito no seu prédio nas referidas condições, ou seja, na condição de que a restante área fosse irrigada, sem qualquer imposição temporal, pela água proveniente do depósito.
28. O Autor não foi compensado pelo corte das árvores, tendo atuado de tal forma pensando na utilidade pública da construção que era almejada pela Ré.
30. Sem que nada o fizesse prever, o Autor viu-se privado do acesso à água do depósito, o que era condição sine qua non para a edificação do Ponto de Água na sua propriedade.
38. O comportamento da Ré causa no Autor um grande desgosto, revolta, transtorno e grave depressão, o que com o decorrer do tempo se agrava e aprofunda e só cessará com a entrega da parcela de terreno, livre e desimpedida.
39. O recurso do Autor a Tribunal prolonga os seus desgosto, nervosismo, ansiedade, transtorno e arrelias.
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C) Do Requerimento do Autor sob a Refª ...30
- O acordo entre o Autor e a Ré envolvia a possibilidade de aquele usufruir do acesso à água do depósito.
- O Presidente da Ré, atenta a relação de confiança que mantinha com o Autor, referindo-lhe que necessitava urgentemente da assinatura deste em virtude de se encontrar na Câmara Municipal ... o Chefe da Proteção Civil que iria aprovar a construção do ponto de água, entregou ao Autor um documento em branco no qual o mesmo Autor apôs a sua assinatura.”
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3). Depois de ter consignado que “[c]om interesse para a decisão da causa, não foram dados como provados quaisquer outros factos que estejam em oposição com os supra dados como provados, nem quaisquer outros factos que não tenham ficado desde logo prejudicados pelos que acima foram dados como provados”, o Tribunal a quo motivou a sua decisão do seguinte modo (transcrição):
“1) No que concerne às declarações de parte e ao depoimento de parte do Autor, AA, o mesmo negou o teor do Documento nº 1 junto com a Contestação da Ré, com o título “Declaração de Cedência ao Domínio Público”, i.e., declarou que assinou um “documento em branco” e negou que tenha cedido à Ré (transferido a propriedade) a parcela de terreno em causa a título gratuito, invocando um prévio acordo de contrapartida ao Autor do uso da água do depósito implantado nessa parcela, em benefício da área remanescente do prédio pertença do Autor.
Porém, não existem quaisquer indícios, documentais, testemunhais ou outros nos autos, da ausência de genuinidade/autenticidade do Documento em apreço. Trata-se de “documento tipo” ou “documento modelo” de “cedências de terrenos ao domínio público”, maioritariamente (o que não é o caso destes autos) para alargamento de caminhos ou estradas, evitando-se (nesses casos e já agora no caso dos presentes autos) morosos processos de expropriação por utilidade pública.
Por outro lado, do teor do Documento não constam quaisquer contrapartidas pela transferência de propriedade da parcela de terreno a favor da Ré. Houve na prática contrapartidas estabelecidas verbalmente, numa espécie de “acordo de cavalheiros” (corte e transporte, sem custos para o Autor, de madeira de eucalipto, construção de muro de pedra em redor do prédio do Autor, pavimentação do caminho público que conduz ao prédio do Autor); porém, frise-se, do teor do Documento, de outros documentos e dos meios de prova testemunhais não resulta minimamente qualquer vinculação da Ré à prestação de tais contrapartidas. Acontece que o ora Autor continuou a exigir contrapartidas, nomeadamente a instalação de energia elétrica no caminho público e a utilização da água do depósito em benefício da área remanescente do prédio pertença do Autor, mas a Ré já não acedeu às mesmas, nem tinha, repete-se, de aceder, porque a tais contrapartidas (bem como àquelas que satisfez!) não estava minimamente vinculada!!!
2) Por sua vez, no que respeita às declarações de parte e ao depoimento de parte do Legal Representante da Ré, EE, Presidente da União de Freguesias ... e ... desde o ano de 2013 até à presente data, o mesmo, de modo credível, coerente, seguro, espontâneo e verosímil, confirmou integralmente a versão da Ré delineada nos seus articulados, nomeadamente na contestação, a qual mereceu inteira credibilidade por parte deste Tribunal, por estar alicerçada nas regras da experiência, da lógica e do normal acontecer, devidamente conjugadas com o teor dos meios de prova documentais juntos aos autos e o teor dos meios de prova testemunhais, nomeadamente os indicados pela Ré. O Legal Representante da Ré confirmou o teor do Documento nº 1 junto com a Contestação da Ré, com o título “Declaração de Cedência ao Domínio Público”, i.e., declarou que o Autor assinou o mesmo com perfeito conhecimento do seu teor e do seu alcance, e confirmou que foi cedida à Ré (transferida a propriedade) a parcela de terreno em causa a título gratuito, afirmando inexistir um prévio acordo de contrapartida ao Autor do uso da água do depósito implantado nessa parcela, em benefício da área remanescente do prédio pertença do Autor. Confirmou também que o Documento em apreço constitui um “documento tipo” ou “documento modelo” de “cedências de terrenos ao domínio público”, maioritariamente (o que não é o caso destes autos) para alargamento de caminhos ou estradas, evitando-se (nesses casos e já agora no caso dos presentes autos) morosos processos de expropriação por utilidade pública. Afirmou, categórica e perentoriamente, que não foram acordadas, entre Autor e Ré, quaisquer contrapartidas pela transferência de propriedade da parcela de terreno a favor da Ré. Admitiu, sim, que houve na prática contrapartidas estabelecidas verbalmente, numa espécie de “acordo de cavalheiros” (corte e transporte, sem custos para o Autor, de madeira de eucalipto, construção de muro de pedra em redor do prédio do Autor, pavimentação do caminho público que conduz ao prédio do Autor). Por último, confirmou que quando o ora Autor começou a exigir outras contrapartidas, nomeadamente a instalação de energia elétrica no caminho público e a utilização da água do depósito em benefício da área remanescente do prédio pertença do Autor, a Ré já não acedeu às mesmas, nem tinha de aceder, porque a tais contrapartidas (bem como àquelas que satisfez!) não estava minimamente vinculada!!!
3) As testemunhas (arroladas pelo Autor), MM, amigo do Autor há muitos anos (cerca de 20 anos) e conhecedor do Legal Representante da Ré apenas por ser o Presidente da Junta de Freguesia, GG, amigo do Autor há mais de 5 anos e não conhecedor do Legal Representante da Ré, HH, amigo do Autor desde a infância e conhecedor do Presidente da União de Freguesias ... e ..., e JJ, amigo do Autor desde a infância e conhecedor do Presidente da União de Freguesias ... e ..., prestaram declarações que corroboraram genericamente as declarações do Autor, mas às mesmas não foi conferida qualquer credibilidade e/ou verosimilhança, face às razões já supre expendidas quanto às declarações e ao depoimento de parte do Autor, e face à muito próxima relação de amizade entre estas testemunhas e o mesmo Autor!
4) As testemunhas (arroladas pela Ré), KK, ex-Presidente da Junta da Freguesia de ... desde 2001 até 2013 e atual Tesoureiro da União de Freguesias ... e ... desde 2013 até ao presente, NN, amigo de infância do Autor e ex-Secretário da União de Freguesias ... e ... entre 2013-2017 e entre 2017 e 2021, atual Presidente da Assembleia dessa União de Freguesias, OO, calceteiro por conta própria e prestador de serviços à Ré, PP, residente em ... desde que nasceu há 39 anos, e conhecedor do Autor há vários anos, QQ, motosserrista por conta doutrem, conhecedor e com bom relacionamento com o Autor e prestador de serviços à Ré, prestaram declarações que corroboraram genericamente as declarações do Legal Representante da Ré. Às declarações de tais testemunhas foi conferida credibilidade e verosimilhança, desde logo porque a versão da Ré, pelas razões supre expendidas, foi integralmente sufragada por este Tribunal, e também porque as mesmas prestaram declarações de modo credível, coerente, seguro, espontâneo e verosímil, e o seu teor esteve alicerçado nas regras da experiência, da lógica e do normal acontecer, devidamente conjugadas com o teor dos meios de prova documentais juntos aos autos.
Resumindo e concluindo, as declarações de parte do Legal Representante da Ré (conjugadas com as declarações e o depoimento de parte do Autor) e as declarações das testemunhas arroladas pela Ré, permitiram a este Tribunal, tomando em consideração a credibilidade, a verosimilhança, a espontaneidade, a segurança, a isenção, o rigor e a adequação à realidade material e factual, e as regras da experiência, da lógica e do normal acontecer que caracterizaram as declarações de parte do Legal Representante da Ré e as declarações das testemunhas arroladas pela Ré, devidamente conjugadas com o teor dos meios de prova documentais juntos por ambas as partes nos respetivos articulados, concluir pela veracidade, fora de quaisquer dúvidas razoáveis, da versão da Ré e considerar provados os respetivos factos relevantes para a decisão da causa e acima elencados, e considerar não provados os que sustentavam a versão e os pedidos do Autor.
5) Mais se apoiou este Tribunal, para dar como provados, e não provados, os factos acima vertidos, no teor dos meios de prova documentais juntos aos autos, nos termos já supre expendidos e cujo teor aqui se dá por reproduzido.
Tais documentos foram sujeitos à estrita observância do princípio do contraditório (artigo 3º/3 do Código de Processo Civil) e, consequentemente, a diferentes interpretações no que concerne aos respetivos conteúdos e às consequências jurídicas que dos mesmos podem ser retiradas e que este Tribunal terá de apreciar em sede de decisão e que desde já apreciou para elencar a matéria de facto supra dada como provada e não provada.
6) Quanto aos factos também suprarreferidos e considerados como não provados, tal asserção resultou de todos os argumentos/fundamentos acima expendidos e cujo teor aqui se dá por reproduzido, bem como da ausência e/ou da insuficiência de mobilização probatória, não tendo esta sido suscetível de convencer este Tribunal da sua efetiva verificação e/ou veracidade fora de qualquer dúvida razoável.
7) Por último, há que trazer à colação as regras do ónus da prova descritas no artigo 342º do Código Civil: - no que concerne ao nº 1 da ora citada norma legal, cabe salientar que o Autor NÃO fez prova dos factos constitutivos do direito a que se arroga; - no que respeita ao nº 2 da ora citada norma legal, cabe salientar que a Ré fez PROVA de factos impeditivos, modificativos e/ou extintivos do direito a que o Autor se arroga.”
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IV.
1).1. Vejamos agora a resposta a dar às questões enunciadas, na primeira das quais está em causa a nulidade da decisão recorrida, por não especificar os respetivos fundamentos de facto e de direito.
A sentença – e, por extensão legal, os despachos judiciais (art. 613/3 do CPC) – pode estar viciada por duas causas distintas: por padecer de um erro no julgamento dos factos e do direito – o denominado error in judicando –, sendo a consequência a sua revogação pelo tribunal superior; por padecer de um erro na sua elaboração e estruturação ou por o julgador ter ficado aquém ou ter ido além daquilo que constituía o thema decidendum, sendo a consequência a nulidade, conforme previsto no art. 615 do CPC. Nas situações do primeiro tipo, estão em causa vícios intrínsecos do ato de julgamento; nas do segundo, vícios formais, extrínsecos ao ato de julgamento propriamente dito, antes relacionados com a sua exteriorização ou com os seus limites. Neste sentido, inter alia, RG 4.10.2018 (1716/17.8T8VNF.G1), Eugénia Cunha, RG 30.11.2022 (1360/22.8T8VCT.G1), Maria João Pinto de Matos, e RG 15.06.2022 (111742/20.8YIPRT.G1), Rosália Cunha.
Diz o n.º 1 do art. 615 do CPC, na parte que releva, que “[é] nula a sentença quando: (…) b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.
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1).2. Sobre esta causa de nulidade da sentença – a falta de fundamentação –, importa dizer que as regras a observar pelo juiz na elaboração da sentença estão enunciadas nos números 2 e 3 do art. 607 do CPC, nos termos dos quais a “sentença começa por identificar as partes e o objeto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre conhecer”, seguindo-se “os fundamentos”, onde o juiz deve “discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as regras jurídicas, concluindo pela decisão final”.
O n.º 4 do mesmo preceito acrescenta que, na “fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção”; e “tomando ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras da experiência”.
Finalmente, o n.º 5 diz que o “juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, não abrangendo, porém, aquela livre apreciação “os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes”.
Reafirma-se, assim, em sede de sentença cível, a obrigação imposta pelo art. 154 do CPC, que é concretização do mandamento consagrado no art. 205/1 da Constituição da República, do juiz fundamentar as suas decisões, apenas o podendo fazer por simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.
Conforme se pondera em RG 30.11.2022 (1360/22.8T8VCT.G1), já citado, “visando-se com a decisão judicial resolver um conflito de interesses (art. 3.º, n.º 1, do CPC), a paz social só será efetivamente alcançada se o juiz passar de convencido a convincente, o que apenas se consegue através da fundamentação.”
No mesmo aresto escreve-se que, “[e]m termos de matéria de facto, impõe-se ao juiz que, na sentença, em parte própria, discrimine os factos tidos por si como provados e como não provados (por reporte aos factos oportunamente alegados pelas partes, ou por reporte a factos instrumentais, ou concretizadores ou complementares de outros essenciais oportunamente alegados, que hajam resultado da instrução da causa, justificando-se nestas três últimas hipóteses a respetiva natureza).
Impõe-se-lhe ainda que deixe bem claras, quer a indicação do elenco dos meios de prova que utilizou para formar a sua convicção (sobre a prova, ou não prova, dos factos objeto do processo), quer a relevância atribuída a cada um desses meios de prova (para o mesmo efeito), desse modo explicitando não só a respetiva decisão (“o que” decidiu), mas também quais os motivos que a determinaram (“o porquê” de ter decidido assim).”
Esta parte final enfatiza bem a relevância da imposição de uma análise crítica das provas que é consequência de uma das traves-mestras do nosso processo civil: o processo deve ser orientado para a busca e averiguação da verdade dos factos. Esta não pode ser o resultado de uma atividade imperscrutável que ocorre no íntimo do juiz, mas o resultado de uma atividade cognoscitiva que se articula em passos controláveis como sejam a recolha da informação, a verificação da sua fidedignidade, a análise da sua relevância e a formulação de inferências logicamente válidas que conduzam a conclusões racionalmente justificadas. Nas palavras de Michele Taruffo, “Verdad, prueba e motivación en la decisión sobre los hechos”, Cuadernos de Divulgación de la Justicia Electoral, n.º 20, México: Tribunal Electoral del Poder Judicial de la Federación, 2013, p. 101[3], “a verdade não emana de uma misteriosa intuição individual, mas de um procedimento cognoscitivo articulado e verificável de maneira intersubjetiva.” Por isso, o juiz tem o dever de racionalizar os fundamentos da decisão e articular os argumentos – rectius, as razões –, que a justificam à luz da prova produzida. A motivação consiste, assim, num “discurso justificativo constituído por argumentos racionais” (Michele Taruffo, ob. cit., p. 103). Tem, desde logo, uma função endoprocessual que consiste em facilitar a impugnação, que é condição de um processo participado, a que acresce uma função extraprocessual: no dizer de Michele Taruffo (ob. cit., p. 104), “a motivação representa (…) a garantia do controlo do exercício do poder judicial fora do contexto processual por quivis de populo e pela opinião pública em geral”, o que, como o autor nota, “deriva de uma conceção democrática do poder, segundo a qual o exercício deste tem de ser controlado sempre de fora.”
Daqui decorre que da motivação têm de transparecer todas as opções que o juiz fez para chegar à decisão final. Se assim não suceder, é impossível o controlo sobre a sua racionalidade.
Isto leva a falar-se num princípio de completude da motivação, o qual tem, também segundo a lição de Michele Taruffo (idem), a seguinte implicação: a motivação completa deve incluir tanto uma justificação interna, relacionada com a conexão entre a premissa de direito e a premissa de facto (a subsunção do facto à norma), como uma justificação externa, relacionada com as razões pelas quais o juiz reconstruiu e averiguou daquela concreta forma os factos da causa. Esta última vertente implica que o juiz exponha os argumentos racionais relativos à avaliação que fez das provas e às inferências lógicas por meio das quais chegou a determinadas conclusões sobre os factos. No fundo, é o que António Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, pp. 359-360), sintetiza quando escreve que “[a] exigência legal impõe que se estabeleça o fio condutor entre a decisão sobre os factos provados e não provados e os meios de prova usados na aquisição da convicção, fazendo a respetiva apreciação crítica nos seus aspetos mais relevantes. Por conseguinte, quer relativamente aos factos provados, quer quanto aos factos não provados, o juiz deve justificar os motivos da sua decisão, declarando por que razão, sem perda da liberdade de julgamento garantida pela manutenção do princípio da livre apreciação das provas (art. 607/5), deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes conclusões dos peritos ou achou satisfatória ou não a prova resultante de documentos.” Esta é, acrescentamos, a pedra de toque da função jurisdicional nos tribunais de instância, com competência para decidir a matéria de facto, não podendo considerar-se realizada com a mera enunciação dos meios de prova produzidos nem com a sua reprodução, as mais das vezes fastidiosa e desnecessária. Também não pode considerar-se realizada com expressões vagas, genéricas e não substanciadas.
