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DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA DE PESSOA SINGULAR
PATRIMÓNIO
LIQUIDEZ
Sumário
Sumário[1] 1 – A indicação como meio probatório que impõe decisão diversa sobre a matéria de facto de “todo o acervo documental” não cumpre a previsão da al. b) do nº1 do art. 640º do CPC, que impõe indicação dos documentos em concreto. 2 – O critério de insolvência previsto no nº2 do art. 3º do CIRE, a manifesta superioridade do passivo sobre o ativo, é de aplicação restrita às pessoas coletivas e patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma direta ou indireta, não sendo aplicável às pessoas singulares. 3 - A demonstração da existência de património de um devedor pessoa singular é relevante na medida da demonstração da respetiva capacidade para ser transformado em liquidez que possibilite o pagamento do crédito do requerente. 4 - Dissipação implica uma situação de destruição, total ou parcial, de consumo, de gasto, de dispersão, desvanecimento ou desfazimento no que concerne à integridade do bem e para o seu preenchimento e da al. d) do nº1 do art. 20º do CIRE teríamos que ter apurados factos que nos permitissem concluir que o requerido havia feito desaparecer, desvalorizado ou alienado o seu património (conhecido). 5 – A cedência pelo devedor de quotas de que era titular (cujo valor de mercado não foi apurado) a sociedade de que era sócio e a transmissão, por esta sociedade, do seu património imobiliário (de valor não apurado) para outra sociedade que detém, constitui, não uma dissipação de património, mas sim a colocação do património conhecido do devedor em situação jurídica que limita e dificulta a satisfação dos seus credores com recurso a este, afastando-o do conceito de liquidez que poderia ser argumentada para prova da solvência e concorrendo para o preenchimento da al. b) do nº1 do art. 20º do CIRE.
[1] Da responsabilidade da relatora - art. 644º, nº7 do CPC.
Texto Integral
Acordam as Juízas da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa
1. Relatório
Flucti – Serviços de Planeamento Financeiro, Lda, intentou a presente ação declarativa com processo especial requerendo a declaração de insolvência de A
Para tanto alegou, em síntese, ser credora do requerido no montante global de € 81.250,00, correspondente ao preço de duas quotas cedidas ao requerido em 2018, e a cujo pagamento integral este não procedeu, incumprindo as prestações acordadas a partir de 30/09/2019, acrescendo juros de € 16.134,25.
O requerido entregou as quotas de que era titular nas sociedades Terminus da Carne, Lda, Latitude dos Temperos, Lda, Cristicarnes, Lda e Conteúdo Explêndido, Lda como prestações acessórias gratuitas a outra sociedade de que é sócio, a Ardiepa, SA. Intentou arresto contra o requerido e a sociedade Ardiepa, SA, tendo sido decretado o arresto, posteriormente convertido em penhora, das quotas do requerido nesta sociedade. A sociedade em causa procedeu a um aumento do capital social, que o requerido não acompanhou, ficando a sua participação reduzida a 4,2% e transformou-se em sociedade anónima. O requerido, na sua qualidade de sócio gerente da Ardiepa constituiu uma nova sociedade, a Condado Refrescante, SA, da qual a Ardiepa é a única acionista e transferiu para aquela todos os imóveis que integravam o património da Ardiepa, SA.
É desconhecida a existência de património do requerido e este é ainda avalista daquelas sociedades junto de várias instituições bancárias. Tem sido muito difícil o contacto com o requerido.
Considera verificada a situação prevista na al. b) do nº1 do art. 20º do CIRE.
Citado o requerido deduziu oposição, pedindo a sua absolvição do pedido e, subsidiariamente, a concessão da exoneração do passivo restante.
Alegou, em síntese, que o património da sociedade Ardiepa, SA ficou mais rico com as prestações acessórias que realizou, e que as quotas que possui na Latitude dos Temperos e na Ardiepa foram penhoradas e assim se mantêm, sendo o seu património o mesmo, não tendo ocorrido qualquer dissipação patrimonial e que não foi alegado nem demonstrado que esteja impossibilitado de cumprir as suas obrigações.
Caso seja decretada a insolvência, pede lhe seja concedida a exoneração do passivo restante, alegando para o efeito ter três filhos menores, em guarda partilhada, pagando € 450,00 mensais para o sustento dos mesmos, estar desempregado e não auferir rendimentos ou apoios sociais, tendo as despesas de renda, alimentos, medicamentos e vestuário.
