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EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR DA PETIÇÃO
INTERPRETAÇÃO DE SENTENÇA
TUTELA JURISDICIONAL
Sumário
Sumário [Da responsabilidade da relatora ] 1.As decisões judiciais – tal como os articulados/requerimentos das partes – enquanto atos jurídicos, devem ser objeto de interpretação (art. 295.º do Cód. Civil), o que significa, desde logo, que essa declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (art. 238.º, n.º1 do mesmo diploma) 2. Decorrendo do segmento dispositivo da sentença que o mesmo se resume ao indeferimento liminar da petição inicial em que o devedor se apresentou à insolvência com base na verificação de uma exceção dilatória, o caso julgado, sendo evidente, até perante a fundamentação exposta, da qual o segmento dispositivo constitui o corolário lógico, que aquele juízo valorativo se mostra completamente à margem do preceituado no art. 238.º do CIRE (“[i]ndeferimento liminar do pedido de exoneração), preceito que não foi, nem expressa nem implicitamente, convocado para a decisão, não constituindo a ratio decidendi, improcede o recurso de apelação interposto pelo requerente se as razões enunciadas pelo apelante nas alegações de recurso e sintetizadas nas conclusões não são dirigidas à decisão recorrida, cujo mérito não é, de qualquer forma, colocado em crise no recurso, não sendo essas razões suscetíveis de conduzir à alteração do que foi decidido pois o apelante, a propósito da decisão, não suscita ao tribunal de 2.ª instância qualquer questão que incumba apreciar.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
I.RELATÓRIO
(i) FG intentou a presente ação declarativa com processo especial na qual requereu a sua própria insolvência e que lhe seja também concedida a exoneração do passivo restante.
Para o efeito alegou, em síntese, que não dispõe de meios financeiros suficientes para proceder ao pagamento das obrigações que assumiu e que já se mostram vencidas.
Em anexo apresenta a “Listagem Credores”, indicando como credores:
• BCP, S.A. – 120 000 € de maio de 2009;
• BPI S.A. - 130 000,00 € desde janeiro de 2011;
• ISS IP – 3500,00 € desde janeiro de 2011;
• LB UK Limited – 42000,00 € desde maio 2010;
• GE Consumer S.A. – 42000,00 € - desde maio de 2010;
• JC – 15000,00 € - desde dezembro de 2024 [ [1] ];
Requer a final, a concessão do benefício da exoneração do passivo restante.
(ii). Por despacho de 16-03-2025 foi suscitada, para efeitos de contraditório, a questão prévia da eventual exceção de caso julgado, em virtude de o requerente já ter sido declarado insolvente no Juízo de Comércio de Lisboa – Juiz 4, sob o n.º de processo 20011/18.9T8LSB, processo que veio a ser encerrado por insuficiência da massa (art. 230º, nº 1, als. d) e e), do CIRE). Verificando-se também que no referido processo veio a ser proferida decisão final de indeferimento da exoneração do passivo restante.
Por requerimento de 17-03-2025 veio o requerente pronunciar-se como segue:
“(…) vem informar que se endividou mais para fazer face as suas dívidas pois não pode dar a massa e tinha de sustentar a família e os rendimentos não eram suficientes // E por isso acresce os credores” (sic)
(iii) Em 24-03-2025 foi proferida decisão com o seguinte segmento dispositivo:
“Pelo exposto, entendemos que se encontra verificada a exceção dilatória do caso julgado, que é de conhecimento oficioso e insuprível, devendo por isso ser liminarmente indeferida a petição inicial, tudo nos termos conjugados dos artigos 27.º, n.º 1, a) do CIRE, 576.º, n.º 2, 577.º, n.º 1, al. i), 578.º, 580.º e 581.º, todos do Código de Processo Civil.
Custas pelo requerente, sem prejuízo do apoio judiciário – art.º 527.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil.
Valor da ação: € 30.000,01.
Registe e notifique”.