Perante o exposto, afigura-se que é de refutar o entendimento jurisprudencial expresso, a título de exemplo, em RP 29.09.2014 (2494/14.8TBVNG.P1), Alberto Ruço, segundo o qual a nulidade por falta de fundamentação diz respeito apenas ao julgamento de provado / não provado (art. 607/3, 1.ª parte, e 4, 1.ª parte) e não, também, à motivação ou à convicção (art. 607/4, 2.ª parte) que o sustenta. Com efeito, no CPC de 2013, ao contrário do que sucedia no CPC de 1961, o julgamento da matéria de facto incorpora-se, in totum, nos fundamentos da sentença, não havendo, assim, razão para o cindir, designadamente fazendo a distinção entre sentença lato sensu e sentença tout court (RC 19.12.2017, 2206/07.2TBCBR.C1), Carlos Moreira. O art. 615/1, b), refere-se à sentença em si mesma, como um todo, harmonizando-se com o art. 607/3 e 4. Tanto a decisão de provado / não provado como a respetiva motivação constituem fundamentos de facto. A falta de qualquer um deles tem como consequência a nulidade da sentença. Neste sentido, conclui Rui Pinto (“Os meios impugnatórios comuns da decisão civil (arts. 613.º a 617.º do CPC), Julgar Online, maio de 2020, p. 16) que “[n]ão é rigoroso vislumbrar uma decisão sobre a matéria de facto como existiu no passado, especialmente invocando a letra do art. 662.º; se assim fosse haveria recurso autónomo de uma tal decisão, o que, sabemos, não sucede: o recurso em matéria de facto é sempre da sentença em si mesma, atacando-se os respetivos fundamentos de direito ou de facto.” Aplicando este entendimento, STJ 19.12.2023 (26936/15.6T8PRT.P2.S1), Maria Clara Sottomayor.
Por outro lado, vem sendo pacificamente defendido, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, que só a falta absoluta da indicação dos fundamentos de facto ou de direito é geradora da nulidade em causa e não apenas a mera deficiência da dita fundamentação. Na doutrina, Antunes Varela / J. Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1985, p. 687; Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa: Lex, 1997, p. 221, Lebre de Freitas, A Ação declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 332, Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra: Almedina, 2018, p. 737, Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, II, Coimbra: Almedina, 2021, p. 179. Na jurisprudência, STJ 2.06.2016 (781/11.6TBMTJ.L1.S1), Fernanda Isabel Pereira, STJ 3.03.2021 (3157/17.8T8VFX.L1.S1), Ana Paula Boularot, RP 5.06.2015 (1644/11.0TMPRT-A.P1), Aristides Rodrigues de Almeida, RG 2.11.2017 (42/14.9TBMDB.G1), António Barroca Penha, e RC 13.12.2022 (98/17.2T8SRT.C1), Paulo Correia. Na clássica lição de José Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, V, Coimbra: Coimbra Editora, 1948, p. 140), “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afeta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade”; e, por “falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto (…).”A concreta medida da fundamentação é, portanto, “aquela que for necessária para permitir o controlo da racionalidade da decisão pelas partes e, em caso de recurso, pelo tribunal ad quem a que seja lícito conhecer da questão de facto” (RC 29.04.2014, 772/11.7TBVNO-A.C1, Henrique Antunes).
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1).3. Verificada a nulidade, cabe ao Tribunal ad quem supri-la, salvo se não dispuser dos elementos necessários para esse efeito, por força do disposto no art. 665/1 do CPC, donde resulta que, ainda “que declare nula a decisão que põe termo ao processo, o tribunal de recurso deve conhecer do objeto da apelação” (n.º 1); e, se “o tribunal recorrido tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, deve delas conhecer no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários” (n.º 2).
Deste modo, como escreve António Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, julho de 2022, pp. 387-388), “ainda que a Relação confirme a arguição de alguma das (…) nulidades da sentença, não se limita a reenviar o processo para o tribunal a quo. Ao invés, deve prosseguir com a apreciação das demais questões que tenham sido suscitadas, conhecendo do mérito da apelação, nos termos do art. 665º, nº 2.” Logo, “a anulação da decisão (v.g. por contradição de fundamentos ou por omissão de pronúncia) não tem como efeito invariável a remessa imediata do processo para o tribunal a quo, devendo a Relação proceder à apreciação do objeto do recurso, salvo se não dispuser dos elementos necessários”, já que só “nesta eventualidade se justifica a devolução do processo para o tribunal a quo.”
Daqui não resulta qualquer preterição do contraditório do duplo grau de jurisdição: conforme escreve Miguel Teixeira de Sousa (“Nulidade da sentença; regra da substituição – Jurisprudência 2019 (83)”, Blog do IPPC[4]), “a garantia do duplo grau de jurisdição vale para cima, não para baixo. Quer isto dizer que a consagração do duplo grau de jurisdição visa assegurar que uma decisão possa ser apreciada por um tribunal superior, não que o tribunal superior tenha de fazer baixar o processo ao tribunal inferior para que este o aprecie e para que, depois, o processo lhe seja remetido em recurso para nova apreciação.” Acrescentamos que já no preâmbulo do DL nº 329-A/95, de 12.12, se afirmava expressamente a opção do legislador pela supressão de um grau de jurisdição, a qual seria, no seu entendimento, largamente compensada pelos ganhos em termos de celeridade na apreciação das questões controvertidas pelo tribunal ad quem.
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1).4. Distintas das situações de falta de fundamentação de facto são, como escrevemos aquelas em que essa fundamentação existe, mas se apresenta como deficiente, obscura ou contraditória. Nestas, segue-se o regime do art. 662/2, c) e d), do CPC (assim, RG 7.12.2013, 1285/21.4T8VCT-G.G1, RG 28.09.2023, 2539/22.8T8VNF-C.G1, ambos relatados por José Carlos Pereira Duarte; RG 7.12.2023, 455/18.7T8EPS.G1, relatado por Maria Amália Santos), cabendo à parte interessada, no recurso da sentença, o ónus de impugnar a decisão da matéria de facto e sustentar a presença desses vícios.
Confrontada com essa arguição, ou mesmo oficiosamente, a Relação pode anular a decisão, mas apenas se não tiver à sua disposição todos os meios de prova que lhe permitiriam sanar, por si mesma, a deficiência, obscuridade ou contradição. Tendo esses meios de prova à sua disposição, a Relação não pode anular a decisão da 1.ª instância, cabendo-lhe sanar ela mesma o vício, exceto se se tratar de falta da “devida” fundamentação, caso em que poderá ordenar à 1.ª instância que acrescente a fundamentação em falta, prosseguindo depois com o conhecimento do objeto do recurso. No dizer de António Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, I, Coimbra: Almedina, 2018, p. 798), “quando estiver em causa a deficiente fundamentação da decisão da matéria de facto, a devolução do processo [à 1.ª instância] deve ser guardada para casos em que, além de serem efetivamente relevantes, não possam sequer ser remediados através do exercício autónomo do poder de reapreciação dos meios de prova.”
O regime acabado de expor deve também ser observado quando, não obstante haver uma situação de verdadeira falta de fundamentação, geradora de nulidade, ut art. 615/1, b), esta não foi invocada pelo recorrente, ficando, assim, sanada. Neste sentido, RG 7.06.2023 (3096/17.2T8VNF-J.G1), Maria João Pinto de Matos. Partimos aqui, obviamente, do pressuposto de que o conhecimento da nulidade – em rigor, anulabilidade – prevista no art. 615/, b), não é oficioso, entendimento que se estriba na circunstância de várias disposições legais (arts. 614/1, 615/2 e 4 e 617/1 e 6, todos do CPC) aludirem, em determinadas circunstâncias, à possibilidade do suprimento oficioso de nulidades da sentença de modo que indicia que o conhecimento desse vício constituirá a exceção e não a regra que, em contrapartida, é a necessidade de alegação. Neste sentido, STJ 30.11.2021, (1854/13.6TVLSB.L1.S1), Maria da Graça Trigo, RG 1.02.2018 (1806/17.7T8GMR-C.G1), José Amaral, RG 4.10.2018 (4981/15.1T8VNF-A.G1), Maria João Pinto de Matos, RG 7.02.2019 (5569/17.8T8BRG.G1), José Alberto Moreira Dias, RG 19.01.2023 (487/22.0T8VCT-A.G1), José Carlos Pereira Duarte; na doutrina, Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, pp. 735-736, e Rui Pinto, “Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º do CPC)”, Julgar Online, maio de 2020, p. 10. Compreende-se que assim seja: estando em causa uma nulidade intrínseca ou de conteúdo, o tribunal ad quem terá, em regra, condições para decidir o mérito da causa, quando seja procedente a arguição de nulidade (cf. art. 665/1 do CPC), pelo que o seu conhecimento oficioso e afirmação tenderia a ser um ato inútil, por ser o juízo rescindente desnecessário ao juízo rescisório. A propósito, RP de 25.03.2021 (59/21.7T8VCD.P1), Aristides Rodrigues de Almeida.
De acordo com a lição de Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, IV, Coimbra: Coimbra Editora, 1948, p. 553), a decisão é deficiente quando aquilo que se deu como provado e não provado não corresponde a tudo o que, de forma relevante, foi previamente alegado – i. é, não foram considerados todos os pontos de facto controvertidos, ou a totalidade de um facto controvertido; é obscura quando o seu significado não pode ser apreendido com clareza e segurança – i. é, os pontos de facto considerados na sentença são ambíguos ou poucos claros, permitindo várias interpretações; e é contraditória quando pontos concretos que a integram têm um conteúdo logicamente incompatível, não podendo subsistir ambos utilmente – i. é, diversos pontos de facto colidem entre si, de forma inconciliável. Logo, quando se verifique que a decisão sobre a matéria de facto omitiu a “pronúncia sobre factos essenciais ou complementares”, possui uma “natureza ininteligível, equívoca ou imprecisa”, ou revela “incongruências, de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso”, deve o Tribunal da Relação, oficiosamente, anulá-la, quando não lhe seja possível suprir tais vícios (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos cit., p. 356-357).
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1).5. Isto dito, no caso vertente, sustenta o Recorrente que a sentença recorrida é nula, a um tempo, por não conter “factos importantes e mesmo necessários para o conhecimento do mérito” e, a outro, por ter sido omitida a análise crítica das provas que levaram o Tribunal a quo a dar como provados determinados enunciados e como não provados outros.
Na primeira dimensão, o Recorrente absteve-se de discriminar os factos a que se refere, o que evidencia bem a fragilidade da sua argumentação. De qualquer modo, como vimos, apenas uma total ausência de fundamentação de facto, manifestamente não verificada, teria como consequência a nulidade.
Na segunda dimensão, basta atentarmos na motivação da decisão da matéria de facto, acima transcrita, para concluirmos que o Tribunal a quo, depois de ter discriminados os enunciados de facto que considerou como provados e como não provados, indicou as provas que considerou e teceu um juízo crítico, ainda que sucinto, sobre elas e a forma com as valorou em ordem à formação da sua convicção.
Sem necessidade de outras considerações, a resposta à 1.ª questão é negativa.
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2).1. Passamos para a 2.ª questão, para cuja resposta valem as considerações feitas em 1).1., 1).3. e 1).4.
Está em causa a nulidade da sentença com fundamento em contradição entre os fundamentos e a decisão (art. 615/1, c), 1.ª parte, do CPC).
Como a jurisprudência vem assinalando, o vício ocorre quando os fundamentos de facto e/ou de direito invocados pelo julgador deveriam conduzir logicamente a um resultado oposto ao expresso na decisão. Trata-se, pois, de um vício estrutural da sentença, por contradição entre as suas premissas, de facto e de direito, e a conclusão, de tal modo que esta deveria seguir um resultado diverso. A propósito, inter alia STJ 8.10.2020 (361/14.4T8VLG.P1.G1), Maria do Rosário Morgado, 20.05.2021 (69/11.2TBPPS.C1.S1), Nuno Pinto Oliveira, e 15.11.2021 (2534/17.9T8STR.E2.S1), Isaías Pádua.
Não se trata de um simples erro material (em que o julgador, por lapso, escreveu coisa diversa da que pretendia – contradição ou oposição meramente aparente), mas de um erro lógico-discursivo, em que os fundamentos invocados pelo julgador conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto ou, pelo menos, direção diferente (contradição ou oposição real).
Por outro lado, o vício em apreço também não se confunde com o denominado erro de julgamento – isto é, com “a errada subsunção dos factos concretos à correspondente hipótese legal, nem, tão pouco, a uma errada interpretação da norma aplicada, vícios estes apenas sindicáveis em sede de recurso jurisdicional”, cf. STJ 17.11.2020 (6471/17.9T8BRG.G1.S1), Maria João Vaz Tomé.
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2).2. De acordo com o Recorrente, a sentença enferma de contradição na medida em que tanto considera que a ocupação da parcela de terreno reivindicada e a construção nela de um depósito de água foram por si autorizadas, como considera que não existiu qualquer autorização para a construção do depósito, mas antes uma cedência gratuita da parcela de terreno para o domínio público da Ré.
Sem prejuízo de reconhecermos, como melhor veremos, que há uma falta de cuidado, da parte do Tribunal a quo, na redação dos enunciados em causa, sempre diremos que é axiomático que tanto um como o outro permitem suportar, em termos lógicos, a decisão de que a ocupação da parcela reivindicada pela Ré não se apresenta como ilícita e, nessa medida, conjugam-se com o juízo de improcedência da ação.
A possível incompatibilidade entre os dois enunciados não integra, portanto, a causa de nulidade da sentença arguida, podendo, quando muito, relevar no quadro da sindicância da decisão da matéria de facto, como, de resto, já resulta do que escrevemos a propósito da questão anterior.
Deste modo, não há qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão, mas, quando muito, um erro na decisão da matéria de facto e um erro na aplicação e interpretação das normas jurídicas de direito substantivo convocadas.
A resposta à segunda questão é, portanto, negativa.
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3).1. Na terceira questão está em causa a impugnação da decisão da matéria de facto.
Os termos a observar na impugnação da decisão da matéria de facto perante a Relação são expostos, de forma exaustiva, no Acórdão desta Relação de 2.11.2017 (212/16.5T8MNC.G1), relatado pela Juíza Desembargadora Maria João Pinto de Matos, que transcrevemos:
“(…) reconhecendo o legislador que a garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto ”nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência”, mas, tão-somente, “detetar e corrigir pontuais, concretos e seguramente excecionais erros de julgamento” (preâmbulo do DL 329-A/95, de 12 de Dezembro), procurou inviabilizar a possibilidade de o recorrente se limitar a uma genérica discordância com o decidido, quiçá com intuitos meramente dilatórios.
Com efeito, e desta feita, “à Relação não é exigido que, de motu próprio, se confronte com a generalidade dos meios de prova que estão sujeitos à livre apreciação e que, ao abrigo desse princípio, foram valorados pelo tribunal de 1ª instância, para deles extrair, como se tratasse de um novo julgamento, uma decisão inteiramente nova. Pelo contrário, as modificações a operar devem respeitar em primeiro lugar o que o recorrente, no exercício do seu direito de impugnação da decisão de facto, indicou nas respetivas alegações que servem para delimitar o objeto do recurso”, conforme o determina o princípio do dispositivo (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 228, …)
Lê-se, assim, no art. 640º, n 1 do C.P.C. que, quando “seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnada diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas”.
Precisa-se ainda que, quando “os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados”, acresce àquele ónus do recorrente, “sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (art. 640º, nº 2, al. a) citado).
Logo, deve o recorrente, sob cominação de rejeição do recurso, para além de delimitar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar, deixar expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada; e esta última exigência (contida na al. c) do nº 1 do art. 640º citado), “vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente”, devendo ser apreciada à luz de um critério de rigor enquanto “decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes”, “impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 129…).
Dir-se-á mesmo que as exigências legais referidas têm uma dupla função: não só a de delimitar o âmbito do recurso, mas também a de conferir efetividade ao uso do contraditório pela parte contrária (pois só na medida em que se sabe especificamente o que se impugna, e qual a lógica de raciocínio expendido na valoração/conjugação deste ou daquele meio de prova, é que se habilita a contraparte a poder contrariá-lo).
Por outras palavras, se o dever - constitucional e processual civil - impõe ao juiz que fundamente a sua decisão de facto, por meio de uma análise crítica da prova produzida perante si, compreende-se que se imponha ao recorrente que, ao impugná-la, apresente a sua própria. Logo, deverá apresentar “um discurso argumentativo onde, em primeiro lugar, alinhe as provas, identificando-as, ou seja, localizando-as no processo e tratando-se de depoimentos a respetiva passagem e, em segundo lugar, produza uma análise crítica relativa a essas provas, mostrando minimamente por que razão se “impunha” a formação de uma convicção no sentido pretendido” por si (Ac. da RP, de 17.03.2014, Alberto Ruço, Processo nº 3785/11.5TBVFR.P1, in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem).
