I - Para a apreciação da natureza abusiva de uma cláusula inserta num contrato, há que ponderar a finalidade do mesmo.
II - Num contrato de seguro facultativo são de considerar abusivas e, por isso, nulas, as cláusulas de exclusão ou limitativas de responsabilidade quando delas resulte que a cobertura fica aquém daquela com que o tomador do seguro podia, de boa-fé, contar, tendo em consideração o objeto e a finalidade do contrato celebrado.
III - O dever de comunicação que recai sobre quem negoceia apresentando à outra parte um contrato com cláusulas gerais, pré-definidas, é uma obrigação de meios, não se exigindo para o seu cumprimento que o contratante, abrangido por tais cláusulas, delas tome conhecimento efectivo, mas que lhe sejam facultadas as condições para, em termos de razoabilidade e actuando com diligência, obter conhecimento sobre o seu conteúdo.
IV- Esse dever de comunicação é satisfeito quando as cláusulas contratuais gerais constem do documento assinado pelo aceitante, quando este saiba ler e escrever e o documento lhe seja facultado para leitura e análise antes de nele apor a sua assinatura.
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo Local Cível da Lousada
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I. RELATÓRIO.
A..., LDA., NIPC ...18, com sede na Rua ..., ..., ... ..., propôs acção declarativa de condenação contra COMPANHIA DE SEGUROS B..., S.A., NIPC ...14, com sede na Rua ..., ... Lisboa, peticionando a condenação da ré no pagamento da quantia de €8.046.18, acrescida de juros legais vencidos e vincendos, contados desde a data da citação até integral e efectivo pagamento.
Invocou, para o efeito e em resumo, ter sido condenada por sentença transitada em julgado ao pagamento de uma indemnização por um evento ocorrido no exercício da sua actividade, enquanto executava trabalhos de aplicação de isolamento de pavilhão industrial com recurso a poliuretano, tendo pago o montante peticionado em execução da decisão judicial. E tendo celebrado com a ré um contrato de seguro, cobrindo os danos da sua actuação no exercício da sua actividade, negou-se a pagar o valor da indemnização, invocando cláusulas de exclusão de responsabilidade existentes na apólice não só não aplicáveis, por violadoras do princípio da boa-fé contratual, esvaziando o conteúdo da cobertura, como carentes de comunicação à autora no tempo da contratação.
Concretizada a sua citação, foi apresentada contestação pela ré, em suma, negando a pretensão da autora, sustentando que a conduta geradora dos danos teria violado os deveres e normas de segurança próprios da sua actividade, invocando as cláusulas de exclusão que sustentam a sua previsão, negando ainda a alegada ausência de comunicação dessas cláusulas.
Concluiu pugnando pela improcedência da ação.
Elaborado despacho saneador, foi posteriormente realizada audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo a ré do pedido contra ela formulado.
Não se conformando a autora com tal sentença, dela interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando com as suas alegações as seguintes conclusões:
“A. O presente recurso incide sobre matéria de Direito, de acordo com o artigo 639º, n.º 2 do CPC.
B. O risco seguro pela R./Recorrida abrange a actividade da A./Recorrente que consiste no reboco, reacondicionamento, isolamento, pintura e protecção de fachadas e telhados (exterior).
C. As cláusulas de exclusão constantes da Cláusula 2.ª (Exclusões), n.º 2, alíneas j), k) e o), reduzem de tal modo o objecto do seguro que o risco seguro tendo em conta a actividade da A. e que esta pretendeu acautelar e transferir para a R./Recorrente é praticamente nulo.
D. Veja-se, neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 20/10.7TBPPS.C1, datado de 30/06/2015, disponível para consulta em www.dgsi.pt, onde ficou decidido e sumariado:
Por desvirtuar e esvaziar consideravelmente o conteúdo do contrato de seguro e beneficiar, desmedida e injustificadamente, a posição contratual da seguradora, pondo em perigo a finalidade visada com a celebração do contrato, não é permitida (devendo ser declarada nula), num contrato de seguro de responsabilidade civil (do ramo construção civil), a cláusula (inserta nas “condições especiais”) que exclua da respectiva cobertura/garantia os danos “decorrentes da falta de cumprimento das normas legais ou regulamentares, ou dos usos próprios da actividade” ou “resultantes da não adopção das medidas de segurança aconselháveis”
E. A cláusula de exclusão prevista na Cláusula 2.ª, n.º 2, alínea j), deve ser considerada nula/ineficaz de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 12º, 15º, 16º, alínea b) e 18º, alíneas b) e d), da LCCG e, consequentemente, ser a sentença revogada e substituída por outra que julgue a acção totalmente procedente, por provada.
Sem prejuízo,
F. As cláusulas dos pontos 11 e 12 da matéria de facto provada e que excluem a responsabilidade da R. nunca foram comunicadas e explicadas à A./Recorrente, nem isso resultou provado na sentença recorrida.
G. A A./Recorrente alegou na pi a não comunicação e explicação das mencionadas cláusulas de exclusão, cabendo à R., predisponente delas, fazer prova dessa comunicação e explicação, o que não fez, não bastando que as mesmas tenham sido entregues no momento da celebração do contrato.
H. Vejamos, neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 29/06/2017, processo n.º 78/15.2T8VFC-A.L1-2, disponível para consulta em www.dgsi.pt, onde ficou decidido e sumariado: “I – A prova da comunicação das cláusulas contratuais cabe ao predisponente delas e não se basta com o facto de os executados aderentes terem tido o contrato em seu poder.”
I. As cláusulas de exclusão invocadas pela R. e cuja comunicação e explicação à A. não ficou demonstrada tem de levar obrigatoriamente a considerá-las como não escritas, de acordo com o artigo 8º, alínea a) do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais (DL n.º 446/85, de 25 de Outubro) e assim alterar a decisão recorrida por outra que julgue a acção totalmente procedente.
J. Não resultou provado ainda que os danos causados nas viaturas de terceiros se tenham ficado a dever à i) projecção do poliuretano (acto da actividade corrente da A., conforme às regras da arte e da legalidade) ou à ii) lavagem dos materiais utilizados e do abandono dos bidons no local da obra (acto que o Tribunal classifica como não conforme às regras e ilegal).
K. Para que pudessem funcionar as cláusulas de exclusão, ainda que em abstracto, teria de ficar demonstrado se os danos ocorridos nas viaturas foram resultado da apenas da projecção de poliuretano, ou, em alternativa, da lavagem dos materiais e do abandono dos bidons.
L. Só desse modo se poderia determinar, em concreto, qual a actuação da A./Recorrente e/ou dos seus funcionários que foi causa dos danos causados nos veículos e nessa medida qual a sua responsabilidade e a responsabilidade da R./Recorrida, por força do contrato de seguro celebrado.
M. Também a cláusula de exclusão prevista na cláusula 2.ª, n.º 2, alínea j) do contrato de seguro, sem prejuízo das demais razões já referidas, não podia fundamentar a exclusão a responsabilidade da Recorrida.
N. O Tribunal a quo, erradamente, socorreu-se do princípio contido no artigo 5º, n.º 3 do CPC e levou em conta o estabelecido no DL n.º 102-D/2020, de 10 de dezembro, que consolidou o Regime Geral da Gestão de Resíduos, mormente dos seus artigos 49º, 54º 117º, nº 1, alínea xx).
O. Para concluir que a actuação da A. tendo em conta a sua natureza, ilegalidade e gravidade só poderia levar à aplicação daquela cláusula de exclusão prevista no contrato de seguro.
P. As obras levadas a cabo pela A./Recorrente ocorreram em meados de Novembro de 2016 e o Tribunal a quo socorreu-se de normas que apenas produziram efeitos em 01/07/2021, conforme artigo 19º do mencionado DL nº 102-D/2020, de 10 de Dezembro.
