ESTACIONAMENTO AUTOMÓVEL
CONCESSIONÁRIA
COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAIS ADMINISTRATIVOS
Sumário

I - A competência material, afere-se em função da forma como o autor configura e estrutura a acção, analisando o pedido e a factualidade concreta que lhe serve de fundamento (causa de pedir).
II - São os tribunais administrativos e fiscais – e não os tribunais comuns – os materialmente competentes para apreciar e decidir as acções em que, apresentado requerimento de injunção por entidade concessionada municipal para cobrança de taxas relativas ao estacionamento na via pública, vem a ser deduzida oposição.

Texto Integral

Processo n.º 127203/23.0YIPRT.P1

Tribunal Judicial da Comarca do Porto

Juízo Local Cível do Porto – Juiz 9

Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I. RELATÓRIO.

A..., S.A. instaurou acção especial para cumprimento de obrigações pecuniárias contra AA, pedindo a condenação da ré no pagamento da quantia de 843,95 euros.

Fundamenta a sua pretensão alegando, em síntese ser “(…) uma sociedade que se dedica, além do mais, à exploração e prestação de serviços na área do parqueamento automóvel. No âmbito da referida exploração, a Requerente adquiriu e colocou, em vários locais da cidade de Matosinhos, máquinas para pagamento de estacionamento automóvel, com a indicação dos preços e condições de utilização dos mesmos. A Requerida é proprietária do veículo automóvel com a matrícula ..-VQ-...

Enquanto utilizadora do referido veículo, a Requerida estacionou o referido veículo, nos vários parques de estacionamento que a Requerente explora na cidade de MATOSINHOS, sem se dignar a proceder ao pagamento do tempo de utilização, conforme regras devidamente publicitadas no local (…)”.

Suporta, pois, a sua pretensão na responsabilidade civil contratual decorrente da execução de um contrato de concessão de exploração e fiscalização de lugares de estacionamento na via pública.

Regularmente citada, a ré contestou, impugnando a pretensão da autora e, defendendo-se por excepção, invocou a prescrição do crédito da Autora referente ao período de 10.01.2020 a 18.03.2022.

Ordenou-se a notificação da Autora para, querendo, no prazo de 10 dias, se pronunciar, querendo, sobre a matéria da excepção arguida pela Ré.

A Autora respondeu, pugnando pela improcedência da excepção deduzida.

Por despacho de 25.09.2024, determinou-se que fosse solicitado ao processo n.º 42546/24.4YIPRT, a correr termos também no tribunal recorrido, cópia certificada do contrato de concessão/exploração celebrado com a Câmara Municipal de Matosinhos.

Junta a referida cópia, foi proferido o seguinte despacho:

“Por se nos afigurar ser este tribunal incompetente em razão da matéria, notifique as partes para, querendo, no prazo de 10 dias, se pronunciarem (art.º 3.º, n.º 3 do Código de Processo Civil) [...]”.

Cumprindo o contraditório, respondeu a Autora, defendendo a competência material dos tribunais comuns.

Seguidamente, foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:

“...declaro absolutamente incompetentes para conhecer do pedido formulado os tribunais judiciais e, em consequência, absolvo a ré da instância.

Custas a cargo da autora – art.º 527.º do Código de Processo Civil.

Valor da causa (art.º 306.º do Código do Processo Civil): o indicado na petição inicial.

Registe e notifique”.

Não se resignando a Autora com tal decisão, dela interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:

“a) Vem o presente recurso apresentado contra o Douto Despacho A Quo, que decidiu julgar a incompetência material do Juízo Local Cível de Matosinhos, para cobrança dos créditos da Autora e A. A... SA.

b) No âmbito da sua atividade, a A. celebrou um contrato de concessão com a Câmara Municipal de Matosinhos, através do qual lhe foi cedida a exploração particular de zonas de estacionamento automóvel na cidade sem cedência de quaisquer poderes de autoridade, ou de disciplina.

c) No seguimento deste contrato de concessão, a A... adquiriu e instalou em vários locais da cidade de Matosinhos, onerosas máquinas para pagamento dos tempos de estacionamento automóvel, para as quais desenvolveu o necessário software informático.

