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REGULAMENTO (EU) Nº 2015/2012
COMPRA E VENDA
LUGAR DE CUMPRIMENTO DA PRESTAÇÃO
Sumário
I - O regulamento (EU) nº 2015/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro, adoptou o conceito de lugar do cumprimento para as acções fundadas em contratos de compra e venda ou de prestação de serviços como elemento de conexão do negócio com um lugar, identificando as obrigações características e relevantes, dessa forma determinando qual é o Estado-membro cujos tribunais são competentes para julgar qualquer que seja a concreta pretensão formulada no processo, desde que emergente desse vínculo negocial; II - O artigo 26º do regulamento (EU) nº 2015/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro, tem de ser entendido no sentido de que permite ao réu não apenas excepcionar a incompetência internacional, mas também, subsidiariamente, apresentar defesa relativa à substância da causa, sem com isso perder o direito de suscitar a excepção de incompetência.
Texto Integral
Processo: 3905/22.4T8VFR.P1
Acordam os Juízes que integram a 3ª secção do Tribunal da Relação do Porto
Relatório:
“A..., Ldª”, com sede na rua ..., ..., ..., ..., intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, perante o juízo central cível de Stª. Maria da feira (J1), contra “B..., SL”, com sede na Calle ..., ..., ..., Espanha, e AA, residente na calle ..., ..., Madrid, Espanha.
Alegou a autora, em súmula, na petição inicial, que, no exercício da sua actividade de fabrico e fornecimento de caixilharias, contratou o fornecimento aos réus, a primeira ré enquanto empreiteira e o segundo réu como dono da obra, caixilharia destinada à casa de habitação do segundo réu que estava a ser realizada em Madrid, Espanha, no valor global de € 66 322,00.
Afirma ter realizado o fornecimento contratado, tendo os réus procedido apenas ao pagamento, em Outubro de 2018, da quantia de € 19 896,60, não obstante a emissão e vencimento da factura relativa ao remanescente em dívida.
Conclui pedindo a condenação dos réus no pagamento da quantia global de € 46 425,40, acrescida de juros de mora contados, à taxa supletiva dos juros comerciais, desde o vencimento da factura emitida e até integral reembolso, cujo valor, à data da propositura da acção, computa em € 11 485,52.
Na sequência das dificuldades sentidas para citação da ré “B..., SL”, a autora veio declarar desistir da instância quanto a esta [requerimento de 09 de Setembro de 2024, referência nº 16596164], desistência que foi homologada por sentença de 10 de Outubro de 2024 [referência nº 3905/22.4T8VFR], prosseguindo os autos contra o co-réu.
Citado, o réu AA apresentou contestação, na qual, começa por excepcionar a incompetência internacional dos tribunais portugueses, em concreto face ao disposto no artigo 1º do regulamento (UE) 1215/2012, de 12 de Dezembro, que atribui competência ao estado de residência dos demandados, sendo que, no caso, o contestante residente no Reino de Espanha; bem como face ao disposto no artigo 7º do mesmo regulamento, atendendo a que a autora, no caso, pretende fazer valer o seu direito ao pagamento de mercadoria diversa, devendo esta ser entregue na residência do contestante, sita em ..., Madrid, Reino de Espanha.
Pede, por isso, a sua absolvição da instância.
Invoca, também, a excepção dilatória de ilegitimidade processual passiva, negando jamais ter tido qualquer relacionamento negocial com a autora, sendo estranho aos contactos estabelecidos entre autora e ré “B..., SL”, com esse fundamento pedindo também a sua absolvição da instância.
Afirma ter já procedido ao pagamento à ré “B..., SL”, da totalidade do valor relativo à caixilharia da sua habitação, entendendo, por isso, que a instauração da presente acção traduz actuação da autora em abuso de direito.
Impugna os fundamentos de facto e de direito da acção.
Conclui pedido a declaração de incompetência internacional dos tribunais portugueses ou a procedência da excepção dilatória de ilegitimidade processual, em qualquer caso com a sua consequente absolvição da instância; se assim se não entender, pede a improcedência da acção, com a sua consequente absolvição do pedido.
Notificada para se pronunciar quanto às excepções opostas pelo réu contestante, a autora apresentou novo articulado, no qual, em súmula, defende estar em causa nos autos o cumprimento de uma obrigação pecuniária por parte do contestante, que, entende, deverá ser satisfeita na sede da autora, em Portugal, nos termos do artigo 774º do Código Civil.