Por despacho de 18/11/2024 foi convidado o requerido a “vir identificar a totalidade do seu ativo e passivo, dizendo quais os bens (imóveis e móveis) e rendimentos (remunerações ou outros) que detém e quais as dívidas, especificando as já vencidas. No caso de participações sociais, deve identificar a sociedade, indicar o valor das participações, por referência ao capital social, e o valor de mercado das participações, em face do ativo e passivo da sociedade.”, convite que não obteve resposta.
Foi ordenada a pesquisa de processos pendentes contra o devedor.
A requerente veio, na sequência de despacho nesse sentido, informar do estado da execução intentada contra o requerido.
Foi proferido despacho designando dia para realização de audiência de julgamento.
Realizou-se audiência de julgamento na qual foi proferido despacho saneador, fixado o objeto do processo e indicados os temas da prova.
Em 19/03/2025 foi proferida sentença que declarou a insolvência do requerido.
Inconformado, apelou o requerido, pedindo seja revogada a sentença recorrida e substituída por outra que declare que o recorrente não está insolvente, apresentando as seguintes conclusões:
“A) Está provado que o Recorrente é sócio da Ardiepa e tem as suas quotas na referida sociedade penhoradas a favor da Recorrida.
B) Ficou, igualmente, provado que a Ardiepa transmitiu todos os seus imóveis para a Condado Refrescante SA., por si detida.
C) O que significa que, o Recorrente é sócio da sociedade Ardiepa que detém a sociedade Condado Refrescante, S.A., que possui bastante património.
D) O património da Ardiepa – Importação e Exportação de Produtos Alimentares, Lda., ficou mais rico com as prestações acessórias gratuitas, logo também as participações sociais detidas pelo Recorrente ficaram mais valorizadas, logo não se verifica a existência de qualquer dissipação do património do Requerido
E) O Recorrente não ter acompanhado um aumento de capital não representa um acto de diminuição patrimonial, pois o Requerido continua a deter o mesmo património, ou seja,
F) O Recorrente não alienou, doou ou transmitiu património por qualquer forma para que os seus bens ficassem reduzidos.
G) Quando foi realizado o aumento de capital já as quotas estavam penhoradas, o que significa que, o Recorrente não praticou qualquer acto de diminuição patrimonial, antes pelo contrário, manteve o mesmo património.
H) Já não existem acções ao portador.
I) Logo, os fundamentos do Tribunal a quo para dar como não provado que “as reestruturações sociais, aumento de capital e transmissão de imoveis para a sociedade Ardiepa visaram objectivos de incremento do património social, aumentando o valor das participações sociais penhoradas pela requerente.”, não tem sentido nem qualquer lógica.
J) Assim, de todo o acervo documental junto, fica demonstrado que o Tribunal tem que dar como provado que “as reestruturações sociais, aumento de capital e transmissão de imoveis para a sociedade Ardiepa visaram objectivos de incremento do património social, aumentando o valor das participações sociais penhoradas pela requerente.” devendo a sentença recorrida ser revogada nesta parte.
K) Concluindo, com base na prova documental, o Recorrente não diminuiu a sua situação patrimonial, antes pelo contrário, o Recorrente é titular de participações sociais em sociedades que hoje têm mais património do que tinham antes das prestações acessórias gratuitas realizadas por terceiros e, por conseguinte, existe uma ambiguidade na sentença recorrida que deve determinar a sua revogação e substituição por outra que determine a absolvição do Recorrente.”