d) Enquanto utilizadora do veículo automóvel ..-VQ-.., a Ré estacionou o mesmo em diversos Parques de Estacionamento que a A. explora comercialmente na cidade de Matosinhos, sem, contudo, proceder ao pagamento dos tempos de utilização, num total em dívida de € 6898,10 que a Ré recusa pagar.

e) Para cobrança deste valor, a Recorrente viu-se obrigada a recorrer aos tribunais comuns, peticionando o seu pagamento, pois a sua nota de cobrança está desprovida de força executiva, não podendo, portanto, dar lugar a um imediato processo de execução, seja administrativo ou fiscal.

f) A natureza jurídica da quantia paga pelos utentes em contrapartida da prestação do serviço de parqueamento é a de um preço e não de um encargo ou contrapartida com natureza fiscal ou tributária.

g) As ações intentadas pela A. contra os proprietários de veículos automóveis inadimplentes, que não tenham procedido ao pagamento dos montantes devidos, não se inserem em prorrogativas de autoridade pública munida de ius imperii, mas sim no âmbito da gestão enquanto entidade privada.

h) A recorrente ao atuar perante terceiros, não se encontra munida de poderes de entidade pública, e sim com poderes de entidade privada, pelo que, e contrariamente ao entendimento do Tribunal “a quo”, o contrato estabelecido entre si e os automobilistas, relativo à utilização dos parqueamentos explorados, é de direito privado, cuja violação é suscetível de fazer o utilizador incorrer em responsabilidade contratual por incumprimento do contrato.

i) A doutrina qualifica este tipo de contrato como uma relação contratual de facto - em virtude de não nascer de negócio jurídico - assente em puras atuações de facto, em que se verifica uma subordinação da situação criada pelo comportamento do utente ao regime jurídico das relações contratuais, com a eventual necessidade de algumas adaptações.

j) O estacionamento remunerado, apresenta-se como uma afloração clara da relevância das relações contratuais de facto e a relação entre o concessionário e o utente resulta de um comportamento típico de confiança.

k) Comportamento de confiança, que não envolve nenhuma declaração de vontade expressa, e sim uma proposta tácita temporária de um espaço de estacionamento, mediante retribuição.

l) Proposta tácita temporária da A., que se transforma num verdadeiro contrato obrigacional, mediante aceitação pura e simples do automobilista, o qual, ao estacionar o seu automóvel nos parques explorados pela A., concorda com os termos de utilização propostos pela A., amplamente publicitados no local.

m) Essencial para se determinar a competência dos tribunais administrativos é, a existência de uma relação jurídica administrativa.

n) Sabendo-se que a concretização de tal conceito constitui tarefa difícil, podemos, no entanto, definir a relação jurídica administrativa como aquela que «por via de regra confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares, ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração».

o) O conceito de relação jurídica administrativa pode ser tomado em diversos sentidos, seja numa aceção subjetiva, objetiva, ou funcional, sendo certo que nenhuma das acessões permite englobar a presente situação.

p) Caso contrário, teríamos de entender como públicas quaisquer relações jurídicas, já que todo o interesse de regulação, é em si mesmo um interesse público e nessa medida, tudo seria público, até à mais ténue e simples regulamentação de relações entre particulares, desde que geradoras de direitos e obrigações suscetíveis de ser impostos coativamente.

q) A A... SA., não efetua atos de fiscalização, não tendo poderes para autuar coimas ou multas por incumprimento das regras estradais, tarefa que está exclusivamente atribuída às autoridades públicas de fiscalização do espaço rodoviário da cidade.

r) Nos termos do disposto no artigo 2º do DL 146/2014 de 09 de outubro, a atividade de fiscalização incide exclusivamente na aplicação das contraordenações previstas no artigo 71º do Código da Estrada, o qual estabelece as coimas aplicáveis às infrações rodoviárias ali identificadas.

s) Os montantes cobrados pela A... SA., não consubstanciam a aplicação de quaisquer coimas, nem a empresa processa quaisquer infrações praticadas pelos utentes dos parqueamentos.

t) Verificada a violação da obrigação contratual de pagamento do tempo de imobilização dos seus veículos, nos parqueamentos explorados pela A... SA., são os automobilistas posteriormente notificados para procederem ao pagamento omitido, sendo então cobrado o tempo máximo de utilização, por falta de referência concreta ao tempo efetivo de utilização.

u) Quaisquer infrações ou coimas que devam ser aplicadas aos automobilistas prevaricadores de regras estradais, ficam a cargo da Autarquia, sem qualquer intervenção ou conexão com a atividade da empresa concessionária.

v) A A..., ao contrário o que vem referido na douta sentença, nunca atuou em substituição da autarquia, munida de poderes concessionados.

w) Que poderes de autoridade? Se a Recorrente estivesse investida em poderes de autoridade, após audição prévia, executaria o património dos devedores.