Q. O Tribunal a quo não podia levar em linha de conta e ter como referência normas legais que ainda não se encontravam em vigor à data dos factos em causa nos autos, nomeadamente quanto à ilegalidade e gravidade de tal actuação, que ainda não o era para daí poder determinar que é válida a cláusula 2.ª, n.º 2, alínea j) do contrato de seguro que prevê a exclusão da responsabilidade da R.
R. Por tudo o que se expôs, a sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que julgue a acção totalmente procedente, por provada.
TERMOS EM QUE, deve ser dado provimento ao presente recurso, por provado, revogando-se desse modo a sentença recorrida, substituindo-a por outra que julgue a acção totalmente procedente, fazendo-se assim a mais costumada JUSTIÇA!!!”.
A recorrido apresentou contra-alegações, pugnando pela confirmação da sentença recorrida.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar.
II. OBJECTO DO RECURSO.
A. Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importando destacar, todavia, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
B. Considerando, deste modo, a delimitação que decorre das conclusões formuladas pela recorrente, no caso dos autos cumprirá apreciar:
- se alguma invalidade afecta o contrato celebrado entre as partes.
III- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
III.1. Foram os seguintes os factos julgados provados em primeira instância:
(Do sinistro)
1. A autora é uma sociedade que se dedica com o intuito lucrativo, de entre outras coisas, à construção civil e obras públicas.
2. A autora foi demandada pela sociedade C..., Unipessoal, Lda., em ação judicial que correu termos neste Juízo Local Cível, no processo 2648/18.8T8LOU, onde a ré interveio a título acessório.
3. Nesses autos, veio a autora a ser condenada, através de sentença devidamente transitada em julgado, no pagamento à sociedade C..., Lda. do valor de 6.075,53€, acrescida de juros legais devidos desde a citação até integral pagamento.
4. Ali discutiu-se a responsabilidade da aqui autora, ali ré, quanto aos danos e prejuízos causados em diversas viaturas, fruto de trabalhos na aplicação de isolamento de pavilhão industrial com recurso a poliuretano.
5. Resulta provado da sentença a que supra se aludiu, para o que aqui importa, que:
“5. Em meados de novembro de 2016, a 1.ª ré, levou a cabo obras num edifício contíguo ao edifício arrendado pela autora, contratando para o efeito a ré A..., Lda., (2.ª ré).
6. A tarefa efetuada pela 2.ª ré consistiu na projeção de poliuretano.
7. Com a projeção do poliuretano, posterior lavagem de materiais utilizados e abandono no local dos bidons onde se armazenavam os produtos pelos trabalhadores da 2.ª Ré, o produto empregue por esta ré foi derramado para o solo, escorrendo pela via em declive ali existente até ao referido parque de estacionamento, e que, pela constante circulação automóvel, salpicava os automóveis que se encontravam aparcados.
8. As manchas daí resultantes, em cinco veículos atingidos, foram retiradas pela intervenção da autora:
a. Na viatura de marca Skoda, com a matrícula ..-..-QR, tendo a viatura sido entregue devidamente reparada a AA, cliente da autora e proprietário do veículo, em 16 de janeiro de 2017, com um custo de 888,00 €, declarando este sub-rogar a autora em todos os direitos, ações e recursos contra os eventuais responsáveis pelo sucedido;
b. Na viatura de da marca BMW, com a matrícula ..-..-TQ, tendo a viatura sido entregue devidamente reparada a BB, o seu proprietário e encarregado da oficina da autora, em 20 de janeiro de 2017, com um custo de 1.538,52 €, declarando este sub-rogar a autora em todos os direitos, ações e recursos contra os eventuais responsáveis pelo sucedido;
c. Na viatura de da marca BMW, com a matrícula ..-..0-TS, tendo a viatura sido entregue devidamente reparada a CC, cliente da autora e proprietário da viatura, em 10 de janeiro de 2017, com um custo de 2.201,70 €, declarando este sub-rogar a autora em todos os direitos, ações e recurso contra os eventuais responsáveis pelo sucedido;
d. Na viatura de da marca CITROEN, com a matrícula ..-..-RX, tendo a viatura sido entregue devidamente reparada a DD, funcionária da autora e proprietária da viatura, em 10 de janeiro de 2017, com um custo de 866,72 €, declarando este sub-rogar a autora em todos os direitos, ações e recursos contra os eventuais responsáveis pelo sucedido;
e) Na viatura de da marca CITROEN, com a matrícula ..-..-NI, tendo a viatura sido entregue devidamente reparada ao proprietário e funcionário à data da autora em 9 de janeiro de 2017, com um custo de 580,59 €, declarando este sub-rogar a autora em todos os direitos, ações e recursos contra os eventuais responsáveis pelo sucedido.”
6. Resulta ainda da matéria de direito daquela decisão que:
“No âmbito da eventualidade aqui escrutinada, conclui-se que a utilização no local do produto em causa, poliuretano, sem se curar de precaver que tal produto não se exteriorizasse atingindo bens de terceiros, neste caso automóveis, leva o tribunal a concluir que se violaram deveres de cuidado que se inserem no campo da negligência, impelindo à consolidação de um juízo afirmativo de culpa negligente, pelo que está preenchido o pressuposto do nexo de imputação do facto ao lesante.”
7. A autora pagou, em 04/11/2022, à dita sociedade C..., Lda., o valor de 8.046.18€, referente a indemnização pelos danos causados e juros resultantes da sentença proferida.
(Da apólice)
8. No âmbito da sua atividade celebrou com a ré contrato de seguro de responsabilidade civil, titulado pela apólice n.º ...71.
9. Constitui o seguinte, o Âmbito da apólice:
“Cláusula 1.ª Âmbito da Cobertura
1. A seguradora garante as indemnizações por danos patrimoniais e não patrimoniais diretamente decorrentes de lesões corporais e/ou materiais que sejam causados a terceiros e a clientes, pelos legítimos representantes ou pessoas ao serviço e pelas quais o Segurado seja civilmente responsável de harmonia com o Capítulo I e II das Condições Particulares e com as Condições Gerais”.
10. A autora, como Tomadora e Segurada, indicou à aqui Ré seguradora que o risco seguro por si pretendido para o contrato de seguro era o:
“Reboco, reacondicionamento, isolamento, pintura e protecção de fachadas e telhados (exterior)”.
11. Prevê ainda a apólice as seguintes exclusões:
“Cláusula 2.ª Exclusões (...)
2. Ficam excluídos das garantias deste contrato os danos:
(...)
j) Decorrentes do não cumprimento de normas legais ou regulamentares, ou dos usos próprios da atividade bem como da não adoção das medidas de segurança aconselháveis;
k) Decorrentes da utilização de pistola para realização de trabalhos de pintura e/ou qualquer outro equipamento de pulverização;
(...)
o) Que, tendo-se em consideração a natureza dos trabalhos ou a sua forma de execução, possam razoavelmente prever-se como inevitáveis;
(...)”
12. No seu ponto 6, a mesma cláusula 2.ª atinente às exclusões prevê que:
“Ficam excluídos deste contrato quaisquer danos causados em estruturas, terrenos e edifícios/fracções vizinhos do local de execução dos trabalhos.(…)”.
13. Foi disponibilizado à autora o clausulado no tempo da contratação.
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.
Por contrato de seguro entende-se o acordo pelo qual alguém se obriga, mediante o pagamento de determinado prémio, a indemnizar o respectivo tomador ou um terceiro pelos prejuízos decorrentes da verificação de certo dano ou risco[1].
Constitui, pois, um contrato oneroso, tipicamente aleatório, de prestações recíprocas e de execução continuada.