Contra-alegou a recorrida, pedindo seja o recurso julgado improcedente e formulando as seguintes conclusões:
A) O recurso apresentado pelo Recorrente visa contestar a Sentença prolatada no pretérito dia 19 de março, que o declarou insolvente, no entanto, a fundamentação vertida não impugna especifica e concretamente a matéria de facto que sustenta a decisão final;
B) Apesar de parecer pretender uma modificação da matéria de facto, verifica-se no caso sub júdice a inobservância por parte do Recorrente dos requisitos legais exigidos para a impugnação da decisão factual, nos termos dos artigos 662.º e 640.º do Código de Processo Civil, aplicáveis ao processo de insolvência por força do artigo 17.º do CIRE;
C) O artigo 640.º, n.º 1 do CPC exige que o Recorrente não só identifique claramente os factos que considera incorretamente julgados, como também os meios de prova concretos que impõem uma apreciação distinta;
D) In casu, o Recorrente tenta reverter a decisão do tribunal que considerou não provado que as operações societárias (reestruturações, aumento de capital e transmissão de imóveis) pelo próprio concretizadas visavam o incremento do valor das participações sociais penhoradas, contudo, não elenca qualquer elemento probatório que sustente essa versão, limitando-se a invocar a sua interpretação dos factos provados;
E) Da argumentação aduzida pelo Recorrente nas suas alegações e respetivas conclusões, não só não resulta qualquer elemento que imponha decisão diversa, como aliás são invocados os factos provados por meio de prova documental como pontos assentes – vejam-se as conclusões A) e B);
F) Salvaguardado o devido respeito, parece-nos que está apenas a tentar reapreciar os factos já objeto de análise pelo Tribunal a quo, sem para o efeito concretizar os meios probatórios em que ancora a tese preconizada, limitando-se a discorrer sobre a interpretação que infere dos factos provados;
G) Em face do exposto, verifica-se que o Recorrente não cumpriu o ónus de impugnação previsto no artigo 640.º, n.º 1, al. b), motivo pelo qual as alegações apresentadas devem ser liminarmente rejeitadas;
H) Neste sentido, veja-se a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães em 12.10.2023: “Incumprindo o recorrente o ónus de impugnação previsto no art.º 640.º, n.º 1, do CPC (v.g. indicação dos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, especificação dos meios probatórios que impõem que sobre eles seja proferida uma decisão diferente, exactas passagens dos depoimentos que integrem tais meios probatórios gravados, e a decisão que deverá ser proferida sobre as questões de facto impugnadas), terá o seu recurso que ser rejeitado («sob pena de rejeição»), uma vez que no recurso relativo à matéria de facto não se admite despacho de aperfeiçoamento”;
I) O Recorrente encerra as suas conclusões apelando à revogação da decisão recorrida, que declarou a sua insolvência, e a substituição por outra que julgue improcedente essa declaração, sendo que, conforme já referido, tal pretensão não tem fundamento jurídico, já que o Recorrente não impugna os factos essenciais que sustentam a declaração de insolvência;
J) Nos termos do art. 3.º, n.º 1 do CIRE, a insolvência corresponde à impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas, todavia, o Recorrente não instruiu a sua contestação com qualquer meio probatório que atestasse sua situação financeira, nem tampouco a capacidade de pagamento atempado das suas obrigações, limitou-se a negar genericamente estar insolvente, o que não é suficiente;
K) Nos termos do art. 30.º, n.º 3 do CIRE, incumbe ao devedor, ora Recorrente, o ónus de provar a sua solvência, cumprir referir que, pese embora tenha sido expressamente convidado pelo Tribunal a quo a fazê-lo (por Despacho datado de 18/11/2024), o Recorrente optou pelo silêncio;
L) Saliente-se que a Sentença ora em causa teve por base a prova documental constante dos autos, o depoimento prestado por B e ainda as declarações do legal representante da Recorrida, encerrando a conclusão pela demonstração cabal da insuficiência económica e da incapacidade de pagamento do Recorrente, justificando assim a procedência da ação;
M) Na verdade, o Recorrente foca-se num único facto não provado (relacionado com a intenção das restruturações e alienações patrimoniais), mas ainda que tal facto fosse considerado provado pelo Tribunal a quo, não teria impacto na conclusão jurídica da declaração de insolvência, porquanto o Recorrente não logrou demonstrar ter liquidez ou solvência, sendo que as intenções das operações societárias não consubstanciam premissas relevantes para afastar a situação objetiva de insolvência;