Mas não é assim!

x) Entender, como pretende, o Tribunal a Quo que os tribunais competentes são os administrativos e que, de entre estes, por se tratar de putativas Taxas de utilização, seriam os fiscais os tribunais competentes, corresponde a esvaziar de conteúdo e utilidade o Contrato de Concessão de Exploração dos Parqueamentos da cidade de Matosinhos, por retirar à concessionária o poder de reclamar judicialmente os seus créditos, que ficariam na discricionariedade, de muito improvável realização, dos poderes públicos.

y) Fundamental é que a Recorrente carece, em absoluto, de poderes de autoridade, fiscalização ou ordenação efetiva, apenas podendo registar os incumprimentos de pagamento e tentar recuperar judicialmente, sem acesso direto a um título executivo, os valores que tiverem sido sonegados, em violação da relação contratual de confiança, pelos utentes.

z) Por tudo o que se alegou, mal andou o Tribunal “a quo” ao declarar-se incompetente em razão da matéria, pois, o Tribunal recorrido é o competente, motivo pelo qual foram violados, entre outros, os artigos 96º, al. a), 278º, Nr.1 al. a), 577º al. a) e 578º do CPC, quer o artigo 4º nr.1, al. e) do ETAF, quer ainda o artigo 40º da Lei 62/2013 de 26 de agosto.

Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente, e em consequência, ser a douta sentença recorrida substituida por outra, que julgando competente o Juízo Local Cível de Matosinhos, ordene o prosseguimento dos autos, conforme é do direito e da J u s t i ç a”.

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar.

II. OBJECTO DO RECURSO.

A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.

B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar se o tribunal recorrido é ou não materialmente competente para conhecer da acção aí instaurada pela Autora.

III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.

Os factos/incidências processuais relevantes à apreciação do objecto do recurso são os descritos no relatório introdutório, e, além destes, o seguinte, documentalmente comprovado:

1. Entre a autora e o Município de Matosinhos foi celebrado, em 7 de Março de 2016, contrato denominado “de concessão, gestão, exploração, manutenção e fiscalização dos lugares de estacionamento pago na via pública e de dois parques públicos de estacionamento para viaturas”, no qual consta, entre o mais:

“(…) E pelo primeiro outorgante foi dito que em execução das deliberações da Assembleia Municipal e Câmara Municipal tomadas, respetivamente, em sessão extraordinária de quinze de dezembro de dois mil e catorze e reunião de três de novembro do ano findo, é celebrado o presente contrato que se regerá pelas cláusulas seguintes:

PRIMEIRA – O Município de Matosinhos concede à sociedade representada pelo segundo outorgante a “Gestão, exploração, manutenção e fiscalização dos lugares de estacionamento pago na via pública e de dois parques públicos de estacionamento para viaturas”, de acordo com a cláusula 11.ª e Anexo I do caderno de encargos que me foi apresentado e fica a fazer parte integrante deste contrato;

SEGUNDA – O prazo de concessão é de dez anos, não renováveis, contado a partir de hoje;

TERCEIRA – A concessionária entregará trimestralmente ao Município o valor que resultar da aplicação da fórmula constante da cláusula 31.ª do caderno de encargos e de acordo com a proposta apresentada datada de três de Julho do ano findo;

QUARTA – O Município, por justificado interesse público e decorridos três anos e meio da data de início da concessão, pode proceder ao resgate da mesma, mediante aviso prévio, com pelo menos seis meses de antecedência.

QUINTA – O Município pode, mediante sequestro da concessão, tomar a seu cargo o desenvolvimento das atividades concedidas, designadamente nas situações previstas no Código dos Contratos Públicos, bem como adotar todas e quaisquer medidas que considere necessárias para a normalização da situação;

SEXTA – A concessionária não pode ceder, alienar, trespassar, ou por qualquer forma transmitir ou onerar, no todo ou em parte, a concessão sem prévia autorização do Município.