Trata-se de um contrato consensual, porque a sua celebração pressupõe apenas o simples acordo das partes, mas formal, porquanto a sua validade depende da sua redução a escrito (formalidade ad substantiam), traduzida na apólice, não podendo a declaração negocial valer com um sentido que não tenha no texto um mínimo de correspondência[2].
Joaquín Garrigues[3] propõe para o contrato em causa a definição seguinte: "seguro é um contrato substantivo e oneroso pelo qual uma pessoa - o segurador - assume o risco de que ocorra um acontecimento incerto pelo menos quanto ao tempo, obrigando-se a cobrir a necessidade pecuniária sentida pela outra parte - o segurado - em consequência deste risco, determinado no contrato. É um contrato, oneroso, tipicamente aleatório, de prestações recíprocas e de execução continuada”.
Margarida Lima Rego[4] define o contrato de seguro como aquele “pelo qual uma parte, mediante retribuição, suporta um risco económico da outra parte ou de terceiro, obrigando-se a dotar a contraparte ou o terceiro dos meios adequados à supressão ou atenuação de consequências negativas reais ou potenciais da verificação de um determinado facto”.
É um contrato que assenta nos princípios da máxima boa fé, (uberrimae fides) e da tutela da confiança, “surgindo a declaração do risco como umas das várias manifestações dessa mesma natureza fiduciária. É em homenagem à especial relação de confiança entre as partes e ao princípio da boa-fé que se impõe um dever de declaração ao Tomador do Seguro/Segurado, e é natural que assim seja, uma vez que, relembremos, a figura nasceu para proteger o Segurador que tem de confiar nas declarações do Tomador do Seguro/Segurado (o que melhor conhece o risco) para poder delimitar o risco a segurar”[5].
O risco constitui o elemento essencial do contrato de seguro: “a obrigação do segurador não é a de assumir o risco de outrem, mas de realizar a prestação resultante de um sinistro associado ao risco de outrem. (…) O contrato de seguro caracteriza-se pela obrigação, assumida pelo segurador, de realizar uma prestação (máxime uma quantia) relacionada com o risco do tomador do seguro ou de outrem”[6].
Por seu lado, “o capital seguro representa o valor máximo da prestação a pagar pelo segurador por sinistro ou anuidade de seguro, consoante o que esteja estabelecido no contrato”[7]. O que significa que o capital seguro representa o plafond máximo da indemnização, limitado ao dano decorrente do sinistro, salvo estipulação legal em contrário. No seguro de coisas, conforme decorre do artigo 130.º n.º 1 do RJCS, o “dano a atender é o do interesse seguro ao tempo de sinistro”.
Na sua formação, o contrato de seguro começa com a proposta contratual do tomador de seguro, que deverá “declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador.”[8]
Do pregresso artigo 439.º do Código Comercial já emanava o princípio indemnizatório que encontra toda a justificação em sede de seguro de danos, visando impedir uma situação de enriquecimento do segurado à custa da seguradora designadamente quando a ocorrência do sinistro determinasse um resultado mais vantajoso[9].
Menezes Cordeiro[10], aponta para este princípio uma tripla justificação: no plano histórico, na medida em que visa esconjurar o risco da usura; numa perspectiva significativa e ideológica, propondo-se afastar a outorga de seguros com objectivos de lucro; e no plano social, a redução dos casos de fraude e de enriquecimento ilegítimo.
Essa justificação é ainda desmultiplicada por Francisco Rodrigues da Rocha[11], quando se refere às dificuldades das seguradoras em fazer prova da existência de comportamentos dolosos do segurado ou da má fé deste na contratação.
No que aqui se discute, resulta demonstrado ter a autora, no âmbito da sua actividade, celebrado com a ré um contrato de seguro de responsabilidade civil, titulado pela apólice n.º ...71.
Define esta como âmbito de cobertura do mencionado contrato (cláusula 1.ª):
“1. A seguradora garante as indemnizações por danos patrimoniais e não patrimoniais diretamente decorrentes de lesões corporais e/ou materiais que sejam causados a terceiros e a clientes, pelos legítimos representantes ou pessoas ao serviço e pelas quais o Segurado seja civilmente responsável de harmonia com o Capítulo I e II das Condições Particulares e com as Condições Gerais”.
A autora indicou à seguradora ré que o risco que pretendia que fosse abrangido pelo seguro respeita à seguinte actividade concreta: “Reboco, reacondicionamento, isolamento, pintura e protecção de fachadas e telhados (exterior)”.
Estando em vigor o dito contrato de seguro, foi a autora demandada por uma sociedade terceira que dela reclamou indemnização por prejuízos causados em veículos de seus clientes, cuja reparação suportou, tendo, no processo 2648/18.8T8LOU, sido a ora recorrente condenada no pagamento da quantia de € 6.075,53, acrescida de juros legais devidos desde a citação até integral pagamento.
Resultou demonstrada no referido processo a seguinte factualidade:
“5. Em meados de novembro de 2016, a 1.ª ré, levou a cabo obras num edifício contíguo ao edifício arrendado pela autora, contratando para o efeito a ré A..., Lda., (2.ª ré).
6. A tarefa efetuada pela 2.ª ré consistiu na projeção de poliuretano.
7. Com a projeção do poliuretano, posterior lavagem de materiais utilizados e abandono no local dos bidons onde se armazenavam os produtos pelos trabalhadores da 2.ª Ré, o produto empregue por esta ré foi derramado para o solo, escorrendo pela via em declive ali existente até ao referido parque de estacionamento, e que, pela constante circulação automóvel, salpicava os automóveis que se encontravam aparcados.
8. As manchas daí resultantes, em cinco veículos atingidos, foram retiradas pela intervenção da autora”.
A apólice referente ao contrato de seguro celebrado entre autora e ré prevê as seguintes exclusões:
“Cláusula 2.ª Exclusões (...)
2. Ficam excluídos das garantias deste contrato os danos:
(...)
j) Decorrentes do não cumprimento de normas legais ou regulamentares, ou dos usos próprios da atividade bem como da não adoção das medidas de segurança aconselháveis;
k) Decorrentes da utilização de pistola para realização de trabalhos de pintura e/ou qualquer outro equipamento de pulverização;
(...)
o) Que, tendo-se em consideração a natureza dos trabalhos ou a sua forma de execução, possam razoavelmente prever-se como inevitáveis;
(...)”
No seu ponto 6, a mesma cláusula 2.ª prevê ainda a seguinte exclusão:
“Ficam excluídos deste contrato quaisquer danos causados em estruturas, terrenos e edifícios/fracções vizinhos do local de execução dos trabalhos.(…)”.
Invoca a recorrente a invalidade das cláusulas em causa, argumentando: “As cláusulas de exclusão constantes da Cláusula 2.ª (Exclusões), n.º 2, alíneas j), k) e o), reduzem de tal modo o objecto do seguro que o risco seguro tendo em conta a actividade da A. e que esta pretendeu acautelar e transferir para a R./Recorrente é praticamente nulo”.
E adianta ainda: “A cláusula de exclusão prevista na Cláusula 2.ª, n.º 2, alínea j), deve ser considerada nula/ineficaz de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 12º, 15º, 16º, alínea b) e 18º, alíneas b) e d), da LCCG”.
O risco coberto pelo contrato de seguro é o identificado nas respectivas cláusulas, sendo por elas delimitado.
De facto, como pode ler-se no acórdão do STJ de 10.03.2026[12], “[...] 2. O risco relevante para efeitos do contrato de seguro, dada a sua especificidade típica, deve ser configurado no respetivo contrato através da chamada declaração inicial dos riscos cobertos. 3. Na prática negocial, tal delimitação, mormente na vertente causal, é tecnicamente feita através de dois vetores complementares, primeiramente, através de cláusulas definidoras da chamada “cobertura de base” e, subsequentemente, pela descrição de hipóteses de exclusão ou de delimitações negativas daquela base, com o que se configura um tipo abstrato de sinistro coberto pelo seguro.”