N) Em suma, a argumentação aduzida pelo Recorrente afigura-se por demais descabida, já que não impugna a matéria de facto da qual resulta o preenchimento dos requisitos para a declaração de insolvência, apelando, no entanto, à improcedência da ação;
O) O Recorrente defende que o facto elencado como não provado na Sentença recorrida – de que as restruturações sociais, o aumento de capital e a transmissão de imóveis para a sociedade Ardiepa visaram o incremento do património social e valorização das participações sociais penhoradas – deveria ter sido dado como provado, contudo, a narrativa preconizada não encontra suporte nos elementos documentais juntos aos autos, que apontam precisamente em sentido contrário;
P) Desde logo, da certidão permanente da sociedade comercial Ardiepa (Documento n.º 8) resulta cabal que o Recorrente detém (ou detinha) duas participações sociais, que totalizam o valor nominal de 27.500.00 € (vinte e sete mil e quinhentos euros), representando cerca de 58% do capital social à data (50.000,00 €), donde se conclui que o Recorrente era sócio maioritário;
Q) As sobreditas quotas foram arrestadas em março de 2022 no seguimento de procedimento cautelar instaurado pela Recorrida contra o Recorrente e, posteriormente, convertidas para penhora no âmbito da ação executiva promovida pela Recorrida, que corre termos pelo Juiz 2 do Juízo de Execução de Lisboa sob o n.º 4864/22.9T8LRS - conforme Dep. 1786/2022-12-27 e Dep. 1787/2022-12-27 do Documento n.º 8;
R) Importa referir que a sociedade Ardiepa possuía um vasto espólio de ativos imobiliário, integrando sete imóveis na sua esfera jurídica, o que incrementava naturalmente as participações penhoradas;
S) Ora, o Recorrente protagonizou uma série de atos jurídicos premeditados que visavam reduzir significativamente o valor dessas participações e em última instância, impedir o ressarcimento do crédito detido pela Recorrida através da diminuição do património pessoal do Recorrente;
T) Tais operações consistiram essencialmente na realização de um aumento de capital no valor de 594.622,14 €, integralmente subscrito pela mãe do Recorrente, e não acompanhado por este, o que resultou numa redução da sua percentagem do capital social da Ardiepa para apenas 4,2%, perdendo, assim, o controlo da sociedade e os direitos inerentes à sua anterior posição de sócio maioritário – vide AP. 43/20220804 do Documento n.º 8;
U) Pretende o Recorrente criar no Tribunal ad quem a convicção de que detém as mesmas exatas participações sociais e, como tal, o mesmo património, todavia, tal conclusão não poderia estar mais desfasada da realidade jurídica envolvente;
V) Não se olvide o Recorrente que as duas quotas por si tituladas, pese embora mantenham o seu valor nominal, sofreram uma acentuada depreciação no que respeita ao valor real, de mercado, na sequência do aumento exorbitante de capital não acompanhado pelo Recorrente;
W) Verificou-se uma diminuição evidente do património real do Recorrente, consequência direta de um aumento de capital não acompanhado, que desvalorizou as suas quotas;
X) Não conformados, o Recorrente e a sua mãe constituíram a sociedade anónima Condado Refrescante, S.A., cuja única acionista é a Ardiepa, com o escopo único de fazer operar a transmissão de todos os imóveis da Ardiepa para esta nova entidade, o que concretizaram na data de 21 de dezembro de 2023 por meio de alegadas prestações acessórias gratuitas, configurando um esquema destinado a diluir o património executável e frustrar os direitos da credora (aqui Recorrida) – cfr. Documento n.º 11;
Y) Sumariando: o Recorrente era sócio maioritário de uma sociedade que integrava na sua esfera jurídica 7 imóveis; após o arresto e ulterior penhora das suas quotas detidas no capital social da Ardiepa, o Recorrente em comunhão de esforços com a mãe, realizou um aumento substancial de capital que propositadamente não acompanhou, passando a deter apenas o correspondente a 4,2%, ao invés dos anteriores 58%; por outro lado, a Ardiepa transferiu todos os seus imóveis para uma sociedade-veículo por si detida através da figura jurídica das prestações acessórias gratuitas e inclusivamente lesando o estado ao não liquidar o imposto de IMT devido
Z) Afigura-se manifestamente burlesca a filosofia inculcada pelo Recorrente nas suas alegações de recurso, em sede da qual defende que o património da sociedade Ardiepa “ficou mais rico”, e que as “participações sociais detidas pelo Recorrente ficaram mais valorizadas”, ignorando por completo o Documento n.º 11, que atesta amplamente a alienação dos imóveis da Ardiepa para a Condado Refrescante, bem como o aumento capital que reduziu drasticamente a percentagem detida pelo Recorrente;