SÉTIMA – A retribuição auferida pela concessionária corresponderá ao total do produto recolhido através dos métodos de pagamento disponibilizados aos utentes no âmbito da Concessão incluindo o valor arrecadado com os “Avisos de Pagamento” ou outros métodos de pagamento voluntário que venham a ser implementados durante o prazo de vigência do contrato;

OITAVA – A concessionária deve manter ao seu serviço uma estrutura de pessoal técnico e administrativo que permita dar cabal satisfação e que possibilite a boa execução das obrigações por si assumidas no âmbito da concessão;

NONA – A concessionária fica sujeita à fiscalização do concedente, que pode, para o efeito, exigir as informações e documentos que considere necessários e a quem será facultado livre acesso a todas as infraestruturas e equipamentos afetos à concessão, bem como às instalações da concessionária;

DÉCIMA – A concessionária fica obrigada a observar as regras constantes do Anexo II relativas à exploração da concessão, bem como os deveres acessórios previstos nos Anexos III, IV, V e VI, todos do caderno de encargos;

DÉCIMA PRIMEIRA – No final da concessão reverterão para o Município, livre de quaisquer encargos, a totalidade dos bens afetos à concessão, fornecidos pela concessionária;

DÉCIMA SEGUNDA – Em tudo mais não previsto neste contrato ou no caderno de encargos, serão aplicadas as disposições do Código dos Contratos Públicos. (…)”.

IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

Segundo Manuel de Andrade[1], “a competência, como medida de jurisdição atribuída a cada tribunal para conhecer de determinada questão a ele submetida, e enquanto pressuposto processual, determina-se pelos termos em que a acção é proposta, isto é, pela causa de pedir e pedido respectivos”.

A competência em razão da matéria determina-se, pois, pela natureza da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor, independentemente do seu mérito ou demérito.

O mesmo é dizer, a competência material, afere-se em função da forma como o autor configura e estrutura a acção, analisando o pedido e a factualidade concreta que lhe serve de fundamento (causa de pedir).

De acordo com o artigo 211.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.

E o artigo 64.º do Código de Processo Civil determina que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

O carácter residual da competência dos tribunais comuns encontra expressão no artigo 40.º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26 de Agosto, quando estabelece: “Os tribunais judiciais têm competência para as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.

Por sua vez, o artigo 212.º, n.º 3 da Lei Fundamental delimita o campo de intervenção jurisdicional dos tribunais administrativos, os quais têm por objectivo a resolução de litígios de natureza administrativa e fiscal.

Dispõe, também no mesmo sentido, o artigo 1.º, n.º 1 do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro[2] que “os tribunais da jurisdição administrativa são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo, nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais”.

Freitas do Amaral[3] caracterizava a relação jurídico - administrativa como sendo a que confere poderes de autoridade ou impõe restrições de interesse público à Administração perante os particulares ou que atribui direitos ou impõe deveres públicos aos particulares perante a Administração.

Vieira de Andrade[4] enquadra no mesmo conceito as relações “…em que um dos sujeitos, pelo menos, é uma entidade pública ou uma entidade particular no exercício de um poder público, actuando com vista à realização de um interesse público legalmente definido”.

Por regra, à jurisdição administrativa só interessam as relações administrativas públicas, as reguladas por normas de direito administrativo, aquelas em que um dos sujeitos, pelo menos, actue na veste de autoridade pública, munido de um poder de imperium, com vista à realização do interesse público legalmente definido.

No regime legislativo anterior à entrada em vigor[5] do actual ETAF, aprovado pela Lei nº 13/2002, de 19 de Fevereiro a qualificação dos actos praticados pelos titulares de órgãos ou agentes de uma pessoa colectiva pública, (de gestão pública ou de gestão privada) constituía o critério basilar para a delimitação do âmbito de actuação (competência) das duas ordens de jurisdição (tribunais administrativos/tribunais comuns).

