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RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
Sumário
1- A acção de impugnação da resolução em benefício da massa é uma acção de simples apreciação negativa, uma vez que com ela se pretende, apenas, obter a declaração da inexistência do direito à resolução exercido pelo administrador de insolvência. 2- No que se refere ao ónus da prova relativo a esta acção, compete ao administrador da insolvência a prova dos factos que invocou como fundamento da resolução do contrato – artº 343º, nº1, do C. Civil -, enquanto que o demandante fica onerado com a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito, de acordo com o princípio geral estabelecido no n.º 2 do art.º 342.º do mesmo Código. 3- O exercício de tal direito de resolução depende do preenchimento de determinados requisitos legais. Esses requisitos são os contemplados nos artigos 120.º - resolução condicional - e 121.º - resolução incondicional - do CIRE. 4- Fora dos casos previstos no artigo 121.º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, a resolubilidade dos actos prejudiciais à massa insolvente pressupõe que: i. o acto praticado pelo insolvente seja prejudicial à massa. ii. tenha sido praticado nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e iii. o terceiro tenha agido de má-fé. 5- O conhecimento de determinados factos pelo administrador de uma sociedade não pode deixar de ser imputado à própria sociedade, independentemente de a informação ter sido recebida através de procedimentos adequadamente organizados pela sociedade ou fortuitamente: à sociedade cabe suportar o risco do conhecimento daquele que actuam por sua conta. 6- Tendo ficado demonstrado que os insolventes procederam, nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência, à venda da nua propriedade de um imóvel de que eram proprietários, reservando para si o usufruto, sem que tivesse sido apreendida qualquer quantia resultante da venda e que a terceira compradora, da qual a insolvente mulher era administradora única, tinha conhecimento que a devedora principal tinha deixado de pagar, em virtude de não dispor de meios económicos para o efeito, as prestações relativas aos contratos de mútuo que tinha celebrado com instituições bancárias e em relação aos quais os insolventes haviam concedido garantias a título pessoal, encontram-se preenchidos os requisitos para a resolução nos termos do artº 120º do CIRE.
Texto Integral
Acordam na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:
I- RELATÓRIO
“M… – Investimentos e Gestão, S.A.”, com o número único de pessoa colectiva, 513114378, com sede na …, instaurou acção declarativa sob a forma comum contra Massa Insolvente de A… C… P… F… B… e M… M… R… B… F…, residentes na …, representada pela administradora de insolvência, pretendendo a impugnação da resolução em benefício da massa insolvente do negócio denominado de compra e venda celebrado por escritura pública outorgada a 8 de Maio de 2019.
Alegou em suma, que:
- A decisão de resolução do negócio por parte da AI não tem qualquer fundamento legal, uma vez que, para além dos créditos reconhecidos decorrerem somente de garantias pessoais prestadas pelos insolventes, a transmissão de propriedade do imóvel teve como propósito tentar salvar duas empresas e os respectivos postos de trabalho;
- O imóvel não foi vendido abaixo do preço de mercado, porque se tratou apenas da venda da propriedade de raiz;
- O valor declarado de € 135.000,00 não saiu na totalidade da conta bancária da A., apenas por mera falta de liquidez momentânea;
- Apesar de a insolvente ser administradora da aqui A. e ambos os insolventes permanecerem a viver no imóvel, a circunstância de outras empresas ligadas à A. entrarem em colapso financeiro (R… e Ram…), a apresentação a PER ter ocasionado a saída de quadros técnicos qualificados e ainda o alerta do fiscal único para a necessidade de ser encontrada uma alternativa para suprir a falta de liquidez existente na R… e na Ram…, fizeram com que fosse alienado o imóvel, ainda que com reserva de usufruto;
- Em reunião da AG da M… realizada em 26 de Março de 2019 foi deliberado o aumento de capital social de € 50.000,000 para € 200.000,00, através de entrada em dinheiro;
- Tendo sido escolhido aquele modelo de alienação, no dia 10 de Maio de 2019, a A. transferiu para a conta dos insolventes o montante de € 133.568,93;
- No dia 15 de Maio de 2019 os insolventes depositaram na conta da Ram… a quantia de € 100,00,00, que se destinou fundamentalmente à liquidação de salários, responsabilidades fiscais, custos fixos, pagamentos a fornecedores e responsabilidades junto da Banca, tendo os restantes € 50.000,00 sido consumidos em pagamentos a fornecedores directamente pelo insolvente;
- O valor obtido com a venda do imóvel foi imediatamente colocado na Ram… e destinou-se a pagar a credores da Ram… e da R…;
- O produto da venda foi depositado na conta da Ram… e não na conta a R… ou dos insolventes porque sempre que a conta era creditada com pagamentos, a CGD debitava tais valores para reduzir o valor da abertura de crédito, o que provocava a constante falta de liquidez da R…;
- Os insolventes não pretenderam esconder nada, por saberem antecipadamente que o produto da venda seria afectado à actividade da R… e da Ram…
Citada, a massa insolvente apresentou contestação, alegando, em suma, que:
- Os devedores conheciam bem a situação de insolvência iminente em que se encontravam as suas empresas, sendo certo que o imóvel foi adquirido pela A., que tem a insolvente como administradora única;
- O imóvel foi vendido pelo preço de 135.000,00€ e nesse mesmo acto – escritura de compra e venda - os vendedores/insolventes reservaram para si, o usufruto vitalício do imóvel, a extinguir à morte do último;
- O valor patrimonial do imóvel está muito abaixo do seu valor de mercado, pois trata-se de uma moradia térrea, localizada em …, num terreno com a área total de 879,0000m2, área bruta de construção de 300,000m2 a que correspondem 190,000 m2 de implantação de edifício e 110,000m2 de área bruta dependente, com garagem e piscina, com o valor patrimonial determinado em 2018 de 178.091,90€;
- O preço não foi efectivamente pago e o objectivo do negócio foi defraudar os credores;
- Os insolventes têm dividas resultantes dos processos de insolvência das suas empresas que ascendem a milhões de euros, donde jamais resolveriam ou minoravam a situação financeira das empresas;
- De facto, o negócio realizado pelos insolventes apenas e só acautela os seus interesses, pois a A. não tira qualquer contrapartida da aquisição do imóvel, estando os insolventes a residir no mesmo;
- A única vontade que houve das partes foi a de diminuir a garantias dos credores, por forma a não satisfazerem os seus créditos;
- Os insolventes estavam plenamente conscientes das dificuldades que atravessavam e sabiam que enquanto avalistas corriam o risco do imóvel que habitavam ser penhorado e que a sua insolvência era uma questão de pouco tempo;
- Em Maio de 2019 – altura em que foi realizado o negócio de venda do imóvel – os insolventes já sabiam que, face às dificuldades que atravessavam, a insolvência estava próxima e que, ficando a R… insolvente, a Ram… seria a seguir, visto que era a sua principal cliente;
- Apesar de alegarem que o negócio foi feito para salvar as empresas e os postos de trabalho, quando, em 04.06.2020, a R… foi declarada insolvente tinha dívidas vencidas de quantia superior a 7.584.527,00€;
- No mesmo caminho, a Ram…, quando foi declarada insolvente, em 15.06.2020, tinha dívidas vencidas de quantia superior a 268.835,71€;
- Sabendo as dificuldades que as empresas dos insolventes atravessavam, a má-fé da A. é gritante.
Concluiu pela improcedência da acção.
Por despacho proferido em 06.05.2024, foi fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.
Procedeu-se a julgamento e foi proferida sentença julgando a acção improcedente.
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Inconformada a autora M… – Investimentos e Gestão, Lda, interpôs recurso.
A massa insolvente apresentou resposta, tendo o recurso sido admitido e os autos remetidos a este Tribunal da Relação.
Foi proferido despacho pela anterior relatora, convidando a apelante a aperfeiçoar as alegações.