AA) Não se acompanha a pertinência da fundamentação apresentada pelo Recorrente, porquanto dos documentos carreados para os autos, resulta inequívoco precisamente o contrário do que vem defendido;
BB) Na verdade, o Recorrente parece até olvidar-se que a esfera jurídica da Ardiepa e a esfera jurídica da Condado Refrescante não são confundíveis, pois que se trata de pessoas coletivas distintas: a Ardiepa não fica “mais rica” ao alienar todos o seu ativo imobiliário para uma outra sociedade…pelo que falece de imediato a argumentação oferecida pelo Recorrente nas alegações ora em resposta;
CC) A transferência de imóveis de uma sociedade com quotas penhoradas para outra sociedade aumenta os riscos de dissipação do património, pois a nova sociedade tem personalidade jurídica própria, com credores e responsabilidades distintas sendo que tratando-se de prestações gratuitas nem sequer trazem benefício para a socia Ardiepa mas somente para a sócia Condado Refrescante, Sa onde o requerido não é socio;
DD) Acresce ainda que o Recorrente diligenciou por transformar a Ardiepa (sociedade por quotas) em sociedade anónima, convertendo as quotas penhoradas em ações livremente transmissíveis, e dificultando o controlo sobre a alienação das participações sociais a terceiros;
EE) E tanto assim é, que a Agente de Execução responsável pela lide executiva que opõe as partes notificou o Recorrente (na qualidade de Executado), em novembro de 2024, para entregar os títulos das ações no prazo de 10 dias — o que não cumprir até à presente data;
FF) A Sentença recorrida não nos merece qualquer reparo e é inequívoca ao considerar provados o aumento de capital não acompanhado, a transformação da Ardiepa em sociedade anónima, bem como a transmissão de todos os imóveis que integravam a esfera jurídica da Ardiepa para a sociedade Condado Refrescante;
GG) Este conjunto de atos evidencia uma estratégia deliberada para diluir o património pessoal do Recorrente e da sua mãe, e, dessa forma, frustrar a satisfação do crédito da Recorrida, razão pela qual se rejeita a tese do Recorrente de que tais operações societárias visaram o reforço patrimonial da sociedade;
HH) Destarte, não pode deixar de se concluir que as alegações do Recorrente carecem em absoluto de fundamento factual e legal, devendo o presente recurso ser julgado manifestamente improcedente;”
O recurso foi admitido por despacho de 13/05/2025 (refª 165049421).
Foram colhidos os vistos.
Cumpre apreciar.
*
2. Objeto do recurso
Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art. 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
Consideradas as conclusões acima transcritas são as seguintes as questões a decidir:
- impugnação da matéria de facto;
- verificação dos pressupostos de declaração de insolvência do devedor.
*
Na conclusão K) do recurso interposto pelo apelante consta a alegação de que existe uma ambiguidade na sentença recorrida resultante de se entender que o recorrente não diminuiu a sua situação patrimonial e que, pelo contrário, é titular de participações sociais de sociedades que têm hoje mais património.
Nos termos do disposto no art. 615º nº1, al. c) do CPC é nula a sentença quando: «Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;»
A ambiguidade alegada é um erro de julgamento apontado à sentença e não uma ambiguidade que torne a decisão ininteligível e que possa ser classificada como nulidade da sentença.
Assim, consigna-se que não foi invocada a nulidade da sentença recorrida.
*
3. Fundamentos de facto:
O Tribunal de 1ª instância proferiu a seguinte decisão relativa à matéria de facto[1]:
“Factos provados relevantes para a decisão desta causa:
1 - A requerente cedeu ao requerido quotas da Terminus da Carne – Comércio da Carne, Lda. e Latitute dos Temperos Produtos Alimentares, Lda., sendo que o requerido deixou de efetuar as prestações acordadas desde 31/10/19, encontrando-se em falta o montante de €81.250, acrescido de juros.
2 - O requerido cedeu as quotas destas sociedades à agora Ardiepa – Importação e Exportação de Produtos Alimentares, SA.
3 - A requerente instaurou providência cautelar e ação executiva em que logrou a penhora de quotas sociais do Requerido na Ardiepa (anteriormente sociedade por quotas), com o valor nominal de €27.500, único ativo conhecido.
4 - Após a penhora, a Ardiepa efetuou aumento de capital não acompanhado pelo requerido, em que as quotas no valor nominal de €22.500 de C e de €5000 do requerido passaram para quotas de €614.122,14 de C e de €5.000 do requerido, tendo a participação do requerido sido reduzida para percentagem inferior a 10% (cfr. Insc. 3 – Ap. 543/20091026 e Insc. 6 – Ap. 43/20220804 da certidão permanente da Ardiepa).