(iv) Não se conformando, o requerente apelou, formulando as seguintes conclusões:
“1.O despacho recorrida viola os princípio do CIRE
2. Pois o recorrente em nada tentou lesar a massa
3. O recorrente não pode entregar algo que não possui
4. O recorrente não se pode aplicar o artº 238º do CIRE
5. O recorrente beneficiou da exoneração, mas foi lhe retirada
6. O recorrente deve ser beneficiada com a exoneração
7. O recorrente não deve ser punida como esta a ser
8. Os 6 anos mencionados no 238º CIRE não são de aplicação a recorrente
9. Pois a sua situação e diferente do mencionado artigo
10. E se é possível nova insolvencia porque não pode ser possível nova exoneração no caso vertente
Nestes termos e nos demais, requer-se a V. Exa que seja revogada o despacho proferido e deverá ser concedida exoneração ASSIM SE FARÁ A ACOSTUMADA JUSTIÇA” (sic).
Cumpre apreciar.
II. FUNDAMENTOS DE FACTO
O tribunal de 1.ª instância considerou que “[c]om relevo para a questão a decidir, estão demonstrados os seguintes factos, com base no alegado na petição inicial, nos documentos juntos a este articulado, e da consulta do processo n.º 20011/18.9T8LSB.
1. A ora requerente apresentou-se à insolvência em 10.09.2018, no âmbito do processo n.º 20011/18.9T8LSB do Juízo de Comércio de Lisboa – Juiz 4.
2. Foi o ora requerente declarado insolvente por sentença de 02.10.2018, transitada em julgado, tendo o processo de insolvência sido encerrado por insuficiência da massa e inicio do período de cessão por decisão judicial proferida em 30.09.2019, também ela transitada em julgado.
3. Ainda nesse processo foi proferida sentença em 14.02.2023, transitada em julgado, onde veio a ser recusada a concessão de exoneração do passivo restante ao devedor pelo incumprimento dos deveres para com a fidúcia.
4.No processo n.º 20011/18.9T8LSB veio o requerente indicar como seus maiores credores:
▪BCP, S.A. – 120 000 € de Maio de 2009;
▪BPI S.A. - 130 000,00 € desde Janeiro de 2011;
▪ISS IP – 3500,00 € desde Janeiro de 2011;
▪LB UK Limited – 42000,00 € desde Maio 2010;
▪GE Consumer S.A. – 16000,00 € - desde Maio de 2010
5. Nestes autos, a requerente veio apresentar-se – novamente – à insolvência e, de acordo com o requerimento inicial o seu passivo corresponde agora aos seguintes valores:
• BCP, S.A. – 120 000 € de Maio de 2009;
• BPI S.A. - 130 000,00 € desde Janeiro de 2011;
• ISS IP – 3500,00 € desde Janeiro de 2011;
• LB UK Limited – 42000,00 € desde Maio 2010;
• GE Consumer S.A. – 42000,00 € - desde Maio de 2010
• JC – 15000,00 € - desde Dezembro de 2024”.
III. FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Impõe-se, liminarmente, proceder à interpretação da decisão recorrida em ordem a que se possa apreciar de questão relacionada com a delimitação objetiva do recurso, à luz do que dispõe o art. 635.º do CPC, diploma a que aludiremos quando não se fizer menção de origem, e considerando o teor das conclusões apresentadas pelo recorrente/apelante, em cumprimento do ónus que impende sobre si, nos termos do art. 639.º. As decisões judiciais – tal como os articulados/requerimentos das partes – enquanto atos jurídicos, devem ser objeto de interpretação (art. 295º do Cód. Civil), o que significa, desde logo que essa declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (art. 238º, nº1 do mesmo diploma). “A sentença proferida em processo judicial constitui um verdadeiro acto jurídico, a que aplicam as regras reguladoras dos negócios jurídicos (art. 295º do C.Civil).// As normas que disciplinam a interpretação da declaração negocial são, pois, igualmente válidas para a interpretação de uma sentença. O que significa que a sentença tem de ser interpretada com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do seu contexto (art. 236º do C.Civil). // Para interpretarmos correctamente a parte decisória de uma sentença, temos de analisar os seus antecedentes lógicos que a tornam possível e a pressupõem, dada a sua íntima interdependência. // A interpretação da sentença exige, assim, que se tome em consideração a fundamentação e a parte dispositiva, factores básicos da sua estrutura. // No dizer incisivo de Carnelutti, a sentença não é “nem dispositivo sem motivos, nem motivos sem dispositivo, mas a fusão deste com aqueles”. // Por outras palavras, a identificação do objecto da decisão passa pela definição da sua estrutura, constituída pela correlação teleológica entre a motivação e o dispositivo decisório, elementos que reciprocamente se condicionam e determinam, fundindo-se em síntese normativa concreta (cfr. Castanheira Neves, RLJ 110º, pags. 289 e 305). // De realçar, ainda, que, embora o objecto da interpretação seja a própria sentença, a verdade é que, nessa tarefa interpretativa, há que ter em conta outras circunstâncias, mesmo que posteriores, que funcionam como meios auxiliares de interpretação, na medida em que daí se possa retirar uma conclusão sobre o sentido que se lhe quis emprestar (Vaz Serra, RLJ, 110-42)” [ [2] ].