Nessa sequência, a apelante apresentou as seguintes CONCLUSÕES aperfeiçoadas:
A) A recorrente impugna os pontos 11., 14. e 15. dos factos provados, que devem ser expurgados desse segmento decisório, igualmente impugnando os factos dados como não provados sob as alíneas a) a f) que, ao invés, deverão ser considerados provados;
B) Quer no que concerne aos factos dados como provados, quer no que diz respeito aos factos dados como não provados, o tribunal utiliza uma fundamentação de carácter genérico sem especificar qual o meio de prova que considerou apto e idóneo a dar como provado, ou como não provado, cada um deles e sem que, ademais, se compreenda quais e em que termos, cada um dos depoimentos testemunhais contribuiu para a decisão sobre a matéria de facto;
C) O facto n.º 11. - “Não foi paga aos insolventes a contrapartida correspondente ao preço do imóvel declarado na escritura;” – carece de sentido porquanto tal formulação exigiria que a Massa Insolvente tivesse feito prova do facto negativo, o que, manifestamente, não aconteceu, pelo que, no limite, poderia o tribunal ter considerado como não provado o pagamento da contrapartida correspondente ao preço do imóvel;
D) O facto n.º 14 – “Em maio de 2019 – altura em que foi realizado o negócio de venda do imóvel – os insolventes já sabiam que face às dificuldades que atravessavam a insolvência estava próxima, e que, ficando a “R…” insolvente, a “Ram…” seria a seguir, visto que era a sua principal cliente” contém matéria conclusiva quer quando refere que os insolventes atravessavam dificuldades em Maio de 2019, pois tal juízo não tem suporte em qualquer outro facto, quer ao utilizar a expressão “insolvência” que corresponde a um conceito indeterminado insusceptível de ser dado como provado;
E) Não resulta da prova produzida que, em Maio de 2019, os insolventes atravessassem quaisquer dificuldades já que eram meros garantes pessoais da sociedade R… cujas dívidas não se encontravam vencidas e que, ademais, viu aprovado em Janeiro de 2020 um plano de revitalização, o que permite concluir que a própria R… não se encontrava em situação de insolvência e, por maioria de razão, os insolventes, cujas dívidas se confinavam àquelas que decorriam das garantias pessoais prestadas, também em situação de insolvência não se encontravam;
F) O facto n.º 15 - “O negócio celebrado causou prejuízos aos credores dos insolventes, que deixaram de poder ver satisfeitos os seus créditos, ainda que parcialmente, com o produto da venda do imóvel identificado supra.” – contém igualmente matéria conclusiva, importando que a expressão “causou prejuízos” seja suportada em factos o que não acontece, não podendo, além disso, a decisão sobre a matéria de facto conter “afirmações genéricas, conclusivas ou que comportem matéria de direito, especialmente se esta constituir o thema decidendum.”;
G) Em razão de ter sido confirmado pelas testemunhas J… C… C… M…, L… P… e J… C…, o facto constante da alínea a) dos factos não provados - “a) O produto da venda foi depositado na conta da Ram… e não na conta da R… ou dos insolventes porque sempre que a conta era creditada com pagamentos, a CGD debitava tais valores para reduzir o valor da abertura de crédito o que provocava a constante falta de liquidez da R…” deve ser eliminado desse segmento e transitar para os factos provados;
H) Os factos dados como não provados nas alíneas b) e c) – “A transmissão da propriedade do imóvel não teve como propósito defraudar credores, mas o de (tentar) salvar duas empresas e os respetivos postos de trabalho;” e “Os insolventes não pretenderam esconder nada, por saberem antecipadamente que o produto da venda seria afetado à atividade da R… e da Ram…”; - devem ser eliminados desse segmento decisório por se revelarem em oposição com o depoimento da testemunha J… C…, devendo, ao invés, transitar para os factos provados;
I) Os factos constantes das alíneas d), e) e f) dos factos não provados – “d) Por uma questão de falta de liquidez momentânea da A., apenas foi transferida para a conta dos insolventes o montante de € 133.568,93, ficando os insolventes com um crédito sobre a A. no valor de € 1.431,07; e) No dia 10 de maio de 2019, a A. transferiu para a conta dos insolventes a quantia de € 133.568,93; e “f) No dia 15 de maio de 2019, os insolventes depositaram na conta da “Ram…” a quantia de € 100.000,00, tendo os restantes € 50.000,00 sido consumidos em pagamentos efetuados a fornecedores diretamente pelo insolvente;”] - devem ser eliminados, porquanto prova contrária resulta dos documentos juntos ao autos e do depoimento das testemunhas, devendo dar-se como provado que:
- Por uma questão de falta de liquidez momentânea da A., apenas foi transferida para a conta dos insolventes o montante de € 133.568,93, ficando os insolventes com um crédito sobre a A. no valor de € 1.431,07;
- No dia 10 de Maio de 2019, a A. transferiu para a conta dos insolventes a quantia de € 133.568,93;
- No dia 15 de Maio de 2019, os insolventes depositaram na conta da “Ram…” a quantia de € 100.000,00, tendo os restantes € 50.000,00 sido consumidos em pagamentos efetuados a fornecedores diretamente pelo insolvente;”
J) Por se mostrar relevante para a decisão de mérito, deve ser aditado aos factos provados que “Por sentença datada de 07.01.2020 foi homologado o plano de revitalização da R…”.
K) Não se demonstrando que, ao contrário do que foi invocado pela AI, não existiu vontade de vender dos insolventes, nem vontade de comprar por parte da adquirente e que, por isso, não existiu qualquer negócio jurídico, não se pode concluir que estamos perante um negócio simulado;
L) Resultando dos factos provados que o produto da alienação serviu para liquidar créditos das sociedades R… e Ram… não se verifica a prejudicialidade deste negócio para a massa insolvente nem ocorreu qualquer acto que diminua, frustre, dificulte, ponha em perigo ou retarde a satisfação dos credores da insolvência;
M) A circunstância de a insolvente ser administradora da recorrente é irrelevante para efeitos de existência de má-fé a que refere o n.º 5 do art.º 120.º, sendo apenas decisiva para efeitos da verificação da presunção constante do n.º 4 da mesma norma;
N) O tribunal concluiu que “O negócio em causa considera-se prejudicial à massa – art. 120º, n.º1, 2 e 4, do CIRE” por, erradamente, ter considerado que os insolventes se encontravam em situação de insolvência e que o preço da compra e venda não foi pago;
O) Para que determinado acto seja objecto de resolução nos termos do art.º 120.º do CIRE tem que, cumulativamente, ser prejudicial para os credores do insolvente e, para além disso, verificar-se má-fé do adquirente, pressupondo esta que, nos termos do art.º 120.º do CIRE, se verifique o conhecimento de, à data do acto:
(i) o devedor se encontrar em situação de insolvência;
(ii) do carácter prejudicial do acto e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente;
(iii) do início do processo de insolvência.
P) Não se encontrando os devedores em situação de insolvência nem, tampouco, em situação de insolvência iminente – o que, mesmo que se considere a prejudicialidade do acto, impede a subsunção na norma constante da alínea b) do n.º 5 do art.º 120.º do CIRE – não se verifica demonstrada a má fé da recorrente sendo certo que a resolução operada nos termos do art.º 120.º do CIRE depende de que, cumulativamente, o acto seja prejudicial para os credores do insolvente – cuja prova caberia à AI - e verificar-se a má-fé do adquirente;
Q) Não resultando da prova produzida que o negócio objecto de resolução se enquadra na previsão constante do artigo 120.º do CIRE, é manifesta a ilicitude da resolução;
R) A sentença violou o disposto nos artigos 120.º e 125.º do CIRE, os artigos 342.º e 343.º do Código Civil e o artigo 607.º do CPC.
Terminou peticionando que o recurso seja julgado procedente e a decisão recorrida ser revogada nos termos supraditos.