(…)
Ainda que com naturais oscilações - nomeadamente, entre a 2ª Instância e o Supremo Tribunal de Justiça - (muito bem sumariadas no Ac. do STJ, de 09.06.2016, Abrantes Geraldes, Processo nº 6617/07.5TBCSC.L1.S1, e no Ac. do STJ, de 11.02.2016, Mário Belo Morgado, Processo nº 157/12-8TVGMR.G1.S1) -, vêm sendo firmadas as seguintes orientações:
. os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (neste sentido, Ac. do STJ, de 28.04.2014, Abrantes Geraldes, Processo nº 1006/12.2TBPRD.P1.S1);
. não cumprindo o recorrente os ónus impostos pelo art. 640º, nº 1 do C.P.C., dever-se-á rejeitar o seu recurso sobre a matéria de facto, uma vez que a lei não admite aqui despacho de aperfeiçoamento, ao contrário do que sucede quanto ao recurso em matéria de direito, face ao disposto no art. 639º, nº 3 do C.P.C. (nesse sentido, Ac. da RG, de 19.06.2014, Manuel Bargado, Processo nº 1458/10.5TBEPS.G1, e Ac. do STJ, de 27.10.2016, Ribeiro Cardoso, Processo nº 110/08.6TTGDM.P2.S1);
. a cominação da rejeição do recurso, prevista para a falta das especificações quanto à matéria das alíneas a), b), e c) do n.º 1, ao contrário do que acontece quanto à matéria do n.º 2 do art. 640.º do CPC (a propósito da “exatidão das passagens da gravação em que se funda o seu recurso”), não funciona aqui, automaticamente, devendo o Tribunal convidar o recorrente, desde logo, a suprir a falta de especificação daqueles elementos ou a sua deficiente indicação (neste sentido, Ac. do STJ, de 26.05.2015, Hélder Roque, Processo nº 1426/08.7CSNT.L1.S1);
. dever-se-á usar de maior rigor no apreciação cumprimento do ónus previsto no nº 1 do art. 640º (primário ou fundamental, de delimitação do objeto do recurso e de fundamentação concludente do mesmo, mantido inalterado), face ao ónus previsto no seu nº 2 (secundário, destinado a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes, que tem oscilado em exigência ao longo do tempo, indo desde a transcrição obrigatória dos depoimentos até uma mera indicação e localização exata das passagens da gravação relevantes) (neste sentido, Ac. do STJ, de 29.10.2015, Lopes do Rego, Processo nº 233/09.4TBVNG.G1.S1);
. o ónus de indicação exata das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretado em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que a falta de indicação com exatidão das passagens da gravação onde se funda o recurso só será idónea a fundamentar a rejeição liminar do mesmo se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável (neste sentido, Ac. do STJ, de 26.05.2015, Hélder Roque, Processo nº 1426/08.7CSNT.L1.S1, Ac. STJ de 22.09.2015, Pinto de Almeida, Processo nº 29/12.6TBFAF.G1.S1, Ac. do STJ, de 29.10.2015, Lopes do Rego, Processo nº 233/09.4TBVNG.G1.S1, e Ac. do STJ, de 19.01.2016, Sebastião Póvoas, Processo nº 3316/10.4TBLRA-C1-S1, onde se lê que o ónus em causa estará cumprido desde que o recorrente se reporte à fixação eletrónica/digital e transcreva os excertos que entenda relevantes, de forma a permitir a reanálise dos factos e o contraditório);
. cumpre o ónus do art. 640º, nº 2 do C.P.C. quando não exista dificuldade relevante na localização pelo Tribunal dos excertos da gravação em que a parte se haja fundado para demonstrar o invocado erro de julgamento, como ocorre nos casos em que, para além de o apelante referenciar, em função do conteúdo da ata, os momentos temporais em que foi prestado o depoimento tal indicação é complementada com uma extensa transcrição, em escrito dactilografado, dos depoimentos relevantes para o julgamento do objeto do recurso (neste sentido, Ac. do STJ, de 29.10.2015, Lopes do Rego, Processo nº 233/09.4TBVNG.G1.S1); ou quando o recorrente identificou as testemunhas EE, FF e GG, assim como a matéria sobre a qual foram ouvidas, referenciou as datas em que tais depoimentos foram prestados e o CD onde se encontra a respetiva gravação, indicando o seu tempo de duração, e, para além disso, transcreveu e destacou a negrito as passagens da gravação tidas por relevantes e que, em seu entender, relevavam para a alteração do decidido (neste sentido, Ac. do STJ, de 18.02.2016, Mário Belo Morgado, Processo nº 476/09.oTTVNG.P2.S1);
. a apresentação das transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Maria dos Prazeres Beleza, Processo nº 405/09.1TMCBR.C1.S1); nem o faz o recorrente que procede a uma referência genérica aos depoimentos das testemunhas considerados relevantes pelo tribunal para a prova de quesitos, sem uma única alusão às passagens dos depoimentos de onde é depreendida a insuficiência dos mesmos para formar a convicção do juiz (neste sentido, Ac. do STJ, de 28.05.2015, Granja da Fonseca, Processo nº 460/11.4TVLSB.L1.S1);
. servindo as conclusões para delimitar o objeto do recurso, devem nelas ser identificados com precisão os pontos de facto que são objeto de impugnação, mas bastando quanto aos demais requisitos desde que constem de forma explícita na motivação do recurso (neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Tomé Gomes, Processo nº 299/05.6TBMGD.P2.S1, Ac. do STJ, de 01.10.2015, Ana Luísa Geraldes, Processo nº 824/11.3TTLRS.L1.S1, Ac. do STJ, de 03.12.2015, Melo Lima, Processo nº 3217/12.1TTLSB.L1-S1, Ac. do STJ, de 11.02.2016, Mário Belo Morgado, Processo nº 157/12-8TVGMR.G1.S1, Ac. do STJ, de 03.03.2016, Ana Luísa Geraldes, Processo nº 861/13.3TTVIS.C1.S1, e Ac. do STJ, de 21.04.2016, Ana Luísa Geraldes, Processo nº 449/10.0TVVFR.P2.S1);
. não deve ser rejeitado o recurso se o recorrente seguiu uma determinada orientação jurisprudencial acerca do preenchimento do ónus de alegação quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, nos termos do art. 640º do CPC (neste sentido, Ac. do STJ, de 09.06.2016, Abrantes Geraldes, Processo nº 6617/07.5TBCSC.L1.S1);
. a insuficiência ou mediocridade da fundamentação probatória do recorrente não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação (neste sentido, Ac. do STJ, de 19.02.2015, Tomé Gomes, Processo nº 299/05.6TBMGD.P2.S1).
Compreende-se, por isso, que se afirme que a “rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados;
c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exata das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;
f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam algum dos elementos referidos” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, p. 128 e 129…).”
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3).2. Particularizando o ónus de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados que imponham decisão diversa, é entendimento constante do STJ que a sua observância pressupõe o estabelecimento de uma correspondência direta e objetiva entre os meios probatórios indicados pelo recorrente e a justificação (por eles representada) para a modificação dos pontos de factos considerados incorretamente julgados. Para esse efeito, conforme se escreve em STJ 16.01.2024 (818/18.8T8STB.E1.S1), relatado por Luís Espírito Santo, não é suficiente “a mera reunião aglomerada dos diversos meios de prova entendidos por relevantes, feita genericamente e em estilo puramente descritivo, numa amálgama indiferenciada, sem nenhuma referência direta, concreta e objetiva aos pontos de facto em causa, individualmente considerados, tencionando desse modo o impugnante que o Tribunal da Relação realize afinal a tarefa que exclusivamente lhe competia: selecionar dos elementos probatórios os que se destinam à modificação dos pontos de facto (ou, excecionalmente, os grupos delimitados de factos intrinsecamente ligados entre si), estabelecendo a indispensável conexão concreta entre os meios de prova e o juízo de facto por eles imposto (segundo o seu entendimento).”
No fundo, o recorrente tem o ónus de indicar os meios de prova por referenciação aos factos a que concretamente se reportam, ou eventualmente, em casos especiais, a grupos temáticos de factos interligados unitariamente entre si. Só assim é possível alcançar, com inteiro rigor e certeza, as razões para a discordância do recorrente que justificam, facto a facto, as modificações pretendidas, o que evitará a apresentação de impugnações de facto genéricas, proibidas pela norma processual em apreço.
Neste sentido, escreve António Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, p. 197) que “o recorrente deve especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.”
Ainda neste sentido, podem ver-se os seguintes arestos do STJ:
STJ 20.12.2017 (299/13.2TTVRL.G1.S2), Ribeiro Cardoso, no qual se pode ler, que a fórmula adotada pela recorrente no caso objeto do aresto, de dividir a matéria de facto impugnada, quer no corpo das alegações, quer nas conclusões, em três “blocos distintos de factos” e indicar os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugnou, consistiu, “na prática, em atacar, de forma genérica e global, a decisão de facto, pedindo, pura e simplesmente, a reapreciação de toda a prova produzida em 1.ª instância, manifestando genérica discordância com o decidido, meio processual de impugnação que o legislador quis afastar”;
STJ 14.07.2021 (1006/11.0TTLRA.C1.S1), Júlio Gomes, onde se pode ler que “[a] exigência de que a indicação dos pontos de facto que o Recorrente considera incorretamente julgados seja feita um a um, isto é individualizadamente e não em bloco, com a indicação precisa em relação a cada um deles dos meios de prova que impunham decisão diversa visa, não apenas facilitar a atividade do Tribunal da Relação, mas também facilitar o contraditório, evitando que perante meios de prova invocados em conjunto para um bloco de factos a outra parte tenha que tentar escalpelizar ou destrinçar em que é que cada meio de prova se reporta a cada um dos factos, com o risco de não o fazer adequadamente, risco que lhe seria imposto pela técnica adotada pelo Recorrente”;
STJ 21.03.2023 (296/19.4T8ESP.P1.S1), Nuno Pinto de Oliveira, onde pode ler que, “[e]mbora tenha observado o ónus de delimitação do objeto do recurso, indicando os concretos pontos de facto que considerava incorretamente julgados, a Ré, agora Recorrente, não observou o ónus de fundamentação concludente da impugnação.
O art. 640.º, na alínea b) do seu n.º 1 e na alínea a) do seu n.º 2, exige que o recorrente relacione cada um dos concretos pontos de facto que considerava incorretamente julgados com cada um dos meios de prova, com cada uma das passagens relevantes dos meios de prova gravados, ou com a transcrição de cada uma das passagens relevantes dos meios de prova gravados.
A Ré, agora Recorrente, não o fez: em lugar de relacionar, especificadamente, cada um dos concretos pontos de facto que considerava incorretamente julgados com cada um dos meios de prova, com cada uma passagens relevantes dos meios de prova gravados, ou com a transcrição de cada uma das passagens relevantes dos meios de prova gravados — como devia ter feito, de acordo com o art. 640.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil —, a Ré, agora Recorrente, indicou, em bloco, todos os concretos pontos de facto que considerava incorretamente julgados e quis relacioná-los com a transcrição, em bloco, de extensíssimas passagens dos depoimentos das Autora CC e EE, do depoimento do marido da 2.ª Autora, DD, e do depoimento da Ré AA.
O facto de a Ré, agora Recorrente, ter indicado os concretos pontos de facto que considerava incorretamente julgados, sem os relacionar com cada um dos meios de prova, com cada uma das passagens relevantes dos meios de prova gravados, ou com a transcrição de cada uma das passagens relevantes dos meios de prova gravados prejudica a inteligibilidade do fim e do objeto do recurso e, em consequência, a possibilidade de um contraditório esclarecido.”
STJ 26.05.2023 (6713/19.6T8GMR.G1.S1), Catarina Serra, onde se pode ler que “[c]omo decorre do artigo 640.º, n.º 1, al. b), o recorrente deve relacionar cada um dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados com cada um dos meios de prova relevantes.
Ora, as apelantes, ora recorrentes, não o fizeram: em vez de relacionar, especificadamente, cada um dos concretos pontos de facto que consideravam incorretamente julgados com cada um dos meios de prova (designadamente prova testemunhal e documental), as apelantes indicaram, em bloco, todos os concretos pontos de facto que considerava incorretamente julgados e relacionaram-nos, em bloco, com aqueles meios de prova.
Sucede que esta circunstância inviabiliza a compreensão clara do fim e do objeto do recurso e, em consequência – o que é de destacar –, prejudica a possibilidade de um contraditório esclarecido.”
A conformidade desta interpretação do n.º 1 do art. 640 do CPC, no sentido de que o recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto tem o ónus suplementar de, no tocante à especificação dos pontos de facto que considera mal julgados, referenciar cada um com o correspondente meio de prova que indica para o evidenciar, foi confirmada no recente Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 148/2025, de 18.02,
Neste aresto, o TC entendeu que o ónus em causa “diz respeito diretamente à dimensão material e essencial deste tipo de recursos (e não a qualquer obrigação secundária e formal a cargo das partes), permitindo que o tribunal superior possa aferir muito mais facilmente se se justifica (ou não) a modificação da matéria de facto constante da decisão recorrida, fazendo logo o confronto entre cada ponto da matéria de facto impugnadae os específicos meios de prova que justificam a sua alteração, sem o que se o tribunal recorrido se veria obrigado a debruçar‑se sobre todos os meios de prova e aferir se deveriam – e em que medida – servir para reverter a decisão recorrida quanto à fundamentação da matéria de facto, propiciando, assim e ao restringirem e concretizarem o próprio objeto da cognição do tribunal ad quem, uma muito maior economia e celeridade processuais.” E acrescentou-se que tal interpretação, embora restringindo o direito de acesso ao direito e aos tribunais e o direito ao recurso, “não viola a garantia um processo justo e equitativo e obedece ao princípio da proporcionalidade, não restringindo de forma excessiva e desproporcionada esses direitos e servindo para atingir outras finalidades, inerentes à tramitação célere e expedita dos processos cíveis e ao facilitar a decisão dos recursos relativos igualmente à matéria de facto dada como provada, também constitucionalmente tuteladas.”
Não se trata, portanto, de uma qualquer exigência formal ou secundária.
Também não se vê que seja de difícil cumprimento pelos sujeitos processuais, antes correspondendo, como no Acórdão do TC se pode ler, à “responsabilidade que necessariamente cabe à parte recorrente.”
Com efeito, aquilo que se impõe é – e é apenas – que, relativamente a cada ponto individualmente considerado da matéria de facto, o recorrente indique os específicos meios de prova que impõem a sua modificação, em lugar de fazer uma impugnação em bloco ou que se limite a remeter para a totalidade desses meios de prova.
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3.3. No caso vertente, conseguimos retirar, das conclusões apresentadas pelo Recorrente, que está em causa, na impugnação, o dissenso quanto aos seguintes aspetos da decisão da matéria de facto:
1.º Por referência à petição inicial:
Considerar como provado o segmento "com área concretamente não apurada" (ponto 1), que deve ser eliminado;
Considerar como não provados os enunciados dos pontos 1, 3, 4, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19, 22, 25, 28, 30, 38 e 39, que devem ser considerados provados.
2.º Por referência à contestação:
Considerar como provados os enunciados dos pontos 11.º, 12.º, 13.º, 14.º (na parte "após tal cedência"), 21.º, 23.º, 25.º, 27.º, 30.º, 34.º, 42.º, 46.º, 47.º, 48.º, 49.º, 50.º, 51.º, 52.º e 53.º, que devem ser considerados como não provados.
Sustenta o Recorrente que a decisão quanto ao extenso rol de enunciados em questão deve ser modificada "atenta[a]s as declarações de parte prestadas pelo Autor [Recorrente], bem como o[s] depoimento[s] das testemunhas", cuja transcrição foi feita das alegações.
O Recorrente não indica, todavia, perante um total de 35 enunciados, quais são, em relação a cada um deles, os concretos meios de prova que, na sua ótica, devem ser considerados.
Dito de outra forma, o Recorrente limita-se a aludir, de forma global, a todos os enunciados que entende terem sido incorretamente julgados, abstendo-se de indicar, ponto por ponto, os meios de prova que, no seu entender, impõem uma decisão diversa. Não teve sequer o cuidado de proceder a uma diferenciação temática dos enunciados.
E de nada serve o recurso às alegações. Nestas, o Recorrente evidencia a mesma falta de cuidado: perde-se em longas transcrições da prova oralmente produzida na audiência final e em generalidades sobre ela, não a relacionando, de forma especificada, com cada um dos enunciados de facto em questão – ou, pelo menos, com grupos de enunciados ligados entre si por um qualquer nexo lógico –, mas com todos eles globalmente.
Era sobre o Recorrente que recaía semelhante ónus. Não tendo ele sido observado, esta Relação está impossibilitada de sindicar a decisão da matéria de facto quanto aos enunciados em questão, o que importa, sem necessidade de outras considerações, a rejeição in totum da impugnação da decisão da matéria de facto.
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3).4. Relembrando o que escrevemos em 1.4., cumpre agora atentar na decisão da matéria de facto, mais concretamente no vício de contradição que o Recorrente lhe imputa, por ter sido considerado como provado que a ocupação da parcela reivindicada e a construção do depósito de água levadas a cabo pela Recorrida foram autorizadas pelo Recorrente e, em simultâneo, que o Recorrente cedeu tal parcela ao domínio público da Recorrida.
Parece-nos inequívoco que tanto uma afirmação como a outra têm como pressuposto que o Recorrente era o dominus da parcela em causa. A primeira parece significar que o Recorrente apenas permitiu que a Recorrida construísse uma obra no seu prédio sem, no entanto, lhe transmitir o direito de propriedade sobre uma parcela autonomizada dele. A segunda parece indicar que o Recorrente transmitiu para a Recorrida a propriedade dessa parcela. Mas também não é incompatível com uma leitura que a aproxime do significado da primeira, o que resulta da natureza polissémica do verbo "ceder", que tanto pode ser utilizado como sinónimo de "dar" como de "emprestar" ou de "colocar à disposição" (a propósito, vide a entrada no Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia de Ciências de Lisboa, publicado pela Editorial Verbo, no ano de 2001).
Esta consideração revela-nos o pouco cuidado que o Tribunal a quo teve na redação da decisão da matéria de facto, em especial no que tange à 2.ª parte do ponto 11 ("este disponibilizou-se a ceder") e na 1.ª parte do ponto 14 ("Após tal cedência"), ambos transpostos da contestação.
Esta ambiguidade, que é causa de obscuridade, pode, porém, ser facilmente ultrapassada se considerarmos apenas aquilo que verdadeiramente releva: o teor das declarações do Recorrente e do representante da Recorrida, eliminando aquilo que são meras conclusões do processo de interpretação, cuja sede própria é a fundamentação de direito.
