CASO JULGADO
RECURSO DE REVISÃO
FUNDAMENTOS
TAXATIVIDADE
Sumário

I - O caso julgado liga-se a imutabilidade das decisões judiciais, sendo uma expressão do princípio da segurança jurídica que é própria de um Estado de Direito.
II - O recurso de revisão previsto no artigo 696.º e seguintes do CPC constitui uma derrogação àquela intangibilidade do caso julgado formado pela sentença revidenda e, deste modo, à segurança ou à certeza jurídicas que aquele envolve.
III - Uma derrogação de tão estruturante princípio do Estado de Direito, só é admissível em situações de tal modo graves que comprometam as exigências da justiça e da verdade no conflito com a necessidade de segurança ou de certeza.
IV - Apenas em situações excepcionais, que correspondam a cada um dos fundamentos taxativos do recurso de revisão previstos no art.º996 do CPC, é admissível a renovação da instância com vista à verificação de algum dos motivos cuja gravidade foi suficiente para se sobrepor aos efeitos que emanam de decisão transitada em julgado.
V - São dois os aspectos que, incontornavelmente, se retiram do fundamento legal previsto no art.º696.º, al.c), do CPC: a novidade e a suficiência.
VI - O requisito da novidade exige que documento não tenha sido apresentado no processo onde foi proferida a decisão revidenda, seja porque ainda não existia (superveniência objectiva), seja porque, existindo, a parte não pôde dele socorrer-se (superveniência subjectiva).
VII - A suficiência significa que o documento tem de ser suscetível de, por si só (isto é, sem ter de ser completado com outros elementos de prova), modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.

Texto Integral

Proc.766/22.7T8PRT-A.P1 - Recurso de apelação

Tribunal recorrido: JL Cível do Porto – J8

Recorrente: AA

Recorrida: A..., S.A.


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Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto,

I.

O A. / recorrente AA interpôs recurso extraordinário de revisão com fundamento no art. 696.º, alínea c) do Código de Processo Civil.

Sustenta que a Ré “A..., S.A.” omitiu dado relatório interno atinente à averiguação do acidente em discussão nos autos que tinha à sua disposição, mais requerendo, a final, que a mesma proceda à sua junção aos autos.

Entende que tal relatório pericial, a que não teve acesso, se considerado na processo principal, comprovaria a inexistência de fundamento para a atribuição de apenas 50% de responsabilidade à Recorrida pelo sinistro e pelos danos dele decorrentes conforme decidido por sentença naqueles autos proferida.

Apresenta as seguintes conclusões:

1.ª O presente recurso vem interposto da Sentença proferida no dia 12 de junho de 2024, no âmbito do processo n.º 766/22.7T8PRT, por este Tribunal.

2.ª A sentença recorrida concluiu pelo reconhecimento da responsabilidade da Ré pelos danos emergentes do sinistro ocorrido em 15-2-2021 na proporção de apenas 50%, dando como incerta a dinâmica do sinistro de viação ocorrido.

3.ª Nessa sequência, condenou a ora recorrida ao pagamento da quantia de 3.348,72 € (três mil, trezentos e quarenta e oito euros e setenta e dois cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal civil, a contar da data da citação e até integral pagamento; e da quantia de 5.462,25 € (cinco mil, quatrocentos e sessenta e dois euros, e vinte e cinco cêntimos),acrescida de juros, à taxa legal civil, a contar da presente data e até integral pagamento ao ora Recorrente.

4.ª Contudo, o Recorrente veio, recentemente, a ter conhecimento de um documento – relatório pericial produzido – que comprova a inexistência de fundamento para a atribuição de apenas 50% de responsabilidade à Recorrida pelo sinistro e pelos danos dele decorrentes.

Com efeito,

5.ª O recurso de revisão, previsto no artigo 696.º doCPC, constitui um mecanismo extraordinário e excecional para a revogação de decisões transitadas em julgado, aplicável apenas em situações específicas de superveniência ou descoberta de ilegalidade insanável.

6.ª Nos termos da alínea c) do referido artigo, a revisão exige a apresentação de um documento novo, desconhecido ou impossível de ser utilizado pela parte no momento da decisão, que, por si só, tenha força suficiente para alterar o resultado do julgamento em benefício do recorrente.

7.ª Assim, é necessário o preenchimento cumulativo de três pressupostos: i) Meio de prova documental: apenas documentos podem fundamentar o pedido de revisão, sendo inadmissíveis outros meios de prova; ii) Superveniência: o documento deve ser novo, objetivamente ou subjetivamente desconhecido à época da decisão, e sua não utilização não pode ser imputável à parte requerente; iii) Nexo de essencialidade: o documento deve ter a capacidade, por si só, de modificar a decisão transitada em julgado, sem necessidade de outros elementos probatórios.

8.ª No caso concreto, estamos perante um documento totalmente desconhecido pelo Recorrente à época da ação e cuja existência, inclusive, apenas veio ao seu conhecimento por circunstâncias completamente alheias aos factos discutidos no processo.

9.ª Adicionalmente, conforme já se referiu, relativamente à dinâmica do sinistro objeto da ação, este d. Juízo concluiu a impossibilidade de inferência sobre a responsabilidade das partes, considerando como não provada a narrativa apresentada pelo Recorrente de que o veículo segurado pela Recorrida havia invadido a sua faixa de rodagem e causado o acidente.

10.ªNesse contexto, o relatório de perícia produzido – e ocultado pela Recorrida até ao momento – que atesta, de forma inequívoca, a culpa do condutor do veículo segurado pela Recorrida no sinistro reveste, sem sombra de dúvidas, de caráter essencial e suficiente para a revisão da sentença proferida.11.

11.ª Portanto, a superveniência do documento, aliado à sua força probatória autossuficiente, confere-lhe a virtualidade necessária para fundamentar a revisão da decisão em benefício do Recorrente.

12.ªAlém disso, no que concerne à tempestividade do recurso, considerando que a sentença foi proferida em 2024, resta patente a observância do prazo de interposição de 5 anos após o transito em julgado da decisão; para mais, relativamente ao prazo de 60 dias imposto pela c) do n.º 2 do artigo 697.º do CPC, deve-se reconhecer que o mesmo sequer iniciou a contagem, dado que, apesar de todos os esforços envidados pelo Recorrente para obter a totalidade dos documentos probatórios relativos ao sinistro em causa, o referido relatório foi sistematicamente omitido e, mesmo após a sua existência ser revelada, o acesso ao seu conteúdo foi-lhe reiteradamente negado.

13.ªPois bem, passando a motivação para o presente recurso, o Recorrente teve conhecimento de um documento superveniente – um relatório pericial que atribui inequivocamente a responsabilidade do sinistro ao condutor do veículo segurado pela Recorrida – em circunstâncias totalmente alheias ao presente processo, quando foi testemunha num outro acidente de viação,, à pedido de um colega de trabalho.

14.ªFoi nesse contexto que o Recorrente teve contacto com o perito da seguradora envolvida naquele acidente. Para sua surpresa, tratava-se do mesmo perito responsável pela avaliação do sinistro em que foi vítima, sendo que ao trocarem algumas palavras, o perito o perguntou como havia ficado resolvido o seu processo.

15.ªAo tomar conhecimento da decisão que atribuíra apenas 50% da responsabilidade à Recorrida, o perito demonstrou grande perplexidade, pois afirmou que o relatório pericial por ele elaborado e entregue à seguradora indicava, de forma expressa, que a totalidade da responsabilidade pelo acidente cabia ao outro condutor.

16.ªNessa oportunidade, o perito mostrou no seu dispositivo eletrónico o relatório produzido. Contudo, negou a disponibilização do mesmo, o que se compreende, dada a boa-fé profissional dele.

17.ª Na tentativa de obter o relatório ainda extrajudicialmente e, simultaneamente, de comprovar a sua existência e fiabilidade, o Recorrente endereçou à Recorrida, em 08-11-2024, uma interpelação formal, requerendo a cópia do relatório.

18.ªContudo, em 11 de dezembro de 2024, a Recorrida respondeu, limitando-se a afirmar que se tratava de documento interno, que não poderia ser facultado.

19.ªDiante de todo exposto, resta nítido que a ocultação do relatório pericial privou – e continua a privar - o Recorrente da possibilidade de exercer adequadamente a sua defesa e de apresentar um quadro probatório completo, o que constitui fundamento bastante tanto para a admissão do presente recurso, quanto para a revisão da decisão mencionada.

