I - A partilha hereditária tem por objecto imediato bens e direitos de natureza patrimonial, com o que não reconduzível a acto de natureza pessoal, porquanto esta natureza deve ser encontrada no conteúdo do acto e não nos fins imediatos visados pelo seu autor. II - Afastado o enquadramento, ainda quando provados os factos reclamados, em sede de doação remuneratória, porquanto, vista a sua definição legal, no art. 941º do CC, estas são aquelas que são efectuadas como compensação dos serviços recebidos pelo doador, que não tenham a natureza de dívida exigível… E sempre, quando ali se enquadrasse, nesse caso, não havendo obrigação de qualquer tipo do doador de remunerar esses serviços, o que as afasta do cumprimento de obrigação natural, sempre estaríamos perante uma atribuição patrimonial sem correspectivo, o que as inclui na categoria de actos gratuitos.
III - Quanto às doações com encargos, que, nos termos e para os efeitos do art. 963º do CC, são aquelas em que o doador insere uma cláusula modal que impõe ao donatário um encargo, apesar do donatário assumir a obrigação de efectuar determinada prestação, esta não se encontra numa relação de correspectividade com a atribuição patrimonial do doador, sendo antes uma mera limitação de origem do objecto da doação. Esta atribuição não é suficiente para excluir a natureza gratuita deste tipo de doações.
IV - A existência e cumprimento desse encargo não influem pois nos requisitos da impugnação pauliana. Donde a irrelevância dos factos em causa.
V - Sempre a qualificação como oneroso ou gratuito da satisfação antecipada de obrigações teria de reportar-se à qualificação da situação constitutiva da obrigação cumprida… Ora, manifesto ser aquela totalmente gratuita, porquanto inexistindo, vista a natureza mesma da obrigação, uma qualquer contraprestação compensatória da atitude do solvens.
VI - Ainda quando configurável um acordo autónomo entre irmãos co-responsáveis (cfr. artigo 2010º do CC), correspondendo agora à assunção pelo beneficiário da transmissão da quota hereditária do cumprimento da obrigação (de terceiro) do devedor do A., quanto à relação credor-solvens, a natureza da relação em que se insere a obrigação cumprida mantém-se gratuita, sendo que, quanto à relação devedor-solvens, inexistindo fixação de prestação alimentar, estando-se no domínio do cumprimento de obrigações naturais, uma vez que não existe um dever jurídico de satisfazer o respectivo crédito, esse acto é equiparável às liberalidades, o que o integra na classe dos actos gratuitos, para efeitos de aplicação do regime da impugnação pauliana.
VII - Admite-se a paralisação da impugnação pauliana pelo abuso do direito, em casos que envolvam a subsistência do devedor ou de dependentes. A lei portuguesa não prevê uma paralisação automática ou geral da impugnação pauliana com base na subsistência do devedor. No entanto, o abuso do direito, enquanto princípio geral, pode ser invocado para impedir o exercício abusivo da impugnação pauliana, mesmo que os requisitos formais da acção sejam cumpridos.
(Sumário da responsabilidade da Relatora)
Tribunal Judicial da Comarca do Porto
Juízo Local Cível de ...
Relatora: Isabel Peixoto Pereira
1º Adjunto: Maria Manuela Barroco Esteves Machado
2º Adjunto: Isabel Silva
I.
Banco 1..., S.A. veio propor contra AA e BB acção declarativa, sob a forma comum, concluindo pedindo seja declarada a ineficácia, em relação ao Autor, da doação do quinhão hereditário, efetuada pelo 1.º Réu ao 2.º Réu, no que for necessário para satisfazer (ainda que de modo parcial) o seu crédito.
Alegou para fundamentar a respectiva pretensão que, através de um contrato de doação celebrado a 26-07-2021, o 1.º Réu doou ao 2.º Réu, seu irmão, a sua quota disponível na herança indivisa aberta por óbito dos pais de ambos, BB e CC, diminuindo o seu património, apesar de se encontrar constituído como garante de obrigações assumidas pela sociedade A..., S.A., num conjunto de contratos celebrados pela sociedade com o Autor e nos quais o 1.º Réu, administrador da dita sociedade, avalizou um conjunto de três livranças, que vieram posteriormente a ser preenchidas pelo Autor. Ora, em processo executivo movido contra o 1.º Réu, constatou-se a impossibilidade de ver ressarcido todo o crédito peticionado, uma vez que não são conhecidos outros bens da propriedade do 1.º Réu. Por fim, afirma o Autor que os Réus, na celebração da referida doação, agiram de forma dolosa, bem sabendo que impossibilitavam o Autor de ver ressarcido o seu crédito.
Contestaram os RR, deduzindo defesa por impugnação, negando a existência de qualquer dolo e afirmando, em suma, que a referida doação consubstancia um acto de natureza pessoal, uma vez que tem como objetivo compensar o 2.º Réu dos alimentos que presta a um irmão de ambos os Réus que se encontra dependente de terceiros. Alegam ainda os Réus que o crédito alegado pelo Autor não é anterior à doação, uma vez que as livranças foram emitidas posteriormente, afirmando ainda o 2.º Réu que se trata de uma doação remuneratória e o 1.º Réu que se trata de uma doação com cláusula modal, pelo que não se qualifica como negócio gratuito.
Foi proferida sentença, a qual julgou procedente o exercício da impugnação pauliana por parte do Autor, declarando-se ineficaz, quanto ao Autor, a doação do quinhão hereditário efetuada pelo 1.º Réu ao 2.º Réu a 26-07-2021.
É desta decisão que vem interposto o presente recurso, mediante as seguintes conclusões:
A) Em sede de intervenção na decisão da matéria de facto, o recorrente reclama um novo e autónomo juízo por parte deste Tribunal relativamente aos factos impugnados e no plano do seu conteúdo, entende o apelante que a sentença incorre em erros de direito, na apreciação e concretização dos pressupostos da impugnação pauliana.
B) Salvo sempre o devido respeito, foram incorretamente julgados não provados os pontos da matéria de facto que a seguir se discriminam e que, no entender do apelante, merecem decisão diversa: a) O 1.º Réu, através do acordo referido em 1), pretendia compensar o 2.º Réu pelos cuidados que este tem vindo a assegurar a DD, desde o ano de 2016, até à presente data (art.º 17 da Contestação do R. BB e 14.º da Contestação do R. AA); b) O 2.º Réu pagou a quantia referida em 17)ii.
C) A prova dos factos supra assinalados resulta dos depoimentos transcritos do 1º Réu, 2º Réu e das testemunhas EE e FF, em conjugação com o texto da escritura de doação descrita no facto provado 1) que reponderada sob as regras da experiência da vida e submetida a critérios de normalidade e de razoabilidade deverá, no entender do apelante, conduzir à alteração da decisão proferida quanto aos concretos factos apontados, julgando-os provados naqueles exatos termos.
D) Do teor da doação outorgada em 26 de Outubro de 2021, consta que (…) a presente doação é feita em resultado dos cuidados de saúde e pessoais assegurados pelo donatário desde o óbito de seus pais ao irmão DD, declarado interdito por sentença de 20 de Novembro de 1990, proferida pelo 2.º Juízo Cível da Comarca do Porto, de quem é protutor e com quem vive, cuidados e assistência que o donatário se obriga, em contrapartida da presente doação, a prestar até ao fim dos seus dias. O Terceiro Outorgante, por sua vez declarou (…) “que aceita a presente doação e encargo”.
E) Esta doação é, simultaneamente, uma doação modal e remuneratória, à luz dos dispositivos constantes nos artigos 963º e 941º do C.C..
F) Do teor da doação extrai-se que os doadores pretenderam instituir ao donatário uma obrigação a favor de um terceiro, irmão de doadores e de donatário, terceiro esse que não teve intervenção naquele negócio, o que se afigura constituir um contrato a favor de terceiro, previsto nos artigos 443º a 451º do Código Civil.