Ora, o conteúdo de tais declarações é o que está condensado nos pontos 9, 10 e 11 transpostos da petição inicial e no ponto 13 transposto da contestação, este, porém, com uma particularidade que importa notar.
Com efeito, como se percebe, o Tribunal a quo quis reproduzir, neste último ponto, a declaração do Recorrente plasmada no escrito de 29 de junho de 2018, apresentada como documento 1 com a contestação. Fê-lo, porém, usando um discurso indireto, no qual deixou logo transparecer o resultado do seu labor interpretativo.
Como aquilo que importa é o exato teor da declaração – e não as ilações que dela podem ser retiradas, eventualmente em conjugação com outros elementos relevantes –, entendemos que a redação deve ser corrigida em conformidade, dando-se como assente o teor da declaração e, bem assim, a sua autoria, que decorre do facto (inquestionado) de estar assinada pelo Recorrente.
É que, como escrevem Antunes Varela / J. Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1985, p. 516, "[u]ma vez provada a autoria da assinatura, tem-se de igual modo por reconhecido o contexto do documento. Aplicar-se-á ao corpo do documento, depois de provada a autenticidade da assinatura de quem o subscrever, a velha presunção quid subscripsit videtur scripsisse. Quem subscreve o documento quer significar que aprova o seu conteúdo e assume a paternidade deste."
Deste modo, lançando mão do poder funcional atribuído pelo artigo 662.º, n.º 1, alínea c), do CPC:
(i) serão eliminados os segmentos "disponibilizou-se a ceder" e "[a]pós tal cedência", constantes, respetivamente, dos pontos 11 e 14 transpostos da contestação;
(ii) o ponto 13 transposto da contestação passará a ter a seguinte redação: "Por escrito datado de 29 de junho de 2018, intitulado 'Declaração de cedência ao domínio público', o Autor declarou, mediante a aposição da sua assinatura, que 'na qualidade de proprietário do terreno localizado na freguesia ..., sob a designação de ..., declara para todos os efeitos legais que cede, a título gratuito, à Junta da União de Freguesias ... e ..., conforme disposto na planta parcelar, que se anexa e faz parte integrante desta declaração, uma parcela de terreno com 870 m2, situada na Rua .... / Mais declara que desde já autoriza a Junta da União de Freguesias ... e ... ou a Câmara Municipal ..., a utilizar a referida parcela logo que necessário', tudo conforme documento 1 com a contestação, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido."
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3).5. A decisão da matéria de facto enferma, ainda, de outras duas patologias que esta Relação deve corrigir oficiosamente.
A primeira prende-se com o uso de enunciados conclusivos, transpostos para a fundamentação, como factos provados,dos arts. 1.º, 2.º e 18.º da petição inicial (segmento “propriedade do Autor”), bem como dos arts. 21.º (segmento “pela cedência gratuita da parcela”), 23.º (segmentos “desde a cedência da parcela” e “de modo exclusivo”), 25.º, 27.º, 28.º (segmento “pertence única e exclusivamente”), 29.º (segmento “prosseguir finalidades públicas”), 42.º (“cedeu àquela”), 46.º e 49.º da contestação.
No recente RG 6.03.2025 (5018/24.5T8GMR.G1), relatado por Maria João Pinto de Matos, pode ler-se:
“(…) é apodítico que a fundamentação de facto se deve cingir à matéria de facto.
Com efeito, e apesar de não existir no atual CPC, de 2013, uma disposição idêntica ao art.º 646.º, n.º 4, do anterior CPC de 1961 (onde se afirmava que se tinham como «não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito»), entende-se hoje, tal como então, que há que distinguir na decisão de facto entre facto e direito. Pretende-se, assim, que a decisão de facto contenha primordialmente o facto simples, assertivamente afirmado e demonstrado; e que dela sejam excluídos, quer puros e exclusivos conceitos/juízos de direito, quer meras realidades hipotéticas.
Permite-se, porém, a consideração dos conceitos de direito que transitaram para a linguagem corrente, por assimilação pelo cidadão comum, uma vez que correspondem a um facto concreto; e desde que não constituem eles próprios o thema decidendum (por forma a que a prova ou não prova do enunciado facto que os integre decida, imediata e automaticamente, a ação ou questão nela implicada).
Logo, quando na fundamentação de facto de uma decisão judicial se contenham, como pretensos factos, puros e exclusivos conceitos de direito, que constituem eles próprios o thema decidendum, e/ou realidades hipotéticas, deverão os mesmos ter-se por não escritos (isto é, necessariamente como inexistentes, enquanto factos).
Neste sentido depõe hoje o art.º 607.º, n.º 4, do CPC, onde se lê que, na «fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados», tomando «ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência». Logo, o objeto da sua pronúncia aqui prevista limita-se, tão só e apenas, a factos (apreensíveis geral e comumente como tais), dela estando necessariamente excluída pura matéria de direito.
Já relativamente a conclusões, que mais não são do que a lógica ilação de premissas, entendia-se tradicionalmente que, pese embora o art.º 646.º, n.º 4, do CPC de 1961, em sede de fundamentação de facto, só excluísse a pronúncia sobre questões de direito, do mesmo modo se deveria proceder, por analogia, quanto a juízos de valor ou conclusivos.
Contudo, este entendimento encontra-se hoje bastante mais mitigado: quer por se defender que a distinção entre matéria de facto e matéria de direito é totalmente artificial, uma vez que para o direito apenas são relevantes os factos que ele qualificar como factos jurídicos; quer por ser indesmentível a alteração que o CPC de 2013 operou face ao anterior (de 1961), passando a produção da prova em audiência a ter por objeto temas e a condensar-se na estrutura una da sentença o julgamento de facto e de direito; quer por se encontrar generalizadamente aceite que os limites entre o facto e o direito não são fixos nem lineares, antes flutuam, nomeadamente tendo em conta a natureza e os contornos do caso concreto; quer por se reconhecer ser difícil convocar e reunir para a prolação de uma decisão judicial que se pretende justa apenas factos assepticamente neutros em termos jurídicos ou conclusivos.
Defende-se por isso, e também nesta sede, um entendimento mais maleável do que sejam conclusões ou juízos conclusivos, permitindo a sua consideração em sede de julgamento e fundamentação de facto (na sentença) quando se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, de significado vulgar e corrente; e que, estando ainda ancorados num substrato factual, sejam exigidos ou contribuam para a prolação de uma decisão justa.
Os «factos conclusivos» já, porém, «não devem relevar (não podem integrar a matéria de facto) quando, porque estão diretamente relacionados com o thema decidendum, impedem ou dificultam de modo relevante a perceção da realidade concreta, seja ela externa ou interna, ditando simultaneamente a solução jurídica, normalmente através da formulação de um juízo de valor» (Ac. da RG, de 31.03.2022, Pedro Maurício, Processo n.º 294/19.8T8MAC.G1).”
Aproveitando estes ensinamentos, os referidos enunciados devem ser eliminados.
A segunda patologia resulta de uma contradição evidente na cronologia dos acontecimentos: por um lado, afirma-se, por transposição do art. 7.º da petição inicial, que o contacto do presidente da Junta de Freguesia com o Recorrente, para que o ponto de água fosse construído no prédio de que este é proprietário, foi estabelecido em “meados de 2017”; por outro, afirma-se, por transposição do art. 9.º da contestação, que a Recorrida tomou a decisão de construir o ponto de água “[n]o início de 2018.”
Se atentarmos no teor dos documentos juntos aos autos, mais concretamente a referida declaração de cedência e o ofício da Junta de Freguesia de 2 de julho de 2018, apresentado como documento 12 da contestação, concluímos que todo o procedimento ocorreu no ano de 2018.
Assim, se eliminarmos aquele primeiro segmento (“meados de 2017”), conseguimos obter uma sequência dos factos ordenada cronologicamente em termos que se apresentam conformes à realidade ontológica.
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3).6. Ainda nesta sede, com arrimo no disposto no art. 607/4, ex vi do art. 663/2, ambos do CPC, serão considerados como provados os factos demonstrados através dos documentos (autênticos) apresentados sob os números 1 e 2 com a petição inicial.
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3).7. Condensando o que antecede, reordenamos os enunciados de facto provados de acordo com a sequência lógica e cronológica que é conforme à realidade histórica que é suposto ser retratada[5], com as correções introduzidas e evitando, na medida do possível, repetições e redundâncias:
1 Por escritura pública de 4 de janeiro de 2010, lavrada no Cartório Notarial do Dr. LL, RR, por si e na qualidade de procurador do Autor, AA, SS, TT, por si e na qualidade de procurador de UU e de VV, WW, XX, YY, ZZ, RR, AAA, BB, BBB, CCC, DDD e EEE, declaram que: “(…) no dia ../../2004 (…) faleceu FFF (…), no estado de casada em primeiras núpcias de ambos, segundo o regime de comunhão geral, com ele [primeiro] outorgante. / (…) a falecida não deixou testamento nem qualquer outra disposição de última vontade. / (…) como seus únicos herdeiros sucederam-lhe: a) seu cônjuge (…); b) dez filhos, atrás identificados (…) / (…) não há outras pessoas que, segundo a lei, prefiram aos indicados herdeiros ou com eles possam concorrer na sucessão à herança da mencionada FFF. / (…) / (…) por esta mesma escritura, vão proceder à partilha dos bens que fazem parte do acervo da herança (…) que são os seguintes: (…) / Número cinco: Prédio rústico, constituído por pinhal, com área de 3 800 m2, no Lugar ..., na indicada freguesia ..., inscrito na matriz predial rústica sob o art. ...06, omisso na extinta matriz (…), não descrito na Conservatória do Registo Predial ..., a confrontar do norte com GGG, do sul e poente com CC e do nascente com HHH (…) / (…) / Adjudicações: (…) ao herdeiro AA (…), adjudica-se o imóvel atrás identificado sob o n.º 5 (…)”, tudo conforme documento 2 apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
2 O prédio identificado no ponto anterior está atualmente inscrito, na matriz rústica da União de Freguesias ... e ..., em nome do Autor, sob o art. 892, conforme documento 1 apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
3 A Ré é dona de um terreno florestal, sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho ....
4 A Ré procedeu à limpeza de tal terreno no segundo semestre de 2017, tendo desobstruído três nascentes aí existentes, com o objetivo inicial de encaminhar a respetiva água para o parque público e o cemitério de ....
5 No início de 2018, a Ré decidiu pedir um parecer ao Município ... e à Proteção Civil acerca da possibilidade de construção de um ponto de água naquela zona, uma vez que a área florestal no local é de grande dimensão e só existia um ponto de água ativo.
6 A Ré obteve parecer favorável e diligenciou no sentido de encontrar um local para a colocação do referido ponto de água.
7 Esse Ponto de Água deveria ser localizado numa zona alta e de fácil acesso aos helicópteros, uma vez que se trata de um depósito para abastecimento de água para combate a incêndios florestais.
8 O Autor foi contactado pela Ré, na pessoa do Presidente da Junta de Freguesia, o Sr. EE, o qual expôs que seria instalado na freguesia, atenta a localização da mesma, um Ponto de Água.
9 Atendendo à localização do prédio do Autor, o identificado Presidente da Junta de Freguesia questionou o Autor no sentido de este autorizar a construção do referido depósito no prédio rústico supra identificado.
10 Por força dos motivos invocados, o Autor autorizou a construção do depósito em causa, o qual ocupa área de 870 m2, da sua propriedade, tendo sido arruada parte dela como forma de acesso terrestre ao referido depósito.
11 Autor e Ré procederam então à definição da parcela onde seria colocado o ponto de água, com área de 870 m2, sendo que para o efeito foi realizado um levantamento topográfico.
12 Por escrito datado de 29 de junho de 2018, intitulado “Declaração de cedência ao domínio público”, o Autor declarou, mediante a aposição da sua assinatura, que “na qualidade de proprietário do terreno localizado na freguesia ..., sob a designação de ..., declara para todos os efeitos legais que cede, a título gratuito, à Junta da União de Freguesias ... e ..., conforme disposto na planta parcelar, que se anexa e faz parte integrante desta declaração, uma parcela de terreno com 870 m2, situada na Rua .... / Mais declara que desde já autoriza a Junta da União de Freguesias ... e ... ou a Câmara Municipal ..., a utilizar a referida parcela logo que necessário”, tudo conforme documento 1 com a contestação, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
13 A declaração junta com a Contestação como Doc. 1 [referida no ponto anterior] foi livremente assinada pelo Autor, o qual estava perfeitamente ciente do seu teor e do seu alcance, sendo que a mesma correspondia à vontade por si manifestada.”
14 Após, a Ré providenciou pelo abate de, pelo menos, um eucalipto de madeira grossa e com várias toneladas de peso, existente na mencionada parcela.
15 A Ré, com o auxílio de várias pessoas, procedeu, pelo menos, ao corte do eucalipto em toros e rachou-os para lenha.
16 Essa madeira foi transportada, a pedido do Autor, para uma indústria de transformação de madeiras de que o mesmo era dono e sita na Rua ..., na freguesia ..., do concelho ....
17 Após solicitar subsídio à Câmara Municipal ..., em julho de 2018, a Ré deu início aos trabalhos de construção do tanque/ponto de água na parcela.
18 O qual veio a ser inaugurado a 27 de setembro de 2018 e denominado “Ponto de Água – ... / Quinta ...”.
19 A água depositada no referido ponto provém de nascentes situadas num prédio de que é dona.
20 Em setembro de 2018, foi ainda efetuada a ligação de água entre as nascentes referidas em 8º e o ponto de água, sendo que despendeu no total a quantia de 61.289,31 Euros.
21 Em outubro de 2018, foi realizada a ligação de água entre o ponto de água e o parque público e o cemitério de ..., e foi ainda colocada uma boca de incêndio a cerca de 100 metros do ponto de água.
22 Como forma de agradecimento [ao Autor], a Ré, apesar de a isso não estar vinculada, pagou na íntegra a construção de um muro em pedra no prédio do Autor e despendeu para o efeito a quantia de 2.120,00 Euros.
23 Em fevereiro de 2021, a Ré procedeu à pavimentação da Rua ... até à entrada do prédio do Autor, de modo a melhorar o respetivo acesso, e despendeu para o efeito 20.895,25 Euros.
24 A Ré tem procedido à manutenção e à limpeza da mesma parcela, cortando a erva, limpando as saídas de água, etc.
25 A construção do ponto de água por parte da Ré teve como único objetivo o apoio ao combate a incêndios e o abastecimento de equipamentos da freguesia.
26 A Ré nunca teve qualquer intenção de destinar parte de tal água à rega de terrenos particulares.
27 Após a construção do depósito de água, o Autor nunca teve acesso à água contida no mesmo e pertença da Ré.
28 O Autor tem a perfeita noção do investimento realizado pela Ré na construção do ponto de água e na realização das respetivas ligações, bem como na construção do muro em pedra no próprio prédio do Autor.
29 Esses trabalhos apenas foram realizados pela Ré, porque o Autor emitiu a declaração de 29 de junho de 2018.
30 O Autor sabe perfeitamente que nunca foi acordado, entre ele e a Ré, o estabelecimento duma ligação de água do depósito ou ponto de água em causa à área remanescente do seu prédio.
31 O Autor sabe perfeitamente que não suportou qualquer custo com o corte de, pelo menos, um eucalipto existente na parcela cedida à Ré.
32 A conduta processual do Autor obrigou a Ré a um esforço adicional para acautelar os seus direitos.
33 A conduta processual do Autor obrigou a Ré a realizar despesas que de outro modo não existiriam, quer quanto ao trabalho desenvolvido pelo seu I. Mandatário (o qual foi obrigado a intervir nos presentes autos com as respetivas peças processuais e com a sua participação em audiência final de discussão e julgamento, bem como se viu, consequentemente, obrigado a acautelar de modo redobrado, ao longo de todo o processo, a posição da sua constituinte e ora Ré), quer quanto à necessidade de reunir elementos de prova, designadamente quanto ao contacto com testemunhas e à localização de documentos.
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4). Em resultado da resposta negativa à 3.ª questão, fica prejudicado o conhecimento da 4.ª.
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5).1.1. Passamos para a quinta questão, começando por lembrar, em jeito de enquadramento, que o Recorrente pretende, com a ação, o reconhecimento de que é o titular do direito de propriedade sobre o prédio identificado, com a consequente condenação da Recorrida na restituição de uma parcela de terreno que sustenta integrar os seus limites materiais e, bem assim, no pagamento de uma indemnização pelos danos não patrimoniais que alegadamente sofreu em resultado daquele direito.
Isto permite-nos categorizar a ação, em termos substantivos, no que tange àquelas duas primeiras vertentes da pretensão – reconhecimento do direito de propriedade e restituição da coisa que dele é objeto –, como uma ação de reivindicação, tal como esta é definida pelo art. 1311/1 do Código Civil, onde se pode ler que “[o] proprietário pode exigir judicialmente de qualquer possuidor ou detentor da coisa o reconhecimento do seu direito de propriedade e a consequente restituição do que lhe pertence.”
É comum escrever-se que a ação de reivindicação constitui o instrumento legal mais vigoroso posto à disposição do proprietário para lhe garantir o gozo do direito sobre a coisa que lhe pertence, quando dele é efetivamente privado. Daí que Pires de Lima / Antunes Varela (Código Civil Anotado, III, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1987, p. 114) a definam como “a pretensão do proprietário não possuidor contra o possuidor não proprietário ou do proprietário possuidor contra o detentor.” Com efeito, o autor (reivindicante), invocando o titulo de proprietário de certa coisa na posse ou na detenção de outrem, pretende que, reconhecido judicialmente o seu direito, o possuidor ou o detentor seja, em consequência, condenado a restituí-la. A ação deve, pois, ser proposta contra quem, no momento da propositura, for possuidor ou detentor da coisa reivindicada.