Tendo o contrato de seguro natureza aleatória, sendo a obrigação através dele assumida pela seguradora futura e incerta, a determinação do risco coberto reveste-se de inegável relevância, pois dele depende a constituição dessa obrigação e a medida da mesma.
Refere o acórdão do STJ de 24.01.2018[13]: “...na delimitação da responsabilidade operada pelas cláusulas de exclusão contidas nas Condições Gerais e/ou Especiais nas apólices dos contratos de seguro caberá destrinçar as cláusulas de exclusão da responsabilidade que se mostram proibidas à luz do citado artigo 18.º, das que visam a delimitação do objecto de contrato, porquanto estas configuram-se plenamente válidas [8].
Nessa distinção importa antes de mais atender ao objecto do seguro e aos riscos cobertos na apólice[9]. E, assim, apenas serão tidas como absolutamente proibidas as cláusulas que prevejam uma exclusão ou limitação da responsabilidade que desautorize (ou esvazie) o objecto do contrato”.
Segundo Pedro Romano Martinez[14], “apesar de a exclusão de alguns riscos ser lícita por assentar na liberdade contratual e não contrariar o disposto no regime das cláusula contratuais gerais, em situações limite pode corresponder a uma solução inadmissível por desvirtuar o objeto do contrato; isto é, se a modalidade de seguro ajustada não abrange o respetivo âmbito de risco. Deste modo, na hipótese de, tendo em conta o típico risco coberto naquele contrato de seguro, se inviabilizar essa cobertura por via de várias exclusões e risco, ainda que a respetiva informação tenha sido prestada, conclui-se que o objeto do contrato fica esvaziado, podendo consubstanciar uma situação ilícita”.
De acordo com o artigo 10.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, “[a]s cláusulas contratuais gerais são interpretadas e integradas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular em que se incluam”.
No caso em apreço, entre autora e ré foi celebrado contrato de seguro de danos, patrimoniais e não patrimoniais, assumindo esta a garantia das indemnizações devidas por esses danos, “diretamente decorrentes de lesões corporais e/ou materiais que sejam causados a terceiros e a clientes, pelos legítimos representantes ou pessoas ao serviço e pelas quais o Segurado seja civilmente responsável de harmonia com o Capítulo I e II das Condições Particulares e com as Condições Gerais”.
O risco abrangido pelo dito contrato, participado pela autora e consensualmente por ambas as partes, respeita à actividade concreta de “Reboco, reacondicionamento, isolamento, pintura e protecção de fachadas e telhados (exterior)”.
Entre outras, o contrato de seguro celebrado entre autora prevê a seguinte exclusão (cláusula 2.ª, n.º 2, j)):
“Ficam excluídos das garantias deste contrato os danos:
(...)
j) Decorrentes do não cumprimento de normas legais ou regulamentares, ou dos usos próprios da atividade bem como da não adoção das medidas de segurança aconselháveis;”.
Entendeu a sentença recorrida ser aplicável à relação negocial emergente do mencionado contrato de seguro a dita cláusula e, com fundamento, na sua validade e concreta aplicação, julgou a pretensão formulada pela Autora improcedente, lendo-se na referida sentença: “ponderada a natureza, ilegalidade e gravidade da prática, conclui-se ser de admitir a aplicação desta cláusula, fenecendo aqui a pretensão da autora”.
Contra tal entendimento se insurge, todavia, a recorrente que sustenta que “[A] cláusula de exclusão prevista na Cláusula 2.ª, n.º 2, alínea j), deve ser considerada nula/ineficaz de acordo com as disposições conjugadas dos artigos 12º, 15º, 16º, alínea b) e 18º, alíneas b) e d), da LCCG”, que alega que “[A]s cláusulas de exclusão constantes da Cláusula 2.ª (Exclusões), n.º 2, alíneas j), k) e o), reduzem de tal modo o objecto do seguro que o risco seguro tendo em conta a actividade da A. e que esta pretendeu acautelar e transferir para a R./Recorrente é praticamente nulo”.
Com interesse para a equação da questão discutida nos autos, reflecte o acórdão da Relação de Coimbra de 14.06.2022[15]: “Sendo o risco um elemento essencial do contrato de seguro, dentro do principio geral da liberdade contratual (artigo 11º da Lei do Regime Jurídico do Contrato de Seguro), cumpre às partes selecionar o risco e os interesses que pretendem tutelar, operação denominada “limitação do risco”. Nesta delimitação causal do risco, há uma apreciação e ponderação do risco que influencia ou determina as condições do contrato, a própria decisão de contratar por parte da seguradora e o valor do prémio.
As cláusulas de delimitação do risco, embora afetem necessariamente as pretensões do segurado, nem todas elas limitam os seus direitos, porquanto é a elas a quem cabe definir o objeto de contrato, clarificando o seu conteúdo e extensão. Não se trata de excluir a responsabilidade da seguradora, mas de delimitar o seu âmbito de atuação, ou seja, o risco coberto, impedindo que ab initio o dever de prestar não chegue sequer a formar-se em abstrato[6].
Tratando-se de um seguro facultativo e dentro do principio da livre conformação do conteúdo dos contratos, nada impede que nas condições gerais ou especiais da apólice se estipule a limitação ou exclusão do risco assumido pela seguradora, havendo, tão só, e porque nos movemos no âmbito de contratos de adesão, que atender ao regime das clausulas contratuais.
E, segundo o artigo 15º do Regime jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais (DL nº 444/85, de 25 de outubro, e sucessivas atualizações), são proibidas as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa-fé, indicando o artigo 16º de tal diploma, os seguintes elementos de concretização a atender na aplicação de tal norma:
a) a confiança suscitada, nas partes, pelo sentido global das clausulas contratuais em causa, pelo processo de formação do contrato singular celebrado, pelo teor deste e ainda por quaisquer outros elementos atendíveis;
b) os objetivos que as partes visam atingir negocialmente, procurando-se a sua efetivação à luz do contrato utilizado.
Devendo o regime das cláusulas contratuais gerais (RJCCG), ser interpretado à luz das regras estabelecidas na Diretiva 1993/13/CE, de 05.04.1993, relativa às clausulas abusivas em contratos com consumidores, dispõe o seu artigo 3º, que, “uma clausula que não tenha sido objeto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência da boa-fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato”.
Também o artigo 9º da Lei do Consumidor (Lei nº 24/96, de 31 de julho), estabelece que, com vista à prevenção de abusos resultantes de contratos pré-elaborados, o fornecedor de bens e o prestador de serviços estão obrigados à não inclusão de cláusulas em contratos singulares que originem significativo desequilíbrio em detrimento do consumidor.
Em matéria de seguros, a doutrina vem considerando como abusivas aquelas cláusulas que reduzem a cobertura que seria de esperar tendo em conta o tipo de seguro em causa, o seu objeto principal ou a finalidade económica do contrato[7]:
1. Podendo as cláusulas de delimitação do risco em decorrência da liberdade individual incidir sobre inúmeros elementos (descrição dos riscos cobertos, modalidade de sinistro pelas quais se deva desencadear a indemnização ou inclusive o tempo e o lugar da ocorrência do mesmo a que se deve atender para efeitos do contrato), esta delimitação não pode ser realizada de tal forma que acabe por comprometer consideravelmente a própria probabilidade de realização do evento designado no contrato, do qual dependeria a indemnização da seguradora, acabe por não justificar a prestação do tomador[8] – situações que integram uma delimitação abusiva por referência ao seguro enquanto tipo contratual.