O Prof. Marcello Caetano qualificava de gestão pública a actividade da Administração regulada por normas que conferem poderes de autoridade para a prossecução de interesses públicos, disciplinam o seu exercício ou organizam os meios necessários para esse efeito, sendo actos de gestão privada os que surjam no âmbito da actividade desenvolvida pela Administração no exercício da sua capacidade de direito privado, procedendo como qualquer outra pessoa no uso das faculdades conferidas por esse direito, ou seja, pelo direito civil ou comercial[6].

Para o Prof. Antunes Varela[7], "actividades de gestão pública são todas aquelas em que se reflecte o poder de soberania próprio da pessoa colectiva pública e em cujo regime jurídico transparece, consequentemente, o nexo de subordinação existente entre os sujeitos da relação, característico do direito público". E esclarece: "simplesmente, nem todos os actos que integram gestão pública representam o exercício imediato do jus imperii ou reflectem directamente o poder de soberania do próprio Estado e das demais pessoas colectivas. Essencial para que seja considerada de gestão pública é que a actividade do Estado (ou de qualquer outra entidade pública) se destine a realizar um fim típico ou específico dele, com meios ou instrumentos também próprios do agente".

Como salientam os Professores Freitas do Amaral e Mário Aroso de Almeida[8], “nas propostas de lei que o Governo apresentou à Assembleia da República, foi assumido o propósito de pôr termo a essas dificuldades” - quanto à delimitação do âmbito da jurisdição administrativa em matéria de responsabilidade civil e de contratos -, “consagrando um critério claro e objectivo de delimitação nestes dois domínios. A exemplo do que (…) acabou por suceder em matéria ambiental, o critério em que as propostas se basearam foi o critério objectivo da natureza da entidade demandada: sempre que o litígio envolvesse uma entidade pública, por lhe ser imputável o facto gerador do dano ou por ela ser uma das partes no contrato, esse litígio deveria ser submetido à apreciação dos tribunais administrativos. Propunha-se, assim, que a jurisdição administrativa passasse a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvessem pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado (...). Em defesa desta solução, sustentava-se na Exposição de Motivos do ETAF que, se a Constituição faz assentar a definição do âmbito da jurisdição administrativa num critério substantivo, centrado no conceito de “relações jurídicas administrativas e fiscais”, a verdade é que ela “não erige esse critério num dogma”, pois “não estabelece uma reserva material absoluta”. Por conseguinte, “a existência de um modelo típico e de um núcleo próprio da jurisdição administrativa e fiscal não é incompatível com uma certa liberdade de conformação do legislador, justificada por razões de ordem prática, pelo menos quando estejam em causa domínios de fronteira, tantas vezes de complexa resolução, entre o direito público e o direito privado (...). O art. 4º do ETAF só veio a consagrar, no essencial, estas propostas no domínio da responsabilidade civil extracontratual. Já não no que toca aos litígios emergentes de relações contratuais”.

O artigo 4.º do citado diploma delimita, no seu n.º 1, o âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, ao determinar que “compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto:

a) Tutela de direitos fundamentais, bem como dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares directamente fundados em normas de direito administrativo ou fiscal ou decorrentes de actos jurídicos praticados ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal;

b) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos emanados por pessoas colectivas de direito público ao abrigo de disposições de direito administrativo ou fiscal, bem como a verificação da invalidade de quaisquer contratos que directamente resulte da invalidade do acto administrativo no qual se fundou a respectiva celebração;

c) Fiscalização da legalidade de actos materialmente administrativos praticados por quaisquer órgãos do Estado ou das Regiões Autónomas, ainda que não pertençam à Administração Pública;

d) Fiscalização da legalidade das normas e demais actos jurídicos praticados por sujeitos privados, designadamente concessionários, no exercício de poderes administrativos;

e) Questões relativas à validade de actos pré-contratuais e à interpretação, validade e execução de contratos a respeito dos quais haja lei específica que os submeta, ou que admita que sejam submetidos, a um procedimento pré-contratual regulado por normas de direito público;

f) Questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos específicos do respectivo regime substantivo, ou de contratos em que pelo menos uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público;

g) Questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa;

h) Responsabilidade civil extracontratual dos titulares de órgãos, funcionários, agentes e demais servidores públicos;

i) Responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público;

j) Relações jurídicas entre pessoas colectivas de direito público ou entre órgãos públicos, no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir;

l) Promover a prevenção, cessação e reparação de violações a valores e bens constitucionalmente protegidos, em matéria de saúde pública, ambiente, urbanismo, ordenamento do território, qualidade de vida, património cultural e bens do Estado, quando cometidas por entidades públicas, e desde que não constituam ilícito penal ou contra-ordenacional;

m) Contencioso eleitoral relativo a órgãos de pessoas colectivas de direito público para que não seja competente outro tribunal;

n) Execução das sentenças proferidas pela jurisdição administrativa e fiscal”.