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5).1.2. É discutido se às duas apontadas finalidades da ação correspondem dois pedidos distintos e autónomos ou apenas um.
Assim, para Oliveira Ascensão, (“Ação de reivindicação”, ROA, II, 1997, pp. 511-545), a reivindicação é a ação correspondente à pretensão substantiva do proprietário – a entrega da coisa. Esta tem de se basear na propriedade, que assim funciona como o seu fundamento, integrando a causa de pedir. No mesmo sentido, José Alberto Vieira (Direitos Reais, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 488), que sustenta que, “como a titularidade do direito real de gozo representa um fundamento de procedência da ação, o reivindicante tem de fazer a prova do mesmo”, o que não equivale a dizer que tenha de deduzir um pedido autónomo de reconhecimento do direito em cumulação com o pedido de entrega da coisa. Basta que faça este último, uma vez que a finalidade da ação “não se encontra na apreciação judicial da existência do direito do reivindicante, mas na condenação do réu na entrega da coisa.” Também Rui Pinto Duarte (Curso de Direitos Reais, 2.ª ed., Cascais: Principia, 2007, pp. 64-65), que escreve que “a ação de reivindicação caracteriza-se, pois, pelo pedido (que é o de restituição da coisa) e pelo fundamento (que é a titularidade da propriedade).”
Já para Carlos Alberto da Mota Pinto (Direitos Reais, por Álvaro Moreira e Carlos Fraga, Coimbra: Almedina, 1971, pp. 204-205), Pires de Lima / Antunes Varela (Código Civil Anotado cit., p. 113), António Menezes Cordeiro (Direitos Reais, Lisboa: Lex, 1993, p. 846), Diogo Pessoa (“Art. 1311.º”, AAVV, Henrique Sousa Antunes (coord.), Comentário ao Código Civil. Direito das Coisas, Lisboa: UCE, 2021, pp.165-166) e Nuno Andrade Pissarra (“Art. 1311.º”, AAVV, António Menezes Cordeiro (coord.), Código Civil Comentado, IV, Direito das Coisas, Coimbra: Almedina, 2024, pp. 390-395), a reivindicação compreende dois pedidos principais: o de declaração da propriedade e o de condenação na restituição da coisa. Na jurisprudência, esta orientação é seguida, inter alia, em RP 10.12.2019 (8524/17.4T8VNG.P1), Judite Pires, RL 8.02.2022 (19864/15.7T8LSB.L1-7), Carlos Oliveira e RL 16.05.2023 (14782/22.5T8LSB.L1-7), José Capacete, nos quais se sustenta coexistirem, na reivindicação, dois pedidos, um dirigido ao reconhecimento do direito real e outro, descrito como consequente, à condenação na restituição da coisa.
Diferentemente, para autores como Manuel Henrique Mesquita (Direitos Reais, Coimbra: UC, 1967, p. 179) e Luís Carvalho Fernandes (Lições de Direitos Reais, Lisboa: Quid Juris, 1996, p. 228), há na reivindicação um pedido principal – o pedido de reconhecimento (pronunciatio) – e um pedido acessório – o pedido de entrega da coisa (condemnatio). Esta orientação é seguida, na jurisprudência, em STJ 7.05.2014 (7507/06.4TBCSC.L1.S1), Gregório Silva Jesus, e RG 23.10.2014 (4/11.8TBCBT.G1), Manuel Bargado, nos quais se defende que o pedido de reconhecimento do direito real apresenta-se como o pedido principal de que o pedido de restituição é mera consequência lógica
Finalmente, encontramos arestos, de que são exemplo RG 20.10.2009 (73/09.0TBAVV-A.G1), Rosa Tching, e RP 14.12.2022 (1488/19.1T8PVZ.P1), Anabela Miranda, onde se sustenta que a reivindicação compreende os dois referidos pedidos, mas numa cumulação meramente aparente: o pedido de reconhecimento é meramente formal, ao passo que o pedido de condenação é descrito como substancial ou essencial.
A nosso ver, face à letra do art. 1311, não há como negar que a reivindicação pressupõe a formulação dos dois pedidos, correspondendo um ao acertamento do direito, colocado em dúvida pelo comportamento do réu, e o outro à sua atuação. Ambos são necessários para a individualização da ação. O segundo não prevalece sobre o primeiro. Pelo contrário, a pretensão de restituição é um mero meio de tutela do direito real. Neste sentido, escreve Nuno Andrade Pissarra (loc. cit., p. 392) que “[p]or certo que a pretensão real joga um papel importante na economia da reivindicação atual, adversos que são os sistemas contemporâneos à autodefesa como princípio de ordenação. A imposição de uma pretensão real ao usurpador representa uma forma avançada de reagir à violação do direito. Mas a pretensão é simples instrumento ao serviço do direito real. A pretensão é acidental no percurso de vida do direito e a ele exterior. Quando nasce, nasce para servi-lo: não é o direito que serve a pretensão, mas esta que serve aquele. A reivindicação há-de centrar-se no essencial, que é o direito.”
Deste modo, a ação de reivindicação pressupõe uma cumulação real de pedidos, nos termos previstos no art. 555 do CPC[6], uma vez que o autor pretende a procedência de dois efeitos jurídicos: a um tempo, a declaração de existência do direito; a outro, a condenação na restituição. A procedência do primeiro é condição necessária, ainda que, como veremos, não suficiente, da procedência do segundo, o que explica que se diga, no n.º 1 do art. 1311, que, havendo declaração do direito de propriedade, a restituição do bem ao reivindicante só pode ser recusada “nos casos previstos na lei.”
Sem prejuízo, posto que os dois pedidos têm a mesma utilidade económica, os seus valores não se somam para efeitos de cálculo do valor da ação, ao contrário do disposto no art. 297/2, 1.ª parte, do CPC. Neste particular, a cumulação é meramente aparente, o que encontra arrimo no disposto no art. 302/1 e 4 do CPC, pois, como escreve Miguel Teixeira de Sousa (“Ação de reivindicação: sobre a necessidade e as vantagens de uma conceção conflitual”, Blog do IPPC, entrada de 23.10.2023[7], p. 4), “pretendendo o reivindicante obter a restituição da coisa com base na sua propriedade, a utilidade económica da ação coincide necessariamente com o valor da coisa. O autor da ação de reivindicação formula dois pedidos, mas ambos são relativos a uma única coisa.” De igual modo, Lebre de Freitas / Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019. P. 504).
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5).1.3. A causa de pedir é necessariamente formada pelo “facto jurídico de que deriva o direito real”, no dizer do art. 581/14, 2.ª parte, do CPC, e pelos factos constitutivos da pretensão – ou seja, os que dizem respeito à privação da coisa.
A prova desses factos está facilitada no caso de aquisição originária do direito, designadamente por ocupação, acessão ou usucapião. Pense-se, por exemplo, na hipótese de o autor ser possuidor, ele próprio, pelo tempo necessário à aquisição por usucapião.
Já no caso de aquisição derivada, dominada pelo princípio nemo plus iuris in alium transfere potest quam ipse habet, a prova apresenta-se como mais difícil (diabolica probatio): o reivindicante tem de provar a regularidade, substancial e formal, da cadeia das sucessivas transmissões anteriores que, a partir de uma qualquer aquisição originária, sirva de suporte ao direito por ele invocado. A propósito, Pires de Lima / Antunes Varela, ob. cit., p. 115; na jurisprudência, STJ 5.05.2016 (5562/09.4TBVNG.P2.S1), Paulo Sá.
O legislador, ciente das dificuldades dessa prova, recorreu a presunções de propriedade, assentes numa ideia de probabilidade (cf. Michele Taruffo, La Prueba de los Hechos, 2.ª ed., Madrid: Trotta, p. 507), que o reivindicante pode invocar a seu favor. Havendo uma presunção, basta ao autor alegar o facto-base (factum probans) a partir do qual é induzido o facto desconhecido (factum probandum). São particularmente relevantes a presunção derivada do registo (art. 7.º do Código do Registo Predial) e a presunção fundada na posse (art. 1268).
Sobre esta última – a presunção fundada na posse – importa esclarecer um aspeto que, como vamos ver na sequência, assume relevo na situação decidenda. Assim, prima facie, parece um contrassenso dizer-se que o reivindicante pode beneficiar da presunção derivada da posse quando, afinal, ele está a reivindicar a coisa que se encontra sob o domínio material de outrem. Sucede que a passagem da coisa para o domínio material de outrem não significa a perda da posse do reinvindicante. A demonstrá-lo está o disposto no art. 1267/1, d), que prevê que a posse de outrem, quando constituída sem ou contra a vontade do anterior possuidor, apenas conduz à perda da posse deste depois de decorrido um ano e um dia. Por outro lado, quando a propriedade da coisa é transmitida para outrem, mas o anterior proprietário continua a ter o domínio material, a lei (art. 1264/1) considera que, não obstante, a posse é transmitida para o adquirente. Deste modo, como se conclui em STJ 21.06.2016 (7487/11.4TBVNG.P2.S1), José Rainho, “nada parece obviar a que (talqualmente sucede no caso da presunção fundada no registo) uma ação tendente ao reconhecimento do direito de propriedade, como é a ação ora em causa proposta pelos Autores, seja fundamentada na presunção estabelecida no nº 1 do art. 1268º do CCivil e que, consequentemente, seja nela (ação) reconhecido o correspondente direito de propriedade (e feita restituir a coisa, se disso se tratar).”
A exigência probatória pode ainda ser atenuada se o autor conseguir provar uma aquisição originária, nomeadamente por usucapião, beneficiando depois de institutos como a sucessão da posse (art. 1255) e a acessão na posse (art. 1256). Basta-lhe então provar que a sua posse, quando somada à posse do transmitente, permite a aquisição originária do direito de propriedade por usucapião. Já não tem de demonstrar que o direito existia na esfera jurídica do dante causa do transmitente e assim sucessivamente. A propósito, José Alberto Vieira, Direitos Reais cit., p. 493.
É de considerar ainda que não é necessário fazer prova da aquisição do direito de propriedade do autor quando o réu não questione a sua existência, mas apenas a obrigação de entregar a coisa. Por identidade de razões, o mesmo deve suceder se autor e réu estiverem de acordo quanto ao facto de o transmitente do primeiro ter sido proprietário, apenas discutindo a existência ou a validade do ato de transmissão. A propósito, Oliveira Ascensão (Ação de reivindicação cit., pp. 538-539).
Ainda que o autor consiga provar a titularidade do direito, o pedido de restituição poderá improceder quando o réu prove que, apesar de não ser proprietário, tem um título que justifica a manutenção da coisa no seu domínio. Assim sucederá, por exemplo, se o réu provar que é titular de um direito de usufruto ou de um arrendamento.
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5).1.4. No caso em análise, o Recorrente alegou, por um lado, que o direito de propriedade sobre o identificado prédio lhe foi transmitido mortis causa e, por outro, que possui o identificado prédio, de forma pública e pacífica, em termos de exercício do direito de propriedade. A sua posse, quando somada à daqueles a quem sucedeu, tem duração suficiente para a aquisição daquele direito por usucapião.
Estas afirmações foram impugnadas pela Recorrida, que alegou desconhecimento da realidade factual.
A primeira resultou provada. É, contudo, por si só, insuficiente para o fim pretendido: tratando-se a sucessão mortis causa deuma forma de aquisição derivada, seria necessário demonstrar a constituição do direito na esfera jurídica do de cujus.
Quanto à segunda, numa primeira leitura dir-se-ia, com base na resposta negativa aos enunciados dos arts. 3.º e 4.º da contestação, que não resultaram provados os factos alegados para substanciar a posse do Recorrente e, bem assim, a dos seus antecessores, com os carateres e a duração necessários à aquisição do direito de propriedade por usucapião.
Uma leitura mais atenta permite-nos, porém, chegar a uma conclusão parcialmente diversa: a afirmação de que foi o Recorrente quem autorizou que a Recorrida construísse o depósito de água sobre uma parcela delimitada de terreno do prédio, que declarou ceder ao domínio público, revela um ato que integra o feixe de poderes que, nos termos do art. 1305, integram e caracterizam o direito de propriedade.
Se é certo que tal ato, delimitado no tempo, não é suficiente para confirmar a aquisição do direito por usucapião, a sua ocorrência sempre permite, no confronto com a Recorrida, presumi-la, nos termos do disposto no art. 1268/1. Aliás, só esta conclusão permite sustentar a afirmação, sobre a qual a Recorrida constrói a sua defesa, de que a parcela reivindicada passou a integrar o domínio público com base num ato de disposição do Recorrente, o que apenas faz sentido se a este for reconhecida legitimidade substantiva bastante para o praticar.
Nesta medida, sendo tal legitimidade exclusiva do proprietário, afigura-se que é de concluir que o Recorrente tem razão quando diz que é o titular do direito de propriedade sobre o prédio e que a sentença recorrida incorreu em erro de direito quando, julgando improcedente o primeiro pedido, não o reconheceu.
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5).2.1. Questão diversa, situada a jusante, é a de saber se, como sustenta a Recorrida, a parcela reivindicada – aquela sobre a qual foi construído o depósito de água – foi separada do prédio objeto do direito de propriedade do Recorrente e, uma vez individualizada, passou a integrar o domínio público – mais concretamente, o domínio público da União de Freguesias ... e .... Esta questão contende já com o 2.º pedido formulado pelo Recorrente na petição inicial. Quid inde?
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5).2.1.1. Genericamente, tal como qualquer outra pessoa jurídica, o Estado e as demais pessoas coletivas de direito público necessitam de um substrato patrimonial, mais ou menos alargado, afeto ao desenvolvimento das funções que lhes são atribuídas (cf. Hervé Moysan, Le Droit de Propriété des Personnes Publiques, Paris: L.G.D.J, 2001, pp. 196-197).
Alguns desses bens são meramente úteis, proporcionando a obtenção de recursos (é o caso dos prédios, dos títulos ou das ações), enquanto outros servem o público direta ou indiretamente, através dos serviços públicos.
É isto que justifica o regime jurídico distinto destes bens, divididos em duas categorias: os que pertencem ao domínio privado e os que fazem parte do domínio público. O art. 2.º/1 do DL n.º 477/80, de 15.10, que criou o inventário geral do património do Estado, insere-se nesta lógica abrangente ao definir o património do Estado como “o conjunto de bens do seu domínio público e privado e dos direitos e obrigações com conteúdo económico de que o Estado é titular como pessoa coletiva de direito público.”
Tomando esta summa divisio como ponto de partida, Rui Medeiros / Lino Torgal (“Art. 84.º”, AAVV, Jorge Miranda / Rui Medeiros (coord.), Constituição Portuguesa Anotada, II, 2.ª ed., Lisboa: UCE, 2018, pp. 81-86) assinalam que os bens do domínio público, em virtude dos interesses a que se encontram afetos, estão, por lei, claramente vinculados, em termos jurídico-públicos, aos fins que prosseguem e em vista dos quais foram como tais considerados pelo legislador; já os bens pertencentes ao domínio privado podem estar e estão as mais das vezes submetidos a um regime onde predomina, em larga medida, o Direito Privado.
Compreende-se, assim, que o n.º 2 do art. 202, depois de dispor que estão fora do comércio as coisas que não podem ser objeto de direitos privados, inclua, entre elas, as que se encontram no domínio público, e que o art. 1304, por sua vez, clarifique que estas últimas estão sujeitas, em primeira linha, a um regime jurídico específico de Direito Público (Ana Raquel Moniz, O domínio Público. O Critério e o Regime Jurídico da Dominialidade, Coimbra: Almedina, 2005, p. 118), o que significa que, mesmo em relação àquelas que seriam suscetíveis de apropriação individual se não fosse a sua especial afetação, “mais do que uma propriedade privada modificada deve falar-se numa propriedade pública” (Rui Medeiros, “Art. 1304.º”, AAVV, Henrique Sousa Antunes, Comentário ao Código Civil. Direito das Coisas, Lisboa: UCE, 2021, pp. 129-130).
É esta a ideia subjacente à lição de Marcello Caetano (Manual de Direito Administrativo, II, Coimbra: Almedina, 1983, p. 881) que considerava já como coisas públicas as “submetidas por lei ao domínio de uma pessoa coletiva de direito público e subtraídas ao comércio jurídico privado em razão da sua primacial utilidade pública”, acrescentando que “[o] conjunto das coisas públicas e os direitos públicos que à Administração competem sobre elas formam o domínio público, objetivamente considerado, sendo por isso as coisas públicas denominadas também de bens do domínio público.”
Daqui podemos retirar que, na falta de uma definição legal, “[o] traço identitário comum do conceito de domínio público radica na sujeição de um conjunto de bens a um regime jurídico específico de Direito público e cuja principal característica reside no facto de serem res extra commercium, i. é., bens subtraídos ao comércio jurídico privado em razão da sua necessidade, aferida numa determinada comunidade e em dado momento histórico, para o desempenho de finalidades e funções públicas, mormente, a sua primacial utilidade pública, o uso público, a sua afetação direta a um serviço público, a garantia e o fomento do desenvolvimento económico nacional ou outro fim de interesse público particularmente relevante” (Ana Gouveia Martins, “As licenças e concessões de utilização privativa do domínio público como um instrumento de rentabilização e valorização dos bens dominiais”, Revista e-pública, vol. 5, n.º 1, janeiro de 2018, pp. 75-104[8]), ou, noutra formulação, que o domínio público é composto pelo “conjunto de coisas, pertencentes a um determinado ente público (normalmente a título dominial), submetidas por lei a um regime especial em que avulta a sua tendencial incomercialidade e individualidade com base em específicos carateres objetuais ou naturais legalmente fixados (bens reservados) ou por força da sua concreta destinação a uma função ou serviços públicos (bens de destinação pública)” (Bernardo Azevedo, “Domínio Privado da Administração”, AAVV, Paulo Otero / Pedro Costa Gonçalves, Tratado de Direito Administrativo Especial, III, Coimbra: Almedina, 2010, pp. 11-97).