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Da resposta ao recurso apresentada pela recorrida Massa Insolvente de A… C… P… F… B… e M… M… R… B… F… constam as seguintes CONCLUSÕES:
I. O Recorrente, inconformado com a douta sentença que julgou improcedente a ação por si interposta, vem, da mesma recorrer, delimitando o objeto do Recurso em dois pontos: “a) a decisão da matéria de facto e, detalhadamente, (i) a identificação dos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, (ii) a análise crítica da fundamentação constante da sentença em conjunto com a análise dos depoimentos das testemunhas e (iii) a decisão alternativa proposta; b) a decisão da matéria de mérito decorrente da pretendida alteração da decisão da matéria de facto.”;
II. O Recorrente entende que o Tribunal a quo incorreu em erro de julgamento devendo ser alterada a matéria de facto dada como provada nos pontos 11, 14 e 15 dos factos provados e os factos dados como não provados sob as alíneas a) a f);
III. O ponto 11 da matéria de facto dada como provada e os pontos a), d), e), f) da matéria de facto não provada, devem ser mantidos, porquanto:
- Da prova documental junta aos autos não é possível concluir que o preço tenha sido efectivamente pago, uma vez que, os DOCS. 59 a 63 juntos com a PI, não demonstram o pagamento aos insolventes do preço acordado, mas sim o depósito de um cheque no valor de € 100.000,00 emitido em 13.05.2019 pelo insolvente à ordem e na conta titulada pela “Ram…, SA”, desconhecendo-se a que título ocorre o referido depósito e a origem daquele montante.
- No DOC. 2 junto com a PI uma vez que, não é possível identificar a instituição bancária, a data da escritura de compra e venda e a data constante do cheque não coincidem e o valor aposto não corresponde ao preço acordado. - A Recorrente assume expressamente na P.I. que o pagamento não foi feito aos insolventes (arts. 219º, 220º, 221º, 222º, 224º e 225º);
IV. Deverá ser mantido o ponto 14 da matéria de facto dada como provada, porquanto:
- Os insolventes prestaram garantias pessoais às empresas “R…” e “Ram…”, pelo que, em face dos incumprimentos contratuais daquelas empresas, não tardariam a apresentar-se à insolvência;
- Quando a “R…” e a “Ram…” foram declaradas insolventes, tinham dívidas vencidas de quantia superior a 7.584.527,00€ (Sete milhões, quinhentos e oitenta e quatro mil, quinhentos e vinte e sete euros) e 268.835,71€ (duzentos e sessenta e oito mil oitocentos e trinta e cinco euros e setenta e um cêntimos), respectivamente;
- Foi relatado por testemunhas, nomeadamente, a Sra. L… P…, trabalhadora da “R…” que, em maio/junho de 2019, houve saída de trabalhadores que foram para uma sociedade concorrente da R… e que deixou de haver liquidez;
- A Recorrente refere que, o pagamento do preço não se podia depositar na conta da “R…”, teria de ser na conta da “Ram…” para a Caixa Geral de Depósitos não reter aqueles montantes, ou seja, já existiam incumprimentos naquela data;
- Dos elementos carreados para os autos, não restam dúvidas do carácter iminente da insolvência.
V. Deverá ser mantido o ponto 15 da matéria de facto dada como provada e os pontos b) e c) da matéria de facto não provada, porquanto:
- Não tinha qualquer interesse para a Recorrente, do ponto de vista económico, adquirir um imóvel com ónus de usufruto, o que se traduz na ausência de rendimento imediato daquele bem, ainda para mais, quando a mesma alega que não dispunha de capitais suficientes para efectuar aquele negócio, consequência da falta de liquidez momentânea;
- O negócio foi sugerido pelo ROC da “R…”, J… C…, sem que existisse da parte da Recorrente qualquer vontade negocial;
- O objectivo da venda com reserva de usufruto, foi manter o imóvel na esfera patrimonial dos insolventes/empresa da qual os insolventes são administradores, evitando a penhora;
- O imóvel foi vendido a um valor bastante inferior ao de mercado, 135.00,00€ (cento e trinta e cinco mil euros), quando a avaliação, aquela data, fixava-se, pelo menos, no dobro do valor, €269.720 (duzentos e sessenta e nove mil, setecentos e vinte euros);
- O referido negócio apenas se justifica pela falta de distinção/separação entre a gestão do património pessoal dos insolventes e do património societário, de que resulta prejuízo para os credores;
VI. A sentença proferida pelo Tribunal a quo analisa de forma crítica a prova produzida, fazendo um percurso lógico no confronto da prova com os factos dados como provados e não provados, devidamente fundamentada nos termos do artigo 607.º e 154.º do CPC;
VII. A resolução em benefício da massa insolvente operou nos termos do artigo 120.º do CIRE, 121.º e 123.º do CIRE;
VIII. A Administradora de Insolvência quando resolve o contrato em benefício da massa insolvente, fundamenta a sua pretensão, indicando para o efeito a motivação que origina a resolução do acto em benefício da massa insolvente;
IX. Nos termos do artigo 120.º, n.º4 e n.º5 do CIRE, sem prejuízo dos casos previstos no artigo 121.º, a resolução pressupõe a má-fé do terceiro, que se presume nos casos em que tenha participado ou aproveitado pessoa especialmente relacionada com o devedor;
X. No caso concreto, os insolventes são administradores da Recorrente e beneficiários do usufruto constituído, pelo que, a má fé é patente;
XI. O imóvel foi vendido por um valor bastante inferior ao de mercado e sem ser efectuado o pagamento do preço, sendo prejudicial à massa insolvente, pelo que, o negócio deverá ser resolvido em seu benefício;
XII. A carta de resolução enviada pela Administradora de Insolvência é válida, eficaz e operante, nos termos do artigo 120.º do CIRE;
XIII. A decisão proferida pelo Tribunal a quo não carece de qualquer vício;
XIV. O recurso interposto da Recorrente carece de fundamento factual e legal.
Terminou peticionando que o recurso seja julgado improcedente e mantida a sentença recorrida.
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O recurso foi admitido a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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Foram colhidos os Vistos.
* II– OBJECTO DO RECURSO
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo Código). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Nestes termos, em face das conclusões apresentadas pelas recorrentes, importa decidir:
A- da impugnação da matéria de facto e
B- se existe, ou não, em função da factualidade que resultou provada, fundamento para a resolução do acto – compra e venda - em benefício da massa insolvente.