Entende inexistir qualquer elemento de conexão entre o litígio dos autos e o Reino de Espanha.
Alega, ainda, que o réu compareceu em juízo esgrimindo os argumentos por que entende não ser devedor, o que releva quanto à aplicação da regra enunciada no nº 1 do artigo 26º do regulamento (UE) 1215/2012, de 12 de Dezembro.
Defende que, mostrando-se a presente acção pendente há mais de 2 anos, considerar agora procedente a excepção de incompetência internacional dos tribunais portugueses corresponderia a um exercício abusivo do direito de defesa.
Entende não ocorrer a excepção de ilegitimidade processual passiva.
Conclui como na petição inicial.
Foi então proferida decisão que, julgando procedente a excepção dilatória de incompetência internacional, absolveu o réu AA da instância.
É desta decisão que, inconformada, a autora vem interpor recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1- Com o mais elevado respeito, a Recorrente entende que, ao julgar procedente a incompetência absoluta do Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, em consequência absolvendo o Réu da instância, a douta Sentença ora recorrida padece de manifesto erro de julgamento, porquanto o Tribunal a quo apreciou e interpretou de forma manifestamente incorrecta os factos, para além de que aplicou erroneamente o Direito;
2- Tal como foi configurada pela Autora na sua petição inicial, a presente acção é destinada ao cumprimento de uma obrigação pecuniária do Réu, isto porque a obrigação que está em causa é a de pagamento do preço de um fornecimento de bens desenvolvido pela Autora ao Réu;
3- A obrigação que está na origem dos presentes autos é, sem margem para dúvidas, uma obrigação pecuniária, no sentido de que tem por objecto a entrega de uma quantia em dinheiro, visando “proporcionar ao credor o valor que as respectivas espécies possuam como tais” – cfr. ANTUNES VARELA, “Das Obrigações em Geral”, volume I, 8.ª Edição, pág. 862);
4- A obrigação pecuniária a que o Réu está adstrito em consequência da resolução contratual terá necessariamente de ser cumprida em Portugal: é aqui que a Autora tem a sua sede, o que releva para efeitos de saber onde é que a prestação do Réu tem de ser efectuada, pois as obrigações que tiverem por objecto certa quantia em dinheiro, devem ser efectuadas no lugar do domicílio que o credor tem ao tempo do cumprimento, nos termos do artigo 774.º do Código Civil Português; e, mais não seja, por a mesma obrigação haver de ser cumprida através de transferência bancária para uma conta da Autora, a qual também se situa em Portugal;
5- Estamos, assim, perante o exercício de um direito à acção destinada ao cumprimento de uma obrigação pecuniária, constituída com base em normas jurídicas do Ordenamento Jurídico Português e que haverá de ser cumprida em Portugal, sendo este o objecto da acção tal como foi configurado pela Autora;
6- Assim configurado o objecto da presente acção, jamais poderia o Tribunal a quo ter decidido no sentido em que o fez – pois, como é consabido, a competência do Tribunal, sendo um pressuposto processual, deve ser aferida em relação ao objecto da acção tal como é apresentada pelo autor na petição inicial; princípio que a douta Sentença recorrida violou ao decidir, sem mais, pela incompetência internacional/absoluta do Tribunal;
7- O Réu, na contestação apresentada, não invocou qualquer facto referente ao fornecimento feito pela Autora que estabeleça uma conexão entre o presente litígio e o território espanhol, não havendo qualquer necessidade de inspeção ao local ou de perícia aos bens fornecidos (por exemplo) que estabeleça essa conexão, sendo que o que se discute, simplesmente, é a existência ou não da obrigação de pagamento por parte do Réu relativamente ao fornecimento desenvolvido pela Autora, pelo que a matéria decidenda tem, obviamente, exclusiva conexão com Portugal (por ser aí que tal obrigação deveria ser cumprida) e nenhuma com Espanha;
8- Os artigos 7.º e 8.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de Dezembro de 2012, estabelecem uma competência específica alternativa à regra geral que as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas nos tribunais desse Estado-Membro;
9- Essa competência específica justifica-se pela existência de um elemento de conexão especialmente estreito entre o litígio em causa e o órgão jurisdicional chamado a decidir do mesmo, tendo em vista a boa administração da justiça;