Com a entrada em vigor do aludido ETAF, o acto de gestão pública, quer na sua vertente teleológica, quer por referência ao exercício do jus imperii por parte do agente ou órgão da pessoa colectiva de direito público, deixou de ser o critério exclusivo para a atribuição da competência dos tribunais administrativos: não estão hoje excluídos da jurisdição administrativa os recursos e as acções que tenham por objecto questões de direito privado, bastando que ambas ou uma das partes seja ente de direito público.

Como se extrai do n.º 1 do citado normativo, que encerra em si uma cláusula geral positiva de atribuição de competência aos tribunais administrativos para apreciação dos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas, esta constitui a regra nuclear para a delimitação do âmbito jurisdicional dos tribunais administrativos em relação aos demais órgãos jurisdicionais.

Deste modo, a definição do âmbito da jurisdição administrativa assenta num critério substantivo, ancorado no conceito de “relações jurídicas administrativas”, critério que, todavia, como dá conta a jurisprudência do Tribunal Constitucional[9] e do Tribunal de Conflitos[10], não se assume como absoluto.

Em todo o caso, como antes se assinalou, a competência em razão da matéria deve ser aferida em função da forma como o autor configura e estrutura a acção [ou o procedimento], o que pressupõe uma análise da relação jurídica nela discutida, tendo em conta os pedidos nela formulados e a causa de pedir que lhe serve de amparo.

A decisão recorrida estribou-se na alínea e) do normativo acima transcrito para concluir pela competência material, no caso em apreço, dos tribunais administrativos, afastando dos tribunais comuns tal competência.

Pode ler-se, com efeito, na decisão aqui sindicada: “Conforme resulta dos documentos apresentados pela autora, esta, no ano de 2016, celebrou com a Câmara Municipal de Matosinhos um contrato de concessão gestão, exploração, manutenção e fiscalização dos lugares de estacionamento pago na via pública e de dois parques públicos de estacionamento para viaturas, no âmbito do qual o Município de Matosinhos concedeu à ré, pelo período de 10 anos, renovável, gestão, exploração, manutenção e fiscalização dos lugares de estacionamento pago na via pública e de dois parques públicos de estacionamento para viaturas, mediante a entrega trimestral da quantia acordada. Mais acordaram que no fim da concessão reverteriam para o Município a totalidade dos bens afetos à concessão e que o contrato celebrado estava sujeito às disposições dos contratos públicos.

O contrato de concessão celebrado entre a autora e o Município de Matosinhos rege-se pelo conteúdo das suas disposições e das disposições do caderno de encargos referido, onde se encontra a forma como será fiscalizado o seu cumprimento. No âmbito do contrato celebrado, a autora obrigou-se a cumprir a regras impostas pelo Município e a agir no âmbito dos poderes que lhe foram conferidos, nomeadamente ena sua relação com terceiros/particulares que usufruem do estacionamento concessionado sujeitando-se às suas regras e condições, entre elas, o pagamento da taxa de utilização.

Do exposto, é-nos permitido concluir que os atos praticados pela autora revestem-se de natureza pública, porquanto praticados no exercício de um poder público, isto é na realização de funções públicas no domínio de atos de gestão pública”.

A interpretação da dita alínea e) tem merecido especial atenção da doutrina[11], que dá conta que a técnica do ETAF, para a delimitação de competências dos tribunais administrativos e fiscais, radica em formulação de critérios de qualificação dos contratos, designadamente por apelo a um critério substantivo que se mostra vertido na citada al. e), nos termos do qual a jurisdição administrativa é competente para apreciar todas as questões relativas à interpretação, validade e execução de contratos de objecto passível de acto administrativo, de contratos especificamente acerca dos quais existam normas de direito público que regulem aspectos do respectivo regime substantivo, ou de contratos que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.