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III- FUNDAMENTAÇÃO
A) De Facto
i. Na sentença sob recurso foi considerado como provado o seguinte:
1. Em 06.04.2021 o Banco B… requereu a insolvência de A… C… P… F… B… e M… M… R… B… F…, alegando ser titular de um crédito no valor total de € 256.413,34, resultante de uma livrança avalizada pelos requeridos, vencida a 06.08.2020, e subscrita pela sociedade comercial “R… - Sistemas de Informação S.A.”, a cuja administração pertenciam os insolventes;
2. Por escritura de compra e venda celebrada em 8 de Maio de 2019, A… C… P… F… B… e M… M… R… B… F… declararam vender à aqui A. “M… SA” (de quem a insolvente era administradora única), pelo montante declarado de € 135.000,00, a nua propriedade do prédio urbano sito na Rua …, freguesia de … , concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …, inscrito na respectiva matriz sob o artigo …, reservando para si o usufruto vitalício do mesmo prédio, a extinguir à morte do último;
3. A casa acima referida era e continua a ser a casa de habitação dos insolventes;
4. Na escritura ficou a constar “Que o referido preço será pago no dia nove do corrente”;
5. O prédio é composto por uma moradia térrea, localizada em …, num terreno com a área total de 879,0000m2, área bruta de construção de 300,000m2 a que correspondem 190,000 m2 de implantação de edifício e 110,000m2 de área bruta dependente, com o valor patrimonial determinado em 2018 de 178.091,90€, possuindo garagem e espaço destinado a piscina;
6. A… C… P… F… B… e M… M… R… B… F… foram declarados insolventes por sentença proferida em 26 de Abril de 2021;
7. Foram reclamados e reconhecidos créditos no montante total de € 6.026 220,45, respeitantes a garantias pessoais prestadas pelos insolventes à sociedade comercial “R… – Sistemas de Informação, S.A.”;
8. Foram apreendidos até ao momento os seguintes bens pela AI: Veículo automóvel de matrícula Opel, de matrícula …, que foi liquidado pelo valor de € 2.455,00;
9. Por carta registada datada de 26 de Julho de 2021 e remetida para a A., a AI declarou a resolução do negócio celebrado entre aquela e os insolventes (mencionado em 2 supra), nos termos melhor descritos no escrito junto à petição inicial como doc. 1, cujo teor se dá por reproduzido, onde refere em resumo que o imóvel foi vendido abaixo do preço de mercado; que o valor pelo qual foi vendido o imóvel não saiu da conta bancária da A.; a insolvente mulher ser administradora única da A. e nessa qualidade a qualquer momento poderá voltar a integrar o seu património; tratar-se de sociedade anónima na qual se desconhecem os accionistas; não existir vontade negocial das partes, atendendo à constituição do usufruto a favor dos insolventes, sem qualquer contrapartida para a A.; a venda ter como único objectivo retirar o imóvel da esfera jurídica dos insolventes, para não cumprirem os compromissos financeiros que tem junto dos credores; os insolventes continuam a residir no imóvel e a suportarem as obrigações fiscais e tratar-se de um negócio jurídico simulado prejudicial à massa insolvente;
10. O valor de mercado do prédio à data de realização da escritura era de € 359.634,00, reduzindo-se para € 269.720,00 considerando-se o usufruto constituído;
11. Não foi paga aos insolventes a contrapartida correspondente ao preço do imóvel declarado na escritura;
12. Quando, em 04.06.2020, a “R… S.A.” e foi declarada insolvente, sendo o conselho de administração composto pelos insolventes, tinha dívidas vencidas de quantia superior a € 7.584.527,00;
13. A “Ram…, SA”, quando foi declarada insolvente, em 15.06.2020, tinha dívidas vencidas de quantia superior a € 268.835,71, sendo seu administrador único o insolvente;
14. Em Maio de 2019 – altura em que foi realizado o negócio de venda do imóvel – os insolventes já sabiam que face às dificuldades que atravessavam a insolvência estava próxima, e que, ficando a “R…” insolvente, a “Ram…” seria a seguir, visto que era a sua principal cliente;
15. O negócio celebrado causou prejuízos aos credores dos insolventes, que deixaram de poder ver satisfeitos os seus créditos, ainda que parcialmente, com o produto da venda do imóvel identificado supra;
16. A sociedade comercial A. foi constituída em 2014 e tem por objecto a compra, venda e locação de bens móveis e imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim. Consultadoria para os negócios e gestão.
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ii. Foi considerada Não Provada o seguinte:
a) O produto da venda foi depositado na conta da Ram… e não na conta a R… ou dos insolventes porque sempre que a conta era creditada com pagamentos, a CGD debitava tais valores para reduzir o valor da abertura de crédito o que provocava a constante falta de liquidez da R…;
b) A transmissão da propriedade do imóvel não teve como propósito defraudar credores, mas o de (tentar) salvar duas empresas e os respetivos postos de trabalho;
c) Os insolventes não pretenderam esconder nada, por saberem antecipadamente que o produto da venda seria afetado à actividade da R… e da Ram…;
d) Por uma questão de falta de liquidez momentânea da A., apenas foi transferida para a conta dos insolventes o montante de € 133.568,93, ficando os insolventes com um crédito sobre a A. no valor de € 1.431,07;
e) No dia 10 de Maio de 2019, a A. transferiu para a conta dos insolventes a quantia de € 133.568,93;
f) No dia 15 de Maio de 2019, os insolventes depositaram na conta da “Ram…” a quantia de € 100.000,00, tendo os restantes € 50.000,00 sido consumidos em pagamentos efectuados a fornecedores directamente pelo insolvente.
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B) Da impugnação da matéria de facto
Nos termos do artigo 640º, nº 1, do Código de Processo Civil: «Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
No que toca à especificação dos meios probatórios: «Quando os meios probatórios invocados tenham sido gravados, incumbe ao recorrente,sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes” (artigo 640º, nº 2, al. a) do Código de Processo Civil).
Citando o Sr. Conselheiro Abrantes Geraldes, «Estabelecendo o paralelismo com a petição inicial, tal como esta está ferida de ineptidão quando falta a indicação do pedido, também as alegações destituídas em absoluto de conclusões são “ineptas”, determinando a rejeição de recurso (art. 641º, nº 2, al. b), sem que se justifique a prolação de qualquer despacho de convite à sua apresentação.(…) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.(…)» – cfr Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2ª ed., p. 122 e 132.
Como consequência, segundo o mesmo autor, impõe-se a rejeição do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto nas seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto;
b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados;
c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.);
d) Falta de indicação exacta das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação;
f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzam alguns dos elementos referidos - Ob. cit, pág. 135.
Existe divergência jurisprudencial no que concerne a saber se os requisitos do ónus impugnatório previstos no artigo 640º, nº1, devem figurar apenas no corpo das alegações ou se também devem ser levados às conclusões sob pena da rejeição do recurso (cf. Artigos 635º, nº2 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil). O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a pronunciar-se nos seguintes termos: No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.2.2015, Cons.Tomé Gomes, 299/05, afirma-se que «(…) enquanto a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória.»
No Acórdão de 11.4.2016, relatora Cons.Ana Luísa Geraldes, 449/410, defendeu-se que servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, deverão nelas ser identificados com precisão os pontos de factos que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos do ónus impugnatório, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso. As conclusões do recurso não têm de reproduzir todos os elementos do corpo da alegação – cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27.1.2015, Cons. Clara Sottomayor, 1060/07.
O AUJ n.º 12/2023, relatora Cons.Ana Resende, Processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1, publicado no Diário da República n.º 220/2023, Série I de 2023-11-14, páginas 44 – 65, disponível também em www.dgsi.pt, pronunciou-se expressamente no sentido que: «Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações». In casu, a apelante deu cumprimento aos ónus impostos em termos de impugnação da decisão da matéria de facto, passando a conhecer-se da mesma.
No nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da livre apreciação da prova, plasmado no art.º 607º, n.º 5 do Código de Processo Civil, segundo o qual: “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.”
Assim, o Tribunal baseia a sua decisão, em relação às provas produzidas, na sua íntima convicção, formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo e somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei (v.g. força probatória plena dos documentos autênticos - cfr. art.º 371º do Código Civil) é que não domina na apreciação das provas produzidas o princípio da livre apreciação (cfr a este respeito Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, IV vol., Coimbra Editora, 1987, pág. 566 e seg. e Antunes Varela e Outros, Manual de Processo Civil, 2ª. Edição, Coimbra Editora, 1985, pág.660 e seg.).
Para a formação da convicção do juiz concorre a sua experiência de vida e de conhecimento das pessoas, podendo nos termos dos art.º 349º e 351º do Código Civil socorrer-se de presunções judiciais, que são ilações que o julgador tira de factos conhecidos para firmar factos desconhecidos: o seu funcionamento depende da conexão entre factos, em que a verificação de factos provados, atentas as regras da experiência comum, os princípios da lógica corrente e os dados da intuição humana, faz admitir a existência de factos não provados.
Invocou a apelante, relativamente ao que consta do ponto 11) dos Factos Provados, que não foi efectuada prova do não pagamento do preço da compra e venda e que do valor global - € 135.000,00 – apenas ficou por pagar € 1.431,07. Diz que a testemunha J… C… confirmou que o montante correspondente ao preço foi recebido pelos insolventes A… F… B… e M… M… F… e que o mesmo foi utilizado para pagar dívidas da sociedade R… e também para pagamento de pessoal que estava na sociedade Ram… Sustenta que deve ser considerada provada a seguinte factualidade: “Da totalidade da contrapartida correspondente ao preço do imóvel declarado na escritura - € 135.000,00 -, a A. pagou aos insolventes o montante de € 133.588,93”.