No caso, decorre do segmento dispositivo da sentença que o mesmo se resume ao indeferimento liminar da petição inicial com base na verificação de uma exceção dilatória, o caso julgado, tendo aliás o tribunal feito alusão, nesse segmento dispositivo, aos normativos pertinentes (artigos 27.º, n.º 1, a) do CIRE, 576.º, n.º 2, 577.º, n.º 1, al. i), 578.º, 580.º e 581.º, todos do Código de Processo Civil).
A tramitação subsequente à apresentação da petição inicial em que o devedor se apresenta à insolvência passa por uma “apreciação liminar”, dispondo o art. 27.º, nº1, alínea a) do CIRE sobre os casos em que o juiz deve indeferir liminarmente o pedido de declaração de insolvência. Decorre do preceito que os fundamentos do indeferimento liminar da petição se podem reconduzir, à semelhança do que acontece no processo civil, a vícios de forma, usualmente atinentes a requisitos de ordem processual, mormente à verificação de exceções dilatórias insanáveis e a vícios de conteúdo (vícios de fundo) que se prendem com a concatenação que é suposto existir entre a pretensão formulada e a fundamentação de facto e de direito que a suporta. Em ambas as hipóteses estamos, como expressamente consta do preceito, perante um critério normativo de evidência, sendo esse o comando que o legislador dá ao aplicador, daí que o despacho deva ser proferido em face da simples inspeção da petição inicial [ [3] ].
Ou seja, não se visualiza na decisão recorrida qualquer específico segmento dispositivo dirigido ao indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante formulado pelo requerente/apelante, tendo por referência o disposto no art. 238.º do CIRE; aliás, como decorre deste preceito, os fundamentos que o legislador fixou para o indeferimento liminar do pedido de exoneração colocam-se perfeitamente à margem daqueles que presidem ao indeferimento liminar da petição inicial em que o devedor se apresenta à insolvência, configurando-se perspetivas de análise completamente distintas.