O regime a que tais bens estão sujeitos consta, desde logo, do art. 84 da Constituição da República (CRP), na redação introduzida na Reforma Constitucional de 1989 (Lei Constitucional 1/89), em cujo n.º 1 se estabelece uma enumeração dos bens do domínio público [(a) As águas territoriais com seus leitos e os fundos marinhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de água navegáveis ou flutuáveis, com os respetivos leitos; b) As camadas aéreas superiores ao território acima do limite reconhecido ao proprietário ou superficiário; c) Os jazigos minerais, as nascentes de águas mineromedicinais, as cavidades naturais subterrâneas existentes no subsolo, com exceção das rochas, terras comuns e outros materiais habitualmente usados na construção; d) As estradas; e) As linhas férreas nacionais], que é aberta, como decorre da respetiva alínea f), que dispõe que pertencem ao domínio público “outros bens como tal classificados por lei.” No n.º 2 do preceito, remete-se para a lei – reservada, como decorre do art. 165/1, v) –, a definição do regime de domínio público, bem como as condições da sua utilização e limites.
Como facilmente se percebe, os bens que estão enumerados no n.º 1 do preceito são aqueles cuja dominialidade se impõe pela própria natureza das coisas, não carecendo de qualquer previsão legal, uma vez que está relacionada com a própria integridade territorial do Estado. Trata-se daquilo a que podemos chamar de domínio público material, por contraposição ao domínio público formal que é o constituído pelos bens que estão sujeitos à dominialidade por determinação da lei (Ana Raquel Moniz, O Domínio Público cit., pp. 292-294). A esta distinção corresponde uma diferença de regime jurídico, uma vez que o domínio público material tem uma disciplina jurídica mais exigente e goza de uma maior proteção do que o domínio público formal.
Com a aprovação do DL n.º 280/2007, de 7.08, relativo ao Regime Jurídico do Património Imobiliário Público (RJPIP), consagrou-se pela primeira vez na ordem jurídica portuguesa um regime geral relativo ao domínio público do Estado, das Regiões Autónomas e das Autarquias Locais, sendo este regime aplicável também ao domínio privado do Estado e dos institutos públicos, conforme o art. 1.º do referido diploma. Aliás, do art. 15 do diploma resulta que a titularidade pública cabe apenas às pessoas coletivas públicas territoriais: Estado, Regiões Autónomas e Autarquias Locais, pelo que, a contrario, as demais entidades públicas apenas podem ser titulares de bens pertencentes ao domínio privado da Administraçãoe sujeitos a um regime jurídico maioritariamente de direito privado.
Para um bem pertencer ao domínio público formal é necessário, em primeiro lugar, que a sua titularidade esteja atribuída a uma pessoa jurídica pública e que a lei preveja a sua dominialidade, seja por via da identificação individual, seja mediante a identificação por tipos (art. 14 do RJPIP, em conjugação com a citada alínea f) do n.º 1 do art. 84 da CRP).
Não se pense que o legislador dispõe de uma irrestrita liberdade para este efeito. Porque a submissão ao estatuto da dominialidade pública pressupõe uma compressão do direito de propriedade privada e da autonomia privada, tem sido entendido que o elenco de bens constantes das alíneas a) a d) do preceito “deve parametrizar ou servir de referência à ação legislativa neste domínio”, pelo que só deve ser atribuído o estatuto jurídico de dominialidade pública a outros bens que se revelem especialmente relevantes para o exercício da função política e administrativa e que envolvam valores e interesses constitucionalmente protegidos, em consonância com o princípio da proporcionalidade (cf., Ana Raquel Moniz, O domínio público cit., pp. 289 e ss.; e Rui Medeiros/ Lino Torgal, loc. cit., p. 82).
A dominialidade formal pressupõe, em segundo lugar, a afetação funcional do bem à prossecução de utilidades públicas. No dizer de Jorge Pação (“Art. 16.º”; AAVV, João Miranda (coord.), Comentário ao Regime Jurídico do Património imobiliário Público, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, pp. 106-107), “a afetação enquanto conceito jurídico-dominial está associada à ligação do bem a uma determinada finalidade (destinação). O ato de afetar (affectatio) não é, neste contexto, relativo a influenciar ou prejudicar, mas sim ao efeito de subordinar ou destinar enquanto ato/ facto através do qual se determina a finalidade a ser prosseguida por algo. Densificando, a afetação corresponderá ao ato/facto através do qual se submete determinado bem à prossecução de uma finalidade pública que justifica, nos termos da Constituição e da lei, a aplicação do regime dominial à sua administração.”
Assim, diz o n.º 1 do art. 16 do RJPIP que compete à pessoa coletiva de Direito Público titular do bem afetá-lo às utilidades públicas correspondentes à classificação legal. O n.º 2 do preceito acrescenta que a eficácia dessa afetação “fica dependente da efetiva verificação das utilidades que justificaram a sujeição do bem ao estatuto da dominialidade.”
Daqui resulta, em primeiro lugar, que a competência para prática de um ato jurídico-administrativo de afetação pertence à pessoa coletiva pública proprietária do bem dominial, mais propriamente a certo órgão integrado nessa pessoa coletiva. Nesta medida, o n.º 1 do art. 16 constitui uma norma de competência para a prática do ato de afetação e que tem como destinatário direto o proprietário público dos bens dominiais (Jorge Pação, loc. cit., p. 107).
Em segundo lugar, a eficácia do ato jurídico-administrativo de afetação depende da efetiva verificação das utilidades que justificaram a sujeição do bem ao estatuto da dominialidade.
A este propósito, Jorge Pação (loc. cit., pp. 107-108) divide a afetação em três diferentes espécies: afetação jurídica expressa; afetação jurídica tácita (ou implícita); afetação fáctica (ou material).
Segundo o autor, “a afetação jurídica expressa corresponde à prática de um ato jurídico-formal através do qual a pessoa coletiva manifesta explicitamente a sua vontade no sentido da integração de determinado bem no domínio público. Na grande maioria dos casos, essa vontade manifesta-se pela prática de um ato administrativo enquanto decisão de integração de determinado bem no domínio público.”
A afetação jurídica tácita (ou implícita) “verifica-se quando uma dada atuação jurídico-formal (ato, regulamento ou contrato) não tem como finalidade a integração de um dado bem no domínio público, mas essa é, de forma implícita, uma das consequências do ato jurídico praticado. Dito de outro modo, o ato jurídico não é praticado com a expressa intenção de destinar um determinado bem à prossecução de uma ou mais finalidades públicas, mas, ainda assim, essa afetação decorre do conteúdo do ato praticado.
A afetação fáctica (ou material) “corresponde à efetiva destinação do bem público à finalidade pública que justificou a previsão legal da sua dominialidade. Densificando, a afetação material revela-se no plano dos factos, através da concretização, mediante operações materiais, da ligação entre o bem e o fim público a prosseguir.” De forma diversa, João Miranda (“O estatuto dos bens cedidos ao município no âmbito de operações urbanísticas”, Questões Atuais de Direito Local, n.º 14, abril-junho de 2017, pp. 29-51), escrevendo a propósito das cedências urbanísticas para o domínio municipal, faz corresponder a afetação material à “realização de operações materiais tendo em vista a concretização das finalidades públicas”, reconduzindo-a, portanto, a um momento temporal anterior, em que a administração empreende os trabalhos preparatórios, por exemplo, a construção de espaços de fruição pública, nomeadamente, rodovias, circuitos pedonais e equipamentos. Já para Miguel Faria Ferreira (Cedências Urbanísticas para o Domínio Municipal. Análise do Regime e Algumas Questões Emergentes, Lisboa: UCE, 2020, p. 40), a afetação material basta-se com a realização de atos que produzam alterações na realidade física destinadas a dotar o bem das características necessárias à finalidade de utilidade pública a que foi destinado.
O citado n.º 2 do art. 16 trata precisamente do modo como devem ser conjugadas a afetação jurídica (expressa ou tácita), enquanto ato jurídico-formal praticado ao abrigo da norma de competência do n.º 1 do art. 16, e a afetação fáctica ou material, enquanto efetiva verificação das utilidades que justificaram a sujeição do bem ao regime dominial. É claro quanto ao modo de conjugação desses dois tipos de afetação: o ato jurídico de afetação apenas se torna eficaz aquando da efetiva destinação do bem à finalidade pública que justifica a sua dominialidade. Dito de outro modo, “o ato jurídico-formal de afetação, ainda que válido, apenas produz efeitos jurídicos caso a entidade pública, no plano dos factos, destine o bem ao fim público legalmente previsto” (Jorge Pação, loc. cit., p. 110). Compreende-se que assim seja: a aplicação do regime dominial só se justifica se o bem estiver a cumprir a sua função dominial.
Por outro lado, de acordo com a doutrina, a afetação jurídica não é condição necessária ao reconhecimento da dominialidade pública do bem. No dizer de Jorge Pação (loc. cit., p. 111), “a afetação fáctica determinará a incorporação do bem no domínio público, visto que a vontade da pessoa coletiva é manifestada mediante uma ou várias operações materiais tendentes à concreta destinação do bem público, que assim passará a integrar o domínio público. Nesta visão das coisas, a afetação fáctica preenche, por si, a previsão normativa classificatória daquele bem como um bem potencialmente integrável no domínio público, ou, dito de outro modo, a concretização dessa tipologia legal não terá de passar, obrigatoriamente, por uma manifestação jurídico-formal da vontade da pessoa coletiva.”
Tendo isto presente, o autor conclui que “o bem poderá integrar o domínio público caso se verifiquem, em cúmulo, duas condições: previsão legal de dominialidade e afetação fáctica.”
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5).2.1.2. Como vimos, a Recorrida – uma União de Freguesias – definiu a parcela reivindicada, propriedade do Recorrente, como o local ideal para o depósito das águas que provêm de nascentes existentes em prédios de que é proprietária e que são destinadas ao combate aos incêndios e ao abastecimento de equipamentos da freguesia, mais concretamente o parque público e o cemitério, o que, sem dificuldade, podemos dizer corresponder a uma utilidade pública.
Apenas assim podia proceder, porém, depois de adquirir um direito, oponível erga omnes,que lhe permitisse o uso da parcela de terreno reivindicada para aquela finalidade, integrando-a no seu domínio público. Relembramos que o n.º 2 do art. 84 da CRP determina que a “lei define quais os bens que integram o domínio público do Estado, o domínio público das regiões autónomas e o domínio público das autarquias locais, bem como o seu regime, condições de utilização e limites.” Ao reconhecer a existência de um domínio público local, a Constituição assume, sem margem para hesitações, que cabe às autarquias locais a satisfação de determinadas utilidades públicas que justificam a aplicação do regime dominial aos bens que permitem essa satisfação. Assim, tem-se entendido, designadamente, que são bens do domínio público das freguesias os que se inserem no seu domínio hídrico e de circulação/rodoviário, abrangendo ainda os cemitérios públicos da sua titularidade. A propósito, RG 11.09.2012 (29/09.3TBVVD.G1), Eduardo Azevedo.
O apontado objetivo podia ser alcançado por uma de duas vias: a expropriativa ou a negocial.
Explicando esta afirmação, diremos que, como é sabido, o direito de propriedade abrange, no essencial, quatro dimensões: a liberdade de adquirir bens; a liberdade de usar e de fruir os bens de que se é proprietário; a liberdade de os transmitir; e o direito de não ser privado deles.
A sua garantia não é, porém, absoluta. Com efeito, o art. 62/1 da CRP proclama que o direito de propriedade, colocado entre os direitos económicos e não como um direito fundamental, é garantido “nos termos da Constituição” (art. 62/1 da CRP), com o que se pretende sublinhar que sofre as limitações e as restrições previstas no texto fundamental e, bem assim, na lei, quando a Constituição para ela remeta ou quando revele limitações constitucionalmente implícitas, justificadas, entre outras, por razões ambientais, de ordenamento territorial e urbanístico, económicas, de segurança ou de defesa nacional (cf. J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, I, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 802).
A esta luz compreende-se que se afirme que, na última das apontadas dimensões do direito de propriedade, não está em causa propriamente uma proibição da privação dos bens que dele são objeto, mas um “direito de não ser arbitrariamente privado da propriedade e de ser indemnizado no caso de desapropriação” (J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada cit., p. 805). Neste sentido, a CRP prevê várias figuras de desapropriação forçada por ato de autoridade pública, desde a expropriação por utilidade pública em geral (art. 62/2), passando pela expropriação de solos urbanos para efeitos urbanísticos (cf. art. 65/4), até à nacionalização de empresas e meios de produção em geral (cf. art. 83).
Assim, a expropriação por utilidade pública constitui uma limitação extrínseca do direito de propriedade (cf. art. 1308 do Código Civil). Consiste ela, numa perspetiva estrutural, no “evento jurídico pelo qual se extinguem direitos reais sobre bens imóveis, constituindo-se, concomitantemente, novos direitos na titularidade de pessoas que se entende prosseguirem o interesse público, mediante o pagamento de uma indemnização” (António Menezes Cordeiro, “Art. 1308.º”, AAVV, António Menezes Cordeiro (coord.), Código Civil Comentado, IV, Direito das Coisas, Coimbra: Almedina, 2024, pp. 351-352). Não há, portanto, na expropriação, uma aquisição a título derivado por parte da entidade expropriante. Esta adquire a título originário, isto é, vê constituir-se ex novo um direito seu sobre a coisa expropriada, com a consequente extinção do direito ou direitos anteriores (a propósito, José Osvaldo Gomes, Expropriações por Utilidade Pública, Porto: Texto Editora, 1997, pp. 18-19).
A possibilidade de aquisição de um bem por parte da administração pública por esta via potestativa, que pressupõe a prévia declaração de utilidade pública, não preclude, porém, a possibilidade de aquisição do bem porvia do direito privado. Aliás, em regra, a frustração desta constitui mesmo condição essencial da abertura daquela, conforme resulta do art. 11/1 do Código das Expropriações, aprovado pela Lei n.º 168/99, de 18.09.
Estão aqui em causa os contratos com eficácia real (cf. art. 408/1), como sejam a compra e venda (art. 874) e a doação (art. 940/1), que naturalmente devem observar as exigências de forma previstas na lei civil, o que se compreende: no momento em que ocorre a transmissão do direito para a administração pública, a coisa encontra-se submetida ao comércio jurídico. Só depois desse momento é que poderá ser afeta ao domínio público. O uso do termo transmissão apresenta-se aqui como adequado: já não se trata de uma forma de aquisição a título originário, mas de uma aquisição derivada, submetida ao princípio nemo plus iuris ad alium transferre potest quam ipse habet.
Note-se que o objeto de tal aquisição pode não ser, necessariamente, o direito de propriedade, mas um qualquer direito real menor que, comprimindo aquele, baste para que a administração pública retire do bem a utilidade pública a que o destina. Será a hipótese de constituição de um direito de superfície (cf. art. 1524), que permita que a administração pública construa um equipamento sobre o solo alheio. A tal não obsta a destinação do bem ao domínio público, como demonstram Afonso Queiró / J. Gabriel Queiró (“Propriedade pública e direitos reais de uso público no domínio da circulação urbana”, Direito e Justiça, IX, t. 2, pp. 231-283[9]), a propósito da celebração, entre um particular e um município, de um contrato pelo qual o primeiro constituiu, a favor do segundo, um direito de superfície, destinado à construção e manutenção de um jardim público, sobre um prédio de que era proprietário e em cujo subsolo construíra um parque de estacionamento, atribuindo-lhe não a propriedade do solo, mas das plantações que nele viessem a ser feitas. Ocorre, então, de acordo com os autores, a constituição de um direito real de uso público, admissível à luz de um princípio segundo o qual “possuem carácter público e estão sujeitos ao regime dominial aqueles direitos reais de gozo que, nos termos da lei civil, facultam o uso de coisa alheia, sempre que tais direitos sejam constituídos pela Administração para a satisfação de fins de utilidade pública idênticos aos prosseguidos pelos bens do domínio público” e, bem assim, do disposto no art. 4.º, alíneas n) e o), do DL n.º 477/80, de 15.10, que integra no domínio público estadual, enquanto figura distinta das servidões e das restrições administrativas de utilidade pública ao direito de propriedade, os direitos públicos de uso e fruição sobre quaisquer bens privados. Já segundo Bernardo Azevedo (Servidão de Direito Público. Contributo para o seu Estudo, Coimbra: Coimbra Editora, 2005, p. 92, nota 54), mais do que um autêntico direito de uso público, está em causa “um direito real parciário público (do tipo do direito real de uso ou de superfície) na titularidade direta do Município (…) (que não da coletividade de utentes não personificada, conforme é timbre dos direitos de uso público).”