Ficou a constar do aludido ponto dos Factos Provados: “11- Não foi paga aos insolventes a contrapartida correspondente ao preço do imóvel declarado na escritura;”
Ouvido o depoimento de J… P… C…, que foi Revisor Oficial de Contas da A. e da sociedade R… – Sistemas de Informação, SA, declarou que esta sociedade começou a ter dificuldades de fundo de maneio e o insolvente queria pôr a casa à venda para realizar capital. Declarou que o próprio disse ao insolvente que, a vender, teria que reservar o usufruto para si.
Disse que o insolvente “não pôs” o dinheiro em conta da R…, mas na Ram…, que “era filha da R…”, porque se o tivesse depositado na conta daquela, a Caixa … utilizaria logo o dinheiro para pagamento dos créditos que já se encontravam em incumprimento pela R… Declarou que o dinheiro fazia muita falta para pagar salários, impostos e a alguns fornecedores desta sociedade e que seria a Ram… a fazer estes pagamentos. Disse que o dinheiro “entrou por conta corrente da R…” e quando esta, que era a principal cliente da Ram…, tivesse que efectuar pagamentos se faria o respectivo abatimento. Disse que a M… tinha interesse no negócio, em termos de investimento, porque quando o usufruto se extinguisse ficava com um imóvel com mais valor do que aquele pelo qual foi adquirido. Referiu que a M… entregou € 135.000,00 ao Sr. A… e que este emitiu um cheque a favor da Ram… no valor de € 100.000,00, não obstante não ter declarado que tenha presenciado tal pagamento. Referiu que, sendo a R… “dona da Ram… a cem por cento”, o dinheiro entrou na Ram… para evitar ser logo retido pela banca.
Disse que o dinheiro foi transferido da A. para o insolvente, que na altura houve um aumento de capital na M… e que foi com esse dinheiro que a mesma pagou o preço do imóvel, tendo o dinheiro sido depositado na Ram…
Não se encontra junto qualquer documento demonstrativo do pagamento de qualquer quantia pela M… a título de preço do imóvel e o depoimento da testemunha também não permite esclarecer quando e de que conta bancária da M… teria saído o dinheiro para o pagamento que disse ter sido efectuado. Também não resulta do depoimento da testemunha que a mesma tenha consultado documentos comprovativos desse mesmo pagamento. Falou num aumento de capital que o terá permitido, mas não se encontram juntos documentos contabilísticos que comprovem o aludido pagamento.
Na escritura de compra e venda do imóvel ficou a constar que o preço seria pago no dia 9 de Maio de 2019, ou seja, no dia a seguir à celebração da escritura e, como se diz na sentença recorrida, dos documentos 59 a 63 juntos com a petição inicial apenas resulta que no 16 de Maio de 2019 foi depositado na conta da Ram… junto do Banco… um cheque emitido pelo insolvente A… B…, desconhecendo-se de todo qual a origem desse montante.
O documento nº 2 junto com a petição trata-se de um documento intitulado “Saldos e Movimentos” e consta do mesmo: “Conta Prestige”, bem como a inscrição, entre outros, do seguinte:“10-05-2019 – TRF. P/O M… INVESTIMENTOS SG – 133.568,93” e ainda “13-05-2019 – “TRF. P/O M… INVESTIMENTOS SG – 1.431,07”. Todavia, no aludido documento não se encontra identificada qualquer conta bancária a que possa respeitar, não resultando de todo demonstrado que a quantia em causa tenha sido transferida de conta bancária da compradora para conta da titularidade dos insolventes.
Assim, contrariamente ao invocado pela apelante, o depoimento da testemunha J… C… e os documentos não permitem a prova do pagamento do preço pela compradora aos insolventes, nada impedindo que se considerem provados factos negativos. Não há, pois, fundamento para alterar o constante do referido ponto dos factos provados.
Sustentou ainda a mesma apelante que o segmento – “os insolventes já sabiam que face às dificuldades que atravessavam a insolvência estava próxima” plasmado no ponto 14- dos Factos Provados deve ser eliminado por conclusivo e que os insolventes não atravessavam quaisquer dificuldades. Diz que as responsabilidades destes decorrem, exclusivamente, de garantias prestadas à sociedade R…, que viu um plano de revitalização aprovado em Janeiro de 2020 e que apenas veio a ser declarada insolvente em 4 de Junho do mesmo ano. Diz que à data da celebração do contrato de compra e venda, os devedores não estavam em situação de insolvência, nem esta estava próxima.
Como resulta do artº 607º, nº4, do C.P.Civil, o julgamento da decisão de facto há-de incidir sobre a realidade dos factos concretos e individualizáveis trazidos aos autos. São estes que têm que ser declarados provados e não provados, o que significa que deve ser suprimida toda a matéria deles constante susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, juízos de valor ou conclusivos.
Segundo elucida Anselmo de Castro “são factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os factos reais, como os simplesmente hipotéticos”, depois acrescentando que “só, (…), acontecimentos ou factos concretos no sentido indicado podem constituir objecto da especificação e questionário (isto é, matéria de facto assente e factos controvertidos), o que importa não poderem aí figurar nos termos gerais e abstractos com que os descreve a norma legal, porque tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste” – cfr Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, Coimbra, vol. III, 1982, p. 268/269.
Só os factos materiais são susceptíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados. As conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, decorrem dos factos provados e não podem elas mesmas serem objecto de prova [cfr. Acórdãos do STJ de 19.4.2012, Proc.º 30/08.4TTLSB.L1.S1, Pinto Hespanhol; de 23/05/2012, proc.º 240/10.4TTLMG.P1.S1, Sampaio Gomes; de 29/04/2015, Proc .º 306/12.6TTCVL.C1.S1, Fernandes da Silva; de 14/01/2015, Proc.º 488/11.4TTVFR.P1.S1, Fernandes da Silva; 14/01/2015, Proc.º 497/12.6TTVRL.P1.S1, Pinto Hespanhol, todos disponíveis em http://www.dgsi.pt/jstj].
O aludido teor do ponto 14- dos Factos Provados não permite a individualização da materialidade em causa, tendo carácter conclusivo.
No entanto, atento o disposto no artº 662º, nºs 1 e 2, al. c) a contrario do C.P.Civil, há que que apreciar o que resulta da prova produzida em termos de factualidade concreta no que a tal concerne. Com efeito, importa verificar se o referido, mesmo com uma componente conclusiva, não tem ainda um substrato relevante para o acervo dos factos que importam para uma decisão justa, não se justificando, neste caso, a eliminação pura e simples de tal ponto da matéria provada – cfr neste sentido Ac. do STJ de 14/07/2021, relator: Júlio Gomes, Proc. nº 190351/17.8T8PRT.P1, o qual pode ser consultado in www.dgsi.pt.
Conforme resulta do depoimento da testemunha J… C…, aquando da celebração da escritura pública de compra e venda os insolventes tinham conhecimento que a sociedade R… tinha deixado de pagar as prestações relativas aos contratos de mútuo que tinha celebrado com instituições bancárias, em virtude de não dispor de meios económicos para o efeito, contratos esses em relação aos quais os insolventes haviam concedido garantias a título pessoal.
Por sua vez, resulta do ponto 12. dos Factos Provados que «Quando, em 04.06.2020, a “R… S.A.” foi declarada insolvente, sendo o conselho de administração composto pelos insolventes, tinha dívidas vencidas de quantia superior a € 7.584.527,00».
Assim, o ponto 14- dos Factos Provados deve passar a ter a seguinte redacção:
14. Em Maio de 2019 – data em que foi realizado o negócio de venda do imóvel – os insolventes tinham conhecimento que a sociedade R…, SA, tinha deixado de pagar, em virtude de não dispor de meios económicos para o efeito, as prestações relativas aos contratos de mútuo que tinha celebrado com instituições bancárias e em relação aos quais os insolventes haviam concedido garantias a título pessoal.
No que concerne ao ponto 15- sustentou a apelante que se trata de matéria totalmente conclusiva, pelo que deve ser eliminada.
Tem-se entendido, na jurisprudência e na doutrina, que as respostas do julgador de facto sobre matéria qualificada como de direito consideram-se não escritas e que se equiparam às conclusões de direito, por analogia, as conclusões de facto, isto é, os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados – cfr Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 637-638.