Paralelamente, essa decisão de indeferimento liminar da petição inicial com base na verificação da exceção do caso julgado constitui o corolário lógico quer da sua fundamentação de facto – a que supra se fez referência – quer da fundamentação jurídica expressa na decisão e que foi a seguinte: “Decorre dos factos supra enunciados que o ora Requerente já foi declarado insolvente no âmbito do processo n.º 20011/18.9T8LSB do Juízo de Comércio de Lisboa – Juiz 4, por decisão de 10.09.2018. //Os autos vieram a ser encerrados por insuficiência da massa. // Nesse mesmo processo, tendo sido liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante, veio o mesmo a ser indeferido a final e recusada a concessão de exoneração do passivo restante ao devedor pelo incumprimento dos deveres previstos no nº 4 do artº 239 do CIRE. // O Requerente vem agora instaurar novo processo peticionando a declaração da sua insolvência, resultando da petição inicial que o passivo se mantem na sua essência praticamente idêntico (apenas agravado pelos juros e por nova divida de Dezembro de 2024) e, por outro, que nenhum outro ativo acresceu àquele que existia naquele momento. // Afigura-se-nos estar aqui configurada a exceção de caso julgado, questão que tivemos oportunidade de suscitar previamente nos autos e sobre a qual foi dada oportunidade ao requerente para se pronunciar. // Vejamos então. // De acordo com o disposto no artigo 580.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, a exceção de caso julgado pressupõe a repetição de uma causa depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário. //E, dispõe o artigo 581.º do mesmo diploma: (…) // A exceção de caso julgado assenta na força e na autoridade da sentença transitada em julgado consagradas no artigo 619.º n.º 1, do Código de Processo Civil, que dispõe: «Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica tendo força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos arts. 580.º e 581.º (…)». O caso julgado impõe-se não só por via da autoridade do caso julgado (vinculando o tribunal e as partes a acatar o que aí ficou definido em quaisquer outras decisões que venham a ser proferidas), como também por via da exceção de caso julgado (no sentido de impedir a reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida por sentença transitada). // Enquanto exceção que obsta à reapreciação da relação ou situação jurídica material que já foi definida por sentença transitada (artigos 576.º, n.º 2, e 577.º, alínea i), do Código de Processo Civil), o caso julgado pressupõe a verificação da tríplice identidade (de sujeitos, de pedido e de causa de pedir) que é exigida pelo supracitado artigo 581.º. // Importa, portanto, saber se existe (ou não) identidade de sujeitos, de pedido e de causa de pedir entre a presente ação e a que correu termos no âmbito do processo do Juízo de Comércio de Lisboa. // A questão de saber se existe identidade de sujeitos reveste algumas especificidades no âmbito do processo de insolvência. // No caso em apreço, atendendo à fase processual em que nos encontramos, não existem, ainda, outras partes para além do próprio requerente pelo que ocorre, logo aqui, uma identidade de sujeitos. // Mas o que é certo é que ocorre também uma situação de identidade de sujeitos ao nível dos credores. // Com efeito, o próprio requerente assume na respetiva petição inicial que o seu passivo corresponde aos valores que já estavam em divida no processo n.º 20011/18.9T8LSB, apenas aumentou o valor do crédito do GE Consumer S.A. (claramente decorrente do vencimento de juros), e tem um novo credor, particular, JC. Este é o único crédito que é efectivamente novo nestes autos e que não existia no processo anterior, mas cujo valor, é de tal forma irrelevante face aos demais, que não foi certamente este crédito que alterou a realidade económica do Requerente. Podemos assim concluir que há, na sua essência, identidade de credores. // Vejamos agora se existe identidade de pedido e causa de pedir. // É indubitável que o efeito jurídico que se pretende obter nesta ação é formalmente idêntico àquele que se pretendia obter – e foi efetivamente obtido – no processo n.º 20011/18.9T8LSB: a declaração de insolvência. // Mas essa identidade formal não equivale necessariamente a uma identidade material, uma vez que a declaração de insolvência com referência a uma determinada realidade ocorrida em determinado momento temporal não corresponde, em termos substanciais, à declaração de insolvência com referência a realidade diferente e ocorrida em qualquer outro período temporal; ainda que formalmente idênticos, os efeitos jurídicos que se pretendem obter em cada uma dessas situações são substancialmente diferentes porque se reportam a realidades diferentes e ocorridas em momentos temporais distintos. // Será, portanto, a causa de pedir de cada uma dessas pretensões que nos permitirá aferir se o efeito jurídico e a concreta pretensão que se pretende obter nesta ação é idêntica àquela que já foi obtida na anterior ação. // De acordo com o artigo 3.