5 - A Ardiepa transformou-se de sociedade por quotas para sociedade anónima.
6 - A Ardiepa transmitiu todos os seus imóveis para Condado Refrescante, SA, por si detida.
7 - O requerido é avalista de créditos concedidos a sociedades junto de instituições de crédito.
8 - O requerido é desempregado, sem subsídio e tem três filhos.
Não se provou que:
a) As participações sociais do Requerido penhoradas pela Requerente têm valor de mercado superior ao crédito da Requerente no valor de €81.250, acrescido de juros.
b) As restruturações sociais, aumento de capital e transmissão de imóveis para sociedade detida pela Ardiepa visaram objetivos de incremento do património social, aumentando o valor das participações sociais penhoradas pela requerente.
c) O requerido tem dívidas generalizadas a terceiros.
Inexistem outros factos relevantes provados ou não provados.
Os factos provados resultaram da análise crítica conjugada da abundante prova documental junta aos autos, com especial enfoque para certidões permanentes das sociedades, prédios e comprovativos da ação executiva, para além das declarações de parte do legal representante da requerente, D, e do depoimento da testemunha apresentada pela requerente, B, que efetuou a contabilidade das sociedades, os quais se afiguraram seguros, espontâneos e coerentes com o teor da documentação junta.
Os factos provados relativos a situação de desemprego, ausência de subsídio, e número de filhos foram declarados pelo próprio na sua oposição, em pedido de exoneração do passivo restante no caso de declaração da insolvência.
Os factos não provados resultaram de ausência de prova dos mesmos. O requerido não apresentou qualquer prova em audiência e a prova documental junta aos autos não permite infirmar os factos não provados.”
*
4. Fundamentos do recurso:
4.1. Impugnação da matéria de facto:
O recorrente identificou como erradamente julgado o ponto que consta como al. b) da matéria de facto não provada, argumentando que, lidos os fundamentos, entende não terem sentido nem lógica, devendo ser dado como provado, com base em todo o acervo documental, que “as reestruturações sociais, aumento de capital e transmissão de imoveis para a sociedade Ardiepa visaram objectivos de incremento do património social, aumentando o valor das participações sociais penhoradas pela requerente.”
A recorrida alegou não ter sido cumprido o ónus previsto no nº1 do art. 640º do CPC, aplicável ex vi art. 17º nº1 do CIRE, não tendo sido indicado qualquer meio de prova que impusesse decisão diversa. Pede a rejeição liminar do recurso nesta parte.
Apreciando:
Nos termos do disposto no nº1 do art. 640º do CPC, quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Nos termos do nº2, al. a), do referido preceito legal, no caso previsto na alínea b), deve também o recorrente, quando os meios probatórios tenham sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de transcrição dos excertos considerados importantes, sob pena de imediata rejeição.
Nos termos da alínea b) do mesmo nº2, cabe ao recorrido desenvolver a mesma indicação em sentido inverso, ou seja, indicar as concretas passagens que infirmam as conclusões do recorrente, e querendo proceder à sua transcrição, sem prejuízo, porém, dos poderes de investigação oficiosa do tribunal.
Como refere Abrantes Geraldes[2] a verificação das exigências previstas neste preceito deve ser feita à luz de um critério de rigor, já que decorre do princípio da autorresponsabilidade das partes e apenas assim se impede que este tipo de impugnação resvale no mero inconformismo. Importa, porém, não exponenciar os requisitos formais em violação do princípio da proporcionalidade, denegando a reapreciação da matéria de facto “…com invocação de fundamentos que não encontram sustentação clara na letra ou no espírito do legislador.”
É, pois, um exercício de equilíbrio que se pede, sendo necessário rigor ancorado no texto da lei, mas sem excessivo formalismo, garantindo o efetivo conhecimento em impugnação de matéria de facto, sempre que as partes cumpram, efetivamente o seu ónus.