G) Por efeito da doação o terceiro beneficiário, DD, adquiriu o direito a receber do donatário aquela prestação, obrigação que o donatário ficou adstrito a cumprir e que tem cumprido, escrupulosa e exclusivamente, desde 18/07/2016, data anterior à doação.
H) Na doação modal o donatário fica vinculado ao cumprimento de um dever, que pode ser no interesse do doador, de terceiro ou do próprio beneficiário, com o limite que lhe é fixado pelo n.º 2 do artigo 963º do CC.
J) O Supremo Tribunal de Justiça, uniformizou jurisprudência através do Acórdão nº. 7/97, de 25/02/1997, no sentido de a cláusula modal a que se refere o artigo 963.º do Código Civil abranger todos os casos em que é imposto ao donatário o dever de efetuar uma prestação, quer seja suportada pelas forças do bem doado, quer o seja pelos restantes bens do seu património” (in D.R., I Série-A, nº. 83, de 9/04/1997, págs. 1598 - 1602). O 2º Réu BB aceitou a obrigação de assistência e auxílio ao irmão DD, desonerando desta obrigação, por via da doação que aceitou, os irmãos doadores, obrigação que compreende o dever de prestar alimentos, e que se encontra prevista no artigo 1874º do Código Civil, para as relações entre pais e filhos.
K) A relação entre irmãos é coadjuvante e, posteriormente, substitutiva dos progenitores e estabelece entre estes uma obrigação recíproca de alimentos - artigo 2009º/1/al. d) do CC..
L) DD não tem cônjuge ou ex-cônjuge, descendentes ou ascendentes, pelo que esta obrigação recai sobre os seus irmãos, constituindo-se ex lege após o decesso da mãe, em 2016.
M) Subjacente à doação dos quinhões hereditários encontra-se a obrigação jurídica de prestar alimentos ao irmão, DD, que se constituiu na esfera jurídica dos doadores em 18 de julho de 2016.
N) A doação do 1º Réu ao 2º, pretendeu satisfazer a quota-parte que lhe cabia nesta obrigação, desde a data de 18/07/2016 até ao momento da escritura e para o futuro.
O) A obrigação de alimentos não é uma obrigação natural fundada num mero dever de ordem moral ou social, cujo cumprimento não seja judicialmente exigível, tratando-se de um dever de ordem moral e de solidariedade familiar e integra o que a doutrina classifica de poder-dever, devendo ser qualificada como um verdadeiro dever jurídico, de carácter e natureza eminentemente pessoal – só aquelas pessoas se mostram obrigadas e apenas aquela pessoa, que não outra, tem o direito de o exigir.
P) Embora a natureza da obrigação alimentar seja de carácter patrimonial e seja juridicamente exigível, ela assume, concomitantemente, um carácter pessoal, intuitu personae, relevantíssimo.
Q) Entende-se ser ato de natureza pessoal todo aquele que verse sobre o estado das pessoas e se mostre estritamente ligado à pessoa do devedor, ainda que alguns dos seus efeitos possam ter natureza patrimonial - Neste sentido, vide Pires de Lima e Antunes Varela, in, “Código Civil, Anotado”, vol. I, 3ª ed. revista e atualizada, pág. 595.
R) Menezes Cordeiro In, “Obrigações”, 1980, 2º, pág. 490., refere a este propósito que «A expressão “que não sejam de natureza pessoal” tem o mérito de não excluir, da pauliana, todos os atos não patrimoniais, antes afastando também, os atos que, sendo patrimoniais, estejam, no entanto, estritamente ligados à pessoa do devedor».
S) O caráter especial da obrigação alimentar em relação às demais obrigações ordinárias, tem como principal elemento fundador o próprio direito à vida, consagrado no artigo 24º da Constituição da República Portuguesa.
T) Exige o artigo 610º do C. Civil, como requisito da impugnação pauliana, que o ato praticado pelo devedor não seja de natureza pessoal – e este é-o.
U) A impugnação pauliana repousa os seus fundamentos num juízo de censura ético, constituindo-se como um mecanismo de proteção da garantia patrimonial dos credores perante atos censuráveis que os prejudiquem, sendo manifesto que o ato praticado pelos doadores, concretamente pelo 1º Réu, não merece juízo de censura ético.
V) Peticionar, nas circunstâncias do caso concreto, a declaração de ineficácia da doação efetuada pelo 1º Réu ao 2º Réu, afigura-se abusivo e ofensivo dos bons costumes porquanto afronta os valores e princípios, com carácter moral e validade jurídica, reconhecidos e assumidos pela comunidade, estabelecendo um mínimo de exigências éticas de conduta ou convivência, no âmbito de uma sociedade decente.
W) Estabelece o artigo 334.º do CC que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
X) O exercício dos direitos tem limites, pelo que a titularidade de um direito não confere um complexo de poderes absolutos inerente ao seu exercício e está limitado pela boa-fé e pelos bons costumes, e, por outro lado, pelas finalidades de natureza económica e social subjacentes à sua conformação.
Y) Embora possa a A. ter um direito, válido em princípio, no caso concreto, esse direito é exercido fora do seu objetivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos de criar uma desproporção objetiva e grave entre a utilidade do exercício do direito por parte do seu titular e as consequências a suportar por aquele contra o qual é invocado.
Z) Deste modo, é censurável o exercício de um direito, que contrariando o critério dos bons costumes, revele, em concreto e atendendo à globalidade das circunstâncias, ser injustificadamente desproporcional o benefício decorrente desse direito, em relação à desvantagem causada pelo correspondente dever para a contraparte.
AA) Foram violados, não aplicados, ou incorretamente interpretados, entre outros, os artigos 610º, 612º, 963º, 941º, 1874º, 2009º/1/d) do CC. e 334º do Cód. Civil.
Conclui-se pela revogação da decisão e sempre pela improcedência da acção.
Respondeu o Autor, sustentando que não há qualquer erro de julgamento invocado pelo Apelante pois que se mostram verificados os pressupostos do disposto no artigo 610º do CC se impõem para a procedência da impugnação pauliana como foi, e bem, decidido pelo Tribunal a quo. Mais, devem manter-se tal qual como na decisão proferida, atentas as declarações de parte bem como os depoimentos das testemunhas, aliada à prova documental, complementada com as regras da experiência da vida e, uma vez submetida a critérios de normalidade e de razoabilidade os concretos factos objecto de impugnação recursiva.
II.
São as seguintes as questões a decidir:
- a do erro de julgamento quanto à matéria de facto havida por indemonstrada sob a) e b) dos factos não provados;
- a do erro de direito, por estar em causa, a um tempo, uma doação modal e remuneratória, um acto estritamente pessoal e sempre se verificar um abuso do direito pelo Autor.
Na sentença foram havidos por provados os seguintes factos:
1) A 26 de Outubro de 2021, o 1.º Réu, AA, assumindo a posição de “Primeiro Outorgante”, EE, assumindo a posição de “Segundo Outorgante” e o 2.º Réu, BB, assumindo a posição de “Terceiro Outorgante”, celebraram um acordo escrito, intitulado “Contrato de Doação”, no qual consta: “Pelos primeiro e segundo outorgantes foi dito: (…)
Que pelo presente contrato doam, por conta da sua quota disponível, ao Terceiro Outorgante, seu irmão, o Quinhão Hereditário de que cada um é titular na herança indivisa aberta por óbito de seus pais, BB e CC.
Que a presente doação é feita em resultado dos cuidados de saúde e pessoais assegurados pelo donatário desde o óbito de seus pais ao irmão DD, declarado interdito por sentença de 20 de Novembro de 1990, proferida pelo 2.º Juízo Cível da Comarca do Porto, de quem é protutor e com quem vive, cuidados e assistência que o donatária se obriga, em contrapartida da presente doação, a prestar até ao fim dos seus dias.