º, n.º 1, do CIRE, considera-se em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas. A verificação (ou não) dessa situação há-de ser uma constatação a retirar, sobretudo, da comparação entre o ativo e o passivo vencido do devedor, ainda que possam existir outras circunstâncias que também relevem para apurar se o devedor está ou não impossibilitado de cumprir aquelas obrigações. // Ou seja, a causa de pedir do pedido de declaração de insolvência corresponde, por regra, ao concreto passivo e ativo que exista em determinado momento temporal e à impossibilidade de o ativo do devedor lhe permitir cumprir o passivo que nesse momento se encontra vencido. // Nestas circunstâncias, poder-se-á concluir que a pretensão de ver declarada a insolvência nos presentes autos será idêntica à pretensão já obtida na ação anterior se a realidade a que se reporta – balizada pelo ativo e pelo passivo existente e pela impossibilidade de esse ativo assegurar a satisfação do passivo – for a mesma, ou seja, se o passivo em questão for o mesmo que já existia à data da anterior declaração de insolvência e se nenhum outro ativo tiver acrescido àquele que existia naquele momento. Os créditos são os mesmos que os já reconhecidos nos anteriores autos, pelo que, consequentemente, não se trata de diferente causa de pedir, que é constituída pelo passivo de uma determinada pessoa e impossibilidade de o solver, por reporte a um determinado período temporal. // Reportando-nos ao caso dos autos, não há dúvida de que a pretensão formulada nestes autos é, efetivamente, idêntica à pretensão que já foi obtida no processo n.º 20011/18.9T8LSB por via da declaração de insolvência. // Na verdade, a globalidade do passivo agora invocado já existia à data em que foi declarada a insolvência no referido processo, conforme assume o requerente na sua petição inicial. // Ao exposto acresce que o ora requerente não alega ter adquirido qualquer outro património. // Ou seja, a situação de insolvência que é invocada nos presentes autos é a mesma que já se configurava no primeiro processo, na medida em que se reconduz à impossibilidade de cumprir obrigações que já existiam naquela data. // Tal impossibilidade é – continua a ser – a mesma que existia anteriormente e que fundamentou a declaração de insolvência no processo n.º 20011/18.9T8LSB sem que tivesse ocorrido qualquer outro facto (pelo menos não foi alegado) que fosse suscetível de determinar qualquer alteração da situação. // Posto isto, somos a concluir existir também uma situação de identidade de pedido e de causa de pedir em ambos os processos. // E nessas circunstâncias está, efetivamente, configurada a exceção de caso julgado obstativa da apreciação da pretensão dos requerentes no sentido de ser declarada a sua insolvência, na justa medida em que a concreta situação de insolvência que é invocada nestes autos é a mesma que esteve subjacente à declaração de insolvência no âmbito do processo n.º 20011/18.9T8LSB, sem que tivesse existido qualquer alteração relevante que pudesse justificar e conferir alguma utilidade a uma nova declaração de insolvência. // Não ignoramos que aquilo que está verdadeiramente em causa – já que o requerente não tem qualquer interesse real em ver novamente declarada a sua insolvência – é o pedido de exoneração do passivo restante que o requerente não usufruiu no âmbito do aludido processo n.º 20011/18.9T8LSB e que pretende agora usufruir. // Sucede que, como resulta do disposto nos artigos 235.º e segs., do CIRE, a exoneração do passivo está sempre dependente da existência de um processo de insolvência – não correspondendo, portanto, a uma pretensão que possa ser formulada de forma autónoma – e pressupõe, naturalmente, que esse processo esteja em condições de ser admitido e que nele venha a ser declarada a insolvência do devedor, situação que aqui não se verifica uma vez que, conforme referimos, ocorre a exceção de caso julgado relativamente ao pedido de declaração de insolvência. // Perante isto, o requerente não pode achar que têm o direito de vir instaurar novo processo de insolvência tendo como referência a mesma situação de insolvência e com vista à exoneração do passivo que já existia àquela data. // Se assim fosse, o devedor que não reunisse as condições necessárias para usufruir da exoneração do passivo poderia contornar essa situação mediante a instauração de novo processo de insolvência com referência à mesma situação de insolvência (mesmo passivo e mesmo ativo) no âmbito do qual aquelas circunstâncias já não se pudessem ter como verificadas, o que, evidentemente, não pode ser admitido ou consentido. (vd. por todos Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 05.04.2022, Relator: Arlindo Oliveira, processo nº 354/22.8T8CBR.C1)” (sublinhado nosso).