Como se disse supra, do elenco dos factos relevantes para a decisão a proferir não devem constar juízos conclusivos ou de valoração normativa. Tais juízos, a relevar, relevam sim, mas em sede de subsunção dos factos ao direito aplicável, isto é, noutra sede que não nesta. Consequentemente, afirmações totalmente conclusivas, sobretudo quando correspondam ao objecto do litígio ou à questão a decidir, confundindo-se com o conceito relevante da solução jurídica da causa, devem ser excluídas ou consideradas não escritas. Deve ter-se por não escrita a enunciação que encerre um juízo contendo em si mesma a decisão da própria causa.
Consta do supra aludido ponto dos Factos Provados: “15- O negócio celebrado causou prejuízos aos credores dos insolventes, que deixaram de poder ver satisfeitos os seus créditos, ainda que parcialmente, com o produto da venda do imóvel identificado supra”.
Esta matéria tem carácter absolutamente conclusivo, encerra exclusivamente conceitos relevantes em termos de solução jurídica, não contendo qualquer substrato relevante em termos de facto, pelo que deve ser eliminado o ponto 15- dos Factos Provados.
No que concerne aos Factos considerados Não Provados, sustentou a apelante que deve ser considerado provado o que o tribunal a quo fez constar como não provado sob a alínea a), ou seja, que o produto da venda foi depositado na conta da Ram… em virtude de sempre que a conta da R… era creditada com pagamentos, a Caixa … debitar tais valores para reduzir o montante relativo ao contrato de abertura de crédito celebrado com a mesma, o que provocava a constante falta de liquidez da R… Diz que tal resulta do teor dos documentos nºs 59 a 63 juntos com a petição inicial e do declarado pelas testemunhas J… C… C… M…, L… P… e J… C…
Pelos fundamentos que supra ficaram referidos, o teor dos documentos nºs 59 a 63 e o declarado pela testemunha J… C… não permite a prova do pagamento do preço por parte da compradora, ora apelante.
J… C… C… M…, que trabalhou durante 40 anos para a sociedade R… – Sistema de Informação, SA, como coordenador administrativo e financeiro, declarou que a apelante prestava serviços de coordenação e administração à R… Referiu que o insolvente emitiu um cheque em nome pessoal, a título de empréstimo, à empresa R… para pagamento de salários e impostos, que a mesma não devolveu tal montante. Disse também que isso ocorreu em virtude de a R… não ter dinheiro para o pagamento de salários. Declarou desconhecer se esse fluxo financeiro teve origem na venda do imóvel em causa nos autos e disse que o cheque entrou para a conta da Ram…, por haver receio que, caso fosse depositado na conta da R…, viesse o respectivo montante a ser imediatamente afecto pela Caixa … para amortizar os créditos de que esta era titular.
L… R… C… S… Pereira, que foi funcionária administrativa da sociedade R… – Sistema de Informação, SA, entre 2009 e 2019, referiu que a Ram… prestava serviços para a R…, sendo esta a única cliente daquela. Aludiu às dificuldades financeiras da R… e que houve uma injecção de dinheiro da esfera pessoal do administrador A… B… para honrar os compromissos com os colaboradores, para com o Fisco e para com a Segurança Social.
Os elementos probatórios referidos não permitem a prova de que o dinheiro correspondente ao preço da venda do imóvel tenha sido depositado na conta da Ram…, pelo que improcede, nesta parte, a impugnação, devendo manter-se como não provada a factualidade constante da alínea a) dos Factos Não Provados.
No concerne ao plasmado na alínea b), trata-se de matéria de cariz totalmente conclusivo. Saber se a transmissão do imóvel teve, ou não, como objectivo defraudar os credores não tem de todo natureza factual, pelo que, pelos mesmos fundamentos que supra ficaram referidos, há que determinar igualmente a eliminação desta alínea dos factos não provados.
Quanto ao plasmado na alínea c), como se referiu, o depoimento da testemunha referida pela insolvente – J… C… -, não permite a demonstração que o produto da venda tenha sido afecto à actividade da R… e da Ram…, pelo que improcede nesta parte a impugnação.
E o mesmo se diga relativamente ao invocado no que respeita às alíneas d) e e) – pelos fundamentos supra referidos, os elementos probatórios invocados pela apelante não permitem a prova que a A. tenha transferido a quantia de € 133.568,93 para a conta dos insolventes e no que respeita ao plasmado na alínea f), não tendo ficado demonstrado que a A., ora apelante, procedeu ao pagamento aos insolventes do preço respeitante à venda do imóvel, é de todo irrelevante que passe a integrar os factos provados que em Maio de 2019 os insolventes depositaram na conta da Ram… a quanta de € 100.000,00. Por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for insusceptível, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente (cfr, entre outros, o Acórdão da Relação de Coimbra de 27.05.2014, relator: Moreira do Carmo, in www.dgsi.pt).
Sendo a referida matéria totalmente irrelevante para a decisão da acção em causa – acção de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente – e não permitindo os meios probatórios referidos pela apelante e que supra ficaram citados, como já se referiu por diversas vezes, -, a prova que tenha sido entregue pela A. aos insolventes qualquer quantia a título de contraprestação pela compra do imóvel, também não se pode dar como provado que a parte que excede os referidos 100.000,00 tenha sido utilizada pelos insolventes para pagar a fornecedores.
Sustentou, por último, que deve ser aditado aos Factos Provados que: “Por sentença datada de 07.01.2020 foi homologado o plano de revitalização da R…”.
Encontra-se junto com a petição inicial como doc. nº 41, cópia da sentença proferida em 07.01.2020 que homologou o plano de revitalização apresentado pela sociedade R… – Sistemas de Informação, SA., documento esse que não foi impugnado pela R.
Atento o disposto no nº 4 do artº 607º supra citado, aplicável ex vi do artº 663º, nº2, do C.P.Civil, na fundamentação do acórdão “o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”.
Assim, caso, na apreciação jurídica da causa, se venha a julgar relevante a factualidade em causa, será a mesma considerada pelo tribunal, não sendo necessário que passe a constar do segmento da decisão correspondente aos factos provados.
Pelo exposto, decide-se julgar parcialmente procedente a impugnação da decisão da matéria de facto deduzida pela apelante, determinando-se a alteração do ponto 14- dos Factos Provados nos termos supra referidos, a eliminação do ponto 15- dos Factos Provados, bem como da alínea b) dos Factos Não Provados.