De acordo com esse entendimento, aquela alínea apela a três critérios distintos:

- contratos de objecto passível de acto administrativo;

- contratos especificamente a respeito dos quais existam normas de direito público que regulam aspectos próprios do respectivo regime substantivo;

- contratos em que, pelo menos, uma das partes seja uma entidade pública ou um concessionário que actue no âmbito da concessão e que as partes tenham expressamente submetido a um regime substantivo de direito público.

No primeiro critério enquadram-se os contratos que têm por objecto um exercício contratualizado de poderes administrativos de autoridade. Pressupõem uma típica relação jurídica administrativa em que a Administração Pública é a autoridade e o particular o administrado e envolve-se a mesma com a forma de contrato.

O segundo critério integra contratos em que o legislador opta por os submeter, pelo menos em determinados pontos específicos, a normas de direito público, assim procedendo à sua regulamentação.

Relativamente ao último critério, a determinação do âmbito jurisdicional administrativo desenvolve-se a partir de dois níveis: um deles reporta-se à qualidade das partes, exigindo-se que, pelo menos, uma delas seja “entidade pública” ou “concessionário no âmbito da concessão”; o outro respeita à possibilidade de as partes submeterem expressamente o contrato que celebraram a um regime substantivo de direito público.

No caso em apreço, na sequência e por efeito do contrato de concessão[12] celebrado entre o Município de Matosinhos e a Autora, assumiu esta a qualidade de concessionária de um serviço reconhecidamente de interesse público, actuando, nessa medida, em “substituição” da autarquia, com os poderes inerentes, que lhe foram concessionados.

Nestas circunstâncias, independentemente da natureza jurídica de que possam revestir os contratos ou acordos tácitos estabelecidos sempre que os utentes utilizam para estacionamento os espaços públicos concessionados à Autora, tanto esta como os referidos utentes (como, no caso, a Ré) estão submetidos às regras do Regulamento Municipal que disciplina esses estacionamentos[13], o que justifica o direito reconhecido àquela de proceder à cobrança das respectivas taxas[14] de utilização fixadas nesse instrumento normativo[15] e de exercer a respectiva actividade de fiscalização[16].

Por outro lado, tendo a recorrente, por conta do contrato de concessão que celebrou com o Município de Matosinhos, se vinculado expressamente ao cumprimento do dito Regulamento de Estacionamento, sobre ela recai o ónus de conformar a sua actuação com as normas do mencionado diploma e agir em conformidade com os poderes que o mesmo lhe confere, nomeadamente na sua relação com os terceiros particulares que usufruem do estacionamento concessionado e como tal passam a estar sujeitos às respectivas regras e condições.

Ora, como tal Regulamento contém normas de direito público, que fixam o regime substantivo de tais contratos ou acordos tácitos, a execução dos mesmos enquadra-se na previsão do que dispõe a al. e), do nº 1 do artigo 4.º do ETAF, tal como defende a decisão recorrida, pelo que são materialmente competentes para a preparação e julgamento do presente litígio os tribunais administrativos e não os tribunais comuns.

Assim o tem, de resto, entendido a generalidade da jurisprudência[17], nomeadamente em situações em que é demandante a aqui recorrente, sendo idêntico o objecto do litígio.

Ainda recentemente o Tribunal de Conflitos[18] decidiu no seu acórdão de 8.05.2025:

I - A concessionária da gestão e exploração do serviço público de estacionamento nas vias municipais, mediante contrato de concessão de serviços públicos, nesse âmbito, atua em substituição da autarquia, munida dos poderes que a esta são legalmente atribuídos nesse domínio.

II - As relações que estabelece com os utilizadores do estacionamento naquelas zonas consubstancia uma relação jurídica administrativa/tributária, subsumível ao disposto nas al.ªs e) e o) do n.º 1 do art.º 4.º do ETAF.

III - Compete aos tribunais da jurisdição administrativa conhecer da ação intentada pela empresa a que o Município adjudicou a gestão e exploração do estacionamento de veículos em ZEDL, requerendo de particular o pagamento da contraprestação devida pela utilização do referido estacionamento.

Confirma-se, por consequência, o decidido, assim improcedendo o recurso.


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Síntese conclusiva:

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Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação, na improcedência da apelação, em confirmar a decisão recorrida.