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5).2.3. No caso, não houve qualquer procedimento expropriativo. Como resulta da fundamentação de facto, a Recorrida, através do presidente da respetiva junta, depois de ter eleito a parcela de terreno como o local ideal para a recolha das águas destinadas ao combate aos incêndios florestais e aos equipamentos públicos, contactou o requerente, pedindo-lhe que, enquanto titular do direito de propriedade, autorizasse, sem qualquer contrapartida, que ali fosse construído um depósito. O Recorrente deu a sua autorização e, na sequência, por escrito de 29 de junho de 2018, intitulado “Declaração de cedência ao domínio público”, declarou ceder, a título gratuito, aquela parcela de terreno à Ré, autorizando-a a “fazer uso” dela “logo que necessário.”
Que sentido atribuir a esta declaração, que configura, indiscutivelmente, uma declaração de vontade, potencialmente conformadora de um negócio jurídico?
A exegese de uma declaração, com a finalidade de captar o seu sentido, deve observar os cânones dos arts. 236 e 238 do Código Civil
De acordo com o art. 236/1, “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”, de um lado e, de outro (art. 236/2), “sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante é de acordo com ela que vale a declaração emitida.” O sentido da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante.
Como se pode ler em RG 6.03.2025 (2389/23.4T8VRL.G1), do presente Relator, a interpretação da declaração negocial deve procurar uma conciliação dos interesses do declarante e do declaratário dentro do sistema legislativo respeitante ao negócio jurídico. É evidente que o declarante tem interesse em ver relevar apenas a sua vontade, ao contrário do declaratário que pretende poder confiar naquilo que ele próprio entendeu. Mas a vontade é um elemento interno, puramente do foro psicológico e, como tal, insuscetível de conhecimento. Passível de conhecimento é unicamente a manifestação externa, a qual permite retirar as conclusões quanto à vontade real, subjacente como elemento psicológico. Consequentemente, objeto da interpretação é a manifestação da vontade, o elemento externo, a própria declaração negocial. O fim da interpretação é o sentido da mesma. O sentido a que se refere o n.º 1 do art. 236 é o sentido pretendido pelo declarante.
Deste modo, a interpretação deve partir de elementos objetivos para obter, através deles, na medida do possível, o elemento subjetivo. O declaratário padronizado encontra-se em função das circunstâncias concretas que envolverem a proposta negocial e dos traços tipo lógicos que o aceitante apresenta: competência linguística, profissão e localização de atividade, nível cultural, conhecimentos técnicos relacionados com o contrato, etc. Decisiva é a vontade do declarante, se ao declaratário for possível conhecê-la. Quando o declarante não pode contar razoavelmente com o sentido deduzido pelo declaratário normal do seu comportamento, o risco linguístico ou o risco do entendimento é imputado ao declaratário (art. 236/1, 2.ª parte).
A declaração de aceitação vale como aceitação da proposta com esse sentido. O consenso corresponde à intenção do proponente que, por hipótese, o aceitante conhece; o contrato é, portanto, interpretado de harmonia com a real intenção do proponente, que o aceitante efetivamente compreendeu. Essa falsa demonstratio pode resultar de ignorância (as partes recorrem a termos não adequados por não saberem melhor), de negligência (as partes recorrem a uma linguagem descuidada), de o declaratário ter tido notícia de qualquer circunstância decisiva que não era obrigado a conhecer, ou até da própria vontade real do declarante, de equívoco do declaratário, numa perspetiva objetiva, quanto à interpretação da declaração, chegando, porém, ao resultado desejado pelo seu autor.
A interpretação do negócio jurídico repercute-se na determinação lato sensu da factispecie contratual, que compreende a sua qualificação jurídica e a consequente construção do material de facto de que o intérprete deve retirar os intentos prosseguidos pelas partes. A declaração não se encontra apenas vertida nas palavras adotadas, mas em tudo o que carreia a expressão da vontade. Trata-se, pois, de determinar o valor da declaração, o sentido relevante para o ordenamento jurídico da manifestação de vontade contratual. O intérprete deve indagar, através da declaração, a vontade real das partes contraentes, sendo as diversas cláusulas entendidas umas mediante as outras, e atribuindo a cada uma delas o sentido que resulta do contexto global, precisamente porque se trata de um pensamento unitário.
Nesta medida, o intérprete deve determinar o alcance global do ato negocial praticado, considerado na sua unidade. Apresentando-se a iniciativa negocial como que funcionalizada à obtenção de uma determinada modificação da esfera económica (e, evidentemente, também da jurídica) daqueles que a empreendem, deve presumir-se que todos os componentes do regulamento negocial se encontram numa relação de coerência com o resultado pretendido e podem ser reconstruídos no seu alcance à luz daquele resultado.
Quanto aos negócios formais, em princípio, a declaração negociar não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de ressonância no texto do documento respetivo (art. 238/1). Contudo, um sentido desprovido desta correspondência sempre pode valer se se revelar conforme à vontade real das partes do negócio e as razões determinantes da forma se não opuserem a essa validade (art. 238/2). Uma análise rigorosa impõe que se continuem a observar as regras do art. 236, ainda que adaptadas à unicidade textual e frequentemente circunscritas pelos limites do art. 238. A dupla tarefa da interpretação de cada uma das declarações em separado pode ser simplificada, porque não há necessidade de proceder ao controlo de imputabilidade ao declarante. Na verdade, à coincidência entre declaratário de uma das declarações e declarante da outra, que é comum a todos os contratos com duas partes, junta-se a coincidência do texto em que se baseia a interpretação. Se o resultado da interpretação das declarações conjuntas for idêntico, em função da compreensão pelo declaratário, assegurado está que esse sentido é comum e imputável às mesmas pessoas, agora vistas como declarantes.
A tarefa não se esgota na interpretação da declaração. Inclui um segundo momento lógico para a verificação do consenso, resultado de um processo hermenêutico que consiste na comparação entre os sentidos juridicamente relevantes de cada uma das declarações contratuais e na averiguação acerca da sua concordância. Além disso, em conformidade com a lei (art. 236, na alusão ao comportamento do declarante), o teor da declaração, a fórmula escrita de que o declarante se serviu para exprimir o seu pensamento, deve ser integrada pelo conjunto das circunstâncias de facto, quer anteriores à emissão da declaração de vontade, quer concomitantes dela, que sejam de molde a fazer luz sobre as verdadeiras intenções do autor. De facto, interpretar implica também esclarecer o sentido dos sinais utilizados através do recurso a critérios de significado linguístico. Permite-se um recurso amplo ao material interpretativo e às circunstâncias. Por conseguinte, admite-se levar em linha de conta elementos extrínsecos tais como o comportamento das partes, anterior, contemporâneo ou posterior à conclusão do contrato.
Lançando mão destas regras, temos, como elemento gramatical relevante para a tarefa a que nos propusemos, o verbo ceder, o qual, vimos já, tem natureza polissémica, tanto podendo ser utilizado como sinónimo de “dar” como de “emprestar” ou de “colocar à disposição.”
A sua substantivação no título de declaração (“cedência”), associada à expressão “domínio público”, permite-nos, porém, concluir que com a “cedência” se visou um resultado perene e não meramente temporário, juízo que sai reforçado quando atentamos na finalidade tida em vista pelo declarante.
Por outro lado, não podemos deixar de considerar que, no segmento seguinte, o Recorrente declarou “autorizar” a Recorrida a “usar” a parcela, necessariamente para a finalidade de utilidade pública que justificou o seu ato, o que apenas se compreende se admitirmos que, com a “cedência”, não quis abdicar do direito de propriedade sobre ela, mas apenas atribuir à Recorrida o direito de construir sobre ela o depósito de água.
Isto leva-nos a entender, com apoio no que escrevemos no ponto anterior, que a declaração do Recorrente não foi no sentido de cindir a parcela do prédio objeto do seu direito, autonomizando-a como coisa, e de transmitir o direito de propriedade sobre ela para a Recorrida, com a finalidade de esta a integrar no respetivo domínio público. Foi antes a de, mantendo esse direito na sua esfera jurídica, onerá-lo a favor da Recorrida, mediante a atribuição a esta do direito de implantar e manter no solo um equipamento público, usando e fruindo, assim, emexclusivo, da superfície.
Ademais, fê-lo sem a exigência de qualquer contrapartida, como resulta do uso do adjetivo gratuito.
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5).2.4. O sentido atribuído à declaração de vontade do Recorrente permite-nos concluir que com ela se visou a transmissão para a Recorrida, mais concretamente para integrar o respetivo domínio público, de um direito de superfície sobre o prédio objeto do direito de propriedade do Recorrente.
Acrescentamos agora que essa declaração foi seguida da apropriação da parcela de terreno por parte da Recorrida e da construção, sobre o seu solo, do projetado depósito de água. Isto exprime, de forma tácita, uma declaração de aceitação do referido direito de superfície (cf. art. 219 do Código Civil).
Estas duas declarações, conjugadas, conformam um contrato que teve como objeto, nos termos susoditos, a constituição (por via de uma aquisição derivada constitutiva), na esfera jurídica da Recorrida, do dito direito de superfície filiado no direito de propriedade titulado pelo Recorrente.
Atenta a natureza gratuita desse negócio não é arriscado qualificá-lo como uma doação, ut art. 940 do Código Civil, onde se pode ler que a doação “é o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício de outro contraente.” Temos aqui presente, por um lado, que o n.º 1 do preceito citado, ao definir a doação, confere-lhe elasticidade suficiente para que assuma quer uma função meramente translativa (a transmissão da propriedade de uma coisa ou de um direito), quer uma função constitutiva (a constituição de um direito que não existia, como tal, na esfera jurídica do doador , mas que se filia no direito deste, como será o caso, socialmente comum, da doação com reserva de usufruto a favor do doador proprietário), e, por outro, que a natureza contratual da doação pressupõe a que o donatário aceite a liberalidade feita pelo doador (cf. art. 945 do Código Civil).
Ora, o n.º 1 do art. 947 estabelece que a doação de coisas imóveis só é válida se for celebrada por escritura pública ou por documento particular autenticado. E bem se compreende que assim seja: ademais das razões (de ordem pública) que tradicionalmente se apontam para os desvios ao princípio da consensualidade (art. 219), relacionadas com a segurança e a certeza no tráfico jurídico, impõem-se, na doação, especiais necessidades de proteção do doador, levando-o a uma maior reflexão sobre as consequências do ato para o seu património.
Como facilmente se constata, essa forma não foi observada, o que significa que o contrato é nulo e de nenhum efeito (art. 220) e, logo, não operou a referida constituição do direito de superfície a favor da Recorrida.
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5).2.5. Esta questão foi contornada na sentença recorrida com apelo à figura da dicatio ad patriam que, segundo o que ali se escreveu, constitui uma forma de integração de bens privados no domínio público.
Salvo o devido respeito, este entendimento não está correto.
Na parte final do ponto 4).2.1.2. falámos em direitos de uso público e direitos reais parciários públicos. O que marca a diferença essencial entre as duas categorias é o respetivo titular: no primeiro caso, trata-se do público em geral; no segundo, de uma pessoa coletiva de Direito Público, o que explica também que sejam diferentes os respetivos modos de aquisição.
Se considerarmos esta linha delimitadora, temos de concluir que, no caso, não estamos perante a constituição de um direito de uso público, mas de um verdadeiro direito real parciário público.
A categoria dos direitos de uso público é fruto do labor da jurisprudência italiana desde o caso que ficou conhecido como Villa Borghese, no qual a Corte di Cassazione di Roma, por decisão de 9.03.1887, proibiu o proprietário daquele prédio de fechar os portões e impedir o passeio dos cidadãos pelos seus jardins, reconhecendo uma tradição secular de livre acesso.[10] Entre nós, é tratada pela jurisprudência a propósito da questão dos caminhos públicos, com especial destaque para o Assento do STJ 19.04.1989, atualmente com a natureza de acórdão de uniformização de jurisprudência, onde se consagrou a seguinte fórmula jurisprudencial: “São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso direto e imediato do público.”
Está nela em causa, de acordo Bernardo Azevedo (Servidão de Direito Público cit., pp. 95-100), numa formulação baseada em Vicenzo Cerulli Irelli, “uma particular categoria de direitos coletivos, tendo por objeto coisas imóveis ou móveis e consistindo no gozo e no uso, por parte do respetivo titular (público), das utilidades proporcionadas pelas mesmas”, ou, noutra formulação, esta baseada em A. Pubusa, “direitos reais que cabem à coletividade não personificada de utentes sobre bens pertencentes a outros sujeitos, quando os mesmos direitos sejam constituídos para a consecução de fins de interesse público correspondentes àqueles a que servem os bens dominiais.”
As coisas sobre que incidem os ditos direitos de uso público “pertencem, em regra, a sujeitos privados (que assumem a condição de terceiros por relação à coletividade que delas aproveita), encontrando-se os membros da comunidade utente, por sua vez, necessariamente ligados entre si por um vínculo de habitação (universitas incolarum).”
Como se constata a partir destes exemplos, os direitos de uso público incidem sobre bens, pertencentes a privados, mas abertos, atento o seu interesse para o público, à fruição da coletividade, como sejam as vias vicinais, os imóveis privados de interesse histórico, artístico e paisagístico, os museus e as bibliotecas de particulares contendo obras de arte de especial significado histórico e cultural e, ainda, as fontes ou nascentes de água subordinadas ao regime da propriedade privada.
Deste modo, continuando a seguir a lição de Bernardo Azevedo, tais direitos consistem, afinal, em “situações subjetivas de imputação coletiva, sendo diretamente titulados pela Allmende ou Universitas. Dito de outra forma, titular dos direitos de uso público é a comunidade de habitantes e não o seu ente público exponencial (por exemplo, o município ou a freguesia).” Este é convocado “apenas na sua condição de centro de imputação dinâmico dotado da indispensável capacidade de reagir aos comandos postos pelo ordenamento jurídico, isto é, enquanto sujeito de direito habilitado a exprimir uma vontade juridicamente significativa.”
Pois bem, foi em relação a esta categoria que a jurisprudência italiana construiu, enquanto facto aquisitivo, a par da usucapião e, bem assim, dos negócios jurídicos em geral, a figura da dicatio ad patriam, que consiste, ainda segundo Bernardo Azevedo, no “mero facto jurídico de colocar voluntariamente à disposição do público uma coisa própria.” Este facto, prossegue o autor, “perfeciona-se com o início do uso (pelo) público, ficando o proprietário, a partir desse exato momento, obrigado a respeitar o exercício destes direitos pela coletividade indeterminada sua beneficiária e, enquanto persistir nesta última um interesse contínuo e efetivo em ordem ao gozo da coisa, inibido de os fazer cessar unilateralmente, no que constitui a expressão mais viva da sua perenidade.”
A figura abrange uma grande variedade de situações concretas, chegando até à street art contemporânea, conforme dá nota Angela Saltarelli (Street Art e Diritto: Un apporto ancora in via di definizione, p. 3[11]) e funda-se na vontade do dicans em colocar a coisa de que é proprietário à disposição da coletividade indiferenciada – que não em transferir o seu direito de propriedade –, com carácter permanente, como bem salienta Marco Falcon (“La volontà nella dicatio ad patriam. Considerazioni a margine di una pronuncia recente”, Teoria e Storia del Diritto Privato, XIV, 2021, p. 6[12]), autor que afasta o entendimento comum na jurisprudência de a reconduzir a um mero facto jurídico.
De acordo com a doutrina italiana, a dicatio ad patriam é um modo de constituição específico dos direitos de uso público, imputados diretamente à Allmende ou Universitas,não podendo ser transposta para os direitos reais parciários públicos, que se constituem a favor de uma concreta pessoa pública e que são os únicos compatíveis com o conceito de dominialidade pública, como tais enquadráveis na previsão da já citada alínea n) do art. 4.º do DL n.º 477/80 que, versando sobre o conjunto dos bens do domínio público e privado que formam o património do Estado, pressupõem sempre que o titular dos direitos aí enumerados é o Estado (ou, por analogia, qualquer outra pessoa coletiva de direito público). Dito de outra forma, a dicatio ad patriam, tal como gizada no direito italiano, não é uma forma de aquisição de iura in re aliena dominiais, como sejam o usufruto, a superfície ou o simples uso, por definição constituídos em benefício de uma pessoa coletiva de direito público para a consecução de fins públicos quando para esse efeito seja suficiente a titularidade de um direito real limitado sobre bens de particulares.
Ora, aquilo que está em causa na ação não é a aquisição de um direito de uso público a favor da comunidade indiferenciada de habitantes, mas a aquisição de um direito de superfície a favor de uma freguesia, pessoa coletiva de Direito Público e matriz territorial.
Concluímos, portanto, ao contrário do entendido na sentença recorrida, que não podemos enquadrar em tal figura a causa de aquisição de um qualquer direito de natureza real menor que permita à Recorrida o uso da parcela de terreno e a sua inclusão no respetivo domínio público.
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5).2.6. Perante o que antecede, não tendo a Recorrida adquirido um direito que lhe permitisse a apropriação da parcela de terreno reivindicada e a construção nela de um equipamento público, seria de concluir pela procedência da pretensão de restituição formulada pelo Recorrente.
Não podemos, todavia, esquecer que, ao construir o depósito de água, dando-lhe uma utilidade pública, a Recorrida fez uma afetação (material) dessa parcela ao respetivo domínio público. E procedeu desse modo, investindo capitais públicos, depois de ter obtido autorização do Recorrente, na sua qualidade de titular do direito de propriedade.
Visando dar resposta a situações deste tipo, a jurisprudência francesa, numa orientação iniciada com o Arrêt do Conseil d’État conhecido como Robin de la Grimaudière, de 17.07.1853, e prosseguida com o Arrêt do Tribunal des Conflits conhecido como Consorts Sauvy, de 6.02.1956, gizou o princípio da intangibilidade da obra pública (intangibilité de l'ouvrage public).