20.ª Ora, a resposta da Recorrida à interpelação evidencia a perpetuação de uma conduta já anteriormente reprovável, para além de não encontrar qualquer suporte legal. Pelo contrário, o artigo 36.º da Lei n.º 72/2008, que regula o regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, impõe expressamente o dever de disponibilização de relatórios de peritagem aos interessados, nomeadamente ao lesado.

21.ªCom isso, importa sublinhar que a omissão da Recorrida e a sua contínua recusa em fornecer o relatório não podem, de forma alguma, ser utilizadas para prejudicar o Recorrente no presente recurso de revisão. O facto de ele não juntar desde já o documento em questão não resulta de qualquer inércia ou falta de diligência da sua parte, mas sim da conduta ilícita da seguradora, que, violando a lei e os princípios da boa-fé, persiste em ocultá-lo.

22.ªPara mais, ainda que, nesta fase, não possa o Recorrente apresentar transcrições do documento para demonstrar o seu conteúdo exato a verdade é que, quando este documento for finalmente requerido e apresentado, falará por si próprio.

23.ª Ademais, não se pode ignorar a evidente assimetria existente entre as partes. De um lado, a Recorrida, uma seguradora com amplos recursos, assessoria jurídica especializada e total acesso aos elementos do processo. Do outro, o Recorrente, um cidadão comum, sem os mesmos meios e que, ao longo de todo o procedimento, foi colocado em desvantagem exatamente pela ocultação de prova essencial. Essa disparidade não pode ser desconsiderada, sob pena de se permitir que uma parte economicamente e estruturalmente mais forte se aproveite dessa desigualdade para frustrar direitos legítimos.

24.ª Dessa forma, permitir que a omissão ilícita da seguradora impeça a revisão do caso significaria compactuar com um desequilíbrio processual inaceitável e premiar a violação dos deveres legais de transparência e cooperação.

25.ª Afinal, no caso vertente, o relatório que foi deliberadamente omitido pela seguradora contem uma análise técnica rigorosa que atribuía a total responsabilidade pelo acidente ao outro condutor, em total contradição com a decisão judicial que imputou 50% da culpa ao Recorrente.

26.ª Isto é, se este relatório tivesse sido apresentado oportunamente, o desfecho da ação teria sido outro, pois a sua força probatória teria afastado qualquer dúvida quanto à culpa exclusiva do outro condutor, permitindo ao Recorrente obter uma condenação integral da seguradora na reparação dos danos sofridos.

27.ªDestarte, é patente que a decisão assenta em premissas que não se sustentam face ao novo elemento de prova agora apresentado, impondo-se a sua revisão.

28.ª Nesse cenário, para além do mais, revela-se fundamental reconhecer que a atuação da Recorrida no presente processo ultrapassa os limites da boa-fé processual e da lealdade que se impõe às partes, configurando-se, de forma inequívoca, como litigância de má-fé, nos termos do artigo 542.º do Código de Processo Civil (CPC).

29.ª No caso concreto, verifica-se que a Recorrida deliberadamente omitiu um relatório pericial essencial para a justa decisão da causa, configurando uma violação manifesta do dever de probidade e lealdade processual e enquadrando-se na litigância de má-fé substancial, conforme previsto no artigo 542.º, n.º 2, alínea b), do CPC.

30.ª A omissão deste relatório foi, sem dúvida, determinante para o desenrolar da lide, na medida em que: (i) O Recorrente nunca teve acesso a esse documento, nem tinha como saber da sua existência, uma vez que se tratava de um relatório interno da seguradora; pelo que se viu forçado a litigar sem acesso a um documento que poderia sustentar de forma inequívoca a sua pretensão; (ii) Privou o Tribunal de um elemento técnico essencial, que permitiria aferir, com rigor e imparcialidade, a dinâmica do acidente e a responsabilidade das partes envolvidas; (iii) causou atraso na resolução do litígio, vendo-se o recorrente, agora munido dessa prova anteriormente oculta, obrigado a recorrer, prolongando indevidamente a presente lide.

31.ª Sobre o tema, uma observação faz-se essencial: a linha entre a liberdade estratégica da parte e a litigância de má-fé, aqui, aparenta-se bastante tênue. No entanto, in casu, a Recorrida não apenas deixou de apresentar um documento contrário aos seus interesses, mas, antes, omitiu sua existência por completo, prejudicando a justa composição do litígio.

32.ª Portanto, ao ocultar a existência do relatório, a Recorrida violou o dever de boa-fé, pois impediu o Recorrente e o Tribunal de terem acesso a um elemento fundamental para a decisão. Comportamento que não pode ser visto apenas como uma escolha estratégica legítima, mas sim como um abuso do processo.

33.ª Diante do exposto, impõe-se a condenação da Recorrida como litigante de má-fé, nos termos do artigo 542.º, n.º 1, do CPC, com a consequente aplicação de multa e indemnização ao Recorrente, de modo a compensar os prejuízos causados por esta atuação manifestamente reprovável.

À cautela,

34.ª Outro aspeto crucial não pode ser ignorado para a análise do presente recurso:

35.ª Por julgar que carecia de uma representação mais aguerrida e combativa, o Recorrente acabou por contratar uma nova advogada a meio do processo principal. Acontece que, a atuação da nova mandatária não foi condizente com as expectativas.

36.ª Pelo contrário, a mandatária falhou na condução do processo, não apresentando o recurso cabível e, mais, vindo-se a constatar que a mesma não possuía a habilitação necessária para o exercício da advocacia, utilizando cédula profissional de um outro colega, devidamente inscrito na Ordem dos Advogados e, pior, se encontrava envolvida em diversas queixas-crime por alegadas práticas de burla, assalto e agressão física.

37.ª Tal episódio, lamentavelmente, expôs o Recorrente a uma grave violação dos seus direitos, comprometendo a condução do processo de forma irreparável. O efeito direto dessa fraude foi a total ineficácia da “representação”, que, além de ser ilegal, contraria os princípios de confiança e boa-fé que devem nortear a relação entre advogado e cliente.

38.ª Nesse cenário, ainda que se admita, a título de cautela e por mero dever de patrocínio, que o Recorrente poderia, em tese, ter tomado outras diligências para garantir a apresentação do documento em questão — o relatório pericial —, é inegável que a falha na representação legal comprometeu profundamente a defesa dos seus direitos, o que não pode ser minimizado ou ignorado por este Juízo.

39.ª Neste contexto, a aplicação do conceito de “defesa ineficiente”, presente na jurisprudência brasileira, é plenamente pertinente ao caso em apreço;

40.ª Sendo certo que, embora o ordenamento jurídico português não disponha, de forma expressa, uma figura semelhante à “defesa técnica insuficiente”, tal como tratada na jurisprudência brasileira, a verdade é que os direitos fundamentais consagrados na Constituição da República Portuguesa (CRP), em especial o direito ao acesso à tutela jurisdicional efetiva, permitem que se reconheça a falha na defesa técnica quando esta comprometer a efetividade do processo.

41.ªAssim, a atuação inadequada da defesa, que comprometa os direitos das partes e a efetividade do processo, pode – e deve – também no direito português ser considerada uma violação dos direitos constitucionais e legais, justificando a revisão ou anulação do julgamento.

42.ª Com efeito, a ineficiência ora estampada não pode ser ignorada neste recurso, sendo fator determinante para a revisão da decisão do Tribunal... A falha na defesa técnica do Recorrente, somada à ausência de análise do documento essencial por este Juízo, evidencia uma violação do direito fundamental à defesa e à tutela jurisdicional efetiva, tornando-se imperioso que este Juízo reconheça o impacto dessas deficiências na condução do processo e, em razão disso, conceda a revisão da decisão.

Ou seja, como refere o relatório do despacho recorrido, em rigor, «o A. / recorrente AA interpôs o presente recurso extraordinário de revisão com fundamento na existência de documento que alega não ter tido a possibilidade de fazer uso no processo em que foi proferida a decisão pretendida rever, que, por si só, se mostra suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável a si (fundamento previsto no art. 696.º, alínea c) do Código de Processo Civil), não o apresentando, antes requerendo que a contraparte / recorrida seja notificada para apresentar.»

Pede a final:

- Deverá o presente recurso extraordinário de revisão ser julgado procedente, por provado;

- Deverá ser revogada a sentença recorrida, com as legais consequências; e, ainda,

- Deverá a Recorrida ser condenada por litigância de má-fé, com a consequente aplicação de Multa, nos termos do artigo 542.º, n.º 1, do CPC e de condenação ao pagamento de Indemnização ao Recorrente, para compensar o prejuízos causados por esta atuação manifestamente reprovável.

No confronto com o requerimento de recurso de revisão foi vestibularmente proferido o seguinte despacho de indeferimento:

«Despacho ao abrigo do disposto no art. 699.º nº 1 do Código de Processo Civil.


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O A. / recorrente AA interpôs o presente recurso extraordinário de revisão com fundamento no art. 696.º, alínea c) do Código de Processo Civil. Sustenta, em síntese útil, que a Ré “A..., S.A.” omitiu dado relatório interno atinente à averiguação do acidente em discussão nos autos que tem na sua disposição, mais requerendo, a final, que a mesma proceda à sua junção aos autos.

Ou seja, e em rigor, o A. / recorrente AA interpôs o presente recurso extraordinário de revisão com fundamento na existência de documento que alega não ter tido a possibilidade de fazer uso no processo em que foi proferida a decisão pretendida rever, que, por si só, se mostra suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável a si (fundamento previsto no art. 696.º, alínea c) do Código de Processo Civil), não o apresentando, antes requerendo que a contraparte / recorrida seja notificada para apresentar.

Vejamos.

Nos termos do disposto no art. 696.º do Código de Processo Civil, “a decisão transitada em julgado só pode ser objecto de revisão quando:

a) Outra sentença transitada em julgado tenha dado como provado que a decisão resulta de crime praticado pelo juiz no exercício das suas funções;

b) Se verifique a falsidade de documento ou acto judicial, de depoimento ou das declarações de peritos ou árbitros, que possam, em qualquer dos casos, ter determinado a decisão a rever, não tendo a matéria sido objecto de discussão no processo em que foi proferida;

c) Se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida;

d) Se verifique nulidade ou anulabilidade de confissão, desistência ou transacção em que a decisão se fundou;

e) Tendo corrido o processo à revelia, por falta absoluta de intervenção do réu, se mostre que:

i) Faltou a citação ou que é nula a citação feita;

ii) O réu não teve conhecimento da citação por facto que não lhe é imputável;

iii) O réu não pode apresentar a contestação por motivo de força maior;

f) Seja inconciliável com decisão definitiva de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado Português;

g) O litígio assente sobre acto simulado das partes e o tribunal não tenha feito uso do poder que lhe confere o artigo 612.º, por se não ter apercebido da fraude.

h) Seja susceptível de originar a responsabilidade civil do Estado por danos emergentes do exercício da função jurisdicional, verificando-se o disposto no artigo seguinte.”.

Ainda no que ao presente caso diz respeito, o recurso é interposto no tribunal que proferiu a decisão a rever, não pode ser interposto se tiverem decorrido mais de cinco anos sobre o trânsito em julgado da decisão e o prazo para a interposição é de 60 dias, contados desde que o recorrente obteve o documento (art. 697.º nº 1 e nº 2 al. c) do Código de Processo Civil).

O recurso extraordinário de revisão delimita-se exclusivamente pelos seus fundamentos e qualquer decisão judicial, ainda que interlocutória e não conhecedora do mérito da acção, é susceptível de ser impugnada através deste método.

Estamos no âmbito de recurso de juízo rescisório em que, em caso de procedência, a decisão revidenda é anulada, retomando-se o processo a partir do momento inquinado.

O recurso extraordinário de revisão é apenas admitido nas situações taxativas do art. 696.º do Código de Processo Civil, visando a impugnação de decisões judiciais já cobertas pela autoridade do caso julgado, pretendendo-se assegurar o primado da justiça sobre a segurança.

Ao contrário do recurso ordinário, que se destina a evitar o trânsito em julgado de uma decisão desfavorável, o recurso extraordinário de revisão visa a alteração de uma decisão já transitada, pelo que só é admissível em situações limite de tal modo graves que a subsistência da decisão em causa seja susceptível de abalar clamorosamente o princípio da desejada justiça material.

O documento atendível como fundamento da revisão da decisão transitada em julgado nos termos consagrados no referido art. 696.º al. c) do Código de Processo Civil, deverá preencher, cumulativamente, o requisito da novidade e o requisito da suficiência.

Significa a exigência de “novidade”, que o documento não foi apresentado no processo onde se proferiu a decisão a rever, seja porque ainda não existia, seja porque existindo, a parte não pôde socorrer-se dele. A exigência de “suficiência”, significa que o documento implica uma modificação dessa decisão em sentido mais favorável à parte vencida, sem necessidade de conjugação com outros elementos de prova produzidos ou a produzir em juízo.

Como se pode ler no sumário do Ac. da RC de 02-12-2014, proferido no processo n.º 536/2002.C1-A, disponível in www.dgsi.pt,

“4. Não preenche o fundamento do recurso de revisão do art. 771°, alínea c), do Cód. Proc, Civil (696º NCPC) a apresentação de documento com relevância para a causa e que, apenas em conjugação com outros elementos de prova produzidos em juízo, poderia modificar a decisão em sentido mais favorável à parte.

5. O documento atendível como fundamento da revisão da decisão transitada em julgado nos termos estabelecidos na al. c) do art. 771.º do CPC (696º NCPC), terá de preencher, cumulativamente, o requisito da novidade e o requisito da suficiência. A novidade significa que o documento não foi apresentado no processo onde se proferiu a decisão em causa, seja porque ainda não existia, seja porque existindo, a parte não pôde socorrer-se dele e a suficiência significa que o documento implica uma modificação dessa decisão em sentido mais favorável à parte vencida.

6.Não se verifica o requisito da novidade se os documentos que se apresentam para fundamentar a revisão são anteriores à decisão a rever (e, inclusivamente, à própria instauração da acção) e o recorrente conhecia a sua existência (ainda que dele se tivesse, como invoca, olvidado, por mero acidente mnésico, objecto de “recuperação” de memória ulterior).

7. Não se verifica o requisito da suficiência se o teor do documento apresentado não infirma, por si só, os fundamentos da decisão a rever, subsistindo antes, perante eles, o fundamento em que se sustentou o juízo decisório. Designadamente, como se constata da diegese probatória consumada e da motivação/fundamentação expressa no processo decisório nos Autos aludidos.”.

Ora, no caso presente, as alegações de recurso não preenchem nenhum dos requisitos acima enunciados, inclusivamente no que respeita ao documento pretendido juntar aos autos.

Com efeito, ainda que se equacione a sua existência, um relatório elaborado por um perito averiguador que foi incumbido da averiguação do sinistro, averiguação essa promovida pela Companhia Seguradora, não resulta mais do que isso mesmo, não tendo o condão de abalar, por si só, toda a prova que foi efectivamente produzida nos autos e que, analisada criticamente, à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida, conduziram a determinado desfecho, ainda que não do agrado do autor / recorrente, como nos parece que resulta de toda a alegação contida no recurso extraordinário de revisão interposto e, sobretudo, do recurso a uma figura própria da Jurisprudência estrangeira – concretamente, da Jurisprudência Brasileira (a alegada figura da “Defesa Ineficiente”), inclusivamente citada na alegação recursiva e com referência a um caso de homicídio qualificado tentado, que, de resto, não tem qualquer similitude ao concreto caso em análise. Como ainda, noutra perspectiva, de igual modo concedemos que não tenha sido do agrado da contraparte, dado que a acção foi julgada parcialmente provada e, nessa medida, parcialmente procedente, com divisão de responsabilidades [entre os condutores envolvidos].

Certo é que as alegações do recorrente, não se enquadram em nenhuma das alíneas acima referidas do art. 696.º do Código de Processo Civil.

Poderiam eventualmente servir de fundamento de recurso ordinário de apelação, se tempestivamente interposto. Porém, transitada em julgado a decisão final que colocou termo ao processo, nenhuma das alegações do autor / recorrente se enquadra nos fundamentos para interposição de recurso extraordinário de revisão, tal como exigidos pelo art. 696.º do Código de Processo Civil, inclusivamente na sua alínea c).


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Assim sendo, por tudo quanto exposto e ao abrigo das disposições legais acima referidas, bem como do disposto no art. 699.º nº 1 do Código de Processo Civil, indefiro o recurso extraordinário de revisão, por entender que não há motivo para revisão.

Custas pelo recorrente.

Valor do recurso: o da acção principal.

Registe e notifique.»


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Do assim decidido foi interposto recurso de apelação, oferecendo-se alegações e formulando-se as seguintes CONCLUSÕES:

1.º O presente recurso vem interposto da decisão do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Cível do Porto (Juiz 8), proferida no âmbito do processo n.º 766/22.7T8PRT-A, em despacho datado de 07-03-2025, com referência n.º 469439953.

2.º Na referida decisão, indeferiu-se liminarmente o recurso extraordinário de revisão interposto pelo Recorrente, sob o equivocado fundamento de ausência de motivo para revisão, considerando-se não preenchidos os requisitos da suficiência e da novidade, exigidos pelo preceituado no artigo 696.º al c) do CPC.

3.º Contudo, contrariamente à decisão do douto Tribunal a quo, entende-se que se verificam os referidos pressupostos. Senão vejamos:

4.º Em primeiro lugar, quanto ao requisito da novidade, resta mais do que demonstrado que: a) o documento nunca esteve na posse do Recorrente, nem este teve qualquer possibilidade de o requerer ou apresentar em tempo útil – entenda-se, durante a tramitação da ação; b) o Recorrente diligenciou, posteriormente, por via administrativa, no sentido de obter formalmente o referido documento, sem, contudo, lograr qualquer sucesso.

5.º Assim, não restam dúvidas de que o requisito da novidade do documento se encontra verificado.

6.º No que toca ao requisito da essencialidade/ suficiência do documento para modificar a decisão transitada em julgado, importa, antes de mais, salientar que, em que pese os termos do despacho recorrido transmitem a ideia de que houve provas produzidas e analisadas nos autos principais que não poderiam ser infirmadas pelo relatório pericial;

7.º A verdade é que a sentença a qual se busca a revisão apenas foi proferida tal como foi porque não foi possível averiguar a veracidade de factos essenciais à atribuição de culpa a uma ou a outra parte.

8.º Repetidamente se fez constar daquela decisão que o Tribunal permaneceu em situação de dúvida quanto aos factos e à dinâmica do acidente, pelo que ambas as versões tiveram de ser dadas como não demonstradas.

9.º Nesta senda, não se compreende como pode ser posta em causa a potencialidade de um relatório pericial, produzido elaborado por técnico competente, no próprio local do acidente, modificar a referida decisão judicial. 10.ºÉ preciso sublinhar a objetividade, imparcialidade e rigor técnico-científico que regem a atuação de um perito em situações desta natureza, sendo certo que circunstância, por si só, confere à prova pericial uma força acrescida no plano da convicção judicial – sem prejuízo, naturalmente, da livre apreciação do julgador.

11.º Todavia, no caso vertente, em que o próprio Tribunal reconheceu, por diversas vezes, a existência de dúvida quanto à responsabilidade pelo acidente, a importância deste parecer pericial é inegável, na medida em que se apresenta como meio suscetível de colmatar a falha probatória identificada e, por conseguinte, de influenciar decisivamente o sentido da decisão.

12.ºNesse contexto, não se pode aceitar a forma como o Tribunal a quo “descarta” um documento cujo conteúdo, tanto quanto foi possível averiguar, atribui inequivocamente a total responsabilidade pelo sinistro a um dos intervenientes – precisamente quando esse mesmo Tribunal declarou não dispor de elementos suficientes para proceder a essa imputação.

13.ºAssim, o relatório pericial, por si só, contrariamente ao referido pelo Mmo. Juiz na decisão recorrida, tem o condão de modificar substancialmente o desfecho da decisão, permitindo a imputação integral da responsabilidade à parte efetivamente culpada pelo acidente de viação, o condutor segurado pela Recorrida.

14.ºNesses termos, deverá o Recurso Extraordinário de Revisão ser admitido, com as consequências legais.


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Foram apresentadas contra-alegações, referindo-se:

1. O presente recurso está destinado ao insucesso, não preenchendo a situação em apreço os pressupostos necessários para admissibilidade de um recurso de revisão.

2. Na realidade, com o recurso de revisão interposto, o recorrente pretendendo fazer face a uma decisão com a qual não concordou, e àquilo que o mesmo apelidou e considerou de “defesa ineficiente”.

3. No entanto, e tal como a jurisprudência já vem afirmando “(…) a procedência do recurso de revisão não pode basear-se em alegações inconsistentes, infundadas e levianas, próprias da parte que não se conformou com a decisão definitiva sobre o mérito da causa e procura, por essa via, encontrar mais uma instância de recurso” (cfr. Ac. do STJ de 05-05-2020, proc. n.º 2178/04.5TVLSB-E.L2.S1).

Posto isto,

4. O recurso de revisão, constituindo uma importante exceção e, de certa forma, uma derrogação ao trânsito em julgado de uma decisão, apenas é admitido nos termos restritos e nas situações taxativas expressamente previstas na lei – artigo 696.º do CPC.

5. Nos termos da alínea que aqui nos importa, o recurso de revisão só será admissível quando “c) Se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.” (sic)

6. São, pois, dois os requisitos que o documento em causa tem de preencher para que o recurso de revisão seja admissível: a novidade e a suficiência.

7. Sendo que, no caso dos presentes autos, nenhum dos dois se verifica

Vejamos,

8. Em primeiro lugar, o documento em causa é pré-existente à decisão da causa e até mesmo à interposição da ação. Não podendo o Autor afirmar desconhecer a sua existência ou, pelo menos, a existência de uma averiguação.

9. O Autor poderia, de facto, não ter conhecimento do teor do documento ou eventuais conclusões do mesmo – e, em rigor, não tinha nem tem de ter (!!) -, mas tinha, certamente, conhecimento de que foi feita uma averiguação prévia pela recorrida.

10. Isto porque, para efeito dessa averiguação, o Autor foi contactado pelo averiguador em causa. Tanto que o reconheceu quando, posteriormente o encontrou.

11. E, por outro lado, a recorrida afirmou expressamente em sede de contestação ter procedido às normais averiguações do sinistro.

12. O documento resultante dessas averiguações é, no entanto, um documento interno da companhia, usado pela mesma para tomar posição quanto a eventual responsabilidade no sinistro – em nada sendo vinculativo para a mesma qualquer conclusão que a pessoa que o elaborou possa ter retirado - e de cujo teor a mesma não tem de dar conhecimento aos envolvidos, pelo que também ao Autor.

13. Sendo que, e como, de resto, sucede muitas vezes, está sempre na disponibilidade do Autor requerer ao tribunal a notificação da seguradora para juntar aos autos o documento em causa.

14. O que não foi feito nos presentes autos.

15. Ou seja, não só o documento referido pelo recorrente não é, nem objetiva nem subjetivamente, superveniente, como o recurso de revisão não serve para carrear para os autos elementos probatórios novos sobre factos pré-alegados que poderiam ter sido anteriormente juntos ou invocados.

Por outro lado,

16. E para que se verifique o requisito da suficiência, doutrina e jurisprudência vêm exigido, de forma consensual e unânime, que o documento em causa, por si só, e independentemente de qualquer outro elemento probatório dos autos, imponha uma decisão mais favorável ao recorrente.

17. Refira-se, a este propósito, o acórdão do STJ de 30.11.2023, processo n.º1079/08.2TYLSB-X.L1-A.S1, relator Ricardo Costa, onde se lê: “Terá que se tratar de um documento que em si tenha tal força probatória que, por si só, altere a decisão a rever. Neste sentido, se pronunciou o STJ no acórdão de 02-06-2019 (proc. n.º 13262/14.7...), afirmando, a este propósito, que “o fundamento previsto na al. c) do art. 696.º do NCPC refere-se a um documento escrito dotado de força probatória plena que seja suficiente para, por si só (alheando-se assim da margem de apreciação do julgador – trata-se de um julgamento produzido pela lei, embora com reflexo na matéria de facto), destruir a prova em que se fundou a decisão.” (sublinhado nosso)

18. Ou ainda o acórdão do mesmo tribunal de 11.07.2023, processo n.º 20348/15.9T8LSB-D.P1.S1, relatora Maria Clara Sottomayor, com o sumário: “I No recurso de revisão interposto com fundamento na alínea c) do artigo 696.º do CPC, a jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça considera que a apresentação de documento será admissível, quando: (i) o documento, por si só, e sem apelo a demais elementos probatórios, seja capaz de destruir o juízo probatório realizado em sede da decisão revidenda e imponha uma decisão mais favorável ao recorrente (requisito da suficiência); (ii) e quando o recorrente não tenha podido fazer uso do documento por desconhecimento da sua existência ou pela sua inexistência (requisito da novidade); iii) o documento deve visar a demonstração ou a impugnação de factos alegados pelas partes ou adquiridos para o processo que tenham sido essenciais para a decisão de mérito colocada em crise, não podendo em caso algum visar a prova de factos novos (requisito da pré-alegação).” (sublinhado nosso).

19. Ora, ao contrário do afirmando pelo recorrente, o documento em causa não constitui qualquer relatório pericial.

20. Nem, muito menos, pode ser considerado como prova pericial pelo tribunal.

21. E, nessa medida, não é capaz nem suficiente para destruir os outros elementos probatórios carreados para os autos.

22. Trata-se, na realidade, de um documento particular, elaborado por empresa/pessoa contratada pela recorrida para o efeito mas que, em rigor, não tem qualquer conhecimento dos factos e da forma como ocorreu o acidente uma vez que, como é evidente, não presenciou o mesmo não evidenciando, nessa medida, qualquer razão de ciência.

23. Pelo que quaisquer conclusões que o mesmo possa retirar do que averiguou, mais não são do que meras opiniões ou conjeturas que não podem ser validades como prova pericial.

24. E que em nada vinculam a recorrida ou qualquer outra entidade, máxime o tribunal.

25. Aliás, se assim fosse, seria desnecessário recorremos aos tribunais para aferir da responsabilidade por qualquer acidente de viação, ficando a situação “resolvida” com os relatórios de averiguação mandados fazer pelas seguradoras (!!!)

26. Por outro lado, aprova pericial será apenas aquela que for ordenada pelo tribunal nos termos definidos na lei.

27. E, até mesmo essa, não tem força probatória plena, sendo a mesma determinada pelo julgador perante as circunstâncias concretas e podendo ser contrariada por outros elementos.

28. Ora, a prova produzida nos presentes autos foi indicada pelas partes, na medida do seu conhecimento, quanto às pessoas que pudessem ter conhecimento de causa e razão de ciência quanto à dinâmica do acidente.

29. E, perante um sinistro, não haverá prova melhor do que essa para aferir do que realmente aconteceu tendo em vista a atribuição de responsabilidades.

30. E foi precisamente o que se verificou nos presentes autos.

31. Pelo exposto, e por não se encontrarem preenchidos os pressupostos legalmente exigidos para a admissibilidade do recurso de revisão interposto, muito bem esteve o tribunal recorrido ao não admitir o mesmo, devendo ser mantida a sua decisão.


*

O recurso foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

*

Foram colhidos os vistos legais.

*

II.

Releva-se para efeitos do que se decidirá, o teor factual que se retira do relatório que antecede, a isso acrescendo o teor da sentença cuja revisão se pretende, transitada e sem ter sido objecto de recurso, decisão cujos excertos com relevo se transcrevem:

«(….)

Com relevância para a decisão a proferir resultaram provados os seguintes factos:

1. No dia 15 de Fevereiro de 2021, cerca das 9 horas e 30 minutos, na Estrada Nacional nº ..., vulgarmente designada Estrada ..., freguesia ..., do concelho e comarca do Porto, ao KM 14,6, ocorreu um acidente de viação que envolveu os seguintes veículos:

– o veículo automóvel de marca Peugeot ..., com a matrícula ..-EM-.. (doravante designado por “EM”), conduzido pelo seu proprietário, BB;

– e o motociclo de marca Suzuki ..., com a matrícula ..-XX-.. (doravante designado por “XX”), conduzido pelo Autor, proprietário do mesmo;

2. O Autor circulava na EN ..., pelo lado direito da faixa de rodagem, considerando o seu sentido de marcha, de Oeste para Este, em direcção ao ....

3. O condutor do veículo “XX” circulava em sentido contrário.

4. No local a faixa de rodagem tem uma largura de 7,00 metros (fora a fora das linhas guia) e configura uma curva com duas vias de trânsito, uma para cada sentido, separadas por linha longitudinal contínua, cada uma com a largura de 3,50 metros.

5. A curva referida descreve-se para a direita atento o sentido de marcha do Autor e para a esquerda no sentido oposto.

6. A velocidade máxima permitida no local é de 50 km/hora.

7. O estado do tempo era bom e o piso encontrava-se seco.

8. A colisão deu-se na lateral esquerda do motociclo do Autor.

9. Em consequência da colisão, o motociclo conduzido pelo Autor tombou de lado deslizando no solo até ao local onde veio a imobilizar-se, produzindo marcas de arrasto sobre o pavimento.

10. O condutor do veículo “EM” deslocou o mesmo do local do embate.

(….)

2.2 – Factos não provados:

Com relevância para a decisão a proferir não resultaram provados os seguintes factos:

a) Que o condutor do veículo “MM”, ao desviar-se de um veículo que lhe apareceu do seu lado direito, saiu da via de trânsito destinada ao sentido por que circulava e invadiu a faixa de rodagem do Autor.

b) Que o Autor quando se apercebeu da presença do veículo com a matrícula ..-EM-.. na sua via, tentou desviar o motociclo para a direita, mas sem sucesso pois o veículo com a matrícula “EM” roçou na lateral do motociclo originando de imediato a queda do seu condutor.

c) Que a colisão ocorreu na via de trânsito destinada ao sentido Oeste para Este, em direcção ao ....

d) Que o Autor suportou a despesa de 284 dias de parqueamento do motociclo no valor de € 3.143,88.

e) Que o condutor do veículo “EM”, que circulava na EN ..., vulgo Estrada ..., no sentido ... – ..., no sentido ascendente, pela respectiva hemi-faixa de rodagem do lado direito, ao descrever uma curva localizada ao km 14,6 daquela via e que, atento o seu sentido de marcha, se descreve para a respectiva esquerda, foi surpreendido pelo motociclo “XX”;

f) ... Que ao descrever a curva em causa que, para si, se descrevia para a respectiva direita, fê-lo fora de mão, pelo que invadindo parcialmente, com a sua parte da frente, a hemi-faixa de rodagem contrária;

g) ... Com o que tudo se colocou à frente do “EM”;

h) ... Cortando a sua linha de marcha;

i) ... Acabando o inevitável embate por ocorrer entre a lateral esquerda do “EM” e a frente e lateral esquerda do motociclo do Autor em plena hemi-faixa de rodagem do lado direito, atento o sentido ascendente.

j) Que acto contínuo com o embate o Autor guinou para a respectiva direita;

k) ... Tendo, de seguida caído no pavimento;

l) ... E imobilizando-se o seu motociclo entre as duas vias, sob a linha continua que separa os dois sentidos de trânsito, depois de derrapar no mesmo por mais de 8 metros.

m) Que o veículo seguro na ré ficou imobilizado no local do embate, em plena hemi-faixa de rodagem por onde circulava.

(….)

2.3 – Fundamentação de facto:

(….)

Relativamente à dinâmica do acidente, tendo como assente, face às posições vertidas em sede de articulados, a ocorrência do embate, importava apurar, essencialmente, a forma como o mesmo se deu. Porém, tal como decorre da decisão de facto acima exposta, o Tribunal manteve-se em situação de dúvida quanto ao sucedido, não logrando alcançar o grau de certeza legalmente exigido para fazer prevalecer uma das teses em detrimento da outra, pelo que, ambas as versões foram tidas como não demonstradas - a do A., alicerçada na culpa exclusiva do condutor do veículo “EM”, seguro na R., foi levada aos “factos não provados” constantes das alíneas a) a c); por sua vez, a da R., assente na culpa exclusiva do A., foi levada aos “factos não provados” constantes das alíneas m.

Vejamos mais demoradamente.

Relativamente à versão apresentada pelo A. quanto à dinâmica do embate, nenhuma das testemunhas inquiridas na audiência final se apresentou a atestar tal versão dos acontecimentos por conhecimento directo. Com efeito, o conhecimento que as testemunhas arroladas pelo Autor e que se apresentaram como tendo estado no local do acidente – concretamente as testemunhas CC e DD, colegas de trabalho do A. – evidenciaram sobre a dinâmica do acidente radicou do que ouviram do próprio Autor, não tendo tido a oportunidade de presenciar, por si próprios e directamente, o modo como o mesmo efectivamente decorreu. A primeira destas testemunhas foi positiva a afirmar que seguia no mesmo sentido de trânsito que o A. então seguia, também a tripular um motociclo (o seu, naturalmente), mas à frente do A.. Ou seja, o A. seguia nesse circunstancialismo de tempo e lugar atrás da primeira das identificadas testemunhas, não tendo essa testemunha a oportunidade de presenciar o modo como ocorreu o acidente e apenas se tendo apercebido da sua ocorrência já após o mesmo ter sucedido. Assim também o afirmou a segunda das antes indicadas testemunhas que se dirigiu para o local do embate após ter recebido uma chamada no seu telemóvel a reportar a sua ocorrência.

Por sua vez, o outro condutor envolvido, a testemunha BB, sustentou versão oposta e inconciliável com a apresentada pela do A., representando, no fundo, as duas versões em confronto. Esta testemunha afirmou em julgamento que seguia no seu sentido de trânsito e que, quando seguia na curva ali existente, ao fazer a dita curva, foi surpreendido pelo motociclo “XX”, tripulado pelo Autor, que não se desviou e, invadindo o seu sentido de circulação, foi embater na sua viatura, no lado esquerdo do seu carro. Referiu que ficou de tal modo desorientado com o acidente que, após o mesmo, se foi encostar ao lado, junto a um muro. Mais referiu ter recuado a sua viatura, anuindo por isso que a deslocou do local do embate, fazendo-o, contudo, segundo explicou, para deixar passar o trânsito que então se fazia, isto é, para não ocasionar embaraço ao mesmo. Mais referiu que se limitou a assinar a declaração anexa à participação policial do acidente, tendo a descrição sido manuscrita pela testemunha EE, a qual, na data, era sua enteada e seguia consigo no interior da viatura “EM”, no lugar do passageiro.

Esta última, EE, por sua vez, confirmou esta mesma factualidade. Mais referiu que, aquando da colisão em discussão, seguia no interior do veículo com a testemunha BB, então seu padrasto, que tripulava normalmente a viatura “EM”, a uma velocidade baixa, quando, ao descrever a curva, o motociclo “XX”, tripulado pelo A., transpôs a linha divisória do sentido de trânsito contrário e veio embater no “EM”. Confirmou os lados embatidos dos veículos intervenientes, porém, hesitou no que tange ao do motociclo que, em desacerto com o lado efectivamente embatido, referiu ter sido a parte da frente. Afirmou ainda não se recordar se, após a colisão, o motociclo deslizou no pavimento, explicando as hesitações que, à data, no imediatismo do embate, a sua preocupação foi ver como estava o senhor que tripulava o motociclo (o A.). Confirmou ainda que o veículo em que seguia foi efectivamente movimentado após a colisão.

Fruto dos desacertos e das apontadas hesitações, estes depoimentos, por si só, assumiram reduzido relevo para atestar a versão apresentada pela R.. Na verdade, os condutores dos referidos veículos são interessados na decisão a proferir (o A., directamente; BB, indirectamente), sendo que se limitaram a afirmar factos favoráveis às respectivas versões em confronto. Por sua vez, perante este quadro, o depoimento da testemunha EE, que seguia ao lado do condutor do veículo “EM”, não foi prestado de modo suficientemente assertivo e circunstanciado que permitisse debelar o estado de dúvida que soçobrou.

Por sua vez, as demais testemunhas inquiridas – FF, mulher do A., e GG, Agente da PSP da Divisão de Trânsito do Porto, responsável pela elaboração da participação de acidente (auto da ocorrência) junta com a petição inicial como “Doc. 2”, não presenciaram o embate, desconhecendo a forma como mesmo se deu, pelo que, nada puderam esclarecer quanto à sua dinâmica. O Sr. Agente da PSP, tendo ocorrido ao local do embate em exercício funcional, limitou-se, porém, a confirmar o cenário com que se deparou.

Finalmente, a posição em que as viaturas se quedaram após o acidente, os vestígios deixados no pavimento e a localização dos danos nos veículos, nos moldes constantes dos “croquis” elaborados com as respectivas participações e das fotogramas instruídos nos autos, mormente com a petição inicial, também não forneceram luz acrescida quanto ao sucedido.

Note-se, neste ponto, que as posições finais das viaturas intervenientes no embate ali retractadas – já imobilizadas, portanto - não afastam a possibilidade de qualquer uma das duas versões sustentadas resultar como possível. Tanto mais, que a viatura “EM” foi deslocada do local do embate após a ocorrência deste.

Face ao exposto, e para além do que resultou afirmado quanto á dinâmica do acidente nos “factos provados” n.ºs 1 a 11 – que resultou do que se mostrou possível alcançar como concordante entre o que foi afirmado pelos supra elencados meios de prova -, quanto ao mais alegado, o Tribunal não sentiu o conforto e a segurança necessários para fazer prevalecer uma das teses em detrimento da outra. Assim, ambas as versões foram tidas como não demonstradas, daqui resultando a não demonstração dos “factos não provados” levados às acima apontadas alíneas a) a c) e e) a m).

(…..)

III. DECISÃO

Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a presente acção e, em consequência, no reconhecimento da responsabilidade da Ré pelos danos emergentes do sinistro ocorrido em 15-2-2021 na proporção de 50%, condeno a R. “A..., S.A.” a pagar ao A. AA:

- a quantia de 3.348,72 € (três mil, trezentos e quarenta e oito euros e setenta e dois cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal civil, a contar da data da citação e até integral pagamento; e

- a quantia de 5.462,25 € (cinco mil, quatrocentos e sessenta e dois euros, e vinte e cinco cêntimos), acrescida de juros, à taxa legal civil, a contar da presente data e até integral pagamento;

Absolvendo-a do mais peticionado.

(….)»


*

III.

É consabido que resulta dos art.º635.º, n.º3 a 5 e 639.º, n.º1 e 2, ambos do CPC, que o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões das respetivas alegações[1], sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso.

Assim, em síntese, é uma única a questão a decidir: estarão observados no recurso de revisão interposto pelo apelante à decisão proferida no processo Proc. 766/22.7T8PRT os requisitos legalmente exigidos para a sua admissão, ou seja, a «novidade» e a «essencialidade» do documento?


*

Com o recurso de revisão interposto pretende o apelante reagir e reverter uma sentença que decidiu, quanto à responsabilidade na produção do acidente que foi seu objecto, pela concorrência de culpas, fixando-a na proporção de 50% para cada umas da partes: “A..., S.A. vs AA.

Tal decisão transitou em julgado sem ter sido objecto de qualquer recurso.

Para aquele efeito o apelante socorre-se de um documento, relatório interno da apelada, relatório cujo teor não conhece nem pode, em rigor, dar a conhecer: por não ter sido disponibilizado pela Cª Seguros recorrida.

Desse relatório, alega, resulta a conclusão de que o sinistro objecto da decisão revidenda se deveu a culpa exclusiva do condutor do veículo segurado na apelada.

Vejamos o enquadramento exigido, não obstante já devidamente enquadrada a admissibilidade do recurso de revisão com base em documento superveniente, quer pela decisão posta em crise, quer pelo apelante e apelada.

De acordo com o art.º 621.º do CPC a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga, estabelecendo o art.º 628.º do CPC que uma decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação.

Como é patente o caso julgado liga-se a imutabilidade das decisões judiciais, sendo uma expressão do princípio da segurança jurídica que é própria de um Estado de Direito[2].

O recurso de revisão previsto no artigo 696.º e seguintes do CPC constitui uma derrogação àquela intangibilidade do caso julgado formado pela sentença revidenda e, deste modo, à segurança ou à certeza jurídicas que aquele envolve.

Exactamente por ser uma derrogação de tão estruturante princípio do Estado de Direito, só é admissível em situações de tal modo graves que comprometam as exigências da justiça e da verdade no conflito com a necessidade de segurança ou de certeza.

«Nesse contexto, a eventual injustiça material do resultado que ficou estabilizado ou o eventual desajustamento entre o que ficou decidido e a realidade litigada não são bastantes para que se perturbe aquela estabilidade. O efeito estabilizador do caso julgado tem como acréscimo a segurança jurídica e a paz social que não podem ser postas em causa pelo simples facto de existir um eventual erro de julgamento que não foi corrigido pelos meios ordinários e menos ainda quando nos deparamos com o mero inconformismo relativamente ao que foi decidido. Apenas em situações excepcionais, que correspondem a cada um dos fundamentos taxativos do recurso de revisão, se admite que possa ser retomada a instância com vista à verificação de algum dos motivos cuja gravidade foi suficiente para se sobrepor aos efeitos que emanam de decisão transitada em julgado.»[3]

São as seguintes as situações que o legislador erigiu como fundamento legitimador de, perante decisão transitada em julgado, se reverter o caso julgado da mesma (artº. 696.º do CPC):

a) Outra sentença transitada em julgado tenha dado como provado que a decisão resulta de crime praticado pelo juiz no exercício das suas funções;

b) Se verifique a falsidade de documento ou acto judicial, de depoimento ou das declarações de peritos ou árbitros, que possam, em qualquer dos casos, ter determinado a decisão a rever, não tendo a matéria sido objecto de discussão no processo em que foi proferida;

c) Se apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida;

d) Se verifique nulidade ou anulabilidade de confissão, desistência ou transacção em que a decisão se fundou;

e) Tendo corrido o processo à revelia, por falta absoluta de intervenção do réu, se mostre que:

i) Faltou a citação ou que é nula a citação feita;

ii) O réu não teve conhecimento da citação por facto que não lhe é imputável;

iii) O réu não pode apresentar a contestação por motivo de força maior;

f) Seja inconciliável com decisão definitiva de uma instância internacional de recurso vinculativa para o Estado Português;

g) O litígio assente sobre acto simulado das partes e o tribunal não tenha feito uso do poder que lhe confere o artigo 612.º, por se não ter apercebido da fraude.

h) Seja susceptível de originar a responsabilidade civil do Estado por danos emergentes do exercício da função jurisdicional, verificando-se o disposto no artigo seguinte.”.

Releva para o caso[4] o fundamento enunciado na al.c), ou seja, «[s]e apresente documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida.»

A decisão posta em crise entendeu que o documento em causa não observava os exigidos requisitos da «novidade» e da «suficiência»[5].

São estes dois aspectos que, incontornavelmente, se retiram do fundamento legal em causa (art.º696.º, al.c)).

«A novidade (..) significa que o documento não foi apresentado no processo onde foi proferida a decisão em causa, seja porque ainda não existia, seja porque, existindo, a parte não tinha podido socorrer-se dele; e a suficiência implica apenas que o documento seja suscetível de implicar uma modificação dessa decisão no sentido mais favorável à parte vencida, sem exigir uma alteração radical da situação de facto», ou seja, «um documento suscetível de, por si só (isto é, sem ter de ser completado com outros elementos de prova: por ex., acs. do STJ de 11.9.07 e de 13.7.10 (…)), alterar em sentido mais favorável a decisão revidenda em que o recorrente foi vencido.»[6]

Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa referem: que «[a] revisão pode ter por fundamento a apresentação de documento de que a parte não tivesse conhecimento, ou de que não tivesse podido fazer uso, no processo em que foi proferida a decisão a rever e que, por si só, seja suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável à parte vencida (art.696.º, al.c)). Admite-se tanto uma superveniência subjectiva, como uma superveniência objectiva do documento para afastar a preclusão decorrente da sua não apresentação.» [7]

A propósito destes requisitos pronunciou-se a apelada no quadro das suas doutras contra-alegações para concluir pela respectiva inobservância no caso, assim aquiescendo na perspectiva do despacho posto em crise.

E se o fez, na nossa óptica, fê-lo com acerto.

Quanto ao primeiro requisito, ou seja, a «novidade», resulta que o documento em causa[8]/[9], é um documento cuja existência, no meio forense, é um dado: todos os ilustres causídicos sabem, ou deviam saber, que as seguradoras, no processo de resolução de sinistros, trabalham com dados que recolhem, através de pessoal próprio ou empresas/pessoas contratadas.

É de resto sintomático desse conhecimento o facto mencionada pelo recorrente no requerimento inicial do processo de recurso de revisão, no seu art.º59 e 60, quando invoca[10] o art.º36.º, n.º, al.d) do regime jurídico do seguro obrigatório de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis - DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto.[11]

Por conseguinte, sendo acessível esse dado, o apelante teria de socorrer-se no quadro da acção onde foi proferida a decisão revidenda do disposto no art.º429.º, n.º1, do CPC.

Acresce que, como nota a apelada, na contestação faz-se referência a expressa de se ter procedido às normais averiguações do sinistro[12], ou seja, detendo o apelado do conhecimento necessário para promover a junção do documento em causa ao processo nos termos do citado art.º429.º, n.º, do CPC.

Não o fez, tudo apesar de deter todos os elementos cognitivos e legais para, querendo, fazê-lo.

Sendo o documento pré-existente, detendo conhecimento do mesmo, senão por via do conhecimento comum pelo menos pela «sinalização» se fez na contestação referida, não tem como contornar-se a conclusão de que não se verifica no caso o requisito da «novidade.»

Nas palavras da apelada «[o] documento referido pelo recorrente não é, nem objetiva nem subjetivamente, superveniente, como o recurso de revisão não serve para carrear para os autos elementos probatórios novos sobre factos pré-alegados que poderiam ter sido anteriormente juntos ou invocados.»

Não bastasse a inobservância do requisito da «novidade», temos para nós que, de resto como o fez a decisão recorrida, também não se verifica o requisito da «suficiência».

Diz certeiramente na decisão em crise:

«Com efeito, ainda que se equacione a sua existência, um relatório elaborado por um perito averiguador que foi incumbido da averiguação do sinistro, averiguação essa promovida pela Companhia Seguradora, não resulta mais do que isso mesmo, não tendo o condão de abalar, por si só, toda a prova que foi efectivamente produzida nos autos e que, analisada criticamente, à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida, conduziram a determinado desfecho, ainda que não do agrado do autor / recorrente, como nos parece que resulta de toda a alegação contida no recurso extraordinário de revisão interposto e, sobretudo, do recurso a uma figura própria da Jurisprudência estrangeira – concretamente, da Jurisprudência Brasileira (a alegada figura da “Defesa Ineficiente”), inclusivamente citada na alegação recursiva e com referência a um caso de homicídio qualificado tentado, que, de resto, não tem qualquer similitude ao concreto caso em análise. Como ainda, noutra perspectiva, de igual modo concedemos que não tenha sido do agrado da contraparte, dado que a acção foi julgada parcialmente provada e, nessa medida, parcialmente procedente, com divisão de responsabilidades [entre os condutores envolvidos].»

Faltaria, no entanto, referir que o que está em causa não é seguramente um documento materializador duma perícia[13], como atrás já se referiu.

O que está em causa é resultado corporizado em letra de forma de um processo de averiguações e não de uma perícia como facilmente se alcança pela natureza do seu objecto: apreciação da dinâmica do acidente e da culpa na produção do mesmo.

É isso mesmo que se retira do requerimento inicial de recurso de revisão, na relação com o teor da contestação na passagem assinalada em nota anterior (12), igualmente das alegações desta apelação.

Como refere a apelada «[o] documento resultante dessas averiguações é, no entanto, um documento interno da companhia, usado pela mesma para tomar posição quanto a eventual responsabilidade no sinistro – em nada sendo vinculativo para a mesma qualquer conclusão que a pessoa que o elaborou possa ter retirado - e de cujo teor a mesma não tem de dar conhecimento aos envolvidos, pelo que também ao Autor.»

Não tendo o documento em causa a natureza adjectivada pelo apelante[14], fica ainda mais arredada a possibilidade de, por si só, porque materializando uma opinião, com toda a certeza competente, mas uma opinião, concedamos, um parecer, contornar a decisão que tratou na sua fundamentação vários depoimentos e outros elementos, na relação uns com os outros, disse se tirando as conclusões que tirou e sem sindicância.

O documento em causa legitimaria, no quadro do acção, que se chamasse o seu autor a julgamento, para dar a sua opinião com base nos dados que recolheu, depois de os identificar, assim auxiliando o tribunal na sua tarefa.

Não seria todavia, como não será, sequer na melhor das hipóteses, um elemento suficiente. Seria um mais do acervo probatório que aportaria ao processo para, com os demais, se trabalhar o ajuizamento que se lhe impunha.

Como se referiu no Ac. do STJ de 11.9.07, «não preenche este fundamento de recurso de revisão a apresentação de documentos que apenas em conjugação com outros elementos de prova produzidos, ou a produzir em juízo, poderiam modificar a decisão transitada em julgado (…)» [15]

De facto, «(…) [n]o basta que o documento legitimador da revisão tenha a virtualidade de abalar a matéria de facto fixada na decisão recorrida, devendo ser de tal modo antagónico com aquela, no seu alcance probatório, que justifique, sem qualquer relação com a prova produzida no processo, a decisão em sentido contrário (requisito da suficiência) (STJ 14-1-21, 84/07, STJ 11-11-20, 8250, STJ 13-7-10, 480/03, STJ 17-9-09, 09S0318, RG 10-10-19, 465/15, RL 6-7-17, 2178/04)»[16]

Para concluir que o valor isolado do documento em causa, tenha a densidade que tiver e desfavorável à apelada, per si, isoladamente, não serve o propósito do recorrente, basta o mero relance sobre a fundamentação da decisão a rever e o percurso que se desenvolveu.

Facilmente se alcança a necessidade da relação do documento em causa com a prova produzida, facilmente se atinge que o documento em causa jamais seria «suficientemente crucial».

Destarte, com a decisão em crise, diremos que não está verificado, também, o requisito da suficiência.

IV.

Nestes termos e pelos fundamentos que antecedem, nega-se provimento ao recurso, confirmando inteiramente o decidido pela 1ª instância.

Custas pelo recorrente.


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Sumário:

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Porto, 26/6/2025
Carlos Cunha Rodrigues Carvalho
Álvaro Monteiro
José Manuel Correia
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[1] Cfr. a citação da doutrina a propósito no Ac. do STJ de 6.6.2018 proc. 4691/16.2T8LSB.L1.S1: (a) António Santos Abrantes Geraldes - «[a]s conclusões exercem ainda a importante função de delimitação do objeto do recurso, como clara e inequivocamente resulta do artigo 635º, n.º 3, do CPC. Conforme ocorre com o pedido formulado na petição inicial, as conclusões do recurso devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que se pretende obter do tribunal Superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo Tribunal a quo.» - in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017 – 4ª edição, Almedina, página 147. / (b) Fenando Amâncio Ferreira - «[n]o momento de elaborar as conclusões da alegação pode o recorrente confrontar-se com a impossibilidade de atacar algumas das decisões desfavoráveis. Tal verificar-se-á em dois casos; por preclusão ocorrida aquando da apresentação do requerimento de interposição do recurso, ou por preclusão derivada da omissão de referência no corpo da alegação. Se o recorrente, ao explanar os fundamentos da sua alegação, defender que determinada decisão deve ser revogada ou alterada, mas nas conclusões omitir a referência a essa decisão, o objeto do recurso deve considerar-se restringido ao que estiver incluído nas conclusões.» - in Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 2000, página 108 / (c) José Augusto Pais do Amaral - «[o] recorrente que tenha restringido o âmbito do recurso no requerimento de interposição, pode ainda fazer maior restrição nas conclusões da alegação. Basta que não inclua nas conclusões da alegação do recurso alguma ou algumas questões, visto que o Tribunal ad quem só conhecerá das que constem dessas conclusões.» - Direito Processual Civil, 2013, 11ª edição, Almedina, páginas 417/418.
[2] J. Baptista Machado, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, 1991, p. 55.: Com o caso julgado protege-se «uma segurança ordenadora específica e própria a que se pode dar o nome genérico de segurança jurídica. Dada a positivação do direito legislado pelas autoridades competentes e em obediência a procedimentos devidamente regulamentados, dada a mais precisa formulação das regras jurídicas legisladas e a generalidade e abstracção destas regras, dada finalmente a garantia conferida ao Direito pelo funcionamento do aparelho judicial e pelo poder coactivo do Estado, a estabilidade da vida social, as expectativas em que cada um assenta as suas decisões e os seus planos de vida resultam grandemente reforçadas (…). A segurança é, pois, uma das exigências feitas ao Direito, pelo que, em última análise, representa também uma tarefa ou missão contida na própria ideia de Direito (…). Justiça e segurança acham-se numa relação de tensão dialéctica (havendo que salientar este ponto: a segurança jurídica como tal é um atributo da juridicidade; de modo que a tensão ou conflito entre justiça material e segurança jurídica é uma tensão dialéctica permanente e indesvanecível que se situa no interior mesmo da juridicidade)»
[3] Acórdão do STJ 27.04.2017, processo 978/06.0TBPTL-G.G1.S1.
[4] Diz-se na decisão posta em crise:
«(…)
o A. / recorrente AA interpôs o presente recurso extraordinário de revisão com fundamento na existência de documento que alega não ter tido a possibilidade de fazer uso no processo em que foi proferida a decisão pretendida rever, que, por si só, se mostra suficiente para modificar a decisão em sentido mais favorável a si (fundamento previsto no art. 696.º, alínea c) do Código de Processo Civil), não o apresentando, antes requerendo que a contraparte / recorrida seja notificada para apresentar.
(…)»
[5] Em rigor, cremos, apesar de se referir não preenchidos nenhum dos requisitos acima enunciados, a decisão assentou o indeferimento apenas na inobservância do requisito da suficiência.
Diz-se na decisão:
«(…)
Ora, no caso presente, as alegações de recurso não preenchem nenhum dos requisitos acima enunciados, inclusivamente no que respeita ao documento pretendido juntar aos autos.
Com efeito, ainda que se equacione a sua existência, um relatório elaborado por um perito averiguador que foi incumbido da averiguação do sinistro, averiguação essa promovida pela Companhia Seguradora, não resulta mais do que isso mesmo, não tendo o condão de abalar, por si só, toda a prova que foi efectivamente produzida nos autos e que, analisada criticamente, à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida, conduziram a determinado desfecho, ainda que não do agrado do autor / recorrente, como nos parece que resulta de toda a alegação contida no recurso extraordinário de revisão interposto e, sobretudo, do recurso a uma figura própria da Jurisprudência estrangeira – concretamente, da Jurisprudência Brasileira (a alegada figura da “Defesa Ineficiente”), inclusivamente citada na alegação recursiva e com referência a um caso de homicídio qualificado tentado, que, de resto, não tem qualquer similitude ao concreto caso em análise. Como ainda, noutra perspectiva, de igual modo concedemos que não tenha sido do agrado da contraparte, dado que a acção foi julgada parcialmente provada e, nessa medida, parcialmente procedente, com divisão de responsabilidades [entre os condutores envolvidos].
Certo é que as alegações do recorrente, não se enquadram em nenhuma das alíneas acima referidas do art. 696.º do Código de Processo Civil.
Poderiam eventualmente servir de fundamento de recurso ordinário de apelação, se tempestivamente interposto. Porém, transitada em julgado a decisão final que colocou termo ao processo, nenhuma das alegações do autor / recorrente se enquadra nos fundamentos para interposição de recurso extraordinário de revisão, tal como exigidos pelo art. 696.º do Código de Processo Civil, inclusivamente na sua alínea c).
(….)»
[6] Lebre Freitas, Armindo Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, CPC anotado, V.3, 3ª ed., p. 305/306
[7] Manual do Processo Civil, V.II, AAFDL, p.212
[8] Porque relacionado com a dinâmica do acidente, com a culpa na produção do acidente, tratando-se dum parecer interno, um relatório de averiguação, não mais que isso, muito longe do que, no rigor técnico, legalmente se possa considerar de relatório materializador do resultado de uma perícia.
As seguradoras produzirão também perícias e relatórios que as materializam, como resulta da própria lei – art.º36.º, n.º1, al.d), 1ª parte, do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto -, mas naquelas matérias que apelam a conhecimentos especiais – art.º388.º do CC: «A prova pericial tem por fim a percepção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objecto de inspecção judicial.»
[9] Um documento pré-existente à decisão que se deseja reverter, existente à data do respectivo processo.
[10] Não obstante se equivocando na identificação do corpo normativo: fala na Lein.º 72/2008 (RJCS)
[11]
«Artigo 36.º
Diligência e prontidão da empresa de seguros
1 - Sempre que lhe seja comunicada pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo terceiro lesado a ocorrência de um sinistro automóvel coberto por um contrato de seguro, a empresa de seguros deve:
(…)
d) Disponibilizar os relatórios das peritagens no prazo dos quatro dias úteis após a conclusão destas, bem como dos relatórios de averiguação indispensáveis à sua compreensão»
[12]
«9º
Após lhe ter sido participado o sinistro aqui em causa, a ré procedeu às normais averiguações do mesmo.
10º
No âmbito das mesmas, e de acordo com a versão apresentada pelo condutor do veículo seguro e a respectiva ocupante, foi-lhe relatado que – e que aqui se alega para melhor poder ser perguntado - no dia e hora referidos na petição inicial ocorreu um acidente de viação com intervenção dos veículos referidos no art. 1º daquele articulado.»
[13] Certeira a apelada quando afirma:
«22. Trata-se, na realidade, de um documento particular, elaborado por empresa/pessoa contratada pela recorrida para o efeito mas que, em rigor, não tem qualquer conhecimento dos factos e da forma como ocorreu o acidente uma vez que, como é evidente, não presenciou o mesmo não evidenciando, nessa medida, qualquer razão de ciência.
23. Pelo que quaisquer conclusões que o mesmo possa retirar do que averiguou, mais não são do que meras opiniões ou conjeturas que não podem ser validades como prova pericial.»
[14] Corporizando o resultado de perícia tal como a mesma é definida pela lei civil (art.º388.º do CC).
[15] Cf. Ac do STJ de 11.9.07, proc. 07A1332, citado por Abrantes Geraldes in Recursos em Processo Civil, 8ª ed., p.665, nota 953.
[16] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, Luís Sousa, cpc anotado, V.I, 3ª ed., p.896, nota 10.