A única referência que se encontra, em sede de fundamentação jurídica, ao pedido de exoneração é aquela que se sublinhou, sendo evidente que esse juízo valorativo se mostra completamente à margem do preceituado no art. 238.º do CIRE, preceito que não foi, nem expressa nem implicitamente, convocado para a decisão, não constituindo a ratio decidendi.
Assim sendo, no caso, quanto à delimitação objetiva do recurso (cfr. o art. 635.º do CPC), conclui-se que a parte dispositiva da sentença não contém “decisões distintas”, nomeadamente em ordem a permitir ao recorrente restringir o recurso a qualquer delas – cfr. os números 2 a 4 do citado preceito.
Ora, assim interpretada a decisão recorrida – e só essa interpretação é conforme quer ao seu texto, quer à teleologia que lhe está subjacente –, causa perplexidade o teor das alegações de recurso, nomeadamente as conclusões apresentadas, como passamos a analisar.
2. Incide sobre quem recorre um conjunto de exigências a nível de exposição e fundamentação do recurso, elencadas pelo legislador no art. 639.º, sob a epígrafe “[ó]nus de alegar e formular conclusões”.
“Interposto um recurso em processo civil, o recorrente fica automaticamente sujeito a dois ónus, se quiser prosseguir com a impugnação de forma regular e ter êxito a final. O primeiro é o ónus de alegar, no cumprimento do qual se espera que o interessado analise e critique a decisão recorrida, refute as incorrecções ou omissões de que, na sua óptica, ela enferma, argumentando e postulando circunstanciadamente as razões de direito e de facto da sua divergência em relação ao julgado. O segundo ónus é o de finalizar essa peça, denominada alegações, com a formulação sintética de conclusões, em que o recorrente resuma os fundamentos que desenvolveu no corpo alegatório e pelos quais pretende que o tribunal de recurso altere ou anule a decisão posta em causa” [ [4] ]. E, especificamente quanto à finalidade das conclusões:
“A lei procura assim evitar a impugnação geral, vaga e indefinida, para obstar a que a parte contrária se veja numa situação insustentável na preparação do contraditório, sem entender convenientemente a posição do recorrente, os seus motivos de divergência, ficando assim privada de elementos importantes para organizar a sua defesa em contra-alegações. Além disso, as conclusões permitem ao Tribunal ad quem identificar e extrair correctamente as questões controvertidas suscitadas pelo recorrente. Ora, como a alegação do recorrente pode ser prolixa e confusa, torna-se necessário que no fim, em conclusões, se indiquem resumidamente os fundamentos da impugnação. // Por outro lado, as especificações que a lei manda alinhar nas conclusões, têm a importante função de definir e delimitar o objecto do recurso e, desta maneira, circunscreverem o campo de intervenção do tribunal superior encarregado do julgamento. Efectivamente, se tivermos em conta que, como resulta dos artigos 684.º, n.º 3, e 685.º-A, n.º 1, são as conclusões (as genuínas) que fixam o objecto do recurso, logo se compreende quão importantes elas são para o tribunal ad quem apreciar e decidir, concretamente no tocante aos seus poderes de cognição. Por isso, a lei impõe um método imperativo de concluir, com o intuito de travar o arbítrio ou o estro de cada alegante, que, nesta matéria, facilmente degeneram em anomia processual [ [5] ] [ [6] ].
No caso, o recorrente apresentou alegações, com conclusões, podendo globalmente considerar-se que as conclusões apresentadas sintetizam os fundamentos do recurso expressos nas alegações.
O ponto é que nem as alegações, nem as conclusões se reportam à decisão que foi proferida, não tecendo o apelante qualquer juízo crítico quanto a essa decisão, mormente questionando a verificação da aludida exceção dilatória do caso julgado, com vista à sua revogação e consequente prosseguimento dos autos.