Custas: pela apelante, nos termos do disposto no artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Notifique.

Porto, 26.06.2025

Acórdão processado informaticamente e revisto pela 1.ª signatária.

Judite Pires

Ana Luísa Loureiro

João Venade



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[1] “Noções Elementares de Processo Civil”, pág. 91.
[2] Sucessivamente alterada pela Lei nº 4-A/2003, de 19 de Fevereiro, Lei 107-D/2003, de 31 de Dezembro, Lei nº 1/2008, de 14 de Janeiro, Lei nº 2/2008, de 14 de Janeiro, Lei nº 26/2008, de 27 de Junho, Lei nº 52/2008, de 28 de Agosto, Lei nº 59/2008, de 11 de Setembro, Decreto - Lei nº 166/2009, de 31 de Julho, Lei nº 55-A/2010, de 31 de Dezembro, Lei nº 20/2012, de 14.05 e Lei n.º 114/2019, de 12.09.
[3] “Direito Administrativo”, vol. III, p. 439.
[4] “A Justiça Administrativa”, Lições, 3ª ed., 2000, págs. 79.
[5] 1 de Janeiro de 2004: artigo 9º, na redacção introduzida pela Lei nº 4-A/2003, de 19 de Fevereiro.
[6] “Manual de Direito Administrativo”, tomo I, 10ª edição, pág. 431.
[7] “RLJ”, 124º, 59.
[8] “Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo”, 3ª ed., págs. 34, 35.
[9] Cfr., designadamente, acórdãos nºs 347/97, de 25.07.97 e 284/2003, de 29.05.2003, www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos.
[10] Entre outros, cfr. acórdão de 27.11.2008, processo n.º 19/08.
[11] Cfr., nomeadamente, Mário Aroso de Almeida, “O novo regime do Processo nos Tribunais Administrativos”, 2ª edição revista e atualizada, págs. 96 e seguintes; Mário Esteves de Oliveira e Rodrigo Esteves de Oliveira, “Código de Processo nos Tribunais Administrativos e Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais Anotados”, Vol. I e Vieira de Andrade, “Justiça Administrativa – Lições”.
[12] Que, de acordo com o disposto no artigo 429.º do Código dos Contratos Públicos, tem natureza de contrato público.
[13] Regulamento das Zonas de Estacionamento de Duração Limitada no Concelho de Matosinhos, aprovado pela Câmara e Assembleia Municipal e publicado no Diário da República, em 8 de Março de 2016, e que foi objecto de várias alterações, a última das quais pelo Regulamento nº 494/2018, publicado no Diário da República, 2ª série, nº 147, de 1.08.2018.
[14] E não preço como contrapartida pela prestação do serviço de parqueamento, como a recorrente sustenta, designadamente, na alínea f) das conclusões alegatórias: o Decreto-Lei nº 146/2014, de 9.10, estabelece as condições em que as empresas privadas concessionárias de estacionamento sujeito ao pagamento de taxa em vias de jurisdição municipal podem exercer a atividade de fiscalização do estacionamento nas zonas que lhe estão concessionadas.
[15] Cfr. artigo 4.º.
[16] Cfr. art. 7º do DL nº 146/2014, de 9.10, artigo 16º do Regulamento e cláusula 1ª do contrato de concessão.
[17] Além da indicada na decisão sob recurso, cfr., no mesmo sentido, acórdão da Relação de Lisboa de 4.02.2025, proc.º 118032/24.5YIPRT.L1-7; da Relação de Évora de 30.01.2025, proc.º 42537/24.5YIPRT.E1, e, de forma unânime, nesta Relação do Porto: acórdãos de 11.12.2024 (rel. Isabel Peixoto), de 28.01.2025 (rel. Alberto Taveira), de 10.02.2025 (rel. José Eusébio), de 20.02.2025 (rel. Isabel Peixoto), de 11.03.2025 (rel. Artur Oliveira), de 20.03.2025 (rel. Isabel Peixoto), de 8.05.2025 (rel. Carlos Carvalho), de 26.05.2025 (rel. Ana Olívia Loureiro); de 26.05.2025 (rel. Nuno Araújo), todos em www.dgsi.pt.
[18] Processo n.º 0126592/24.4YIPRT.P1.S1, www.dgsi.pt.