Tal como se refere no Ac. STJ de 17/12/19[3] é “…orientação consolidada da jurisprudência deste Supremo Tribunal no sentido da atenuação do excessivo formalismo no cumprimento dos ónus do art. 640º do CPC, designadamente em todos aqueles casos em que o teor do recurso de apelação se mostre funcionalmente apto à cabal identificação da impugnação da matéria de facto e ao respectivo conhecimento sem esforço excessivo. Cfr., a este respeito, entre muitos, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 08-02-2018 (proc. n.º 8440/14.1T8PRT.P1.S1), de 15-02-2018 (proc. n.º 134116/13.2YIPRT.E1.S1), consultáveis em www.dsgi.pt, e os acórdãos de 17-04-2018 (proc. n.º 1676/10.6TBSTR.E2.S1) e de 24-04-2018 (proc. n.º 3438/13.0TBPRD.P1.S1), cujos sumários se encontram disponíveis em www.stj.pt.”
Recorde-se que, relativamente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o art. 640º já citado, tem como solução para o seu incumprimento (diversamente da previsão do art. 639º nº3) a rejeição do recurso, total ou parcialmente, não existindo possibilidade de despacho de aperfeiçoamento - cfr. arts. 635º nº4, 640º nº2, al. a) e 641º nº1, al. b), ambos do CPC.
Analisando a alegação do recorrente à luz das exigências do artigo 640º do CPC e mantendo presente que a menção à impugnação da matéria de facto e a identificação dos concretos pontos de facto erradamente julgados devem constar das conclusões [cfr. 635º nº4, 641º, nº2, al. b) e 640º nº1, al. a), todos do CPC] e que a especificação dos meios probatórios, a indicação das passagens da gravação e a posição expressa sobre o resultado pretendido devem constar da motivação[4], constatamos que:
- a menção à impugnação da matéria de facto, com transcrição do concreto ponto impugnado e posição expressa sobre o resultado pretendido constam na motivação (nºs 12 e 13) e nas conclusões (cls. I e J);
- no tocante aos meios probatórios apenas se refere que os fundamentos do tribunal para dar tal facto como não provado não têm sentido nem qualquer lógica e que o facto que se pretende seja dado como provado o deve ser com base em “todo o acervo documental” (nºs 12 e 13 da motivação e cls. I e J).
Tendo em conta que a al. b) do nº1 do art. 640º do CPC refere a especificação, sob pena de rejeição, dos «concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.» a indicação de “todo o acervo documental junto” não cumpre esta exigência, que não se basta com a indicação do tipo de prova, ou seja, documental, testemunhal, por depoimento, pericial, etc.
Sendo o caso, haveria que indicar de que documentos, em concreto – por descrição breve, por localização nos autos, ou por data de junção, enfim por qualquer meio que permitisse a respetiva concretização – resultava o diverso resultado pretendido, o que neste caso não foi feito.
Nos termos do disposto no art. 639.º nº1 do CPC «O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou a anulação da decisão.»
Este é um ónus do recorrente e o seu cumprimento permite ao tribunal superior apreender, com clareza, os fundamentos do recurso. A importância e papel das conclusões retiram-se com clareza desta norma, da previsão de rejeição dos recursos em que não sejam formuladas conclusões (art. 641º nº2, al. b) do CPC) e da previsão de aperfeiçoamento nos casos de deficiência, obscuridade, complexidade ou incompletude (nº3 do referido art. 639.º).
Mas relativamente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o art. 640º do CPC já citado, tem uma solução diversa daquela: o incumprimento do nº1 dá lugar à rejeição do recurso, total ou parcialmente, não existindo possibilidade de despacho de aperfeiçoamento[5] - cfr. arts. 635º nº4 e 641º nº2, al. b), ambos do CPC.
Como decidido no Ac. STJ de 09/06/2021 (Ricardo Costa)[6]:
“I - Os ónus processuais de alegação recursiva previstos no art. 640º, 1 e 2, do CPC, relativos à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, conjugam-se com o ónus de formulação de conclusões, cominado, em caso de incumprimento, com o indeferimento do recurso.
II- A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se quando (i) falte nas conclusões a referência à impugnação da decisão sobre a matéria de facto (arts. 635º, 2 e 4, 639º, 1, 641º, 2, b), CPC); (ii) quando falte nas conclusões, pelo menos, a menção aos «concretos pontos de facto» que se considerem incorrectamente julgados (art. 640º, 1, a)), sendo de admitir que as restantes exigências das als. b) e c) do art. 640º, 1, em articulação com o respectivo n.º 2, sejam cumpridas no corpo das alegações.