A pretensão recursiva não se dirige à revogação do indeferimento liminar da petição inicial em que se apresentou à insolvência, indicando antes o apelante que pretende “seja revogada o despacho proferido e deverá ser concedida exoneração”; no entanto, como se assinalou, o pedido de exoneração não foi objeto de qualquer despacho de indeferimento, tendo aliás a 1ª instância explicitado a conexão existente entre o pedido de declaração de insolvência e o pedido de exoneração, na medida em que este pressupõe aquele.
Acresce que também quanto aos fundamentos do recurso se verifica uma patente desconexão entre a argumentação exposta pelo apelante e o que a decisão patenteia. Efetivamente, o tribunal não teceu qualquer consideração atinente a eventual prejuízo que o insolvente tenha provocado à massa, o tribunal não deu aplicação à regulação estabelecida no art. 238.º do CIRE, nem subsumiu o caso a qualquer das hipóteses aí tipificadas pelo que a alegação vertida nas conclusões (conclusões 2.ª a 10.ª) é completamente irrelevante.
Em suma, as razões enunciadas pelo apelante nas alegações de recurso e sintetizadas nas conclusões porque não são dirigidas à decisão recorrida, cujo mérito não é, de qualquer forma, colocado em crise no recurso, não são suscetíveis de conduzir à alteração do que foi decidido, não suscitando o apelante, a propósito da decisão, qualquer questão que se imponha apreciar. Ou, dito de outra forma, o fundamento expresso pelo tribunal de 1.ª instância para justificar o indeferimento liminar da petição inicial, a saber, a verificação da exceção de caso julgado, não foi minimamente colocado em crise pelo recurso, nem os argumentos vertidos nas alegações e conclusões têm a virtualidade de afetar o juízo valorativo enunciado na decisão recorrida, colocando-se perfeitamente à margem do que aí se apreciou e decidiu, assim obstando a que esta Relação se pronuncie sobre o mérito da decisão que julgou verificada a aludida exceção.
Acrescente-se que para essa conclusão é inócua a constatação de que se trata de exceção de conhecimento oficioso porquanto o problema que aqui se coloca situa-se a montante, isto é, a Relação não pode, em sede de recurso, sindicar o mérito de uma decisão, quando o requerente, única entidade que tem a disponibilidade da tutela jurisdicional – seja no impulso processual inicial seja subsequentemente, incluindo em sede de recurso – não exerceu o impulso processual necessário, porquanto, pese embora interponha recurso de uma decisão da 1.ª instância, não questiona essa decisão e a fundamentação respetiva, conformando a instância recursiva à margem da mesma, não podendo o tribunal de 2.ª instância substituir-se à parte no exercício desse ónus de suscitação.
Consequentemente, mais não resta senão concluir pela improcedência do recurso.
*
Pelo exposto, decide-se julgar improcedente a apelação.
Custas pelo requerente/apelante (art. 527.º, n.º 1 do CPC), sem prejuízo do benefício do apoio judiciário.
Notifique.
Lisboa 2025-06-17
Isabel Fonseca
Susana Santos Silva
Elisabete Assunção
_______________________________________________________ [1] Identifica a morada de todos os “credores” à exceção do JC, relativamente ao qual não apresenta qualquer elemento de identificação. [2] Acórdão do STJ de 05-11-2009, processo: 4800/05.TBAMD-A. S1 (Relator: Oliveira Rocha), acessível in www.dgsi.pt, como todos os demais a que aqui se aludir. [3] Como se referiu no acórdão deste TRL de 07-05-2024, processo 355/24.1T8PDL.L1-1(Relator: Isabel Fonseca). [4] João Aveiro Pereira, O ónus de concluir nas alegações de recurso, em processo civil, p.1,acessível in https://trl.mj.pt/wp-content/uploads/2022/09/Joao-Aveiro.pdf [5] João Aveiro Pereira, estudo cit., p.5. [6] É nesse sentido que com uniformidade se tem pronunciado a doutrina e jurisprudência; cfr., a título meramente exemplificativo, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2014, Coimbra, Almedina, pp. 120-126, Amâncio Ferreira, Manual dos Recurso em Processo Civil, 2006, Coimbra, Almedina, pp. 171-178; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, 2018, Vol. I,, pp. 767-769.