Que da referida herança faz parte, única e exclusivamente, o prédio urbano composto por casa de rés do chão e andar, tendo no R/C 3 quartos, cozinha, despensa e quarto de banho completo, 1 fogo no andar, com as mesmas divisões, destinado a habitação, sito na Travessa ..., ... da união das freguesias ... e ..., concelho de Gondomar, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...96 da referida união de freguesia e concelho, anterior artigo ...84 da extinta freguesia ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ...59 da referida união de freguesias e concelho, anterior artigo ...84 da extinta freguesia ... e descrito na Conservatória do Registo Predial de Gondomar sob o n.º ...59, aí registado o referido prédio a favor dos autores da herança sob a “Apresentação ... de cinco de junho de mil novecentos e oitenta e um”, com o valor atribuído de 81.118,80€ (oitenta e um mil cento e dezoito euros e oitenta cêntimos), pelo que sendo o valor dos quinhões ora doados o correspondente a½ (um meio) da herança, têm os quinhões hereditários o valor de 40.559,40€ (quarenta mil quinhentos e cinquenta e nove euros e quarenta cêntimos), valor que atribuem para efeitos deste ato. (…)
Declarou o Terceiro Outorgante:
Que aceita a presente doação e encargo”
(art.º 1 da PI e art.º 14 da Contestação do R. BB);
2) A 02 de novembro de 2018, o Autor, assumindo a posição de “Banco” e a sociedade A..., S.A., assumindo a posição de “Mutuária” celebraram um acordo escrito, intitulado “Contrato de Mútuo”, no qual consta:
“O Banco concede à Mutuária um empréstimo no montante de 30.000,00€ (trinta mil euros) (…)
O empréstimo tem termo no dia 02 de Novembro de 2020. (…)
Salvo acordo diverso e sem prejuízo do direito de antecipação (…) o empréstimo será reembolsado em prestações mensais constantes e sucessivas de capital e juros, de acordo com o plano que é do conhecimento da Mutuária, vencendo-se a primeira prestação no dia 02 de Dezembro de 2018 e as restantes em igual dia de cada um dos meses seguintes. (…)
Os valores que se mostrarem em dívida ao Banco ficam caucionados pela livrança em branco, subscrita pela Mutuária e avalizada por AA, destinada a garantir o pagamento de todas as responsabilidades assumidas pela Mutuária perante o Banco por crédito concedido ou a conceder e valores descontados e/ou adiantados até ao limite de 30.000,00€ (trinta mil euros), acrescido dos respetivos jutos, despesas e encargos incluindo, por isso, os valores emergentes deste contrato: juntamente com a livrança, a Mutuária entrega ao Banco a correspondente autorização de preenchimento, assinada por si e pelo avalista” (art.º 7 da PI);
3) A 17 de dezembro de 2019, o Autor, assumindo a posição de “Banco” e a sociedade A..., S.A., assumindo a posição de “Cliente” celebraram um acordo escrito, intitulado “Contrato de Gestão de Pagamentos a Fornecedores (Automático)”, no qual consta:
“Cláusula 1ª
(Objeto)
1. O presente contrato tem por objeto a prestação pelo Banco ao Cliente do serviço de gestão e de liquidação de faturas, devidas por este em contrapartida de bens ou serviços a ele prestados pelos Fornecedores, nos termos das Cláusulas seguintes.
2. O Banco, nos termos do presente Contrato, executará as ordens de pagamento por indicação e em nome do Cliente, agindo como simples gestor de pagamentos deste.
3. A Colaboração a prestar pelo Banco ao cliente passará pela celebração de cessão de créditos, entre o Banco e o Fornecedor de acordo com o estipulado pelos mesmos e observando o adiante previsto sendo que, em cada momento, o Banco só se vinculará a antecipar pagamentos dos créditos de que os fornecedores sejam credores perante o cliente no âmbito dos concretos de cessão de créditos, desde que seja respeitado o montante máximo global de 85.000,00€ (oitenta e cinco mil euros) de crédito em dívida ao Banco, por parte do cliente. (…)
Cláusula 6ª
(Dos Pagamentos)
1.
1. O Cliente liquidará ao Banco o valor total dos pagamentos efetuados na data de vencimento; (…)
Cláusula 17ª
(Garantias do Contrato)
1. Para titulação do capital em dívida, dos juros devidos, despesas e demais encargos emergentes do contrato, o Cliente subscreve e entrega ao Banco uma livrança em branco, avalizada por AA, portador do cartão de cidadão... n.º ...55
2. O Banco poderá liquidar, de conta do Cliente, o imposto do selo devido pela livrança.
3. No caso de resolução do contrato, fica o Banco desde já autorizado, de forma irrevogável, a completar tal livrança com todos os restantes elementos, nomeadamente quanto à data de vencimento, local de pagamento – que será à escolha do Banco, uma das suas agências de Lisboa, do Porto ou do domícilio do Cliente – e ao valor a pagar, o qual corresponderá aos valores que forem devidos pelo Cliente, aquando da sua eventual utilização, resultantes do capital em dívida, juros vencidos, acréscimo de juros por via da mora, encargos e demais despesas previstas no contrato” (art.º 7 da PI);
4) A 25 de outubro de 2019, o Autor, assumindo a posição de “Banco” e a sociedade A..., S.A., assumindo a posição de “Mutuária” celebraram um acordo escrito, intitulado “Contrato de Mútuo”, no qual consta: “O Banco concede à Mutuária um empréstimo no montante de 500.000,00€ (Quinhentos mil euros) (…)
Salvo acordo diverso e sem prejuízo do direito de antecipação (…) o empréstimo será reembolsado em prestações mensais, constantes, e sucessivas de capital e juros, de acordo com o plano que é do conhecimento da Mutuária. (…)
Os valores que se mostrarem em dívida ao Banco ficam caucionados pela livrança em branco subscrita pela Mutuária, e avalizada por AA, destinada a garantir o pagamento de todas as responsabilidades, assumidas ou a assumir pela Mutuária perante o Banco, por crédito concedido ou a conceder e valores descontados e/ou adiantados até ao limite de 500.000,00€ (quinhentos mil euros), acrescido dos respetivos juros, despesas e encargos, incluindo, por isso, os valores emergentes deste contrato; juntamente com a livrança, a Mutuária entrega ao Banco a correspondente autorização de preenchimento, assinada por si e pelo avalista”. (art.º 7 da PI);
5) A sociedade A..., S.A. foi declarada insolvente por sentença proferida a 30 de junho de 2022, no âmbito do processo 1871/22.5T8STS, a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Comércio de Santo Tirso - Juiz 2
6) O Autor endereçou ao 1.º Réu uma carta datada de 02 de setembro de 2022, na qual consta:
“Como é do seu conhecimento, encontra-se a sociedade “A..., S.A.” devedora ao Banco 1..., S.A. da quantia de 1456,44€ (mil quatrocentos e cinquenta e seis euros e quarenta e quatro cêntimos), decorrente do vencimento do contrato de mútuo, celebrado com aquela sociedade em 02/11/2018 no valor de 30.000,00€ que operou por via da declaração de insolvência.
Encontra-se ainda por liquidar o descoberto na conta à ordem no valor de 531,88 (quinhentos e tinta e um euros e oitenta e oito cêntimos), tudo perfazendo o montante global em dívida no valor de 1.988,32€ (mil novecentos e oitenta e oito euros e trinta e dois cêntimos).
Tal valor, como sabe, está titulado pela livrança em nosso poder, avalizada por V.Exa. para garantia do referido montante, cujo pagamento deverá ser efetuado até ao dia 09 de setembro de 2022, data do respetivo vencimento.
Na falta de pagamento, até àquela data, do valor em questão, procederemos à instauração em Tribunal, do respetivo processo de execução”.