Para uma melhor compreensão dos Factos Provados e Não Provados, passam-se a reproduzir os mesmos em conformidade com a decisão supra proferida:
Factos Provados
1. Em 06.04.2021 o Banco … requereu a insolvência de A… C… P… F… B… e M… M… R… B… F…, alegando ser titular de um crédito no valor total de € 256.413,34, resultante de uma livrança avalizada pelos requeridos, vencida a 06.08.2020, e subscrita pela sociedade comercial “R… - Sistemas de Informação S.A.”, a cuja administração pertenciam os insolventes;
2. Por escritura de compra e venda celebrada em 8 de Maio de 2019, A… C… P… F…. B… e M… M… R… B… F…declararam vender à aqui A. “M…SA” (de quem a insolvente era administradora única), pelo montante declarado de € 135.000,00, a nua propriedade do prédio urbano sito na Rua …, freguesia de …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …, inscrito na respetiva matriz sob o artigo …, reservando para si o usufruto vitalício do mesmo prédio, a extinguir à morte do último;
3. A casa acima referida era e continua a ser a casa de habitação dos insolventes;
4. Na escritura ficou a constar “Que o referido preço será pago no dia nove do corrente”;
5. O prédio é composto por uma moradia térrea, localizada em … , num terreno com a área total de 879,0000m2, área bruta de construção de 300,000m2 a que correspondem 190,000 m2 de implantação de edifício e 110,000m2 de área bruta dependente, com o valor patrimonial determinado em 2018 de 178.091,90€, possuindo garagem e espaço destinado a piscina;
6. A… C… P… F… B… e M… M… R… B… F… foram declarados insolventes por sentença proferida em 26 de Abril de 2021;
7. Foram reclamados e reconhecidos créditos no montante total de € 6.026 220,45, respeitantes a garantias pessoais prestadas pelos insolventes à sociedade comercial “R… - Sistemas de Informação, S.A.”;
8. Foram apreendidos até ao momento os seguintes bens pela AI: Veículo automóvel de matrícula Opel, de matrícula …, que foi liquidado pelo valor de € 2.455,00;
9. Por carta registada datada de 26 de Julho de 2021 e remetida para a A., a AI declarou a resolução do negócio celebrado entre aquela e os insolventes (mencionado em 2 supra), nos termos melhor descritos no escrito junto à petição inicial como doc. 1, cujo teor se dá por reproduzido, onde refere em resumo que o imóvel foi vendido abaixo do preço de mercado; que o valor pelo qual foi vendido o imóvel não saiu da conta bancária da A.; a insolvente mulher ser administradora única da A. e nessa qualidade a qualquer momento poderá voltar a integrar o seu património; tratar-se de sociedade anónima na qual se desconhecem os accionistas; não existir vontade negocial das partes, atendendo à constituição do usufruto a favor dos insolventes, sem qualquer contrapartida para a A.; a venda ter como único objectivo retirar o imóvel da esfera jurídica dos insolventes, para não cumprirem os compromissos financeiros que tem junto dos credores; os insolventes continuam a residir no imóvel e a suportarem as obrigações fiscais e tratar-se de um negócio jurídico simulado prejudicial à massa insolvente;
10. O valor de mercado do prédio à data de realização da escritura era de € 359.634,00, reduzindo-se para € 269.720,00 considerando-se o usufruto constituído;
11. Não foi paga aos insolventes a contrapartida correspondente ao preço do imóvel declarado na escritura;
12. Quando, em 04.06.2020, a “R…S.A.” e foi declarada insolvente, sendo o conselho de administração composto pelos insolventes, tinha dívidas vencidas de quantia superior a € 7.584.527,00;
13. A “Ram…, SA”, quando foi declarada insolvente, em 15.06.2020, tinha dívidas vencidas de quantia superior a € 268.835,71, sendo seu administrador único o insolvente;
14. Em Maio de 2019 – data em que foi realizado o negócio de venda do imóvel – os insolventes tinham conhecimento que a sociedade R…, SA, tinha deixado de pagar, em virtude de não dispor de meios económicos para o efeito, as prestações relativas aos contratos de mútuo que tinha celebrado com instituições bancárias e em relação aos quais os insolventes haviam concedido garantias a título pessoal.
15. eliminado
16. A sociedade comercial A. foi constituída em 2014 e tem por objecto a compra, venda e locação de bens móveis e imóveis e revenda dos adquiridos para esse fim. Consultadoria para os negócios e gestão.
*
ii. Factualidade Não Provada:
a) O produto da venda foi depositado na conta da Ram… e não na conta da R… ou dos insolventes porque sempre que a conta era creditada com pagamentos, a Caixa… debitava tais valores para reduzir o valor da abertura de crédito o que provocava a constante falta de liquidez da R…;
b) eliminada
c) Os insolventes não pretenderam esconder nada, por saberem antecipadamente que o produto da venda seria afetado à actividade da R… e da Ram…;
d) Por uma questão de falta de liquidez momentânea da A., apenas foi transferida para a conta dos insolventes o montante de € 133.568,93, ficando os insolventes com um crédito sobre a A. no valor de € 1.431,07;
e) No dia 10 de Maio de 2019, a A. transferiu para a conta dos insolventes a quantia de € 133.568,93;
f) No dia 15 de Maio de 2019, os insolventes depositaram na conta da “Ram…” a quantia de € 100.000,00, tendo os restantes € 50.000,00 sido consumidos em pagamentos efetuados a fornecedores diretamente pelo insolvente.
*
C) Da verificação dos fundamentos para a resolução
No caso presente, pretende a apelante a impugnação da resolução em benefício da massa insolvente do contrato de compra e venda celebrado entre aquela e os insolventes, mediante escritura pública outorgada no dia 8 de Maio de 2019.
A acção de impugnação da resolução é uma acção de simples apreciação negativa, uma vez que com ela se pretende, apenas, obter a declaração da inexistência do direito à resolução exercido pelo administrador de insolvência – cfr artº 343º, nº1, do C. Civil.
Como refere Marisa Vaz Cunha, in Garantia Patrimonial e Prejudicialidade, Almedina, 2017, pág. 288: «Com efeito, não existem dúvidas quanto à qualificação da acção com acção declarativa de simples apreciação. Nos termos da al. a) do nº 3 do artigo 10º do CPC, estas acções visam obter unicamente a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto. É o que está em causa no disposto no artigo 125º: saber se pode ser resolvido em benefício da massa o acto prejudicial invocado pelo administrador da insolvência.»
Assim, no que se refere ao ónus da prova compete ao administrador da insolvência a prova dos factos que invoca como fundamento da resolução do contrato, que são constitutivos do direito de o resolver, enquanto que o impugnante fica onerado com a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos desse direito, de acordo com o disposto no n.º 2 do art.º 342.º do mesmo Código.
Conforme Gravato de Morais, in A resolução em benefício da massa insolvente no CIRE, pág. 167, seguido pelos Acs do Tribunal da Relação de Lisboa de 24.09.2009, proc. 725/06.7TbTVD- I. L1-8 (Relator António Valente) e 09.03.2010, proc. 520/06.3TBLNH-F.L1-7 (Relator Pires Robalo), cabe ao Autor a prova dos factos extintivos do direito à resolução e esses factos concretizam-se naqueles que demonstram que não se verificou o direito arrogado pelo administrador da insolvência, conforme o disposto no nº 2 do artigo 342º do CC.
Estabelece o artigo 120º do CIRE: “1- Podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os atos prejudiciais à massa praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência. 2- Consideram-se prejudiciais à massa os atos que diminuam, frustrem, dificultem, ponham em perigo ou retardem a satisfação dos credores da insolvência. 3- Presumem-se prejudiciais à massa, sem admissão de prova em contrário, os actos de qualquer dos tipos referidos no artigo seguinte, ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos aí contemplados. 4-Salvo nos casos a que respeita o artigo seguinte, a resolução pressupõe a má-fé do terceiro, (…) 5- Entende-se por má-fé o conhecimento, à data do ato, de qualquer das seguintes circunstâncias: a) De que o devedor se encontrava em situação de insolvência. b) Do caráter prejudicial do ato e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente. c) Do início do processo de insolvência. (…)”
O artigo seguinte, sob o título “Resolução Incondicional”, estabelece que são resolúveis em benefício da massa insolvente os actos referidos no nº 1, sem dependência de quaisquer outros requisitos, prevendo-se ali, entre outros, “actos celebrados pelo devedor a título gratuito dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência, incluindo o repúdio de herança ou legado, com excepção dos donativos conformes aos usos sociais” – cfr alínea b).
Com efeito, o regime contempla no artigo 120º a resolução condicional e no artigo 121º a resolução incondicional. «De acordo com o disposto no art. 120.º, n.º 1 do CIRE podem ser resolvidos em benefício da massa insolvente os atos (ao que parece, apenas do insolvente prejudiciais à massa praticados dentro dos dois anos anteriores à data do início do processo de insolvência). Pretende a lei, em vista da garantia que o património do devedor deve normalmente poder representar para os seus credores, neutralizar certos atos do insolvente que possam colocar em causa essa garantia. Conforme o n.º 2 do mesmo artigo, são atos prejudiciais à massa aqueles que diminuem, frustram, dificultam, põem em perigo ou retardam a satisfação dos credores da insolvência. Alguns desses atos presumem-se prejudiciais à massa, sem admissão de prova em contrário (n.º 3 do mesmo artigo): são os atos taxativamente identificados no art. 121.º do CIRE (resolução incondicional). Os demais atos do insolvente que possam ser prejudiciais à massa só relevam (resolução “condicional”) se houver má-fé do terceiro envolvido. Tal má-fé presume-se (presunção que, porém, pode ser afastada pelo insolvente e pelo terceiro) quanto a atos cuja prática tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e em que tenha participado ou de que se tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o insolvente (sendo essa pessoa alguma das indicadas no art. 49.º do CIRE). É o que resulta do n.º 4 ainda do mesmo art. 120.º.» - cfr Acórdão do STJ n.º 3512/17.3T8STR-C.E1.S1 de 7.7.2021, in DGSI.