10- É manifesta a intenção do legislador, transversal a todo o Regulamento, em salvaguardar foros alternativos por forma a que seja alcançado um vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio, sendo este o objectivo de proximidade subjacente ao artigo 7.º do Regulamento, e que não pode ser interpretado com um fim contrário ao visado pela própria norma – note-se, por exemplo, que em matéria extracontratual, o Réu deve ser demandado perante o tribunal do lugar onde ocorreu ou poderá ocorrer o facto danoso, como decorre do n.º 2) do artigo 7.º do Regulamento;
11- Nos termos do disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro “Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão” (sublinhado nosso): a expressão “obrigação em questão” deverá entender-se como referindo-se à obrigação que serve de causa de pedir à demanda sobre a relação contratual em causa;
12- A alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento não pode ser interpretada no sentido de que abrange toda e qualquer obrigação dos contratos aí previstos, tornando absolutamente irrelevante a obrigação que for objecto da acção, pelo que há que atender à obrigação que serve de fundamento ao pedido, de modo a que essa alínea só será aplicável quando o litígio tiver por objecto as próprias obrigações principais de entrega de bens ou de prestação de serviços, o que, no presente caso, é matéria absolutamente lateral e irrelevante;
13- Pois, dispõe a alínea c) que, se não se aplicar a alínea b), isto é, se a “obrigação em questão”, a que se refere a alínea a), não for relacionada com as obrigações principais típicas da “venda de bens” ou da “prestação de serviços”, aplica-se a alínea c);
14- A não se entender desse modo, tal interpretação sempre se traduziria numa negação do sentido e valor e no esvaziamento de conteúdo do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, o que gera uma incoerência ou contradição sistemática inultrapassável;
15- Impõe-se, assim, concluir que o Réu pode ser demandado, em matérias contratuais não conexas com as duas situações previstas na alínea b), perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação que subjaz ao litígio, como, de resto, sucede no caso dos autos, em que o que está em causa é simplesmente determinar se é ou não o Réu responsável pelo pagamento do preço à Autora, pagamento esse a realizar em território nacional português;
16- Mesmo que não se atendesse apenas à obrigação de pagamento do preço por parte do Réu e considerássemos a obrigação da Autora de fornecimento e entrega dos bens (que, repete-se, não está em causa nos presentes autos), nada nos presentes autos nos indica que tal entrega deveria ser concretizada em Espanha, sendo perfeitamente admissível entender que tal obrigação de entrega dos bens ocorreu em Portugal, nas instalações da própria Autora, tendo ficado a cargo da referida “B...” o seu transporte para Espanha e instalação na obra do Réu;
17- O Tribunal recorrido, na douta sentença proferida, partiu (MAL) do princípio não sustentado em qualquer facto alegado pela Autora na Petição Inicial por si apresentada, que os fornecimentos desenvolvidos pela Autora foram-no em Espanha, não tendo sequer equacionado a hipótese de os fornecimentos terem sido feitos em Portugal e os Réus terem procedido ao transporte e instalação dos bens em causa em Espanha, sendo que, neste caso concreto, para além da nacionalidade do Réu, nenhuma conexão existe entre o caso sub judice e a jurisdição espanhola, isto porque todas as obrigações inerentes ao contrato em causa (seja a obrigação de pagamento, que é a única que está em causa nos presentes autos, seja a obrigação de fornecimento, que não está sequer em causa) teriam conexão com o ordenamento jurídico português;
18- No nosso modesto entendimento, o Legislador não terá pretendido simplesmente determinar que, em relação a todos os contratos que sejam contratos de venda de bens ou de prestação de serviços, qualquer que seja a “obrigação em questão”, seriam sempre judiciariamente competentes os lugares onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues, ou os serviços foram ou devam ser prestados;
19- Caso tivesse pretendido referir-se nesses termos, seguramente não teria deixado de o fazer de modo claro, expresso e inequívoco, ao invés de inserir sistematicamente a alínea c) – o que fez, precisamente, para salvaguardar outras obrigações que, relativamente a tais contratos, não tenham que ver com a entrega dos bens ou a prestação dos serviços e cujo lugar de cumprimento não coincida com os lugares previstos na alínea b), assegurando deste modo a existência de um elemento de conexão especialmente estreito entre o litígio e o órgão jurisdicional chamado a decidir do mesmo, escopo do artigo 7.º do Regulamento (UE);
20- Haverá, assim, que atender à obrigação que serve de fundamento ao pedido, de modo a que a alínea b) só será aplicável quando o litígio tiver por objecto as próprias obrigações principais de entrega de bens ou de prestação de serviços – esta é a única interpretação admissível, pois só de acordo com esta é que sistematicamente fará sentido a norma prevista na alínea c); a qual, caso se viesse a optar por uma interpretação lato sensu da alínea b), tornar-se-ia perfeitamente inútil;
21- Impõe-se assim concluir que, em matérias contratuais não conexas com as obrigações principais das duas situações previstas na alínea b) e, portanto, distintas e externas ao programa contratual daquela tipologia de contratos, o Réu pode ser demandado perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão, como sucede no caso dos autos;
22- A interpretação feita pelo Tribunal a quo da alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento, para além de ab-rogatória da alínea c), acaba por afastar o litígio da jurisdição com que tem efectivamente um vínculo, sendo assim totalmente contrária ao objectivo pretendido pela norma; trata-se de uma interpretação feita de forma absolutamente abstrata, sem atender à factualidade e pedidos constantes da Petição Inicial apresentada e, nessa medida, absolutamente desfasada do caso concreto;
23- Há ainda que atentar no disposto no art. 26º, nº. 1 do Regulamento que estabelece que “para além dos casos em que a competência resulte de outras disposições do presente regulamento, é competente o tribunal de um Estado-Membro no qual o requerido compareça. Esta regra não é aplicável se a comparência tiver como único objetivo arguir a incompetência ou se existir outro tribunal com competência exclusiva por força do artigo 24.º.”;
24- No caso vertente, o Réu compareceu nos presentes autos, através de mandatário devidamente constituído e apresentou contestação na qual, para além da arguição da excepção de incompetência, ainda defendeu que é parte ilegítima nos presentes autos e bem assim desenvolveu defesa por impugnação, pugnando pela absolvição dos pedidos que contra ele são dirigidos em virtude da improcedência da presente ação (atente-se, a este respeito, ao pedido desenvolvido na al. c) da contestação apresentada pelo Réu);
25- Mesmo que se considerasse que (teoricamente) teria o Réu direito a invocar a excepção de incompetência dos tribunais portugueses e que a mesma fosse procedente (o que não se aceita nem concede), ainda assim, atendendo a que o Réu compreendeu os termos da ação e se preparou e defendeu dos pedidos que contra si são dirigidos, não se poderia deixar de considerar que tal invocação constituiria abuso de direito, na modalidade de desequilíbrio no exercício, o que expressamente se invoca para todos os devidos e legais efeitos;
26- A Sentença ora recorrida violou, entre outros, o disposto no artigo 774.º do Código Civil, nos artigos 62.º e 71.º n.º 1 do Código de Processo Civil, do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa e ainda, nos artigos 4.º a 7.º e 26.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de Dezembro de 2012, dos quais fez uma incorreta interpretação e aplicação ao caso concreto.
Termos em que,
Deve conceder-se provimento ao presente recurso, anulando-se ou revogando-se o Sentença recorrida, e substituindo-se por outra que, julgando improcedente a incompetência absoluta do Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira, ordene o prosseguimento dos autos com as legais consequências, como é de elementar JUSTIÇA!
Pelo réu foram apresentadas contra-alegações, nas quais, em súmula, defende que a situação em apreço nos autos possui diversos elementos de conexão com a ordem judicial espanhola, designadamente o domicílio do réu, a entrega dos bens fornecidos dá-se em Espanha e estes destinaram-se a uma obra executada também no Reino de Espanha.
Entende que a referência ao local da entrega dos bens, na alínea b) do artigo 7º do regulamento (EU) nº 2015/2012, constitui o elemento de conexão determinante para definir a competência internacional quanto ao cumprimento de qualquer obrigação emergente do contrato de compra e venda, designadamente a obrigação de pagamento do preço, e afirma que esta constitui jurisprudência pacífica do Tribunal da Justiça da União Europeia.
Considera resultar claro da documentação junta aos autos a entrega em Espanha dos materiais fornecidos.
Defende inexistir fundamento para aplicar o regime previsto no artigo 26º do regulamento (EU) nº 2015/2012.
Conclui pedindo a improcedência do recurso.
O recurso foi admitido como de apelação por despacho proferido a 29 de Abril de 2025 [referência nº 138292673], a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
No exame preliminar considerou-se nada obstar ao conhecimento do objecto do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II - Fundamentação
Como é sabido, o teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta, onde sintetiza as razões da sua discordância com o decidido e resume o pedido (nº 4 do artigo 635º e artigos 639º e 640º, todos do Código de Processo Civil), delimita o objecto do recurso e fixa os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente.
Assim, atentas as conclusões da recorrente, mostra-se colocada à apreciação deste tribunal a seguinte única questão – a (in)competência internacional dos tribunais portugueses para a apreciação do objecto dos presentes autos.
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A matéria de facto relevante mostra-se já enunciada no relatório da presente decisão, e resulta da simples análise da tramitação processual na plataforma citius.
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Em primeiro lugar convirá recordar que, tendo inicialmente sido demandados 2 réus, por força da desistência da instância relativamente à ré “B..., SL”, está agora apenas em causa a competência internacional dos tribunais portugueses relativamente ao pedido formulado pela autora contra o réu AA.
O que, obviamente, não afecta a natureza transnacional do litígio, atento o facto de a autora possuir sede em território português e o réu ser nacional espanhol com residência no Reino de Espanha.
Conforme jurisprudência totalmente pacífica dos nossos tribunais superiores, a competência absoluta dos tribunais [designadamente a competência internacional] afere-se em função da relação material controvertida tal como apresentada pelo autor, independentemente de qualquer juízo de prognose quanto ao mérito da acção [cfr, neste sentido, e por todos, o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça nos seus acórdãos de 04 de Março de 1997 (publicado na Colectânea de Jurisprudência/STJ, 1997, tomo V, página 125) e de 01 de Março de 2018 (processo nº 1203/12.0TBPTL.G1.S1, disponível em https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2018:1203.12.0TBPTL.G1.S1.78?search=hkR2vXK2dF9l5dcq_fE), bem como o decidido pelo Tribunal de Conflitos nos seus acórdãos de 2 de Julho de 2002 (conflito nº 01/2002, disponível em https://files.dre.pt/gratuitos/acordaos/2002/32600.pdf) e de 05 de Fevereiro de 2003 (conflito nº 06/2002, disponível em https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao-sta/32600-2004-4046402)] – nº 1 do artigo 38º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais [Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto].
Naturalmente, como decorre do nº 4 do artigo 8º da Constituição da República Portuguesa e do artigo 59º do Código de Processo Civil, a regulamentação europeia quanto à competência internacional sobrepõe-se às regras do direito interno.
No caso, conforme decidido pelo tribunal recorrido e as partes concordam, é determinante o regime estabelecido pelo regulamento (EU) nº 2015/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro.
A decisão recorrida, considerando relevante ao caso a regra enunciada na alínea b) do artigo 7º do referido regulamento, declarou a incompetência absoluta do tribunal.
A recorrente, por seu turno, defende:
- o não preenchimento da hipótese legal da referida norma, atendendo a que estamos apenas perante apenas o pedido de cumprimento de uma obrigação pecuniária, e pugnando pela aplicação da alínea a) do mesmo artigo 7º, sendo o local do cumprimento, no caso, determinado pela lei portuguesa através do artigo 774º do Código Civil;
- a aplicação do critério da aceitação tácita da competência dos tribunais portugueses [artigo 26º do regulamento (EU) nº 2015/2012], na medida em que o réu, citado para os termos do processo, não se limitou a esgrimir a incompetência absoluta, antes materialmente apresentando defesa quanto à pretensão da autora.
Salvo sempre melhor opinião, não assiste razão à recorrente.
Vejamos.
É pacífico não terem as partes celebrado qualquer pacto atributivo de jurisdição.
E, essencialmente face à documentação junta pela autora na sua petição inicial [documentos 3, 5 e 7 – orçamento e facturas relativos ao contrato de onde emerge a obrigação de pagamento do preço cujo cumprimento a autora pretende fazer valer], também não há dúvida estar em causa o fornecimento e colocação de caixilharia em alumínio numa habitação sita em Madrid, Reino de Espanha [e face a desta obrigação de colocação apenas se pode compreender que a autora tenha assumido a entrega da mercadoria no local da obra, em Espanha, o que, com o devido respeito, torna obviamente insustentável o pela recorrente afirmado nas conclusões 16ª e 17ª do seu recurso. Mas a este ponto adiante retornaremos].
Logo, o cerne da questão passa por entender o que se deve considerar englobado na expressão vertida no primeiro parágrafo da alínea b) do nº 1 do artigo 7º do regulamento (EU) nº 2015/2012 [no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues] – todas as obrigações emergentes de um contrato de compra e venda de bens, ou apenas a obrigação principal nele assumida por uma das partes, em concreto pelo fornecedor/vendedor ?
Desde já se adianta que a posição defendida pela recorrente não possui mínimo fundamento – aliás, não deixa de ser sintomático que a recorrente não invoque uma única decisão jurisprudencial de algum tribunal superior que directamente aplique o critério por si defendido.
Em primeiro lugar recorde-se constituir intenção declarada do legislador europeu por princípio ligar a competência dos tribunais dos estados membros ao domicílio do requerido, em qualquer caso assegurando a previsibilidade, para o requerido, do critério definidor da competência [considerandos 15) e 16) do regulamento (EU) nº 2015/2012], bem como minimizando a possibilidade de serem instaurados processos concorrentes [considerando 21) do regulamento (EU) nº 2015/2012].
Restringir qualquer dos parágrafos da alínea b) do nº 1 do artigo 7º do regulamento (EU) nº 2015/2012 à obrigação essencial de uma das partes no contrato [o vendedor/fornecedor do serviço], como pretende a recorrente, naturalmente abriria a porta a que a mesma relação jurídica fosse discutida, não só em processos diferentes, mas também em países diferentes, com regras materialmente diversas – o que é claramente contrário à intenção exarada no considerando 21) do regulamento (EU) nº 2015/2012.
Razoável e compreensível será que o elemento de conexão «local onde os bens foram ou devam ser entregues» releve quanto à competência para apreciar qualquer litígio emergente da relação jurídica em presença.
E por isso se compreende que constitua jurisprudência absolutamente pacífica do Tribunal de Justiça da União Europeia, formada à luz do regulamento (CE) nº 44/2001, de 16 de Janeiro, cujo artigo 5º, nº 1, possuía redacção idêntica à norma actualmente vertida no nº 1 do artigo 7º do regulamento (EU) nº 2015/2012, que se deva tomar «(…) como referência, quanto aos contratos de compra e venda e de prestação de serviços, já não a obrigação controvertida na acção, mas antes a obrigação característica do contrato, impondo uma definição autónoma do “lugar de cumprimento enquanto critério de conexão ao tribunal competente em matéria contratual” [ponto 54 do acórdão do TJ de 23 de Abril de 2009, proc. C-533/07, caso Falco Privatstiftung, Thomas Rabitsch contra Gisela Weller-Lindhorst, disponível em https://juris.stj.pt/3556%2F22.3T8PNF.P1.S1/M1_swEkOE1j0lVHc4X1GhtXCZU0?search=eGKwFq7lXJmzJ3RQrAk].
Este também tem sido o entendimento pacífico do nosso Supremo Tribunal de Justiça na matéria [veja-se, por todos, o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 14 de Dezembro de 2017, processo nº 143378/15.0YIPRT.G1.S1, disponível em https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2017:143378.15.0YIPRT.G1.S1.C2?search=6kEBQYWU1m5dKIwO_oM, bem como no seu recente acórdão de 27 de Fevereiro de 2025, processo nº 3556/22.3T8PNF.P1.S1, disponível em https://juris.stj.pt/3556%2F22.3T8PNF.P1.S1/M1_swEkOE1j0lVHc4X1GhtXCZU0?search=eGKwFq7lXJmzJ3RQrAk] – ou seja, repete-se, o elemento de conexão relevante [local de entrega dos bens; local de prestação dos serviços] determina a competência relativamente a qualquer das obrigações jurídicas emergentes de um determinado relacionamento contratual, independentemente da concreta obrigação cujo cumprimento a parte exige em juízo.
O único argumento apresentado pela recorrente em defesa da sua tese reconduz-se ao suposto esvaziamento do conteúdo normativo da alínea a) do nº 1 do artigo 7º do regulamento (EU) nº 2015/2012 caso não se considere ser a «obrigação em questão» a concreta obrigação cujo cumprimento é judicialmente exigido [conclusões 13ª e 14ª do recurso].