7) O Autor endereçou ao 1.º Réu uma carta datada de 02 de setembro de 2022 na qual consta:
“Como é do seu conhecimento, encontra-se a sociedade “A..., S.A.” devedora ao Banco 1..., S.A. da quantia de 1456,44€ (mil quatrocentos e cinquenta e seis euros e quarenta e quatro cêntimos), decorrente do vencimento do contrato de mútuo, celebrado com aquela sociedade em 02/11/2018 no valor de 30.000,00€ que operou por via da declaração de insolvência.
Encontra-se ainda por liquidar o descoberto na conta à ordem no valor de 531,88 (quinhentos e tinta e um euros e oitenta e oito cêntimos), tudo perfazendo o montante global em dívida no valor de 1.988,32€ (mil novecentos e oitenta e oito euros e trinta e dois cêntimos).
Tal valor, como sabe, está titulado pela livrança em nosso poder, avalizada por V.Exa. para garantia do referido montante, cujo pagamento deverá ser efetuado até ao dia 09 de setembro de 2022, data do respetivo vencimento.
Na falta de pagamento, até àquela data, do valor em questão, procederemos à instauração em Tribunal, do respetivo processo de execução”
7) O Autor endereçou ao 1.º Réu uma carta datada de 02 de setembro de 2022, na qual consta:
“Como é do seu conhecimento, encontra-se a sociedade “A..., S.A.” devedora ao Banco 1..., S.A. da quantia de 86.149,41 (oitenta e seis mil cento e quarenta e nove mil euros e quarenta e um cêntimos) decorrente do vencimento do Contrato de Gestão Financeira e Pagamentos a Fornecedores, celebrado com aquela sociedade em 17/12/2019, alterado em 02/11/2021 e resolvido em 30/06/2022.
Tal valor, como sabe, está titulado pela livrança em nosso poder, avalizada por V.Exa. para garantia do referido montante, cujo pagamento deverá ser efetuado até ao dia 09 de Setembro de 2022, data do respetivo vencimento.
Na falta de pagamento, até àquela data, do valor em questão, procederemos à instauração em Tribunal, do respetivo processo de execução”.
8) O Autor endereçou ao 1.º Réu uma carta datada de 02 de setembro de 2022, na qual consta:
“Como é do seu conhecimento, encontra-se a sociedade “A..., S.A.” devedora ao Banco 1..., S.A. da quantia de 485.441,98€ (quatrocentos e oitenta e cinco euros, quatrocentos e quarenta e um euros e noventa e oito cêncimos) decorrente do vencimento do contrato de mútuo, celebrado com aquela sociedade em 25/10/2019, no valor inicial de 500.000,00€ que operou por via da declaração de insolvência.
Tal valor, como sabe, está titulado pela livrança em nosso poder, avalizada por V.Exa. para garantia do referido montante, cujo pagamento deverá ser efetuado até ao dia 09 de Setembro de 2022, data do respetivo vencimento.
Na falta de pagamento, até àquela data, do valor em questão, procederemos à instauração em Tribunal, do respetivo processo de execução”.
9) No dia 21 de setembro de 2022, o Autor apresentou um requerimento executivo no Tribunal de Valongo – Comarca do Porto, tendo como executado o 1.º Réu e como título executivos as seguintes Livranças:
“a) Livrança emitida em 02/09/2022, no valor de € 1 988,32 e vencida em 09/09/2022;
b) Livrança emitida em 02/09/2022, no valor de € 86 149,41 e vencida em 09/09/2022;
c) Livrança emitida em 02/09/2022, no valor de € 485 441,98 e vencida em 09/09/2022.” (art.º 5 e 6 da PI)
10) AA (1.º Réu), BB (2.º Réu) e EE são irmãos de DD (art.º 9 da Contestação do R. BB e art.º 9 da Contestação do R. AA);
11) DD, desde a infância, manifesta graves dificuldades de visão, dificuldade em se exprimir, não sabe ler ou escrever, não conhece o valor do dinheiro e manifesta sequelas de um ataque de meningite neo-natal, não tendo força no braço direito, precisando do auxílio de terceiros para todos os atos da vida (art.º 10 da Contestação do R. BB);
12) DD foi declarado interdito no âmbito do Processo n.º ..., da 1ª Secção do 5º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, findo a 03/12/1990, tendo sido nomeado tutor o pai BB, e protutor o irmão BB, 2.º Réu. (art.º 9 da Contestação do R. BB e art.º 9 e 10 da Contestação do R. AA);
13) BB (pai dos Réus) faleceu a ../../2001 e CC (mãe dos Réus) a 18-07-2016 (art.º 11 da Contestação do R. BB e art.º 13 da Contestação do R. AA);
14) Desde 2016, por acordo dos irmãos, o 2.º Réu cuida do irmão DD, garantindo-lhe os cuidados necessários ao seu sustento, higiene pessoal, habitação, vestuário e saúde (art.º 20 da Contestação do R. BB e art.º 11 da contestação do R. AA);
15) O irmão DD coabita com o 2.º Réu, a mulher e os filhos deste, na mesma casa, onde dispõe de um quarto só para si (art.º 22 da Contestação do R. BB);
16) DD aufere uma pensão de invalidez no seguinte valor:
a. 2017: 3.124,10€/ano e 230,02€/mês,
b. 2018: 3.267,86€/ano e 255,95€/mês,
c. 2019: 3.583,30€/ano e 257,74€/mês,
d. 2020: 6.170,74€/ano e 441,97€ mês,
e. 2021: 6.327,58€/ano e 456,49€/mês,
f. 2022: 6.724,67€/ano e 486.18€/mês,
g. 2023: 6922,70€/ano e 532,93€/mês;
17) DD frequenta o Centro de Dia ... desde 17-06-2021, tendo as comparticipações desde essa data e até 31-01-2024 somado o valor global de 6.721,12€ (art.º 12 da Contestação do R. BB);
Por seu turno, foram tidos como não provados os factos seguintes:
a) O 1.º Réu, através do acordo referido em 1), pretendia compensar o 2.º Réu pelos cuidados que este tem vindo a assegurar a DD, desde o ano de 2016, até à presente data (art.º 17 da Contestação do R. BB e 14.º da Contestação do R. AA);
b) O 2.º Réu pagou a quantia referida em 17);
Impõe-se começar pela questão da impugnação da matéria de facto, como é da lógica.
Nesta sede, tendo-se por cumpridos os pressupostos do conhecimento respectivo[1], caberia analisar a fundamentação convocada pelo tribunal recorrido e a impugnação deduzida pelo recorrente, procedendo este tribunal superior à reanálise dos meios probatórios convocados, por forma a apurar se a sua própria e autónoma convicção é coincidente ou não com a convicção evidenciada, em sede de fundamentação, pelo tribunal recorrido e, por inerência, se se impõe uma decisão de facto diversa da proferida por este último, nos concretos pontos de facto postos em crise. Com efeito, em sede de reapreciação da prova gravada no âmbito do recurso da decisão sobre a matéria de facto, haverá que ter em consideração, como sublinha Abrantes Geraldes[2], que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa sua reapreciação tem ele autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção, mediante a reapreciação dos meios de prova indicados pelas partes ou daqueles que se mostrem acessíveis e com observância do princípio do dispositivo no que concerne à identificação dos pontos de discórdia. «Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar de forma crítica as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, sujeito às mesmas regras de direito probatório a que se encontrava sujeito o tribunal recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que tenham sido produzidos nos autos, incluindo, naturalmente, os que tenham servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.
Em resumo, reapreciação dos meios de prova, de todos os meios de prova, mas verificação ainda da correcção do juízo probatório constante da sentença recorrida, em termos de não estar em causa a substituição de um juízo probatório possível por outro, mas a confirmação da evidência da apreciação errada da prova pelo juiz recorrido.
De todo o modo, a impugnação da matéria de facto não se destina a contrapor a convicção da parte e do seu mandatário à convicção formada pelo tribunal, com vista à alteração da decisão. Destina-se, sim, à especificação dos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida” (art. 640.º, n.º 1, al. b), do Cód. Proc. Civil).
Com relevo decisivo na situação decidenda, “não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica para a solução da causa ou mérito do recurso, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15-09-2015, Processo 6871/14.6T8CBR.C1, sob pena de se praticar um acto inútil proibido por lei (cfr. artigo 130.º do CPC).
A reapreciação da decisão matéria de facto não é um exercício dirigido a todo o custo ao apuramento da verdade afirmada pelo recorrente mas antes e apenas um meio de o recorrente poder reverter a seu favor uma decisão jurídica fundada numa certa realidade de facto que lhe é desfavorável e que o recorrente pretende ver reapreciada de modo a que a realidade factual por si sustentada seja acolhida judicialmente.
Logo que faleça a possibilidade de uma qualquer alteração da decisão da matéria de facto poder ter alguma projeção na decisão da matéria de direito seja-o em sentido favorável, como desfavorável ao recorrente, deixa de ter justificação a impugnação deduzida, traduzindo-se antes na prática de um ato inútil, por isso ilícito.
A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem considerado que nada impede o Tribunal da Relação de apreciar se a factualidade indicada pelos recorrentes é ou não relevante para a decisão da causa, podendo, no caso de concluir pela sua irrelevância, deixar de apreciar, nessa parte, a impugnação da matéria de facto por se tratar de ato inútil. Assim, “Não viola o dever de reapreciação da matéria de facto a decisão do Tribunal da Relação que não conheceu a matéria fáctica que o Apelante pretendia que fosse aditada ao factualismo provado (factos complementares e concretizadores de factos essenciais) tendo subjacente a sua irrelevância para o conhecimento do mérito da causa (por a mesma, por si só, na ausência de demonstração de factualidade essencial para o efeito, não poder alterar o sentido da decisão (…)”. Na verdade, “se os factos cujo julgamento é impugnado não forem susceptíveis de influenciar decisivamente a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte, é inútil e contrário aos princípios da economia e da celeridade a reponderação pela Relação da decisão proferida pela 1.ª instância”[3].
Ora, temos para nós que é justamente isso que sucede na situação decidenda.
Na verdade, os factos cuja alteração do julgamento vem reclamada pelo recorrente são insusceptíveis de determinar a modificação da decisão jurídica da causa, com o que, como antecede, não caberá conhecer do convocado erro de julgamento.
Agora, na medida em que a compreensão desta adiantada inutilidade apenas se logrará mediante a antecipação ainda do juízo jurídico da causa, por ser a insusceptibilidade da alteração respectiva que a justifica, passará a conhecer-se das questões que, suscitadas no recurso, importa dirimir.
Assim é que os factos cuja alteração vem requerida importam directamente ao pretendido enquadramento da situação decidenda no quadro do acto pessoal, da figura da doação remumeratória ou com encargos ou do instituto do abuso do direito, na medida em que se constituem como fundamento de intangibilidade do acto impugnado por via da decretada procedente impugnação pauliana. Ora, ainda quando demonstrados, como pretendido, insusceptíveis de caractetizar as hipóteses, respectivamente, de exclusão do objecto da impugnação, qualificação como negócio oneroso ou exercício abusivo, por contrário à boa fé, bons costumes ou fim social ou económico do direito à garantia patrimonial do crédito.
Desde logo, por expressa indicação legal, assim o art. 610º,n.º 1 do CC, não podem ser objecto de impugnação pauliana os actos de natureza pessoal.
Ora, esta natureza deve ser encontrada no conteúdo do acto e não nos fins imediatos visados pelo seu autor.
Assim, por todos, João Cura Mariano, Impugnação Pauliana, Almedina, 2004, p. 105, que seguiremos de muito perto.
Certo já que os contratos são “projecções de fins”, na feliz expressão de Oliveira Ascensão, em Teoria Geral do Direito Civil, II vol., p. 130 a 132, sobre os fins dos actos jurídicos e sua relevância.
Donde, os fins que determinam as partes a tomarem a decisão de se vincularem, as utilidades que pretendem alcançar, as finalidades com que prometem e se comprometem são realidades a atender no entendimento completo e correcto dos contratos celebrados.
Sem prejuízo, importa distinguir o fim com que as partes contratam, a finalidade que com o contrato pretendem alcançar, da função e do motivo[4].
O fim distingue-se da função porque é subjectivo, situa-se no sujeito, no autor do contrato, enquanto aquela outra é objectiva, situa-se no contrato mesmo, o qual é funcionalmente hábil ou apto para uma utilidade.
O fim distingue-se bem assim do motivo, que tem já o seu cerne no processo pessoal de tomada de decisão, a causa impulsiva.
Ora, a interdição do n.º 1do artigo 610º do CC, quanto a actos de natureza pessoal, tem por objecto os actos de conteúdo não patrimonial, isto é, não avaliáveis em dinheiro. Cfr. Paulo Cunha, Do Património, Lisboa, 1934, p. 16-31 e Carvalho Fernandes, Teoria Geral do Direito Civil, I, 3ª ed. UCP, Lisboa 2001, p. 141. Na medida em que estes actos não afectam directa e imediatamente a garantia dos credores constituída pelo património do devedor, não se justifica a sua impugnabilidade. Evidente que alguns actos de natureza pessoal, como o casamento, a adpção, a perfilhação, o divórcio ou separação judicial de pessoas e bens podem ter efeitos indirectos ou reflexos (assim as obrigações alimentares decorrentes da constituição de novos vínculos familiares e a partilha de um património comum) no património do credor. Injustificável já a impugnabilidade destes actos para garantia do cumprimento das obrigações, com fundamento nesses efeitos, já que o direito à prática de tais actos, alguns integrando o leque de direitos fundamentais do indivíduo, não pode ser limitado pelo mero interesse de conservação da garantia patrimonial dos credores.
Bem assim, como sustentado já por Vaz Serra, Responsabilidade patrimonial, BMJ, n.º 75, p. 263 e Armando Triunfante, Dos meios conservatórios da garantia patrimonial do credor, Porto Editora, 1996, p. 64, inadmissível a impugnação restrita às consequências imperativas de cariz patrimonial dos actos de natureza pessoal, na medida das razões de ordem pública que presidem à imposição destes efeitos.
No que importa já às consequências convencionais de natureza patrimonial, nada obsta à sua impugnabilidade quando se revelem diminuidoras da garantia dos credores. Assim, por todos, Vaz Serra, loc. cit., p. 263, nota 392, Pedro Romano Martinez e Pedro Fuzeta da Ponte, Garantias de Cumprimento, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2003, p. 16-17 e João Cura Mariano, loc. cit., p. 106.
Ora, a partilha hereditária, conteúdo imediato do acto impugnado, tem conteúdo directamente patrimonial. Refere-se à distribuição de bens, direitos e obrigações (património) de uma pessoa falecida entre os seus herdeiros. Embora a partilha possa envolver questões emocionais e familiares, o seu objeto principal é a transferência de bens de natureza económica.
A herança, em si, é um conjunto de bens, direitos e obrigações que pertencem a uma pessoa falecida. A partilha hereditária é o processo legal de dividir este património pelos herdeiros. Esse processo envolve a identificação dos bens, a avaliação do seu valor e a sua distribuição entre os herdeiros, de acordo com a lei ou testamento.
Portanto, a partilha hereditária incide directa e imediatamente sobre o património do falecido. O objetivo final é a transferência desses bens para os herdeiros.
Em resumo: A partilha hereditária tem por objecto imediato bens e direitos de natureza patrimonial, com o que não reconduzível a acto de natureza pessoal.
Despicienda a citação de doutrina e jurisprudência a admitir a impugnação pauliana de partilha, tal a profusão, não deixando de se convocar nesta sede a relevante doutrina, citada sob a nota de rodapé 191, na obra de João Cura Mariano já proficientemente citada[5], que admite até a aplicação do recurso extraordinário de oposição de terceiro a situações em que as partes usaram um processo judicial para obter um efeito que justificaria a impugnação pauliana, para obstar à inadmissibilidade desta quando a partilha ou divisão de bens o tenha sido em processo de inventário desfavorável ao devedor, por razões de segurança e certeza plasmadas no instituto do caso julgado.
Concorda-se, pois, totalmente com a objecção por João Cura Mariano[6], às posições de Menezes Cordeiro, em Da boa fé no direito civil, volume I, Almedina, Coimbra, 1985, p 497 e Maria da Paz Ferreira, em Impugnação Pauliana, p. 55, apud Cura Mariano, cit., e ao decidido no Acórdão da Relação de Lisboa de 11.12.2003, relatado por Fátima Galante e acessível na página da dgsi, quando sustentam que o acto pelo qual alguém aliena um bem que serve de garantia aos credores, visando cobrir as despesas de tratamento médico próprio ou de um familiar, tem natureza pessoal e por isso está subtraído à impugnação pauliana.
É a posição a que, em primeira linha, se reconduz o Recorrente.
A exclusão destas hipóteses (como da salvaguarda dos alimentos ao irmão incapaz) do âmbito da impugnação pauliana, a exemplo do que sugere o Ilustre Conselheiro, deverá antes encontrar-se no princípio de que a garantia geral dos credores terá sempre como limite o direito do devedor a uma sobrevivência condigna, sendo pois a analisar no domínio do enquadramento da situação no comportamento abusivo.
Quanto agora à configuração do acto impugnado como oneroso, por estar em causa uma doação remuneratória ou modal, bem assim se queda irrelevante o apuramento da matéria de facto havida como indemonstrada…
Manifestamente afastado o enquadramento, ainda quando provados os factos reclamados, em sede de doação remuneratória, porquanto, vista a sua definição legal, no art. 941º do CC, estas são aquelas que são efectuadas como compensação dos serviços recebidos pelo doador, que não tenham a natureza de dívida exigível… E sempre, quando ali se enquadrasse, nesse caso, não havendo obrigação de qualquer tipo do doador de remunerar esses serviços, o que as afasta do cumprimento de obrigação natural, sempre estaríamos perante uma atribuição patrimonial sem correspectivo, o que as inclui na categoria de actos gratuitos[7]. De resto, tal conclusão constava do art. 256º, n.º 4, do articulado mais extenso do Anteprojecto de Vaz Serra, no BMJ, nº 99, p. 277.
Quanto às doações com encargos, que, nos termos e para os efeitos do art. 963º do CC, são aquelas em que o doador insere uma cláusula modal que impõe ao donatário um encargo, apesar do donatário assumir a obrigação de efectuar determinada prestação, esta não se encontra numa relação de correspectividade com a atribuição patrimonial do doador, sendo antes uma mera limitação de origem do objecto da doação. Na figurativa expressão de Antunes Varela, Ensaio sobre o Conceito do modo, Atlântida, Coimbra, 1955, p. 307, “é a própria doação que (…) se sacrifica pelo encargo, como o pelicano se sacrifica pelos filhos”.
Donde, como bem observa, novamente, Cura Mariano, loc. cit., p. 220, “esta atribuição meramente consumptiva, ou a latere, do donatário não é, pois, suficiente para excluir a natureza gratuita deste tipo de doações” ou disposições.
A existência e cumprimento desse encargo não influem pois nos requisitos da impugnação pauliana. Donde a irrelevância dos factos em causa.
Vaz Serra, novamente no art. 173º, n.º 4 do seu Anteprojecto (BMJ n.º 99, p. 37) considerou estas doações actos gratuitos para efeitos de impugnação pauliana.
No sentido propugnado, Antunes Varela, Ensaio sobre o conceito do modo, cit., p. 304 a 308 e Das obrigações em geral, Vol. II, 10ª impressão, Almedina, Coimbra, 2003, p. 456, Vaz Serra, Responsabilidade Patrimonial, BMJ, 75, p. 268 a 275, Menezes Leitão, Direito das Obrigações, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2003, volume II, p. 292 e Armando Lemos Triunfante, Dos meios Conservatórios da garantia patrimonial do credor, cit., p. 70.
Afastado ademais o enquadramento da situação no quadro do cumprimento de obrigações, sempre não convocado no recurso, mas aventável. Sobre a questão, Cura Mariano, loc cit, p. 220 a 222.
Sempre a qualificação como oneroso ou gratuito da satisfação antecipada de obrigações[8] teria de reportar-se à qualificação da situação constitutiva da obrigação cumprida… Ora, manifesto ser aquela totalmente gratuita, porquanto inexistindo, vista a natureza mesma da obrigação, uma qualquer contraprestação compensatória da atitude do solvens.
Ainda quando configurável um acordo autónomo entre irmãos co-responsáveis (cfr. artigo 2010º do CC), correspondendo agora à assunção pelo beneficiário da transmissão da quota hereditária do cumprimento da obrigação (de terceiro) do devedor do A., quanto à relação credor-solvens, a natureza da relação em que se insere a obrigação cumprida mantém-se gratuita, sendo que, quanto à relação devedor-solvens, inexistindo fixação de prestação alimentar, estando-se no domínio do cumprimento de obrigações naturais, uma vez que não existe um dever jurídico de satisfazer o respectivo crédito, esse acto é equiparável às liberalidades, o que o integra na classe dos actos gratuitos, para efeitos de aplicação do regime da impugnação pauliana.
Assim, Antunes Varela, Natureza jurídica das obrigações naturais, RLJ, ano 90º, p. 35-36, Vaz Serra, Responsabilidade patrimonial, cit.[9], nota 330, Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª edição, Cimbra 2002, p. 804 a 806 e Armando Triunfante, loc. cit. p. 75.
Tudo para dizer da improcedência da argumentação jurídica convocada, no pressuposto já da demonstração ou prova dos factos a cuja impugnação se dirigiu primeiramente o recurso apreciando, como justificação da inutilidade do conhecimento respectivo.
De todo o modo, pois, sempre que se esteja em presença, como é o caso, de um acto de natureza gratuita, o êxito da pretensão do credor no confronto com as partes nesse acto depende tão-somente da verificação dos pressupostos de facto a que se reporta a primeira parte da al. a) e a al. b) do artigo 610.º do Código Civil, ou seja, dos elementos objetivos da impugnação pauliana. Assim, se o credor provar o montante das dívidas e não for feita pelo devedor ou por terceiro a prova da existência de bens penhoráveis no património do devedor, a impugnação pauliana deverá ser julgada procedente…
Assim ainda e finalmente no domínio do enquadramento da situação versada no instituto do abuso do direito, que vem a ser, em nosso entender e como adiantado supra, o lugar mesmo da discussão admissível sobre a inadmissibilidade da impugnação do caracterizado acto gratuito.
Novamente nos remetendo ao completíssimo tratado de Cura Mariano sobre a Impugnação Pauliana, proficientemente convocado nesta decisão, desta feita a p. 102-103, “a circunstância de um segmento da impenhorabilidade legal se destinar a garantir ao devedor a utilização dos bens necessários a uma sobrevivência digna, de acordo com os padrões da vida actual (artigos 822º, f), 823º, 2 e 824º do CPC, ora 736º, f), 738º e 739º do CPC vigente), reflecte o princípio de que o direito de garantia geral dos credores não pode impedir o devedor de dispor do seu património de modo a que não seja posto em causa o mínimo necessário à sua sobrevivência e dos seus dependentes. Daí que também devam ser considerados imunes à impugnação pauliana todos os actos de alienação de bens praticados pelo devedor com a finalidade de garantir esse mínimo”.
Também já Manuel de Andrade, Direito Civil (Teoria Geral das Obrigações, Lições ao 3º ano, AAC, Coimbra, 1954-1955), p. 734, nota 1, considerava muito delicada a impugnabilidade deste tipo de actos.
A paralisação da impugnação pauliana pelo abuso do direito, em casos que envolvam a subsistência do devedor ou de dependentes, é um tema complexo. A lei portuguesa não prevê uma paralisação automática ou geral da impugnação pauliana com base na subsistência do devedor. No entanto, o abuso do direito, enquanto princípio geral, pode ser invocado para impedir o exercício abusivo da impugnação pauliana, mesmo que os requisitos formais da acção sejam cumpridos.
O instituto do abuso de direito tem a sua previsão no art.º 334.º do C.Civil que estabelece que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito.
Está em causa o exercício anormal de um direito em termos reprovados pela lei, ou seja, é respeitada a estrutura formal do direito, mas violada a sua afectação substancial, funcional ou teleológica.
A respeito do instituto do abuso de direito diz-nos numa boa síntese o Acórdão do STJ de 19 de outubro de 2017 no proc. 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1 in www.dgsi.pt: “Esta figura complexa do abuso de direito, é uma válvula de segurança, uma de várias cláusulas gerais com que o legislador pode obtemperar a injustiça gravemente chocante e reprovável para o sentimento jurídico prevalente na comunidade social, a injustiça de proporções intoleráveis para o sentimento jurídico imperante, em que, por particularidades ou circunstâncias especiais do caso concreto, redundaria o exercício de um direito por lei conferido. No dizer do Acórdão do STJ, de 07.02.2008 (revista nº 3934/07- 2ª Secção), representa «o controlo institucional da ordem jurídica no que tange ao exercício dos direitos subjectivos privados. Os direitos subjectivos e o seu exercício não são garantidos sem limites: eles devem manter-se dentro da sua função útil, prevista pelo direito objectivo. A figura do abuso do direito surge como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam, por forma considerada justa pela consciência social, em determinado momento histórico, ou obstando a que, observada a estrutura formal do poder conferido por lei, se excedam manifestamente os limites que devem ser observados, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo». Segundo Manuel Andrade, existe abuso de direito quando um certo direito, admitido como válido, isto é, não só legal mas também legítimo e razoável, aparece, todavia, no caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, ainda que ajustados ao conteúdo formal do direito. Por sua vez, refere Antunes Varela que o abuso de direito pressupõe a existência e a titularidade do poder formal, que constitui a verdadeira substância do direito subjectivo, e que se designa por abuso de direito o exercício desse poder formal realmente conferido pela ordem jurídica a certa pessoa, mas em aberta contradição, seja com o fim (económico ou social) a que um poder se encontra adstrito, seja com o condicionalismo ético-jurídico que, em cada época histórica, envolve o seu reconhecimento. Na configuração da figura do abuso de direito, o art. 334º do C. Civil, consagra uma concepção objectiva ou objectivista: não só tem o excesso cometido no exercício do direito de ser manifesto, como não é necessária a consciência do abuso, isto é, a consciência, por parte do agente, da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social ou económico do direito exercido.” (…)
Não é qualquer conduta que é susceptível de integrar o conceito de abuso de direito, já que a norma em questão impõe que o titular do direito exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Dizem-nos a este propósito, com grande propriedade, Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil anotado cit., pág. 217, em anotação a esta norma: «Exige-se, no entanto, que o excesso cometido seja manifesto. Os tribunais só podem pois fiscalizar a moralidade dos actos praticados no exercício de direitos ou a sua conformidade com as razões sociais ou económicas que os legitimam, se houver manifesto abuso. É esta a lição de todos os autores e de todas as legislações. Manuel de Andrade refere-se aos direitos “exercidos em termos clamorosamente ofensivos da justiça (Teoria Geral das Obrigações, pág. 63). O Prof. Vaz Serra refere-se, igualmente, à “clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante” (Abuso do direito, no Bol. N.º 85, pág. 253).»
Passando ao caso concreto, importa avaliar se podemos falar de abuso de direito por parte do A. ao vir suscitar a impugnação pauliana do negócio em causa, com vista à satisfação do seu crédito, assim agindo para além dos limites do direito que lhe assiste, como exposto.
Ora, independentemente da afirmação probatória dos factos cuja demonstração, ao invés do decidido na sentença, vem propugnada, sempre não se tem por caracterizado o convocado instituto, ainda quando se houvessem de ter por provados os reclamados factos.
Desde logo, não resultando caracterizado, por falta de alegação dos factos respectivos, o comportamento abusivo relevante, que teria de reconduzir-se já, num princípio de conciliação ou equilíbrio, subjacente à boa fé ou aos bons costumes, ao perigar das condições de subsistência do irmão do devedor transmitente, no caso de procedência da acção de impugnação pauliana.
E é o que não resulta ou se extrai apenas dos factos em causa e não foi na acção convocado eficazmente, mediante a alegação dos factos necessários e imprescindíveis.
Podemos assim afirmar que os factos havidos por não provados, a haverem-se por demonstrados, não revelam que o A. ao intentar a presente acção a impugnar o acto que o prejudicou esteja manifestamente a violar o princípio da boa fé, os bons costumes convocados ou os limites sociais e económicos subjacentes ao seu direito à tutela patrimonial do seu crédito, susceptível de integrar uma situação de abuso de direito, nos termos previstos no art.º 334.º do C.Civil.
Resta concluir, pois, pela desnecessidade da apreciação do recurso em matéria de facto e sempre pela insubsistência da apelação e consequente manutenção da sentença proferida.
III.
Em face do exposto, nega-se provimento à apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas da acção como decidido e do recurso pelo Recorrente, vencido.
Notifique.
Porto, 26 de Junho de 2025
Isabel Peixoto Pereira
Manuela Machado
Isabel Silva
_________________________________
[1] Pode dizer-se que, em geral, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem observado, fundamentalmente, um critério de proporcionalidade e de razoabilidade, entendendo que os ónus previstos no art. 640.º do CPC têm em vista garantir uma adequada inteligibilidade do fim e do objeto do recurso. Deste modo, “a apreciação da satisfação das exigências estabelecidas no art. 640.º do CPC deve consistir na aferição se da leitura concertada da alegação e das conclusões, segundo critérios de proporcionalidade e razoabilidade, resulta que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto se encontra formulada num adequado nível de precisão e seriedade, independentemente do seu mérito intrínseco” , Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de junho de 2020 (Rijo Ferreira), proc. n.º 1519/18.2T8FAR.E1.S1 – disponível para consulta in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:1519.18.2T8FAR.E1.S1/.
Vide, no mesmo sentido, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de julho de 2020 (Nuno Pinto Oliveira), proc. n.º 4081/17.0T8VIS.C1-A.S1, – disponível para consulta in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:4081.17.0T8VIS.C1.A.S1/; de 16 de junho de 2020 (Henrique Araújo), proc. n.º 8670/14.6T8LSB.L2.S1 – disponível para consulta in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:8670.14.6TB8LSB.L2.S1/; de 5 de fevereiro de 2020 (Nuno Pinto Oliveira), proc. n.º 3920/14.1TCLRS.S1 – disponível para consulta in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:3920.14.1TCLRS.S1/. Para acesso a mais jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sobre o tema do ónus de impugnação da matéria de facto, pode consultar-se o caderno de jurisprudência temática disponível in ttps://www.stj.pt/wp-content/uploads/2020/11/onus_-impugnacao_materia_facto-.pdf.
[2] Ob. citada, págs. 274 e 277.
[3] Cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de março de 2019 (Maria do Rosário Morgado), proc. n.º 8765/16.1T8LSB.L1.S2 – disponível para consulta in www.dgsi.pt.
Vide ainda, a este propósito, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de fevereiro de 2020 (Nuno Pinto Oliveira), proc. n.º 4821/16.4T8LSB.L1.S2 - (“I - O princípio de que o juiz deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes, analisando todos os pedidos formulados, está sujeito a uma restrição, e a restrição reporta-se às matérias e aos pedidos que forem juridicamente irrelevantes. II - Estando em causa factos irrelevantes, não faz qualquer sentido ponderar sequer a sua inserção na matéria de facto provada. III - O acórdão da Relação que altera os valores individuais da indemnização por danos não patrimoniais fixados na 1.ª instância e não impugnados por nenhuma das partes incorre em ofensa de caso julgado”) – disponível para consulta in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:4821.16.4T8LSB.L1.S2/; de 28 de janeiro de 2020 (Pinto de Almeida), proc. n.º 287/11.3TYVNG-G.P1.S1 (“(…) IV - Decorre do princípio da limitação dos actos (art. 130.º do CPC), que, no processo, apenas devem ser praticados os actos que se revelem úteis para a resolução do litígio. Este princípio, previsto para os actos processuais em geral, deve ser também observado no âmbito da apreciação da impugnação da decisão de facto, se se verificar que daí não advirá qualquer elemento com relevo para a decisão de mérito”) – disponível para consulta in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:287.11.3TYVNG.G.P1.S1/; de 14 de janeiro de 2020 (Jorge Dias), proc. n.º 154/17.7T8VRL.G1.S2 - (“I - Se existem factos que “não chegaram a ser valorados”, verificar-se-á, eventualmente, erro na apreciação da matéria de facto, ou falta a aplicação do direito aos factos, o que constituirá omissão de pronúncia, mas não violação de caso julgado. II - O conceito de passagem com “normalidade” é um conceito apreendido pela generalidade das pessoas. As pessoas que conhecem o caminho sabem responder se quem por lá transita, pessoas, animais ou, carros, incluindo tratores, o faz de uma maneira normal, “com normalidade”. III - É irrelevante julgar, como provados, factos tidos como inócuos, (não sendo lícito realizar no processo actos inúteis, como determina o art. 130.º do CPC). IV - Não se verificando ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto, nem havendo lei que, no caso, fixe a força de determinado meio de prova, não há lugar a recurso de revista incidindo sobre a matéria de facto.”) - não se encontra disponível para consulta na www.dgsi.pt; de 13 de julho de 2017 (Fonseca Ramos), proc. n.º 442/15.7T8PVZ.P1.S1 (“I - Nos termos do art. 5.º, n.º 1, do CPC, às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas. II - Factos não alegados pelas partes podem, no entanto, ser considerados pelo juiz. Esses factos, são os factos instrumentais que resultarem da instrução da causa (n.º 2 al. a) do art. 5.º), e os que sejam complementares ou concretizadores dos que as partes alegaram, quando resultarem da instrução da causa, desde que sobre eles as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar – al. b). III - Os factos que resultam da discussão da causa, como decorre da formulação do n.º 2 do art. 5.º do CPC – “Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz” – são factos, passe a expressão, que só foram descobertos, que só chegaram ao conhecimento do tribunal na fase instrutória da causa. IV - Os factos instrumentais, mesmo que não constem da alegação das partes, podem ser tidos em consideração pelo julgador se resultarem da instrução da causa. Não se nos afigura rigorosa a afirmação de que os factos sindicados pelos recorrentes – que foram por eles alegados na petição inicial e foram levados a debate em sede de instrução e julgamento - não devem ser objecto de julgamento em 2.ª instância, em sede de impugnação da matéria de facto, por serem instrumentais e o julgamento na 2.ª instância constituir um acto inútil. V - A consideração da inutilidade da reapreciação do julgamento da matéria de facto, quando a parte que recorre cumpriu o ónus de que depende a apreciação da sua pretensão, só pode/deve ser recusada em casos de patente desnecessidade.”) – disponível para consulta in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/4bf735390cc090ee8025815c004762af?OpenDocument.
[4] Cfr. Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos Atípicos, Almedina, Coimbra, 1995, p. 126-128, que seguiremos de muito perto.
[5] Alberto dos Reis, Eficácia do caso julgado em relação a terceiros, BFDUC, vol. XVII, p. 250-251, Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, CPC Anotado, vol. 2º, Coimbra Editora, 2001, p. 661, Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil, Lex, Lisboa, 1992, p. 311 e Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, Coimbra, 2000, p. 295.
[6] Loc. cit., p. 105, nota 175.
[7] Assim, Cura Mariano, loc. cit., p. 219 e Vaz Serra, Responsabilidade Patrimonial, BMJ, cit, p. 268 e Armando Lemos Triunfante, Dos meios conservatórios, cit., p. 70.
[8] Sob a epígrafe “Desde quando são devidos”, prescreve o art. 2006.º do Código Civil: «Os alimentos são devidos desde a proposição da acção ou, estando já fixados pelo tribunal ou por acordo, desde o momento em que o devedor se constituiu em mora, sem prejuízo do disposto no artigo 2273.º»
As razões justificativas para este regime encontram-se explanadas em Pires de Lima/Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1995, pág. 585): «A disposição distingue, para esse efeito, três situações típicas.
A primeira é aquela, mais corrente de todas, em que a obrigação nasce ex novo, a requerimento judicial do carecido.
Várias soluções poderiam naturalmente ser concebidas pelo legislador, como por exemplo a de considerar os alimentos devidos desde o momento da existência da situação de carência do autor, em rigorosa conformidade com a sua ratio essendi (cfr. Bianchi (...)), ou a de os ter como exigíveis a partir da data em que a decisão proferida transitasse em julgado, por só então o devedor poder tomá-la como certa no seu orçamento familiar, em face da certeza (judicial) da verificação dos seus pressupostos.
O artigo 2006.º optou por uma terceira solução, uma espécie de caminho intermédio, que é a de considerar os alimentos devidos desde a data da proposição da acção, mesmo que a situação de carência remonte a data anterior.
Entende-se, por um lado, que, comprovando-se em juízo a situação de carência do autor, o demandado de algum modo podia e devia contar com a sua obrigação de supri-la, desde a data em que soou a campainha de alarme que é a propositura da acção.
Por outro lado, quanto ao período ou momentos de carência anteriores à propositura da acção (aos quais se refere o § 1613, 2, do Código alemão (...)), que podem ter criado encargos mais ou menos pesados para o desprovido de meios, falhando o dever de assistência conjugal ou o poder paternal, só através do esquema estadual da segurança social será possível acudir-lhes.»
Verifica-se, assim, que a solução legal adoptada, ao constituir um desvio à regra da eficácia ex nunc das sentenças constitutivas, pretendeu consagrar uma solução mais favorável ao credor de alimentos. Cfr., neste sentido, J. P. Remédio Marques, Algumas notas sobre alimentos (devidos a menores), 2.ª ed., Coimbra Editora, 2007, págs. 173 e segs.) Afigura-se que, no labor interpretativo do art. 2006.º do CC, não poderá deixar de se ter presente este ponto de partida.
Com efeito, tanto pela letra do preceito (“Os alimentos são devidos desde a proposição da acção(...)”) como pelas razões aduzidas na anotação de Pires de Lima/Antunes Varela – que, como se sabe, em larga medida reflectem as razões justificativas do legislador histórico – constata-se que o problema da eficácia rectroactiva das decisões judiciais relativas a alimentos foi essencialmente equacionado na óptica das decisões que reconhecem ex novo o direito a uma prestação de alimentos.
Sobre a questão, ainda, Restituição de alimentos pagos — aspetos civis e processuais, Guilherme de Oliveira e Maria José Capelo, Julgar Online, julho de 2023.
Não vinha alegada a fixação judicial da obrigação de alimentos ao irmão maior incapaz, com o que não caracterizado o cumprimento de obrigação exigível…
[9] Já no art. 173º, n.º 1 do seu Anteprojecto (BMJ 99, p. 36) os considerava também actos gratuitos.