2. A circunscrição do risco coberto pode ainda analisar-se do ponto de vista qualitativo, por referencia ao fim contratual, atendendo à natureza do seguro contratado. Partindo do princípio de que cada modalidade de seguro compreende um certo tipo de risco, relativamente a cada específica modalidade de seguro, devem considerar-se como implícitos certos tipos de riscos que definem o seu âmbito de incidência e pelos quais são vulgarmente conhecidos.
“Concretas delimitações de risco no contrato que tenham como resultado – e sobretudo – como direta finalidade – a exclusão da eventual obrigação de indemnização e que contendam com limites legalmente estabelecidos, nomeadamente normas imperativas (e com elas elementos que caraterizam o tipo negocial), ordem pública (artigo 280º, nº2, CC) ou obrigações essenciais ao fim do seguro em causa, podem ser consideradas abusivas[9]”.
A tal respeito, haverá que atentar no que, relativamente ao conteúdo do contrato, se dispõe o nº1 do artigo 45º da LCS que “As condições especiais e particulares não podem modificar a natureza dos riscos cobertos tendo em conta o tipo de contrato de seguro celebrado”. (cfr., ainda art. 183º e 184º da LCS, quanto aos seguros de vida e seguros complementares devida relativos a danos corporais, incluindo, a incapacidade para o trabalho e a morte por acidente ou invalidez em sequencia de acidente ou doença).
Para aferir se as restrições acabam por comprometer a própria finalidade do contrato, e se se processam em moldes qualitativamente inadmissíveis, haverá assim que atender à finalidade do contrato de seguro em causa e às expectativas do segurado cuja legitimidade se baseie no âmbito do risco seguro, que, atendendo àquela, o segurado poderia esperar, e que terá incidido sobre a sua decisão de contratar[10].
A fim de apreciar se existe um desequilíbrio das prestações gravemente atentatório da boa-fé importa ter em consideração todas as circunstâncias que envolvem o contrato, as quais podem ser apreciadas objetivamente, na perspetiva de um observador razoável e com referência não ao momento da celebração do contrato mas daquele em que é feita valer a nulidade da cláusula[11].
Como salienta Moutinho de Almeida[12], para a apreciação da natureza abusiva de uma cláusula, a jurisprudência pondera a finalidade do contrato e, assim, quando em resultado de cláusulas de exclusão ou limitativas, a cobertura fique aquém daquela com que o tomador do podia de boa-fé contar, tendo em consideração o objeto e a finalidade do contrato, tais cláusulas são nulas”.
À recorrente não assiste razão na defesa que faz da nulidade da cláusula de exclusão prevista na referida alínea j), da qual não resulta qualquer esvaziamento do objecto do contrato de seguro celebrado entre ela e a ré. A cobertura do risco resultante da concretizada actividade da autora continua a ser assegurada, ainda que com a exclusão fixada na alínea j) da cláusula 2.ª, n.º 2 –; basta que a tomadora do seguro, a aqui recorrente, conforme a actividade que definiu no contrato como âmbito da cobertura do risco com as normas legais ou regulamentares aplicáveis, a ajuste aos usos próprios da actividade e adopte as medidas de segurança aconselháveis para que, sobrevindo ainda assim, algum evento danoso, possa a seguradora ser responsabilizada pelos danos dele emergentes.
Ao prevenir danos que possam resultar da sua actividade de “Reboco, reacondicionamento, isolamento, pintura e protecção de fachadas e telhados (exterior)”, fixando esta actividade como abrangida pelo seguro facultativo celebrado com a ré, o âmbito da cobertura do risco acautelado por esse contrato não concede, naturalmente, à tomadora do seguro, a aqui recorrente, a faculdade de exercer aquela actividade sem regras ou controlo, violando normas legais ou regulamentares, desrespeitando os usos próprios dessa actividade e não observando as medidas de segurança aconselháveis para o respectivo exercício.
Admitir que a actividade abrangida pela cobertura do risco previsto com a celebração do contrato de seguro pudesse ser exercida sem quaisquer condicionantes ou limites, consentindo um absoluto laisser faire para o seu exercício, imputando à seguradora, sem limites, a responsabilidade por danos resultantes do exercício desregrado de tal actividade, significaria, isso sim, um total desvirtuamento das finalidades do contrato, com clara violação dos princípios da boa fé que deve nortear a própria formação dos contratos, por clamorosa desproporção das prestações a cargo de cada uma das partes.
Não tem, assim, natureza abusiva a cláusula prevista na mencionada alínea j), que apenas visa prevenir que a actividade coberta pelo contrato de seguro possa ser prosseguida com violação das normas legais ou procedimentais, com desrespeito pelos usos próprios do exercício daquela concreta actividade pelas medidas de segurança para esse efeito aconselháveis.
No fundo, o que a cláusula em causa pretende é justamente assegurar que a actividade abrangida pela cobertura do seguro seja exercida em conformidade com os parâmetros de legalidade e de normalidade previstos para tal exercício, de forma a evitar um desnecessário acréscimo de risco e imputação da correspondente responsabilidade a quem para ele não contribuiu.
As expectativas criadas pela autora com a celebração do contrato que cubra o risco da actividade por ela própria definido não resultam minimamente frustradas com a inclusão de uma cláusula com o conteúdo previsto na dita alínea j) sendo expectável, em termos de normalidade, que essa actividade seja prosseguida no respeito pela legalidade, usos e medidas de segurança aconselháveis para o seu exercício.
Concluindo-se, assim, pela validade da referida cláusula, importa indagar se ocorre a circunstância excludente nele prevista.
No processo n.º 2648/18.8T8LOU, no qual a aqui recorrente foi condenada a pagar à nele demandante a quantia de € 6.075,53, acrescida de juros legais devidos desde a citação até integral pagamento, resultou comprovada a seguinte factualidade, que aquela não impugna:
“5. Em meados de novembro de 2016, a 1.ª ré, levou a cabo obras num edifício contíguo ao edifício arrendado pela autora, contratando para o efeito a ré A..., Lda., (2.ª ré).
6. A tarefa efetuada pela 2.ª ré consistiu na projeção de poliuretano.
7. Com a projeção do poliuretano, posterior lavagem de materiais utilizados e abandono no local dos bidons onde se armazenavam os produtos pelos trabalhadores da 2.ª Ré, o produto empregue por esta ré foi derramado para o solo, escorrendo pela via em declive ali existente até ao referido parque de estacionamento, e que, pela constante circulação automóvel, salpicava os automóveis que se encontravam aparcados.
8. As manchas daí resultantes, em cinco veículos atingidos, foram retiradas pela intervenção da autora”.
A sentença proferida na referida acção, transitada em julgado, tem o valor extraprocessual definido no n.º 1 do artigo 619.º do Código de Processo Civil.
Pode, assim, concluir-se que os danos (manchas em cinco veículos que se achavam aparcados no parque de estacionamento da demandante na referida acção) resultou da projeção do poliuretano, posterior lavagem de materiais utilizados e abandono no local dos bidons onde se armazenavam os produtos pelos trabalhadores da aqui autora, o produto empregue por esta foi derramado para o solo, escorrendo pela via em declive ali existente até ao referido parque de estacionamento, e que, pela constante circulação automóvel, salpicava os automóveis que se encontravam aparcados, mostrando-se, deste modo, estabelecido o nexo causal entre os referidos danos e a referida actuação dos trabalhadores da autora.
Diz-se na sentença recorrida: “Estamos perante uma atuação de viola efetivamente normas legais relevantes, designadamente as que decorrem do estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10 de dezembro, que consolidou o Regime Geral da Gestão de Resíduos”.
Tendo os actos geradores dos danos ressarcidos pela aqui autora sido praticados em meados de Novembro de 2016, ao contrário do afirmado na referida sentença, não estava ainda em vigor o Decreto-Lei n.º 102-D/2020, de 10 de Dezembro, não sendo, por isso, aplicáveis as normas do referido diploma, designadamente, as indicadas na sentença aqui sindicada.
Estava, todavia, em vigor, à data, o Decreto-Lei n.º 178/2006, de 05 de Setembro - Regime Geral da Gestão de Resíduos -, que o Decreto-Lei n.º 102-D/2020 viria posteriormente a revogar.
Segundo o n.º 1 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 178/2006, “A responsabilidade pela gestão dos resíduos, incluindo os respectivos custos, cabe ao produtor inicial dos resíduos, sem prejuízo de poder ser imputada, na totalidade ou em parte, ao produtor do produto que deu origem aos resíduos e partilhada pelos distribuidores desse produto se tal decorrer de legislação específica aplicável”.
Dispunha, por sua vez, o n.º 5 do mesmo normativo: “O produtor inicial dos resíduos ou o detentor devem, em conformidade com os princípios da hierarquia de gestão de resíduos e da protecção da saúde humana e do ambiente, assegurar o tratamento dos resíduos, podendo para o efeito recorrer:
a) A um comerciante ou a uma entidade que execute operações de recolha de resíduos;
b) A uma entidade licenciada que execute operações de tratamento de resíduos;
c) A uma entidade licenciada responsável por sistemas de gestão de fluxos específicos de resíduos”.
Cabia, pois, à autora a gestão do poliuretano[16], procedendo ao tratamento dos resíduos resultantes da utilização do produto em causa, conforme determinado no citado artigo 5.º, n.º 5, constituindo o incumprimento desse dever de gestão contra-ordenação ambiental grave, como decorre do artigo 67.º, n.º 2, a) do mencionado diploma, punível nos termos da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto, com as sucessivas alterações e rectificações.
Ora, no caso em apreço, não só a autora, ora recorrente, não cumpriu esse dever de gestão de resíduos, como da projeção do poliuretano, posterior lavagem de materiais utilizados e abandono no local dos bidons onde se armazenavam aquele produto resultaram os danos por aquela ressarcidos, havendo, assim, fundamento para invocação, por parte da ré seguradora, da exclusão da sua responsabilidade, nos termos previstos na cláusula 2.ª, n.º 2, alínea j) do contrato de seguro.
Alega a recorrente que [A]s cláusulas dos pontos 11 e 12 da matéria de facto provada e que excluem a responsabilidade da R. nunca foram comunicadas e explicadas à A./Recorrente, nem isso resultou provado na sentença recorrida”, acrescentando que “[A]s cláusulas de exclusão invocadas pela R. e cuja comunicação e explicação à A. não ficou demonstrada tem de levar obrigatoriamente a considerá-las como não escritas, de acordo com o artigo 8º, alínea a) do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais (DL n.º 446/85, de 25 de Outubro).
Afirma-se no Acórdão da Relação do Porto de 24.04.2008[17], “como é sabido, uma das características mais marcantes do direito contratual contemporâneo é ele um número significativo de contratos - dos mais importantes da vida económica e empresarial moderna - ser celebrado em conformidade com as cláusulas previamente redigidas por uma das partes (ou até por terceiro), sem que a outra parte possa alterá-las. Tais contratos são designados por contratos de adesão, fórmula que traduz a posição da contraparte e realça o significado da aceitação: mera adesão a cláusulas pré formuladas por outrem.
Nesta noção, avultam três características essenciais: a pré-disposição, a unilateralidade e a rigidez. São elas, as características que definem os contratos de adesão em sentido estrito.
Trata-se de contratos normalmente celebrados com base em cláusulas ou "condições gerais" previamente redigidas. Assim, a aludida pré-disposição consiste, via de regra, na elaboração prévia de cláusulas que irão integrar o conteúdo de todos os contratos a celebrar no futuro ou, pelo menos, de certa categoria de contratos: trata-se, “ hoc sensu”, de cláusulas contratuais gerais. A esta característica da generalidade anda associada uma outra, a indeterminação: as cláusulas são previamente redigidas para um número indeterminado de pessoas”.
E do Acórdão da mesma Relação de 17.02.2009[18] extrai-se: “as cláusulas contratuais gerais consubstanciam-se como estipulações predispostas ou predefinidas, em vista de uma pluralidade de contratos ou de uma generalidade de pessoas, para serem aceites em bloco - sem negociação individualizada capaz de influir na modelação do respectivo conteúdo - ou possibilidade de alterações singulares. Pré-formulação, generalidade e imodificabilidade são, pois, as suas características essenciais. O que está em consonância com os propósitos de racionalização, certificação e uniformização que marcam a essência do fenómeno económico hodierno, no quadro da lógica, tipicamente empresarial, que recorre a este particular modo de contratação”.
Apesar da sua natureza tipicamente consensual, também no contrato de seguro se recorre com frequência a cláusulas pré-redigidas e gerais, impostas, desde logo, por exigências técnicas, já que os riscos que o segurador assume devem ser homogéneos de modo a poderem constituir objecto de compensação estatística[19].
A despeito dos aspectos críticos que possam apontar-se às cláusulas contratuais gerais, é indiscutível a sua crescente necessidade: a exigência de realização efectiva de negociações pré-contratuais - individualizadas - para a concretização de todos os contratos acarretaria um significativo retrocesso na actividade jurídico-económica, em que as necessidades de rapidez e de normalização ligadas às modernas sociedades técnicas impõem o recurso àquele tipo de cláusulas.
O Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro constitui a expressão de uma intervenção legislativa necessária à regulamentação, tão cuidada quanto possível, da questão das cláusulas contratuais gerais.
Em plena vigência deste diploma, emanou do Conselho Europeu a Directiva n.º 93/13/CEE, de 5 de Abril de 1993, relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, definindo o seu artigo 3º/1 como cláusula abusiva a que, não tendo sido objecto de negociação individual, e a despeito da exigência de boa fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações decorrentes do contrato.
Segundo o n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, com a redacção introduzida, entretanto, pelo Decreto-Lei nº 249/99, de 7 de Julho, “As cláusulas contratuais gerais elaboradas sem prévia negociação individual, que proponentes ou destinatários indeterminados se limitem, respectivamente, a subscrever ou aceitar, regem-se pelo presente diploma”.
Por sua vez, o n.º 2 do citado dispositivo determina que “O presente diploma aplica-se igualmente às cláusulas inseridas em contratos individualizados, mas cujo conteúdo previamente elaborado o destinatário não pode influenciar”.
Do artigo 2.º do mencionado diploma retira-se que todas estas cláusulas ficam abrangidas por ele independentemente da sua forma de comunicação ao público, da extensão que assumam ou que venham a apresentar nos contratos a que se destinem, do conteúdo que as enforme, e de terem sido elaboradas pelo proponente, pelo destinatário ou por terceiros.
No domínio das cláusulas contratuais gerais não basta a sua aceitação. Como prescrevem os artigos 5.º, 6.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, exige-se que ao aderente tenham sido efectivamente comunicadas as cláusulas a que deva ou tenha aderido, que uma efectiva informação sobre as mesmas e a inexistência de cláusulas prevalentes.
Estabelece o artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro:
1 - As cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-las ou a aceitá-las.
2 - A comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência.
3 - O ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe ao contratante que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais.
De acordo com o artigo 6.º do mesmo diploma:
1 - O contratante que recorra a cláusulas contratuais gerais deve informar, de acordo com as circunstâncias, a outra parte dos aspectos nelas compreendidos cuja aclaração se justifique.
2 - Devem ainda ser prestados todos os esclarecimentos razoáveis solicitados. E dispõe o seu artigo 8.º:
Consideram-se excluídas dos contratos singulares:
a) As cláusulas que não tenham sido comunicadas nos termos do artigo 5.º;
b) As cláusulas comunicadas com violação do dever de informação, de molde que não seja de esperar o seu conhecimento efectivo;
[...].
No artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro surpreendem-se duas fases distintas: a primeira, a que se refere o n.º 1 do normativo em causa, respeita à emissão da proposta contratual, obrigando o emitente da mesma à comunicação integral das suas cláusulas; a segunda, reportada à recepção de tal proposta, e a que se refere o n.º 2, a determinar que a proposta seja apresentada de tal forma que “se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo” pelo aderente.
Desta forma, o critério a relevar para efeitos de cumprimento do dever de comunicação exigido pelo mencionado artigo 5.º afere-se pela adequação a um conhecimento, completo e efectivo, da proposta contratual pelo destinatário que use de comum diligência: “a comunicação não só deverá ser completa, abrangendo a globalidade das condições negociais em causa, como deverá igualmente mostrar-se idónea para a produção de um certo resultado: tornar possível o real conhecimento das cláusulas pela contraparte”[20].
Todavia, como precisam Almeida Costa e Menezes Cordeiro[21], “o dever de comunicação é uma obrigação de meios: não se trata de fazer com que o aderente conheça efectivamente as cláusulas, mas apenas de desenvolver, para tanto, uma actividade razoável”.
Importa, porém, reter que “o recurso a cláusulas contratuais gerais não deve fazer esquecer que elas questionam, na prática, apenas a liberdade de estipulação e não a liberdade de celebração.
Assim, elas incluem-se nos diversos contratos que as utilizem - os contratos singulares - apenas na conclusão destes, mediante a sua aceitação - artigo 4.º da LCCG: não são, pois, efectivamente incluídas nos contratos as cláusulas sobre que não tenha havido acordo de vontades.
As cláusulas contratuais gerais inserem-se no negócio jurídico, através dos mecanismos negociais típicos. Por isso, os negócios originados podem ser valorados, como os restantes, à luz das regras sobre a perfeição das declarações negociais: há que lidar com figuras tais como o erro, a falta de consciência da declaração ou a incapacidade acidental”[22].
Ainda segundo o mesmo autor, “o ponto de partida para as construções jurisprudenciais dos regimes das cláusulas contratuais gerais residiu na condenação de situações em que, ao aderente, nem sequer haviam sido comunicadas as cláusulas a que era suposto ter aderido. Foi também a partir daqui que a doutrina iniciou uma elaboração autónoma sobre as cláusulas contratuais gerais. Temos, então, aqui em questão a análise dos deveres pré-contratuais de comunicação e de informação das cláusulas a inserir no negócio e de prestação dos esclarecimentos necessários a um exercício idóneo da autonomia privada -o que já resultava do citado artº 227º, n.º 1 do CC."[23].
A autonomia da vontade só poderá ser validamente exercida se a vontade da parte aderente ao contrato estiver devidamente formada, o que pressupõe, desde logo, um completo conhecimento do respectivo clausulado.
Neste contexto, “os deveres de informação e de esclarecimento designadamente os relativos ao conteúdo contratual, sua composição e seu significado, assumem particular relevância quando se esteja perante dois sujeitos cujo poder negocial se apresente desequilibrado, revestindo então essas obrigações maior amplitude para aquela das partes que detenha uma posição negocial susceptível de lhe permitir impor à contraparte cláusulas, que esta, em consequência da sua debilidade contratual, não aperceba no seu integral significado ou de que, mais simplesmente, nem sequer tome conhecimento"[24].
Deve ser dada efectividade a esse dever de informação de molde a que o aderente tenha pleno conhecimento e compreenda o alcance das cláusulas pré-definidas pela outra parte antes de subscrever o contrato que a mesma lhe apresenta. Como afirma o Acórdão da Relação de Lisboa de 05.02.2009[25], “o dever de comunicação a que alude o artigo 5.º do DL nº 445/85, de 25/10, consiste em ser disponibilizado ao aderente o texto do contrato, previamente à assinatura do mesmo, pelo período que ao caso se mostre mais adequado. O objectivo é o de possibilitar ao aderente uma análise de todas as cláusulas contratuais que não haja negociado directamente. Não se provando que determinadas cláusulas contratuais, apesar de inseridas numa rubrica intitulada “condições específicas”, tenham sido objecto de negociação prévia – e o respectivo ónus incumbe à parte que pretende prevalecer-se do seu conteúdo – ficarão as mesmas abrangidas pelo regime aplicável às cláusulas contratuais gerais, nos termos do artigo 1º, nº 3 do DL nº 446/85”[26].
Os deveres de comunicação e de informação exigidos, respectivamente, pelo artigo 5.º e pelo artigo 6.º do aludido diploma complementam-se num escopo comum: a eficaz apreensão da proposta contratual pela parte aderente. As referidas obrigações complementam-se, revelando pontos de contacto comum.
Defende Menezes Cordeiro[27], a propósito do dever de informação, que “o cumprimento desse dever prova-se através de indícios exteriores variáveis, consoante as circunstâncias. Assim perante actos correntes e em face de aderentes dotados de instrução básica, a presença de formulários assinados pressupõe que eles os entenderam; caberá, então, a estes demonstrar quais os óbices. Já perante um analfabeto, impõe-se um atendimento mais demorado e personalizado”.
Como elucida o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24.03.2011[28], “a presença dos contratos assinados pressupõe que a recorrente os entendeu e, em conformidade com o disposto no artigo 6º, a exequente apenas teria que informar a outra parte dos aspectos cuja aclaração se justificasse e prestar os esclarecimentos solicitados. (…) o cumprimento do dever de comunicação a que se reporta o artigo 5º, basta-se com a entrega da minuta do contrato, contendo todas as cláusulas (incluindo as gerais), com a antecedência que seja necessária, em função da extensão e complexidade das mesmas, na medida em que, com a entrega dessa minuta, uma pessoa normalmente diligente tem a efectiva e real possibilidade de ler e analisar todas as cláusulas e de pedir os esclarecimentos que entenda necessários para a sua exacta compreensão”.
Como consta do ponto 13.º dos factos provados, foi disponibilizado à autora o clausulado no tempo da contratação.
Tal significa, naturalmente, que à mesma foi facultada cópia do contrato, com todo o seu clausulado, incluindo as cláusulas de exclusão[29], permitindo a leitura - como é de regra, antes da sua assinatura – o conhecimento das cláusulas nele insertas.
É, com efeito, do senso comum que antes de se apor a assinatura num acordo escrito se deve proceder à sua leitura. É o mais elementar dever de diligência que assim o exige, sobretudo quando dele constem obrigações para quem a elas se vincula com uma assinatura que traduza a sua aceitação.
Observando esse dever de diligência, devia a autora, para conscienciosamente decidir sobre a aceitação ou rejeição da proposta contratual da ré traduzida no clausulado que a mesmo lhe apresentou, proceder à integral leitura do texto que a corporiza inteirando-se, assim, do seu conteúdo.
E se, não obstante essa leitura, subsistissem quaisquer dúvidas quanto ao real sentido ou alcance de uma ou mais cláusulas da proposta negocial emitida pela entidade seguradora, podia/devia solicitar a esta os esclarecimentos necessários à dissolução de tais dúvidas, a qual teria de os prestar, por a tal onerada pelo dever de informação.
Não resulta minimamente demonstrado nos autos, nem a autora sequer o invoca, que haja solicitado qualquer informação ou esclarecimento à ré acerca do conteúdo do contrato e que esta se haja negado a fornecê-los.
De acordo com o citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24.03.2011, “se o dever de comunicação de cláusulas contratuais gerais se destina a proteger o outorgante mais fraco dos abusos da parte mais forte e com maior poder económico, combatendo o risco de desconhecimento de aspectos significativos do contrato que vai ser celebrado, certo é também que o risco de desconhecimento de algumas cláusulas do contrato não decorre apenas do incumprimento do dever de comunicação, o qual também pode decorrer da falta de diligência da parte que vai aderir às referidas cláusulas, como sucede no caso da parte que assina um contrato contendo essas cláusulas sem ter qualquer preocupação sobre o conteúdo do documento que está a assinar.