De acordo com este princípio, tal como inicialmente concebido, uma obra pública construída de forma ilegal não podia, em hipótese alguma, ser destruída (“ouvrage public mal planté ne se détruit pas”), o que era justificado com base em três razões fundamentais: a prevalência do interesse público, que a obra se destinava a servir, face à propriedade privada; a proteção das finanças públicas; a falta de competência dos tribunais comuns para se substituírem à administração pública, o que sucederia se determinassem a destruição da obra.
Entendia-se então que, quando o proprietário privado fosse privado de parte do prédio objeto do seu direito sem que a pessoa pública tivesse seguido o procedimento legal de expropriação (ou adquirido o direito de se apropriar da coisa através dos meios próprios do direito privado), havia uma espécie de expropriação indireta, o que implicava que, por um lado, qualquer pedido feito perante o juiz administrativo visando a demolição ou a remoção de uma obra pública fosse inadmissível, tal como decidiu o Tribunal des Conflits no referido caso Consorts Sauvy, e, por outro, que o juiz comum se declarasse incompetente para ordenar a demolição da obra pública litigiosa, mesmo diante da existência de uma via de facto. Neste sentido, decidiu a 1.ª Câmara Civil da Cour de Cassation em Ac. de 17 de fevereiro de 1993, conhecido como caso Ville de Pantin.
A única solução para o proprietário privado seria solicitar uma indemnização pela perda definitiva de seu bem.
O Conselho de Estado iniciou um processo de atenuação deste princípio com o Ac. de 19 de abril de 1991, caso Epoux Denard, ao aceitar, pela primeira vez, fazer um controle na hipótese de erro manifesto da administração na implantação da obra pública. Depois, a Cour de Cassation, no Ac. da Assembleia Plenária de 6 de janeiro de 1994, caso Baudon de Mony, afirmou que a transferência de propriedade não solicitada pelo proprietário só poderia ocorrer após um procedimento regular de expropriação. Consequentemente, o juiz devia ordenar a demolição de uma obra pública implantada irregularmente.
O Tribunal de Conflitos posteriormente alterou sua jurisprudência, considerando que, no caso de pedido contra uma obra pública irregularmente construída, o juiz judicial seria o competente se houvesse via de facto, conforme o Ac. de 6 de maio de 2002, caso Binet, que reverteu a decisão da Corte de Cassação no caso Ville de Pantin.
Por fim, a concretização da tangibilidade da obra pública ocorreu com o Ac. do Conselho de Estado de 29 de janeiro de 2003, caso Syndicat Départemental de l’Électricité et du Gaz des Alpes Maritimes: quando o juiz administrativo fosse chamado a decidir sobre a demolição de uma obra pública, ele devia primeiro verificar se era possível regularizá-la. Se tal não fosse possível, o juiz devia realizar uma análise de custo-benefício para avaliar os inconvenientes ligados à presença da obra e aqueles decorrentes de sua demolição.
Na sequência, o Conselho de Estado aplicou esta jurisprudência ao ordenar a destruição de uma linha elétrica aérea no Ac. de 9 de junho de 2004, caso Commune de Peille. Já no Ac. 13 de fevereiro de 2009, caso Commune de Saint-Malo, recusou-se a ordenar a demolição, considerando os benefícios para a economia local e a segurança das pessoas, optando, nesse caso, por conceder indemnização ao proprietário lesado.[13]
Concomitantemente, a Cour de Cassation aceitou ações visando a demolição de obras públicas perante situações de "via de facto", como no Ac. de 30 de abril de 2003, caso Commune de Verdun.
Também em Itália a jurisprudência criou a figura da ocupação apropriativa, segundo a qual a construção de uma obra pública em terreno ilegitimamente ocupado, determina a aquisição originária desse terreno pela administração pública, ao mesmo tempo que constitui um ato ilícito que confere ao proprietário do terreno o direito a ser indemnizado pelo prejuízo sofrido, tendo esta solução vindo a obter consagração legal no art. 43 do Testo unico delle disposizioni legislative e regolamentari in materia di espropriazione per pubblica utilità (D.P.R. 8.06.2001, n. 327), cujo n.º 1 estabelece que “[v]alutati gli interessi in conflitto, l'autorità che utilizza un bene immobile per scopi di interesse pubblico, modificato in assenza del valido ed efficace provvedimento di esproprio o dichiarativo della pubblica utilità, può disporre che esso vada acquisito al suo patrimonio indisponibile e che al proprietario vadano risarciti i danni.”
Estas soluções jurídicas têm, contudo, vindo a ser questionadas, por se traduzirem numa ofensa inadmissível ao direito de propriedade, o que levou, inclusive, à condenação do Estado Italiano pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, inter alia, nos Acs. de 30.05.2000 (caso Belvedere Alberghiera S.R.L. c. Itália[14]), 22.12.2009 (caso Guiso-Gallisay c. Itália[15]) e 3.06.2014 (caso Rossi e Variale c. Itália[16]) devido ao recurso abusivo à figura da ocupação apropriativa.
Na sequência de tais condenações, a Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa aprovou a Resolução n.º 1516, de 2 de outubro de 2006, em que fez notar a ausência de progressos na solução do problema estrutural da expropriação indireta, pelo Estado Italiano, qualificada como “uma prática abusiva das coletividades locais equivalente a um confisco ilegal violadora do direito de propriedade”, e levou ao acompanhamento da execução das decisões por parte do Comité de Ministros do Conselho da Europa (cf. art. 46/1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem).[17]
Em Portugal, na doutrina, Alves Correia (As garantias do particular na expropriação por utilidade pública, Coimbra: Almedina, 1993, pp. 172-177), distinguiu entre as situações de via de facto e de apropriação irregular, correspondendo as primeiras aos casos de ilegalidade grave e patente da ocupação, e as segundas às situações de ilegalidade simples e leve, que equiparou às situações de expropriação indireta, dando estas últimas lugar apenas ao pagamento de uma indemnização.
O autor retomou o tema (Manual do Direito do Urbanismo, II, Coimbra: Almedina, 2010, pp. 352-353) e, sensível à censura que vinha sendo feita às teses que legitimavam a afetação a um fim público de uma ocupação ilegal, concluiu que “[a]s figuras jurídicas da apropriação irregular e da expropriação indireta, bem como da ocupação apropriativa, não podem, em face das razões expostas, ser admitidas no nosso direito, pelo que as questões da manutenção da obra pública irregularmente implantada ou da demolição da mesma e da restituição do terreno ao seu proprietário não devem ser decididas com base na aplicação acrítica daquelas teorias ou doutrinas, mas com base na ponderação feita pelo juiz dos interesses coenvolvidos nos casos concretos.”
De acordo com a sistematização feita em RC 13.10.2015 (59/14.3T8TCS.C1), Sílvia Pires, a jurisprudência, norteando-se pelos primeiros ensinamentos de Alves Correia, seguiu o critério da distinção entre os casos de ilegalidade grave e patente da ocupação e os de ilegalidade simples e leve, incluindo nestes últimos situações em que a área do terreno ocupado excedeu a daquele que foi objeto de expropriação (STJ 9.01.2003, 02B3575, Dionísio Correia) ou em que, tendo havido declaração de utilidade pública, não se seguiu um processo expropriativo, tendo aquela caducado (STJ 29.04.2010, 1857/05.4TBMAI.S1, Alves Velho; RP 29.03.2011, 1120/08.9TBSJM.P1, Cecília Agante; RL 24.09.2009, 10303/08-2, Maria José Mouro) ou em que houve um acordo pré-contratual de cedência do terreno ocupado (STJ 18.02.2014, 934/11.7TBOAZ.S1, Pinto de Almeida), ou em que a declaração de utilidade pública foi anulada por vício formal (STJ 15.04.2015, 100/10.0TBVCD.P1.S1, António Abrantes Geraldes; RP 29.10.2012, 705/08.8TBVCD.P2, Carlos Querido), tendo recusado a possibilidade do proprietário lesado reivindicar com sucesso o prédio ocupado. Já nos casos em que a administração pública se apossou do terreno sem qualquer título que a legitimasse, e sem qualquer iter procedimental de declaração de utilidade pública, reconheceu o direito do proprietário lesado recuperar o prédio ilegitimamente ocupado (STJ 5.02.2015, 742/10.2TBSJM.P1.S1, Granja da Fonseca).
Sintetizando o entendimento da jurisprudência, escreve-se em STJ 5.02.2015 (2125/10.5TBBRR.L1.S2), António Abrantes Geraldes:
“Perante atos de que resulte a violação ilegítima do direito de propriedade - ilegitimidade que ocorre designadamente nos casos em que alguma entidade se apropria de um prédio fora do quadro do processo expropriativo ou excedendo materialmente os limites desse ato – o proprietário pode obter o reconhecimento do seu direito e a reconstituição da situação anterior, mediante a restituição do bem e, eventualmente, a atribuição de uma indemnização pelos danos decorrentes da ocupação ilegal.
Esta é a solução que, em regra, também deve ser adotada sempre que se verifique uma situação que se reconduza ao que soe apelidar-se de expropriação de facto, em resultado da apropriação ou ocupação de um prédio que não seja legitimada pelas regras que regulam o instituto da expropriação por utilidade pública.
Porém, a diversidade de motivações ou de circunstâncias que envolvem as situações de apropriação ilegítima de um prédio alheio é suscetível de convocar a aplicação de outras regras ou de outros princípios que permitem moderar o resultado que se obteria a partir das da aplicação irrestrita das regras a que obedece a ação de reivindicação.
A apropriação ou ocupação de prédios alheios por entidades públicas pode apresentar-se sob vários gradientes que vão desde o desrespeito flagrante das regras sobre a expropriação por utilidade pública até situações em que a violação objetiva do direito de propriedade é resultado de comportamentos que se inscrevem na mera culpa ou na ausência de culpa, ou é traduzida em situações que se manifestam através da violação dos limites objetivos do prédio expropriado, por vezes, em resultado de um mero erro ou de excesso na execução do ato expropriativo. Enfim, casos existem em que a violação objetiva do direito de propriedade é precedida ou acompanhada de uma aparência de legitimidade quanto à ocupação ou apropriação de prédio alheio que, no entanto, é infirmada pela análise mais cuidada dos respetivos contornos legais.
Em tais circunstâncias, a aplicação dos efeitos típicos da ação de reivindicação poderia revelar-se excessiva, designadamente quando, na sequência da ocupação ou apropriação, a entidade pública aplicou o imóvel a fins de utilidade pública ou à realização de obra pública, envolvendo vultuosos investimentos. O reconhecimento puro e simples do direito de propriedade, com a consequente condenação da entidade ocupante na restituição do prédio nas condições em que o mesmo se encontrava, pode revelar-se desproporcionado e gravemente lesivo dos interesses de ordem pública, tendo em consideração os investimentos ou as despesas entretanto realizadas.
Para situações como estas tem sido desenvolvida uma tese, intermediada pelos tribunais em face dos casos concretos, que legitima uma limitação ao exercício do direito de reivindicação, substituindo-o pela atribuição de uma indemnização correspondente ao valor expropriativo do prédio, ponderando o princípio da intangibilidade da obra pública que mais não é do que uma versão administrativista das figuras do abuso de direito ou da colisão de direitos previstas nos arts. 334º e 335º do CC.
Posto que tal princípio não esteja expressamente consagrado na lei, encontra sustentação no disposto nos arts. 159º e segs. do CPTA, na medida em que se permite afastar a execução de julgado em casos em que esta provoque grave lesão do interesse público. Ou ainda no art. 173º, nº 3, do CPTA, nos termos do qual a situação jurídica fundada em atos consequentes praticados há mais de um ano é suscetível de obter uma garantia que impede a sua modificação quando os danos sejam de difícil ou impossível reparação e for manifesta a desproporção existente entre o interesse na manutenção da situação e o interesse na execução da sentença anulatória. E também no art. 134º, nº 3, do CPA, nos termos do qual o efeito da nulidade do ato administrativo “não prejudica a possibilidade de atribuição de certos efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de atos nulos, por força do simples decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais do direito”. Outrossim com o art. 162º, nº 3, do novo Cód. de Proc. Administrativo, aprovado pela Lei nº 4/15, de 7-1, segundo o qual o disposto quanto à nulidade dos atos administrativos “não prejudica a possibilidade de atribuição de efeitos jurídicos a situações de facto decorrentes de atos nulos, de harmonia com os princípios da boa-fé, da proteção da confiança e da proporcionalidade ou outros princípios jurídicos constitucionais, designadamente associados ao decurso do tempo”.
Com recurso a tal princípio geral, em casos em que a condenação na restituição do prédio livre e desocupado constituiria um resultado manifestamente inadequado, por resultarem gravemente afrontados interesses de ordem pública, é possível sustentar uma solução diversa daquela que resultaria da aplicação das regras exclusivamente extraídas do direito privado.”
A solução para uma equilibrada composição dos interesses públicos e privados neste domínio, com respeito pelo direito fundamental à propriedade privada consagrado no artigo 62º da Constituição, passa por figuras como o abuso de direito – art.º 334º do C. Civil –, que, no caso concreto, tenha em consideração num juízo de proporcionalidade, por um lado a gravidade da ofensa aos interesses sociais satisfeitos pela afetação ao domínio público da propriedade privada e, por outro lado, a gravidade do prejuízo causado ao proprietário desapossado.
No presente caso, tendo a afetação do caminho ao domínio público sido precedida de uma doação verbal do mesmo ao Município de ..., pela voz do seu proprietário na altura, apesar do ato ser nulo, por vício de forma, não sendo idóneo para operar a transmissão da propriedade para a esfera pública, não deixa de traduzir o assentimento daquele no sentido do respetivo terreno que lhe pertencia ser afeto ao domínio público.
Ora, quando a afetação de um prédio pertencente a um particular ao domínio público tem na sua base o consentimento desse particular nessa afetação, não se pode considerar que o domínio público existente esteja ferido de um vício no seu ato constitutivo. Aquele consentimento não pode deixar de relevar quando a titularidade do direito de propriedade não coincide com o tipo de afetação operado, impedindo, por exemplo, uma restituição do terreno à posse do seu proprietário, por força da figura do abuso de direito – art.º 334º do C. Civil –, na modalidade do venire contra factum proprium. Se o proprietário do terreno consentiu na sua afetação ao domínio público, ofende os ditames da boa-fé, designadamente a tutela da confiança que foi criada com aquele assentimento, uma restituição do mesmo à sua posse, com prejuízo para os interesses públicos servidos por aquele domínio.
Consubstanciando a afetação pública o ato administrativo que coloca um bem a desempenhar a função que justificou a sua sujeição pelo legislador a um regime específico de direito público, com a consequente modificação do seu estatuto jurídico, independentemente da posição que se tome quanto aos termos e conteúdo da subsistência do direito de propriedade privada, a administração pública passa a ter o direito de reagir contra atos materiais levados a cabo pelo titular do direito de propriedade ou por terceiro que impeçam ou perturbem a prossecução do destino a que a coisa, por força da afetação, se encontra adstrita, incluindo a dedução de procedimento cautelar, visando a remoção desses obstáculos.”
Aderindo a esta orientação, temos que, no caso vertente, a afetação do caminho ao domínio público foi precedida de uma doação verbal feita pelo Recorrente.
Este ato, apesar de nulo, por vício de forma – e, logo, inidóneo para operar a transmissão da propriedade para a esfera da Recorrida –, não deixa de traduzir o assentimento do doador no sentido do terreno que lhe pertencia ser afeto ao domínio público mediante a realização da obra projetada.
A exigência da sua restituição, depois de a Recorrida, baseada nesse quadro factual, ter realizado a obra pública, no que investiu capitais públicos, enforma, sem margem para qualquer dúvida, um venire contra factum proprium, integrador do abuso do direito. Com efeito, como se escreve no citado STJ 5.02.2015, “[s]e o proprietário do terreno consentiu na sua afetação ao domínio público, ofende os ditames da boa-fé, designadamente a tutela da confiança que foi criada com aquele assentimento, uma restituição do mesmo à sua posse, com prejuízo para os interesses públicos servidos por aquele domínio.”
Deste modo, ainda que por fundamento diverso do indicado na sentença recorrida, entendemos que a pretensão de restituição da parcela de terreno ocupada pela Recorrida não pode proceder, improcedendo, portanto, o recurso nesta parte.
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6). Na procedência parcial do recurso, com a consequente revogação da sentença recorrida na parte em que julgou improcedente o pedido de reconhecimento do direito de propriedade, as custas (quer da ação, quer do recurso) devem ser suportadas por Recorrente e Recorrida, na proporção de metade para cada: art. 527/1 e 2 do CPC.
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V.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar o presente recurso parcialmente procedente e, em consequência:
(i) Revogam a sentença recorrida na parte em que julgou improcedente o pedido de reconhecimento de que o Recorrente é o proprietário do prédio rústico, constituído por pinhal, com área de 3 800 m2, sito no Lugar ..., da extinta freguesia ..., atual União de Freguesias ... e ..., concelho ..., a confrontar a norte com Limite da Freguesia, a sul e de poente com CC e a nascente com DD, omisso na Conservatória do Registo Predial e inscrito na matriz predial respetiva sob o atual artigo ...92, o qual teve origem no artigo ...06/..., substituindo-a por decisão a julgar este pedido procedente;
(ii) No mais, confirma a sentença recorrida;
Condenam Recorrente e Recorrida no pagamento das custas da ação e do recurso em partes iguais.
Notifique.
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Guimarães, 05-06-2025
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.ª Adjunta: Maria João Marques Pinto de Matos
2.º Adjunto: Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício