ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA DO LESANTE
Sumário

I - O condutor de veículo que saia de um espaço adjacente a prédio particular em direção à via pública deve ceder a passagem a veículo que nesta circule (art.º 31.º, n.º 1, al. a) do Código da Estrada) e de se abster de condutas que impeçam o trânsito ou comprometam a segurança e a comodidade dos demais utentes da via (art.ºs 3.º, n.º 1 e 11.º, n.º 2 do Código da Estrada).
II - Viola estes comandos legais e, consequentemente, age com culpa o condutor de veículo que, provindo de um parque de estacionamento de prédio particular em direção à via pública, entra nesta num momento em que do local se aproximava outro veículo e, em resultado dessa manobra, associado às características (descida acentuada) e estado da via (piso molhado), torna inevitável a colisão deste com aquele.

Texto Integral

Processo n.º 59/24.5T8MCN.P1 - Recurso de apelação
Tribunal recorrido: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este - Juízo Local Cível de Marco de Canavezes
Recorrente: AA
Recorrido: A.... - Sucursal em Portugal

.- Sumário
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.- Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto,

I.- Relatório
.- AA instaurou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra A.... - Sucursal em Portugal, pedindo que, pela sua procedência, fosse a Ré condenada a pagar-lhe a quantia pecuniária de € 5.700,00, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.
Invocou, para tanto, e em síntese, que no dia 12-09-2022, pelas 19h00, na Rua ..., freguesia ... e ..., concelho de Marco de Canavezes, ocorreu um acidente de viação entre o veículo com a matrícula ..-..-XF, da sua propriedade e por si conduzido, e o veículo com a matrícula ..-..-LE, conduzido por BB.
Acrescentou que o acidente deveu-se a culpa exclusiva da condutora do veículo ..-..-LE e que, em consequência do sinistro, sofreu danos patrimoniais por cujo ressarcimento é responsável a Ré, para quem havia sido transferida, por contrato de seguro celebrado com a proprietária do veículo, a responsabilidade civil decorrente da sua circulação.
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Citado, contestou a Ré, batendo-se pela improcedência da ação, defendendo-se, para tanto, por impugnação direta e motivada.
Assim, e em síntese, apresentou uma versão diversa da dinâmica do acidente de viação, imputando ao Autor a culpa pela produção do sinistro e pôs em causa que os danos invocados pelo Autor fossem passíveis de ressarcimento.
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Prosseguindo o processo os seus termos, nomeadamente, a fixação em € 5.700,00 do valor da causa, foi realizada a audiência de discussão e julgamento e, de seguida, proferida sentença, julgando a ação totalmente improcedente e absolvendo a Ré do pedido.
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Inconformado com esta decisão, dela veio o Autor AA interpor o presente recurso, pugnando pela sua revogação e substituição por outra que condene a Ré no pedido.
Para o efeito, formulou as seguintes conclusões:

1.- O presente recurso vai incidir sobre matéria de facto e matéria de direito.
2.- O A. considera incorretamente julgados os seguintes concretos pontos de facto – provados e não provados:
.- 3 - Em consequência do embate o V1, este veículo recuou para trás e contra o pilar do muro aí existente.
.- 9. - O veículo seguro na Ré circulava no sentido descendente da via, a uma velocidade não superior a 50 km/h integralmente pelo interior da hemi-faixa de rodagem reservada ao seu sentido de trânsito, seguindo a sua tripulante atenta à sua condução, à via e ao demais trânsito.
.- 10 - E, no momento em que se preparava para vencer o espaço situado em frente da saída do referido parque de estacionamento à direita, a condutora do veículo seguro na ré viu surgir diante de si o veículo do autor que, repentina e inusitadamente, penetrou com a frente no interior da hemi-faixa por onde aquela seguia.
.- 11 - A condutora do LE (V2) foi surpreendida pela manobra incauta e imprevista do autor, sem nada poder fazer para evitar o embate da frente do que conduzia com a lateral dianteira do que que era tripulado por aquele.
.- 12 - O embate ocorreu no interior da hemi-faixa reservada ao sentido de trânsito do veículo seguro na Ré.
a.- Que no momento do embate chovesse intensamente.
b.- Que o autor se tivesse aproximado lentamente da saída do parque e olhado para a esquerda (...) e que tivesse parado com a roda da frente em cima da linha delimitadora da via.
c.- Que, previamente à colisão, a condutora do V2/LE conduzisse distraída e a uma velocidade de mais de 50 km/hora, excessiva, dado o estado do tempo e as concretas condições do local.
3.- Quanto aos concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida, consideramos as imagens e o croqui junto aos autos e a prova testemunhal realizada, com destaque apenas para a testemunha BB.
Das demais testemunhas, apenas a CC reportou a situação da colisão, todavia quanto à situação de efetivamente imobilizado do A., condutor do V1, não foi absolutamente rigorosa.
No que diz respeito aos depoimentos invocados como fundamento do erro na apreciação da prova que consta da gravação - passamos, já de seguida, a indicar, as partes e/ou momentos das concretas passagens, com indicação do dia, hora, minuto e segundo.
4.- Quanto à testemunha BB - depoimento prestado no dia 26/09/2024, das 10:42 às 11:22 – referiu o seguinte:
06:20 a 06:35 – o senhor AA estava a sair de um parque de estacionamento privado. Comecei a travar, mas não consegui parar o carro; o tempo estava húmido, estava orvalho.
04:30 a 04:35 – eu vi a frente toda do carro por isso é que eu comecei a travar quando vi a frente já cá fora a ocupar a via
05:41 – 05:43 – mal faço a curva já vejo a frente do carro;
06:00 a 06:29 – estrada a descer, mal faço a curva já vejo a frente do carro fora. Travei bastante, mas não consegui segurar a minha viatura.
06:46 a 06:55 – não posso andar a mais de 50; mesmo a 50 fui ao pé do travão 09:30 a 09:40 – Diz que não sabe como bateu;
11:00 a 11:23 – Diz que não sabe onde ficou ouviu um…; e repete que a frente do V1 estaria toda na via; estaria toda metida; já via o condutor;
14:30 a 14:35 – Adv. da Ré – pergunta se quando avista o V1 ele está parado. A BB responde: não lhe posso dizer.
26:30 a 26:35 – No momento em que eu queria que ele (V2) parasse, não parou. A instâncias do Tribunal
32:00 a 32:30 – Logo que faço a curva vejo a frente do carro (V1) a ocupar a via.
5.- Concluída a indicação das concretas passagens, passamos, de seguida à sua análise e, bem assim, à indicação da decisão que deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
6.- Com o devido respeito, o que é suposto pedir-se ao Tribunal é que este, com razoabilidade, relacione os elementos objetivos, enquanto tais, com os depoimentos testemunhais e que, de seguida e ponderadamente, decida.
7.- Vejamos, então, o que é e há para ponderar.
Só a BB, o A. e a companheira do A. (esta com menos rigor) afirmam ter assistido ao evento. Dai que em matéria de versões salientemos apenas as seguintes:
7ª.1 - Versão do A. - que estava com o seu V1 imobilizado quando foi embatido pelo pela frente do V2;
7ª.2 - Versão da Ré – contestação – artigos 19º a 21º - (19) donde consta que “no momento em que a BB se preparava para vencer o espaço situado em frente da saída do já referido parque de estacionamento localizado à sua direita, (20) a condutora do veículo seguro na Ré viu surgir diante de si o veículo do A. que, repentina e inusitadamente, penetrou com a frente no interior da hemi-faixa por onde aquela seguia. (21º) Surpreendida pela manobra incauta e imprevista do A., a condutora do veículo seguro na Ré nada pôde fazer para evitar o embate da frente do que conduzia com a lateral dianteira do que do que era tripulado por aquele (A.)”.
7ª.3 - Versão da condutora do V2 – BB - No essencial, que vinha a descer e ao efetuar a curva – que dista do local da colisão cerca de 25 metros – vê a frente da viatura do A. – inclusive o próprio condutor (A.) – a ocupar-lhe a sua via de circulação.
Assumiu que o piso estava molhado; que travou com força, mas nem assim consegui segurar o seu Clio/V2. Após a travagem perdeu o controlo do V2/seguiu em despiste até embater no V1 (do A.) e capotou!
8.- Sinaliza-se, desde já, que a versão da BB, quanto àquilo que é efetivamente essencial, é absolutamente diversa da vertida nos artigos 16º a 21º da contestação.
9.- Da legenda do croqui consta o seguinte:
Letra N – distância do ponto 2 ao limite de faixa de rodagem 0,70 m;
Letra P - largura da faixa de rodagem 4,80 m;
Letra J - distância do ponto 1 à roda esquerda frente do V1 – 1 mts;
Original do doc. 02 junto com a P.I. (agora a cores) junto pelo A. na 2ª sessão da audiência de julgamento;
Que no momento do evento o piso estava molhado – § 4º da pág. 6 da sentença.
10.- Da análise do doc. 02 (fotografia a cores), facilmente se constata, por aproximação, a distância, em metros, entre o ponto da curva em que a BB começa a ter visibilidade para a saída do parque privado donde o A. pretendia sair.
11.- A testemunha DD – agente da GNR – apontou para 25 metros (da curva até ao local da colisão) e confirmou que o piso estava molhado. Por isso, no mínimo à matéria fáctica constante do 3º do p.i. haveria, por isso, que ter respondido “provado apenas que o piso estava molhado”.
Por outro lado,
12.- Apesar de não apurado, é absolutamente óbvio que o alcance visual para a BB – da curva que antecede o concreto local de saída do V2 do A. (local de colisão entre o V1 e V2) é, de facto, de cerca de 25 metros de distância.
13.- A BB repete, várias vezes, que quando avista o V1/do A., este já tem a frente metida na via; que até já via o condutor; repete igualmente, várias vezes, que travou, mas que não conseguiu parar o carro; que o piso estava molhado, orvalho e que não circulava a mais de 50 km/hora.
Havia, por isso, que ter dado como provado que a BB, quando acionou os travões circulava a 50 km/hora.
14.- Circular a descer em via com inclinação superior a 3%, avistar o V1 com a frente toda na via, já tinha alcance visual para o seu condutor travar “com força”, mas não conseguir segurar o V2 e embater com este contra a frente do V1 consubstancia condução ilícita, porque violadora dos artigos 24.º e 25.º do C.E.
15.- A ponderação da factualidade supra enunciada deveria ter conduzido a que o Tribunal tivesse dado como não provada a seguinte matéria assente:
- 9). … a partir de “seguindo a sua tripulante (BB) atenta à sua condução, à via e ao demais trânsito” (é, passe a expressão, a própria BB a dizer que quando está a concluir a curva, a frente do V1 já estava toda na via, até já conseguia ver o condutor);
16.- Concluir no sentido de que “A condutora do LE (V2) foi surpreendida pela manobra incauta e imprevista do autor, sem nada poder fazer para evitar o embate da frente do que conduzia com a lateral dianteira do que que era tripulado por aquele”, consubstancia erro notório na apreciação da prova difícil de entender… Ninguém o disse, nem é verosímil.
17.- Havia, por isso, que ter dado como provada, com alguns ajustamentos, a matéria não provada vertida no último § da pág. 5, a saber:
17ª.1 - “- Que no momento do embate chovesse intensamente –> deveria ter-se dado como provado que no momento do embate chovia ou, no mínimo, que o piso estava húmido.
17ª.2 - Que o autor se tivesse aproximado lentamente da saída do parque e olhado para a esquerda (...) e que tivesse parado com a roda da frente em cima da linha delimitadora da via;
17ª.3 - Que previamente à colisão, a condutora do V2/LE conduzisse distraída e a uma velocidade de mais de 50 km/hora, excessiva, dado o estado do tempo e as concretas condições do local – a esta matéria o Tribunal devia ter dado como provado que previamente à colisão, a condutora do V2/LE conduzia distraída e a uma velocidade de cerca de 50 km/hora, excessiva, dado o estado do tempo, do piso e as concretas condições do local.
18.- Para justificar a convicção subjacente à matéria erradamente assente o Tribunal fez constar o seguinte:
- “Todavia, a participação não identifica qualquer testemunha presencial, no entanto, do croquis tendo em conta a largura da faixa de rodagem e os pontos fixos assinalados podemos com meridiana segurança e certeza concluir que a versão da ré é mais consentânea e plausível com as características do local onde o acidente se verificou e, por conseguinte, com a prova produzida.”.
19.- Esta conclusão é incorreta. Vejamos:
Há duas versões essenciais – a 1ª - do A. - que alega estar a aceder à via, proveniente do parque privado. Porque constatasse o aparecimento do V2, parou com a roda da frente em cima da linha delimitadora da via e a 2ª - da BB - que diz que quando a avista a frente do V1 já se encontra na sua via de circulação, que trava com força, mas que não consegue imobilizar o V2.
Embate com a frente do seu V2 contra a frente do V1 e empurra-o para trás, capota e vai parar ligeiramente abaixo – tudo conforme resulta do croqui – pág. 4 do doc. 01, junto aos autos.
Continuando,
a pág. 7 da sentença o Tribunal fez constar o seguinte: …quando desfez a curva à direita que antecede a saída do parque de estacionamento, de forma repentina viu surgir à sua frente a viatura do autor e a ocupar parte da via e, apesar de ter tendo travado a fundo, o veículo que conduzia deslizou de traseira e não tendo segurado a mesma apesar de circular a uma velocidade que não excedia os 50 km/h, em consequência, da estrada se apresentar molhada e da inclinação da via de circulação.
Como é que é possível concluir nos termos expostos quando é a exatamente a BB a dizer que quando faz a curva já vê a frente do V1 na via, que já vê, inclusive, o condutor!? O que é que falhou? Porque é que o Tribunal dá como provada uma dinâmica diversa daquela que a testemunha BB declara?!
20.- Por outro lado, dizer “que o local do embate das viaturas ocorreu no ponto indicado pela condutora do V2” é, desde logo, não constatar o óbvio – é que a BB declarou, repetidamente, realidade completamente diversa do que terá dito ao agente que, à data do evento, recolheu as suas declarações.
21.- Visualizar a frente do V1, toda ela na sua via de circulação, e até já ter alcance visual para o seu condutor, é objetivamente incompatível com a distância referida na letra N – 0,70 mts. O A. Não se intromete inopinadamente na marcha da BB - ser verdadeira a sua versão da dinâmica do evento, ele (o V1/A.) já lá estava.
22.- Por último, o Tribunal deu como provado o facto 8 – “Devido ao sinistro o Autor ficou impedido de utilizar o V1. Ora dando o facto supra como provado é objetivo que havia que ter dado como provado que a falta do V1 lhe retirou liberdade de movimento – situação que lhe causou transtorno.
23.- Quanto ao direito – conforme alegado supra, a conduta estradal da BB é objetivamente violadora do nº 1 do art.º. 24.º e do nº 1 do art.º. 25.º - als. c), h) e j) do C. E.
24.- Na pág. 4 da sentença o Tribunal deu como provado o seguinte:
- “Da produção de prova resultaram demonstrados e com interesse para a presente decisão os seguintes factos:
1.- O Autor conhecedor do local e frequentador do Café, sito nas proximidades efetuava a manobra de saída do parque de estacionamento e pretendia circular em direção a ... e a condutora do V2 provinha de ... e desejava prosseguir a sua marcha com o mesmo sentido de marcha (resposta positiva conjunta aos pontos 7 e 8 da petição inicial).”
25.- O Tribunal consegue “extrair” do depoimento da BB realidade diversa daquela que ela reportou e rejeita a dinâmica do evento indicada pelo A. – quando a sua versão traduz a manobra que é suposto efetuar todo aquele que quisesse (ou queira) levar a cabo a manobra que o A. queria ter feito.
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A Ré respondeu ao recurso, batendo-se pela sua improcedência e pela consequente confirmação da sentença recorrida, concluindo nesse sentido.
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O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo e assim recebido nesta Relação, que o considerou corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II.- Das questões a decidir
O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art. ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente.
Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC).
Neste pressuposto, as questões que, neste recurso, importa apreciar e decidir são as seguintes:
1.- da impugnação da decisão da matéria de facto quanto: (i) aos factos provados com os n.ºs 3, 9, 10, 11 e 12; (ii) aos factos não provados das alíneas a), b), c) e f);
2.- da consequência da decisão do ponto 1 para a definição do direito aplicável ao caso quanto: (i) à responsabilidade pela produção do acidente de viação dos autos; (ii) à fixação da indemnização a arbitrar ao Apelante, caso aquela responsabilidade seja atribuída à condutora do veículo seguro na Apelada.
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III.- Da Fundamentação
III.I.- Na sentença proferida em 1.ª Instância e alvo deste recurso foram considerados provados os seguintes factos:
A.- A Ré tem atualmente a denominação “A.... – SUCURSAL EM PORTUGAL, com o N.I.P.C. ....
B.- No dia 12-09-2022, cerca das 19 horas, na Rua ..., na freguesia ... e ..., concelho de Marco de Canaveses, ocorreu um sinistro em que foram intervenientes os veículos com as matrículas e condutores abaixo indicados:
- ..-..-XF (V1), ligeiro de passageiros, marca Ford, modelo ..., propriedade do Autor e por si conduzido; e,
- ..-..-LE (V2), ligeiro de passageiros, marca Renault, modelo ..., propriedade de EE e conduzido por BB.
C.- A responsabilidade sinistral da viatura com a matrícula ..-..-LE, na data do acidente, estava transferida para a ré através da apólice nº. ....
D.- A ocorrência do sinistro descrito em b. foi comunicada à Ré A....
E.- No local do sinistro, no sentido ... – ..., a via configura uma reta com inclinação descendente (com uma inclinação superior a 3%), havendo habitações de ambos os lados da via, que a ladeiam e se erguem à face da estrada, um café e sinalização a proibir a circulação a mais de 50 km/hora.
F.- Por acordo, o Autor e a Ré aceitam que o valor venal da viatura à data do sinistro era de 3.250 € (três mil duzentos e cinquenta euros) e que o salvado era de 288 € (duzentos e oitenta e oito euro).
1.- O Autor, conhecedor do local e frequentador do Café sito nas proximidades, efetuava a manobra de saída do parque de estacionamento e pretendia circular em direção a ... e a condutora do V2 provinha de ... e desejava prosseguir a sua marcha com o mesmo sentido de marcha.
2.- O lado direito da via para quem circula com o sentido de marcha do V2, descendente, é antecedido de uma curva à direita, com elevada dificuldade de visualização para a saída do parque de estacionamento aí existente.
3.- Em consequência do embate o V1, este veículo recuou para trás e contra o pilar do muro aí existente.
4.- O veículo do autor (V1) sofreu danos na pintura, na chapa, nos órgãos elétricos e mecânicos, com especial incidência na parte frontal e lateral direita.
5.- Os danos descritos em 4. foram peritados pela companhia de seguros do Autor, tendo a reparação sido orçada em 14.365,69 € e, por isso, foi desaconselhada a reparação e em face da declaração de perda total o autor procedeu ao seu abate.
6.- A viatura do Autor era da marca Ford, modelo ..., do ano de 2004 e havia percorrido 217.589 km, tendo sido adquirida há 6 anos.
7.- A viatura do Autor estava em bom estado ao nível dos estofos e pintura.
8.- Devido ao sinistro o Autor ficou impedido de utilizar o V1.
9.- O veículo seguro na Ré circulava no sentido descendente da via, a uma velocidade não superior a 50 km/h, integralmente pelo interior da hemi-faixa de rodagem reservada ao seu sentido de trânsito, seguindo a sua tripulante atenta à sua condução, à via e ao demais trânsito.
10.- E no momento em que se preparava para vencer o espaço situado em frente da saída do referido parque de estacionamento à direita, a condutora do veículo seguro na ré viu surgir diante de si o veículo do autor que, repentina e inusitadamente, penetrou com a frente no interior da hemi-faixa por onde aquela seguia.
11.- A condutora do LE (V2) foi surpreendida pela manobra incauta e imprevista do autor, sem nada poder fazer para evitar o embate da frente do que conduzia com a lateral dianteira do que era tripulado por aquele.
12.- O embate ocorreu no interior da hemi-faixa reservada ao sentido de trânsito do veículo seguro na Ré.
13.- A carta junta como documento n.º 3 remetida pela companhia de seguros do Autor, para a qual se encontrava transferida a responsabilidade sinistral do veículo LE, concluiu que o responsável pela eclosão do acidente foi o autor.
14.- No entretanto, o autor adquiriu outra viatura em 2.ª mão que ainda está a pagar.
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III.II.- Na mesma sentença não foram considerados provados os seguintes factos:
a.- Que no momento do embate chovesse intensamente.
b.- Que o autor se tivesse aproximado lentamente da saída do parque e olhado para a esquerda (...) e que tivesse parado com a roda da frente em cima da linha delimitadora da via.
c.- Que, previamente à colisão, a condutora do V2/LE conduzisse distraída e a uma velocidade de mais de 50 km/hora, excessiva, dado o estado do tempo e as concretas condições do local.
d.- Que o autor tivesse ficado sem proceder à aquisição de outra viatura.
e.- Que os danos descritos em 4. tivessem sido oportunamente peritados pela Ré.
f.- Que o facto de ter ficado impossibilitado de utilizar o V1 tivesse retirado a liberdade de movimento ao autor – situação que lhe tem causado muito incómodo.
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III.III.- Do objeto do recurso
1.- Da impugnação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida
A apelação versa, desde logo, sobre a decisão da matéria de facto contida na sentença recorrida. Designadamente, sobre os factos provados com os n.ºs 3, 8, 9, 10, 11 e 12 e os não provados das alíneas a), b), c) e f).
Analisemos, pois, a pretensão do Apelante.

.- Facto provado n.º 12
Começamos a análise da impugnação quanto ao facto provado n.º 12, por se tratar de facto nuclear na dinâmica do acidente de viação dos autos e que servirá de pressuposto de apreciação dos restantes pontos da matéria de facto impugnada respeitante a esse tema.
O facto em causa é do seguinte teor: “12.- O embate ocorreu no interior da hemi-faixa reservada ao sentido de trânsito do veículo seguro na Ré.
Como se vê, respeita ao local em que se deu o embate, situando-o em plena hemi-faixa de rodagem pela qual circulava o veículo com a matrícula ..-..-LE, seguro na Apelada. Contrapõe-se à versão que, a propósito, fora expendida pelo Apelante, assim como que o embate se deu, não na hemi-faixa de rodagem, mas antes desta, designadamente, antes da linha delimitadora da via, para quem, como ele, saía do parque de estacionamento à direita desta.
Ora, analisada a prova e devidamente conjugada tal prova com os demais factos relativos ao acidente dos autos, bem como com as regras da experiência da vida e da normalidade das coisas, forçoso é concluir: (i) que era impossível que o embate dos autos se tivesse dado no local onde o Apelante diz que se deu; (ii) que o local do embate só podia ter sido aquele que consta do facto provados.
Vejamos.

As fotografias do local do embate que constituem o documento n.º 2 junto com a petição inicial e o documento com o mesmo número junto com a contestação retratam com clareza esse mesmo local.
Como delas se retira, a via, considerando o sentido de marcha do veículo seguro na Apelada, é ladeada pela direita por um muro relativamente alto que se prolonga exatamente até à saída do parque de estacionamento de onde o Apelante saíra antes do embate.
Ora, da simples existência deste muro resulta manifesta a impossibilidade de o embate se ter dado na rampa de acesso à via para quem provinha do parque, antes da linha delimitadora desta. Se o veículo do Apelante estivesse de facto nessa rampa, antes daquela linha delimitadora, e se o veículo seguro na Apelada tivesse ido na sua direção, era inevitável que, antes de o atingir, tivesse colidido com o muro e que, mercê dessa colisão, tivesse adotado uma dinâmica de marcha totalmente distinta daquela que efetivamente tomou.
Acresce que o veículo seguro na Ré, mercê do embate, sofreu estragos (além do mais) na lateral esquerda da frente (como se infere do documento n.º 4 junto com a contestação, que constitui um relatório de peritagem dos danos sofridos por aquele veículo, elaborado pela seguradora B..., terceira desinteressada no desfecho deste processo). Tais estragos, como salienta a Apelada na sua resposta ao recurso, só são compatíveis com um embate estando o veículo do Apelante a ocupar parcialmente a hemi-faixa de rodagem pela qual circulava a condutora do veículo seguro na Apelada. Isto, na certeza de que, estando o veículo do Apelante imobilizado antes da via, na referida rampa, face às características desta, dificilmente seria atingido ou, pelo menos, não o seria naquela parte.
De referir, ainda, que, com o embate, o veículo seguro na Apelada, “capotou” (como confirmado pela testemunha BB, sua condutora) e ficou imobilizado em plena via, ainda que com a frente relativamente próxima do muro à direita, considerando o seu sentido de marcha (como resulta do croquis do acidente que constitui o documento n.º 1, cujo teor foi confirmado em julgamento pelo agente que o elaborou, a testemunha DD). Tal dinâmica do acidente é, também ela, compatível com a presença do veículo do Apelante já em plena via, na certeza de que só assim é que, não só constituiu obstáculo impeditivo de o veículo seguro na Apelada prosseguir a sua marcha normal, como um obstáculo “parcial” à linha de marcha do veículo seguro na Apelada, que fez com que este capotasse.
Finalmente, a testemunha BB, condutora do veículo seguro na Apelada e parte desinteressada no desfecho da causa (já fora indemnizada dos prejuízos que sofreu com o acidente dos autos pela própria seguradora do Apelante), confirmou que o embate se deu em plena via. Segundo a própria, “ia na estrada principal”, altura em que se “deparou com uma viatura a sair do parque de estacionamento privado, com a frente toda já”; com “a frente metade já cá fora a ocupar a via”.
Ou seja, da prova produzida, resultou claro que o embate se deu em plena via, mais precisamente, em plena hemi-faixa de rodagem pela qual circulava o veículo seguro na Apelada.
Nenhum reparo merece, por isso, a decisão recorrida que assim o concluiu, improcedendo a impugnação do Apelante quanto a este facto.

.- Facto provado n.º 3
Este facto é do seguinte teor: “3.- Em consequência do embate o V1, este veículo recuou para trás e contra o pilar do muro aí existente”.
Lida a motivação do recurso do Apelante, não é propriamente clara a razão por que impugna o facto em questão. Isto, tanto mais que tal facto está em linha com aquilo que o próprio alegara na petição inicial (v. o art.º 10.º deste articulado). Como quer que seja, tudo indica que, para o Apelante, o facto em apreço não deveria ter sido considerado provado.
Discorda-se, contudo, de tal posição, na certeza de que, com uma ligeira retificação que se impõe fazer do seu teor, a realidade subjacente ao facto resultou demonstrada pelo teor do croquis que constitui o documento n.º 1 junto com a petição inicial (croquis esse confirmado em julgamento, repita-se, pela testemunha DD, que o elaborou).
Com efeito, o croquis retrata a posição dos veículos após o embate, sendo que o veículo do Apelante tem a sua parte lateral direita encostada ao pilar do muro que delimita o parque de estacionamento donde proviera tal veículo. Esta situação do veículo resulta, quer do próprio desenho da situação feito pela dita testemunha, quer das medições que nele foram assinaladas tendo por referência o ponto fixo inalterável nele assinalado sob a letra A.
Esta posição do veículo do Apelante é compatível com uma projeção decorrente de um embate do veículo seguro na Apelada na parte lateral da frente daquele, estando o mesmo, como se viu, com a frente em plena via pública.
Que o veículo do Apelante, com o embate, foi direcionado contra o pilar do muro ali existente é algo, pois, plenamente provado.
Note-se, contudo, que, no facto em questão, foi dito que, mercê do embate, o veículo do Apelante “recuou para trás”. Não se nos afigura, contudo, que tal seja a melhor forma de descrever o realmente sucedido com o veículo do Apelante, na certeza de que, tendo este sido embatido na lateral esquerda da sua frente, um tal “recuo para trás” não parece consentâneo com a normalidade das coisas – um “recuo” significa ‘mover-se para trás’ e um movimento desta ordem pressuporia que o embate se tivesse dado entre as “frentes” de ambos os veículos, o que, como se viu, não ocorreu.
Impõe-se, pois, por forma a retratar mais fielmente o ocorrido, que a redação do facto em apreço seja alterada de modo a que o seu teor passe a ser o seguinte: “Em consequência do embate, o V1 foi projetado contra o pilar do muro aí existente”.
É o que se decide a propósito da impugnação do Apelante nesta parte.

.- Facto provado n.º 9
Neste facto, diz-se o seguinte: “9.- O veículo seguro na Ré circulava no sentido descendente da via, a uma velocidade não superior a 50 km/h, integralmente pelo interior da hemi-faixa de rodagem reservada ao seu sentido de trânsito, seguindo a sua tripulante atenta à sua condução, à via e ao demais trânsito.
Lida a motivação do recurso do Apelante, vê-se que, do que consta do facto, este insurge-se apenas contra os períodos (i) “a uma velocidade não superior a 50km/h” e (ii) “seguindo a sua tripulante atenta à sua condução, à via e ao demais trânsito”. Na sua perspetiva, o primeiro deveria ser alterado de modo a dizer-se que a condutora do veículo seguro na Apelada circulava “à velocidade de 50Km/h”, ao passo que o segundo deveria ser incluído nos factos não provados.
Carece o Apelante, todavia, de razão, nenhum fundamento havendo para que se altere o teor do facto em questão.

Assim, e quanto à velocidade, chancelar-se que o veículo seguro na Apelada circulava à exata velocidade de 50km/h pressupunha a demonstração clara e inequívoca de que era essa a velocidade a que o mesmo circulava. A prova produzida em julgamento, contudo, não o permite.
Com efeito, a única testemunha que, com relevo, depôs a esse respeito foi a testemunha BB, condutora do veículo seguro na Apelada, que afirmou que “não vinha a mais de 50km/h” e que “ia ou a 50 ou a menos, a mais não ia”. Ou seja, depôs no sentido que consta do facto tal como redigido em 1.ª instância.
Não há, também, conhecimento de elementos objetivos como vestígios de rastos de travagem ou fragmentos de componentes dos veículos na via que, conjugados com os demais factos conhecidos ou a experiência comum, permitissem inferir qual era, na realidade, a exata velocidade a que o veículo seguia,
Finalmente, apesar da aparatosa manobra do veículo seguro na Apelada após o embate (“capotamento”), o certo é que, como resulta do croquis do sinistro confirmado em julgamento pelo agente da GNR que o elaborou, o veículo não ficou, nas palavras da testemunha, “muito longe do outro veículo”, o que sugere uma circulação a baixa velocidade.
Não há, pois, fundamento para alterar o segmento do facto em apreço no sentido preconizado pelo Apelante.

Quanto ao facto de a condutora do veículo seguro na Apelada conduzir com atenção às circunstâncias da via e do tráfego que se fazia sentir, trata-se de realidade resultante do seu próprio depoimento como testemunha.
Com efeito, segundo a própria, quando, depois de desfazer a curva e entrar na reta onde se deu o embate, viu o veículo do Apelante na via, “travou bastante”, embora não tenha conseguido “segurar o carro”.
Esta reação, associada à natureza súbita e repentina, não só da manobra efetuada pelo Apelante, como, também, do momento em que a presença deste na via se tornou visível para a testemunha, é consentânea com o facto de esta conduzir atenta às circunstâncias da via e ao tráfego que nela se fazia sentir. Tanto assim foi que, logo que teve a oportunidade de ver o veículo do Apelante, travou, o que certamente não teria ocorrido se conduzisse o seu veículo sem atenção.
Nenhuma censura merece, por conseguinte, a consideração como provado de tudo quanto consta do facto em apreço.
Improcede, consequentemente, a impugnação do Apelante também nesta parte.

.- Facto provado n.º 10
O facto n.º 10 tem o seguinte teor: “10.- E no momento em que se preparava para vencer o espaço situado em frente da saída do referido parque de estacionamento à direita, a condutora do veículo seguro na ré viu surgir diante de si o veículo do autor que, repentina e inusitadamente, penetrou com a frente no interior da hemi-faixa por onde aquele seguia.
Para o Apelante, o facto em apreço não teria resultado provado, uma vez que: não chegou a entrar com a frente do veículo no interior da via; não foi no exato momento em que a condutor do veículo seguro na Ré se preparava para vencer o espaço em frente ao parque de estacionamento de onde provinha o seu veículo que efetuou a referida manobra.
Ora, que o Apelante entrou efetivamente com a frente do veículo que conduzia na via pública, designadamente na hemi-faixa de rodagem direita, atento o sentido de marcha do veículo seguro na Ré, é já um dado adquirido, valendo aqui tudo quanto, a esse respeito, se disse já a propósito do facto provado n.º 12.
Já quanto à parte restante do facto em apreço, afigura-se-nos que assiste alguma razão ao Apelante. E isto, com base no próprio depoimento da condutora do veículo seguro na Apelada, a testemunha BB.
Na verdade, a testemunha, no decurso do seu depoimento, referiu sempre que viu o veículo do Apelante logo que saiu da curva que precede a reta onde ocorreu o embate. Segundo a própria, viu o veículo do Apelante “mal faz a curva”; “quando termina a curva é que consegue ver o senhor AA”.
Outrossim, entre a curva e o local do embate distam, como referido pela testemunha DD, cerca de 25 metros.
Finalmente, tal como se fez constar na sentença recorrida, a condutora do veículo seguro na Apelada travou “a fundo”, o que fez com que o veículo “deslizasse”, dando-se, então, o embate.
Da prova produzida afigura-se-nos, assim, não haver elementos para que, de forma segura, nos permitam concluir que a referida condutora tenha visto surgir diante de si o veículo do Apelante no exato momento em que se preparava para vencer o espaço em frente da saída do parque de estacionamento, mas apenas que tal ocorreu quando se aproximava desse espaço.
Reformula-se, pois, a redação do facto em apreço nos seguintes termos: “No momento em que se aproximava do espaço situado em frente da saída do referido parque de estacionamento à direita, a condutora do veículo seguro na ré viu surgir diante de si o veículo do autor que, repentinamente, penetrou com a frente no interior da hemi-faixa por onde aquele seguia.

.- Factos provado n.º 11
Este facto é do seguinte teor: “11.- A condutora do LE (V2) foi surpreendida pela manobra incauta e imprevista do autor, sem nada poder fazer para evitar o embate da frente do que conduzia com a lateral dianteira do que era tripulado por aquele”.
Segundo o Apelante, o facto em apreço não teria resultado provado, no essencial, pelas mesmas razões que considerara não provado o facto n.º 10.
Mas sem razão.
Como se viu já, o veículo conduzido pela testemunha BB circulava na hemi-faixa direita da via em que seguia. O veículo do Apelante, por seu turno, aquando do embate, tinha a sua frente nessa mesma hemi-faixa de rodagem. Finalmente, com o embate, aquele primeiro veículo capotou. Temos, pois, o cenário de um acidente só compatível com o embate entre a frente do veículo conduzido pela testemunha com a lateral direita do veículo do Apelante.
Acresce que, como se viu, a referida testemunha, logo que se apercebeu da presença do veículo do Apelante, travou, mas, apesar disso, dada a natureza súbita e repentina dos acontecimentos, não logrou imobilizar a viatura e evitar o embate.
O facto em apreço está, pois, relativamente a tudo o que dele consta, provado, pelo que improcede a apelação também nesta parte.

.- Do facto não provado da alínea a)
Neste facto diz-se o seguinte: “a.- Que no momento do embate chovesse intensamente”.
O Apelante não põe em causa que, do julgamento, não tenha resultado provado que, aquando do sinistro, “chovesse intensamente”. O que pretende é a sua inclusão nos factos provados depois de reformulada a sua redação nos seguintes termos: “o piso estava molhado” (v. conclusão 11.º do seu recurso).
Entendemos que com razão.
Na verdade, que o piso da via estava molhado foi algo que resultou pacífico da prova produzida em julgamento. A testemunha BB referiu que o “tempo estava húmido”, ao passo que a testemunha DD referiu que o piso da via estava “molhado”.
O “piso da via estar molhado” é uma realidade de facto contida no facto “chover intensamente no momento do evento”, que fora alegado pelo Apelante no art.º 3.º da petição inicial.
Mesmo que assim não fosse, sempre se trataria de facto instrumental resultante da instrução da causa que, nos termos do art.º 5.º, n.º 2, al. a) do CPC, pode ser considerado pelo tribunal, independentemente da sua alegação.
Trata-se, finalmente, de facto que, dizendo respeito ao estado da via no momento do embate, é relevante para a determinação da responsabilidade pela produção do acidente e, por conseguinte, útil para a decisão da causa.
Determina-se, pois, a sua reformulação no sentido proposto pelo Apelante, isto é, que, no momento do acidente, o piso da via estava molhado, e a sua inclusão no elenco de factos provados sob o n.º 12.1.
Procede, pois, nesta parte, a impugnação do Apelante.

.- Dos factos provados das alíneas b. e c.
O teor destes factos é o seguinte:
.- “b.- Que o autor se tivesse aproximado lentamente da saída do parque e olhado para a esquerda (...) e que tivesse parado com a roda da frente em cima da linha delimitadora da via”;
.- “c.- Que, previamente à colisão, a condutora do V2/LE conduzisse distraída e a uma velocidade de mais de 50 km/hora, excessiva, dado o estado do tempo e as concretas condições do local.
A pretensão do Apelante é no sentido da sua inclusão no elenco de factos provados.
Trata-se aqui, contudo, de factos que estão em direta oposição com os factos provados com os n.ºs 9 a 12, cuja efetiva verificação foi, em face da prova produzida em julgamento, reafirmada atrás.
Seria o bastante para a sua consideração como factos não provados.
Sem prejuízo, sempre se diga que em julgamento não foi produzido um único elemento de prova suscetível de atestar tais factos, os quais, no essencial, materializavam a versão do acidente de viação dos autos alegada pelo Apelante na petição inicial.
Na verdade, as testemunhas FF (filha da testemunha CC, companheira do Apelante) e GG (amiga do Apelante desde os tempos da escola) não assistiram ao acidente, limitando-se a primeira, como expressamente reconhecido pela própria, a narrar “o que lhe contaram” e a segunda a descrever o cenário com que se deparou depois de o acidente já ter ocorrido.
A testemunha CC, por seu turno, companheira do Apelante, apesar de supostamente ter assistido ao acidente, apresentou uma versão dos acontecimentos totalmente desmerecedora de credibilidade.
Assim, segundo a própria, o Apelante estava no carro à sua espera, numa altura em que (a testemunha) tinha ido à casa do seu irmão. Quando saiu desta casa, viu a carrinha do companheiro com a frente ligeiramente voltada para a estrada. Seguiu a sua marcha, passando, entretanto, um carro para baixo. Passado um segundo, este bate no carro do companheiro.
Acrescentou que este último veículo bateu no do seu companheiro mesmo de frente, na matrícula para trás e precisou que não lhe bateu na roda, bateu-lhe de frente. Por isso, o veículo do companheiro ficou com a frente toda metida para dentro e que foi projetado contra um pilar, ao passo que o dela ficou capotado na frente da carrinha.
Referiu, ainda, que a frente do carro do companheiro estava para trás da lista branca.
Ora, desde logo, não é, no mínimo, normal que alguém que, como a testemunha, estaria a sair da casa de um familiar, tivesse o cuidado de analisar a situação em que estava o veículo do companheiro a ponto de poder dizer que estava com a frente ligeiramente voltada para a estrada e, inclusive, para trás da linha branca (note-se que a testemunha estaria, de acordo com a sua versão, do outro lado da estrada).
Depois, a testemunha foi insistente quanto ao facto de o embate ter sido como que frontal, o que, por todas as razões já acima expostas, era impossível que tivesse ocorrido.
Finalmente, a testemunha foi seletiva a descrever os danos que o veículo do companheiro sofreu, limitando-os aos da frente - segundo a própria, a frente do veículo do companheiro ficou metida para dentro -, quando, como se viu, o documento n.º 4 junto com a contestação assinala a existência de danos nas laterais do veículo.
Ou seja, um depoimento sem credibilidade e relevo probatório.
Os factos em apreço, além de contrariados pelos factos inseridos no elenco de factos provados sob os n.ºs 9 a 12, não foram, pois, sustentados em prova cabal, nenhuma razão havendo para a sua consideração como provados, como pretendido pelo Apelante.
Improcede, pois, a impugnação deste também nesta parte.

.- Do facto não provado da alínea f)
Este facto é do seguinte teor: “f.- Que o facto de ter ficado impossibilitado de utilizar o V1 tivesse retirado a liberdade de movimento ao autor – situação que lhe tem causado muito incómodo.
Segundo o Apelante, este facto devia ter sido considerado provado porque também o foi o facto provado n.º 8. Isto é, a prova deste acarretaria a prova daquele.
A este respeito, independentemente do sentido da prova produzida em julgamento quanto à matéria em apreço, há que dizer que a mesma deve ser excluída do acervo de factos provados e não provados.
Na verdade, o que aqui está em causa é a decisão da matéria de facto. Nessa tarefa, o que importa apurar é exclusivamente factos materiais e concretos, enquanto acontecimentos ou realidades do mundo exterior. Nela não cabem, pois, juízos conclusivos ou de valoração normativa, os quais, a relevar, relevam sim, mas em sede de subsunção daqueles factos ao direito aplicável.
Ora, a alínea f) em apreço contém, não uma realidade do mundo exterior, mas um juízo marcadamente conclusivo. Saber se a impossibilidade de utilizar o veículo “retirou liberdade de movimento do autor” e se esta situação lhe causou “muito incómodo” é, não descrever uma ocorrência do mundo exterior, mas formular uma conclusão despojada de factos. Aliás, uma conclusão vaga e genérica, na qual tudo cabe e, por conseguinte, da qual não se pode retirar efeito útil.
Trata-se, pois, de uma alínea que não reúne os requisitos para que, à luz do disposto no n.º 4 do art.º 607.º do CPC, possa ser vista como contendo um “facto” juridicamente relevante, a ponto de dever integrar o acervo de factos provados ou não provados.
Determina-se, pois, a sua exclusão, daí resultando prejudicada a apreciação da impugnação da Apelante no que a ele diz respeito.
*
Em suma, no que diz respeito à impugnação da decisão em matéria de facto, impõe-se:
i.- reformular o facto provado n.º 3, de modo a que deste passe a constar o seguinte: “Em consequência do embate, o V1 foi projetado contra o pilar do muro aí existente”;
ii.- reformular o facto provado n.º 10, de modo a que deste passe a constar o seguinte: “No momento em que se aproximava do espaço situado em frente da saída do referido parque de estacionamento à direita, a condutora do veículo seguro na ré viu surgir diante de si o veículo do autor que, repentinamente, penetrou com a frente no interior da hemi-faixa por onde aquele seguia.”;
iii.- incluir no elenco de factos provados sob o n.º 12.1 a matéria constante da alínea a) dos factos não provados, alterando-se a sua redação nos seguintes termos: “O piso da via estava molhado”;
iv.- excluir a alínea f) do conjunto de factos não provados.
***
2.- Da responsabilidade pela produção do acidente de viação dos autos
A presente ação funda-se na responsabilidade civil por factos ilícitos, emergente de acidente de viação.
O princípio geral da responsabilidade civil por factos ilícitos encontra-se expresso no artigo 483.º, n.º 1, do Código Civil, que estatui que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
De tal norma resulta que a obrigação de indemnização fundada em responsabilidade por factos ilícitos depende da verificação de vários pressupostos, a saber: o facto, a ilicitude, o nexo de imputação do facto ao lesante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (cfr. Almeida Costa, in «Direito das Obrigações», 9ª edição, Revista e Aumentada, Almedina, 2005, p. 509 e seguintes, Antunes Varela, in «Das Obrigações em Geral», vol. I, 9ª edição, Almedina, 1998, pág. 543 e seguintes e Vaz Serra, in «Requisitos da Responsabilidade Civil», nº 2).
É sobre o lesado que, enquanto facto constitutivo do seu direito (v. art.º 342.º, n.º 1 do Código Civil), e a menos que haja presunção de culpa atendível (v. art.ºs 491.º a 493.º do Código Civil), recai o ónus da prova da culpa do lesante (v. art.º 487.º, n.º 1 do Código Civil).
Esta culpa é apreciada objetivamente e em função de um critério que a própria lei define como sendo o da diligência do bom pai de família, diante das circunstâncias do caso concreto (v. art.º 487.º, n.º 2 do Código Civil).

No caso, aquilo que, relativamente à dinâmica do acidente de viação dos autos, resultou provado com relevo para a decisão da presente questão foi o seguinte.
O acidente envolveu o veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-..-XF, conduzido pelo Apelante e o ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-..-LE, seguro na Apelada.
A via configura, no local do acidente, uma reta com inclinação descendente superior a 3%, a velocidade de circulação no local está limitada a 50 km/h e o respetivo piso estava molhado.
A preceder essa reta existe, no sentido ... – ..., que era o sentido de marcha do veículo seguro na Apelada, uma curva à direita.
O Apelante efetuava uma manobra de saída do parque de estacionamento sito à direita da referida reta, pretendendo circular depois em direção a ..., isto é, tomando o mesmo sentido do veículo seguro na Apelada.
As características da referida curva impediam que quem nela circulasse visualizasse o parque de estacionamento de onde provinha o veículo do Apelante.
O veículo seguro na Apelada circulava no sentido descendente da via, a velocidade não superior a 50 km/h, integralmente pelo interior da hemi-faixa direita da via.
No momento em que se aproximava da saída do referido parque de estacionamento, o veículo do Apelante penetrou com a frente no interior da hemi-faixa por onde aquele seguia.
Deu-se, então, no interior da hemi-faixa de rodagem direita da visa, e sem que a condutora deste último veículo o pudesse evitar, o embate.

Perante tais factos, concluímos que a responsabilidade, em termos de culpa, pela produção do acidente de viação dos autos é imputável única e exclusivamente ao Apelante.
Com efeito, este, provindo de prédio particular em direção à via pública, por forma a que, nesta, tomasse a direção ... – ..., estava obrigado: (i) a ceder a passagem aos veículos que já circulassem na via pública (art.º 31.º, n.º 1, al. a) do Código da Estrada); (ii) a abster-se de atos que impedissem o trânsito ou que comprometessem a segurança e a comodidade dos demais utentes da via (art.º 3.º, n.º 1 e 11.º, n.º 2 do Código da Estrada).
Incumbia-lhe, assim, antes de entrar na via em que pretendia passar a circular, certificar-se de que nesta não circulavam outros veículos ou que, circulando, a realização da manobra que pretendia executar não comprometia essa circulação.
O Apelante, contudo, entrou na via quando do local em que o fez se aproximava o veículo seguro na Apelada.
Fê-lo, por outro lado, numa via que, considerando o sentido de marcha do veículo seguro na Apelada, se projetava em plano descendente e com uma inclinação considerável (superior a 3%) e cujo piso estava molhado. O mesmo é dizer que o fez num contexto em que o risco de perda do controle do veículo por quem já circulasse na via em caso de manobra súbita de terceiro era exacerbado.
Finalmente, foi da manobra assim efetuada pelo Apelante que adveio a colisão, o mesmo é dizer que aquela foi causa desta.
Todo o processo causal do acidente de viação dos autos adveio, por conseguinte, da manobra empreendida pelo Apelante, na certeza de que, caso tal manobra não tivesse sido realizada, o acidente de viação dos autos não teria ocorrido.
O Apelante, obrigado que estava a ceder a passagem a quem circulasse na via na qual pretendia passar a circular, entrou nesta última via no momento em que por ela circulava o veículo seguro na Apelada originando, consequentemente, o embate.
Sobre o Apelante recai, assim, o juízo de censura por ter agido como agiu e, consequentemente, a responsabilidade total pela produção do acidente de viação dos autos.

De referir que à condutora do veículo seguro na Apelada não é possível imputar um único facto censurável que permita conjeturar a possibilidade de sequer ter contribuído para a ocorrência do acidente.
Com efeito, circulava, aquando do embate, na hemi-faixa de rodagem destinada ao seu sentido de trânsito (cumprindo o dever previsto no art.º 13.º, n.º 1 do Código da Estrada) e fazia-o a velocidade não superior a 50 Km/h (cumprindo o dever previsto no art.º 27.º, n.º 1 do Código da Estrada).
Por outro lado, ainda que o piso da via estivesse molhado e que a via fosse ladeada de habitações, a velocidade a que seguia, mesmo que, porventura, pudesse coincidir com o limite legal de 50Km/h, não pode ser considerada excessiva para efeitos das alíneas c) e j) do n.º 1 do art.º 25.º do Código da Estrada.
Na origem do acidente de viação dos autos esteve, como se viu, a manobra súbita e repentina do Apelante, provindo de um prédio particular em direção à via pública e, portanto, a circunstâncias estranhas ao estado e características da via naquele momento.
O mesmo é dizer que as circunstâncias causais do acidente dos autos não radicam em alguma daquelas que constituem o âmbito de proteção ou de tutela legal deste art.º 25.º do Código da Estrada.
Qualquer que fosse a velocidade do veículo seguro na Apelada, sempre o processo causal do embate teria tido origem na manobra efetuada pelo Apelante e não no modo de circulação do veículo seguro na Apelada.
O sinistro dos autos deveu-se, pois, e em suma, única e exclusivamente a ato ilícito e culposo do Apelante.
E devendo-se a ato ilícito e culposo deste, ficam por demonstrar todos os requisitos de cuja verificação dependia, à luz do citado art.º 483.º, n.º 1 do CC, a obrigação de indemnizar a cargo da Apelada, indemnização essa cuja fixação se mostra, pois, naturalmente prejudicada.
Improcede, consequentemente, o recurso interposto pelo Apelante, com a consequente confirmação da sentença recorrida.
***
Porque vencido no recurso, suportará o Apelante as custas da apelação (art.ºs 527.º e 529.º do CPC).
***
IV.- Decisão
Termos em que acordam os Juízes da 3.ª Secção do Tribunal da Relação do Porto em julgar improcedente o presente recurso de apelação e, consequentemente, confirmar, na íntegra, a sentença recorrida.
Custas pelo Apelante.
Notifique.
***
Porto, 26-06-2025
(assinado eletronicamente)
Os Juízes Desembargadores,
José Manuel Correia
António Paulo Vasconcelos
Ana Luísa Loureiro