Obviamente não lhe assiste razão, na medida em que a regra enunciada na alínea a) do nº 1 do artigo 7º do regulamento (EU) nº 2015/2012 constitui, por si só, o elemento de conexão relevante em matéria de contratual fora dos casos em que a relação material controvertida se reconduz a um contrato de compra e venda ou de prestação de serviços, e apenas é concretizada, nessas mesmas hipóteses, pelas duas regras fixadas na alínea b) do nº 1 do mesmo artigo 7º.
Portanto, mesmo tendo em conta que a recorrente, nestes autos, exige o cumprimento de uma obrigação estritamente pecuniária, porque indiscutivelmente funda o seu pedido num contrato de compra e venda de bens ao caso é aplicável a alínea b) do nº 1 do artigo 7º do regulamento (EU) nº 2015/2012.
E, na hipótese em apreço, qual deve ser considerado «o lugar onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues»?
Também aqui temos de recorrer ao alegado pela autora na sua petição, bem como à documentação apresentada – e, como acima se referiu, consultando o orçamento e a factura juntos ao articulado inicial facilmente nos apercebemos de a autora se ter alegadamente vinculado a fornecer e colocar os materiais objecto do contrato na vivenda unifamiliar que se mostrava em construção, o que apenas permite a conclusão de a entrega e colocação dos bens fornecidos, nos termos alegadamente contratados, ter sido feita pela autora em residência sita na cidade de Madrid, Reino de Espanha.
No que respeita à questão da competência tácita consagrada no artigo 26º do regulamento (EU) nº 2015/2012, é verdade que o réu contestante não se limitou a invocar a excepção de incompetência internacional dos tribunais portugueses, antes subsidiariamente ensaiou uma defesa, para a hipótese de aquela excepção não merecer acolhimento pelo tribunal.
Apenas sucede que «já desde a Convenção de Bruxelas de 1968 que a jurisprudência europeia tem entendido que o artigo 18.º da Convenção, ao qual correspondem os arts. 24.º do Regulamento n.º 44/2001 e 26.º do Regulamento n.º 1215/2012, tem de ser entendido no sentido de que permite ao réu não contestar apenas a jurisdição mas também, em alternativa, apresentar defesa relativa à substância da causa, sem perder o direito de suscitar a excepção de incompetência», o que se compreende por haver leis de Estados da União Europeia «que atribuem consequências desfavoráveis à omissão de outra defesa, quando o réu invoca apenas a incompetência internacional no tribunal em que foi demandado e essa defesa improcede; com outra interpretação, lesar-se-ia o direito de defesa, forçando o réu – que, apesar das preocupações de segurança jurídica do Regulamento, não pode antecipar o sentido da decisão do tribunal – ou a optar por defender-se de fundo, perdendo o direito de invocar a incompetência, ou a escolher suscitar a incompetência, com os riscos inerentes» [acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Dezembro de 2017, processo nº 143378/15.0YIPRT.G1.S1, acima referido], o que, como regra, precisamente sucede no caso do ordenamento processual civil português [cfr artigo 573º do Código de Processo Civil].
Nos autos não há qualquer dúvida ter o recorrido principiado por assentar a sua defesa na excepção dilatória de incompetência absoluta, alinhavando outros argumentos de defesa para a hipótese de aquela excepção não ser julgada procedente, o que fez em respeito do estabelecido no artigo 573º do Código de Processo Civil – e, por isso, manifestamente não se pode afirmar que ocorra aceitação tácita da competência internacional dos tribunais portugueses.
Por último, simplesmente não se vê como apontar qualquer actuação abusiva à actuação do réu, que na sua contestação se limitou a opor a excepção de incompetência internacional, o que fez 4 meses após o início da acção – sendo escusado salientar que ao réu contestante nenhuma censura é possível fazer pelo atraso no processo que decorreu das tentativas infrutíferas da citação da então ré “B..., SL”.
O recurso não tem fundamento.
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Sumário – nº 7 do artigo 663º do Código de Processo Civil:
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Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os Juízes que integram a 3ª secção deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao presente recurso, confirmando a sentença proferida em 1ª instância.
Mais se condena a recorrente nas custas do recurso – artigo 527º do Código de Processo Civil.