A resolução incondicional basta-se com o preenchimento das situações previstas no nº1 do artigo 121º, dispensando-se a alegação e prova dos aludidos requisitos da resolução condicional, designadamente o carácter prejudicial à massa e a má-fé de terceiro.
Vejamos o que resultou demonstrado com relevância para a decisão:
Por escritura de compra e venda celebrada em 8 de Maio de 2019, A… C… P… F… B… e M… M… R… B… F… declararam vender à A. “M… SA” (de quem a insolvente era administradora única), pelo montante declarado de € 135.000,00, a nua propriedade do prédio urbano sito na Rua …, freguesia de …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …, inscrito na respectiva matriz sob o artigo …, reservando para si o usufruto vitalício do mesmo prédio, a extinguir à morte do último.
O valor de mercado do prédio à data de realização da escritura era de € 359.634,00, reduzindo-se para € 269.720,00 considerando-se o usufruto constituído.
Foi declarado na escritura que o preço seria pago no dia seguinte, pagamento esse que não foi efectuado.
O imóvel identificado era e continua a ser a casa de habitação dos insolventes.
O facto de o preço não ter sido pago não permite concluir que se tenha tratado de um negócio gratuito, não se podendo confundir o incumprimento do pagamento da contraprestação com a gratuidade do contrato e tão pouco os factos provados são suficientes para que se possa dizer que a venda tivesse sido simulada. A simulação de determinado negócio supõe, conforme António Menezes Cordeiro, in Tratado de Direito Civil, Parte Geral, Tomo I-, 2ª edição, pág. 631:
a) divergência entre a vontade real e a vontade declarada,
b) intuito de enganar terceiros e
c) acordo simulatório – artº 240º do C. Civil – pressupostos que in casu os factos provados não revelam. Como diz o mesmo autor, in ob. e pág. cits, “o intuito de enganar terceiros – a não confundir com a intenção de os prejudicar – prende-se com a actuação (logo: voluntária) de criar uma aparência”.
É à Administradora da Insolvência que incumbe a demonstração dos factos constitutivos do direito de resolver e, nos termos expostos, a factualidade apurada não permite concluir que estejamos em presença de um acto gratuito.
Todavia, ficou demonstrado que em Maio de 2019 – data em que foi realizado o negócio de venda do imóvel – os insolventes tinham conhecimento que a sociedade R…, SA, não dispunha de meios económicos suficientes para proceder ao pagamento das prestações relativas aos contratos de mútuo que tinha celebrado com instituições bancárias e em relação aos quais os insolventes haviam concedido garantias pessoais.
A devedora mulher, que veio a ser declarada insolvente juntamente o devedor marido, era, à data da celebração da escritura, administradora única da sociedade compradora, ora apelante.
Como referem José Ferreira Gomes e Diogo Costa Gonçalves, in A Imputação de Conhecimento às Sociedades Comerciais, Almedina, 2018, pág. 84: “(…) o juízo de imputação de conhecimento à sociedade opera por duas vias: quando o sujeito que atua por conta desta, e tendo em conta a normatividade relevante para o caso, conhecia a informação em causa ou, não conhecendo, devia conhecer. (…) A primeira via de imputação é definitivamente mais simples: se o sujeito que atua por conta da sociedade conhecia os factos, esse conhecimento é imputado à sociedade, independentemente de a informação ter sido recebida através de procedimentos adequadamente organizados pela sociedade ou fortuitamente. Trata-se de uma adequada distribuição de esferas de risco, justificada pela necessidade de protecção do comércio jurídico: à sociedade cabe suportar o risco do conhecimento daquele que atua por sua conta. O regime constante do artº 295º CC, pese embora a sua insuficiência dogmática, pode aqui ser um arrimo juspositivo relevante na decisão de imputação, (…)”.
A insolvente mulher, administradora única da ora apelante M… – Investimentos e Gestão, SA, tinha conhecimento que a sociedade R…, SA, tinha deixado de pagar, em virtude de não dispor de meios económicos para o efeito, as prestações relativas aos contratos de mútuo que tinha celebrado com instituições bancárias e relativamente aos quais os insolventes haviam concedido garantias pessoais. Tinha igualmente que ter conhecimento que a própria e o seu marido também não dispunham de meios económicos que permitissem o pagamento, como se veio a apurar nos autos de insolvência. Sendo a mesma administradora única da sociedade compradora, esse conhecimento não pode deixar de ser imputado à sociedade.
Como se viu, para que seja válida a resolução condicional, é necessário que se encontrem verificados os seguintes pressupostos:
1. Que o acto praticado pelo insolvente seja prejudicial à massa.
2. Que tenha sido praticado nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência e
3. Que o terceiro tenha agido de má-fé.
Atenta a matéria provada, o primeiro pressuposto está preenchido, pois ficou demonstrado que o imóvel foi objecto de venda e não foi apreendida para a massa insolvente qualquer quantia que haja sido recebida a título de contrapartida por esse negócio.
O segundo pressuposto encontra-se igualmente verificado, uma vez que a escritura pública de compra e venda foi outorgada em 8 de Maio de 2019 e o processo de insolvência teve início em 06 de Abril de 2021, ou seja, aquela foi realizada dentro do prazo dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.
No que concerne ao requisito da má fé relativo à pessoa da compradora, ora apelante, ele encontra-se igualmente preenchido, dado que a legal representante desta tinha conhecimento que as instituições bancárias, beneficiárias das garantias iriam exigir judicialmente da própria e do seu marido o pagamento das quantias em dívida por força dos financiamentos concedidos, na ordem dos milhões de euros, à sociedade R… e que os próprios não tinham meios disponíveis para proceder a tal pagamento, ou seja, tinha conhecimento que se encontravam em situação de insolvência iminente. Como referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in CIRE anotado, Lisboa, Quid Juris, 2008, pág. 73: “A iminência da insolvência caracteriza-se pela ocorrência de circunstâncias que, não tendo ainda conduzido ao incumprimento em condições de poder considerar-se a situação de insolvência já actual, com toda a probabilidade a vão determinar a curto prazo, exactamente pela insuficiência do activo líquido e disponível para satisfazer o passivo exigível. Haverá, pois, que levar em conta a expectativa do homem médio face à evolução normal da situação do devedor, de acordo com os factos conhecidos e na eventualidade de nada acontecer de incomum que altere o curso dos acontecimentos”.
Contrariamente ao que invocou a apelante, encontram-se preenchidos os requisitos para a resolução condicional do negócio declarada pela administradora de insolvência, conforme carta registada datada de 26/07/2021, enviada à apelante, onde aquela invocou expressamente cada um dos fundamentos com base nos quais entendia estarem também verificados os pressupostos para a resolução do negócio.
Assim, deve ser mantida a sentença que julgou improcedente os pedidos de impugnação da resolução da escritura pública de compra e venda realizada no dia 8 de Maio de 2019 referente à nua propriedade do prédio urbano sito na Rua …, freguesia de …, concelho de …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º …, inscrito na respectiva matriz sob o artigo …, com reserva para os insolventes do usufruto vitalício do mesmo prédio, a extinguir à morte do último dos mesmos.
* IV - DECISÃO
Por todo o exposto, acordam as Juízas deste colectivo em julgar improcedente a apelação e, consequentemente, mantém-se a sentença recorrida.
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Custas pela apelante – artº 527º, nº1, do C.P.Civil.
Registe e notifique.
Lisboa, 17/06/2025
Manuela Espadaneira Lopes
Paula Cardoso
Isabel Maria Brás Fonseca