E se, na primeira situação, se justifica plenamente a protecção da parte mais fraca, o mesmo não acontece na segunda situação, já que o objectivo do legislador foi apenas o de proteger a parte mais fraca de eventuais abusos da parte mais forte e não o de proteger a parte mais fraca da sua falta de diligência.
Embora considerando que o aderente está numa situação de maior fragilidade, face à superioridade e poder económico da parte que impõe as cláusulas, (por isso lhe concedendo protecção), o legislador não tratou o aderente como pessoa inábil e incapaz de adoptar os cuidados que são inerentes à celebração de um contrato e por isso lhe exigiu também um comportamento diligente tendo em vista o conhecimento real e efectivo das cláusulas que lhe estão a ser impostas.
Daí que o contratante não possa invocar o desconhecimento dessas cláusulas, para efeitos de se eximir ao respectivo cumprimento, quando esse desconhecimento apenas resultou da sua falta de diligência, como acontece nas situações em que o contraente foi colocado em posição de conhecer essas cláusulas e assina sem ler o que estava a assinar e sem ter qualquer preocupação de se assegurar do respectivo teor”.
À recorrente foi facultado, aquando da contratação, o impresso com o texto das cláusulas contratuais a que aderiu, subscrevendo-as.
No decurso do processo formativo do contrato não lhe foi negada a possibilidade de se poder inteirar de todo o seu conteúdo, o que facilmente poderia alcançar por meio da leitura atenta das suas cláusulas e da obtenção de esclarecimentos adicionais que permitissem desvanecer eventuais dúvidas que a pudessem assaltar.
De resto, a recorrente não nega que, antes da assinatura do contrato, lhe haja sido disponibilizado o texto da proposta contratual a que aderiu, limitando-se a afirmar que “E nem é a circunstância das condições de seguro juntas referirem “original para o cliente” que tal signifique que as mesmas foram dadas a conhecer e explicadas à A.” – artigo 11.º da resposta à contestação.
Adianta a mesma que “é mesmo prática corrente que os clientes assinem declarações ondem afirmam que conhecem e lhes foram explicadas as condições contratuais, mesmo que tal não tenha ocorrido, como foi o presente caso” – artigo 13.º da mesma peça processual.
Mas se assim é, se a recorrente assinou a declaração negocial sem cuidar de previamente proceder à leitura do respectivo clausulado, não pode posteriormente invocar o seu desconhecimento, que a diligência devida antes da assinatura do contrato poderia ter arredado, permitindo-lhe inteirar-se previamente de todo o seu conteúdo, e solicitar esclarecimentos à outra parte acerca de alguma cláusula cujo sentido e alcance lhe oferecesse dúvidas.
Além disso, tendo decorrido 9 anos desde a data da subscrição do contrato, como a própria autora admite – artigo 14.º da resposta –, esse espaço temporal é suficientemente dilatado para lhe permitir uma leitura integral das condições contratuais, e solicitar os esclarecimentos para dúvidas que dela pudessem resultar.
Não é, pois, aceitável, de acordo com os parâmetros de razoabilidade e de normalidade, que tenha a ré seguradora omitido qualquer dever de comunicação à autora ou que haja sonegado informações ou esclarecimentos que lhe devesse prestar, quando, no momento de contratar, foi disponibilizado à autora o texto com a declaração negocial e com as condições respectivas, de que esta podia ter-se inteirado se, como lhe era exigível, tivesse procedido à sua leitura, podendo formular pedido de esclarecimentos se o seu conteúdo lhe suscitasse alguma dúvida, estando aquela, nesse caso, obrigada a prestá-los.
Não o tendo feito na altura, nem nos nove anos que se seguiram à subscrição do contrato, tal só pode ser entendido com o sentido de que a autora se achava plenamente ciente e informada do contrato celebrado e de todas as suas cláusulas.
Não resulta, assim, demonstrado ter a ré violado qualquer dever de informação e/ou de comunicação que tinha para coma autora, não padecendo o contrato, com esse fundamento, de qualquer vício de nulidade.
Conclui-se, assim, não merecer reparo a sentença recorrida, sendo, por isso de manter, improcedendo, consequentemente, a apelação.
……………………………
……………………………
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Custas – pela apelante: artigo 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.
Notifique.
Porto, 26.06.2025
Acórdão processado informaticamente e revisto pela primeira signatária.
Judite Pires
Maria Manuela Machado
José Manuel Monteiro Correia
___________________________
[1] José Vasques, “Contrato de Seguro”, Coimbra, 1999, pág. 94.
[2] Cf. Acórdão Relação do Porto, 25.03.2004, processo nº 0430103, www.dgsi.pt.
[3] “Contrato de Seguro Terrestre”, Madrid, 1983.
[4] “Contrato de Seguro e Terceiros”, Coimbra Editora, 2010, página 66.
[5] LOURO; Vanessa, “Declaração Inicial do Risco no contrato de seguro: Análise do regime jurídico e breve comentário à jurisprudência recente dos Tribunais Superiores”, pág.11, Revista Electrónica de Direito, n.º 23, Junho de 2016, https://cije.up.pt/client/files/0000000001/3_651.pdf
[6] Lei do Contrato de Seguro Anotada, ed. Almedina, 2011, págs. 40/41, nota IV.
[7] Artigo 49.º, n.º 1 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), aprovado pelo Decreto-Lei 72/2008, de 16 de Abril.
[8] Artigo 24.º, n.º 1 do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS), aprovado pelo Decreto-Lei 72/2008, de 16 de Abril.
[9] Cfr. F. Sanches Calero, Ley de Contrato de Seguro, págs. 466 e seguintes.
[10] Direito dos Seguros, 2ª ed., págs. 802 e 803.
[11] Cfr. monografia Do Princípio Indemnizatório no Seguro de Danos, págs. 53 a 55.
[12] Processo n.º 4990/12.2TBCSC.L1.S1, www.dgsi.pt.
[13] Processo n.º 534/15.2T8VCT.G1.S1, www.dgsi.pt.
[14] Scientia Ivridica, Número 306 (abril a junho 2006), página 260.
[15] Processo n.º 1117/20.0T8VIS.C1, www.dgsi.pt.
[16] Produto muitas vezes usado na construção civil, nomeadamente para impermeabilização de coberturas, lajes e pisos.
[17] Processo nº 0832041, www.dgsi.pt.
[18] Processo nº 0827638, www.dgsi.pt.
[19] Moitinho de Almeida, Contrato de Seguro, Estudos, Coimbra Editora, pág. 98.
[20] Almeno de Sá, “Cláusulas Contratuais Gerais e Directiva Sobre Cláusulas Abusivas”, pág. 60.
[21] “Cláusulas Contratuais Gerais”, pág. 25.
[22] Menezes Cordeiro, “Manual de Direito Bancário”, 1998, págs. 427 e 428.
[23] "Tratado de Direito Civil Português", vol. I, pág. 370.
[24] Ana Prata, "Notas sobre responsabilidade pré-contratual", Almedina, pág. 51.
[25] Processo nº 10941/08, www.dgsi.pt.
[26]Cf. ainda Acórdão da Relação do Porto, 22.06.2009, www.trp.pt/jurisprudenciacivel, e da mesma Relação, de 24.04.2008, www.dgsi.pt.
[27] “Manual de Direito Bancário”, pág. 429.
[28] Processo nº 1582/07.1TBAMT-B.P1.S1, www.dgsi.pt.
[29] Note-se que a recorrente nem sequer invoca que as mesmas não estivessem já inseridas no contrato aquando da sua subscrição.