III- Se as conclusões recursivas são totalmente omissas quanto à matéria da impugnação da decisão da matéria de facto, verifica-se o manifesto incumprimento da diligência processual mínima do recorrente, resultante da relação intersistemática do art. 640º com os arts. 635º, 2 a 4, e 639º, 1 e 2, espoletando a sanção cominada, em coordenação, pelo corpo do art. 640º, 1, e pelo art. 641º, 2, b), do CPC – a rejeição do recurso (neste caso, da revista normal interposta a título principal).”
O apelante omitiu assim, por completo as menções exigidas na alínea b) do nº1 do art. 640º do CPC, pelo que se impõe a rejeição da impugnação da matéria de facto.
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4.2. Pressupostos da declaração de insolvência:
Prescreve o art. 3º nº 1 do CIRE aprovado pelo Decreto Lei nº 53/04 de 18 de março, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto Lei nº 200/04 de 18 de agosto (diploma a que pertencem todos os artigos infracitados sem indicação), que “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”. O nº 2 do mesmo preceito acrescenta que, no caso de o devedor ser uma pessoa coletiva ou património autónomo por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, direta ou indiretamente, é também considerado insolvente “quando o seu passivo seja manifestamente superior ao seu ativo, avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis”.
A situação de insolvência consiste, como resulta da noção legal, na impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações vencidas – fórmula com largas tradições no ordenamento jurídico português e que corresponde à noção quer da lei alemã (§17 da Insolvenzordnung) quer da lei espanhola (artigo 2º-2 da Ley Concursal), os dois diplomas identificados como grandes inspiradores do CIRE.
A lei atual admitiu dois importantes ajustamentos a esta noção: o primeiro, equiparando a situação de insolvência iminente à situação de insolvência atual como fundamento de apresentação à insolvência; e o segundo restrito às pessoas coletivas e patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente, por forma direta ou indireta, considerando-os insolventes quando o respetivo passivo seja manifestamente superior ao ativo, mesmo que não tenham manifestado a insusceptibilidade de satisfazer pontualmente os respetivos compromissos – cfr. art. 3º, nºs 4 e 2.
Como escreve Maria do Rosário Epifânio[7], “…trata-se aqui de um conceito de solvabilidade. Portanto, pode acontecer que o passivo seja superior ao ativo mas não exista situação de insolvência, porque há facilidade de recurso ao crédito para satisfazer as dívidas excedentárias. E, por outro lado, pode acontecer que o ativo seja superior ao passivo vencido, mas o devedor se encontre em situação de insolvência por falta de liquidez do seu ativo (é dificilmente convertido em dinheiro).”
Também Catarina Serra refere[8]: “Insolvência no sentido acima referido (impossibilidade de cumprir) não coincide necessariamente com – e por isso não significa – uma situação patrimonial líquida negativa (superioridade do passivo face ao activo).
Com efeito, pode muito bem verificar-se a primeira sem se verificar a segunda: não obstante ser titular de um património sólido e abundante, o devedor vê-se impossibilitado de cumprir por lhe faltar liquidez. E pode verificar-se a segunda sem se verificar a primeira: não obstante não ter património suficiente para cumprir as obrigações, o devedor mantém a capacidade de cumprir por via do crédito que lhe é disponibilizado.”
Ou e nas ilustrativas palavras do Ac. TRL de 12/11/19[9] ”A existência de ativo inferior ao passivo é legalmente apta a indiciar a situação de insolvência (cfr. art. 3º, nº 2 e 3 e 20º, nº2, al. h), porém, o contrário já não sucede, ou seja, a existência de ativo superior ao passivo não constitui pressuposto legal de solvabilidade nem sequer indício como tal legalmente previsto pois que, ainda que assim suceda, a devedora é insolvente se, não obstante, estiver impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas.”
Quando, como no caso sub judice, o pedido de declaração de insolvência não é formulado pelo devedor, a legitimidade ativa (ad substantium) é condicionada pela verificação de certas situações, elencadas nas alíneas a) a h) do nº1 do art. 20º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
Há que considerar, quanto ao ónus da prova, que ao credor requerente da insolvência é quase impossível demonstrar o valor do ativo e do passivo do devedor, bem como a carência de meios para satisfação das obrigações vencidas.
Ciente desta dificuldade, a lei basta-se, nos casos de requerimento de declaração de devedor por outros legitimados, com a prova de um dos factos enunciados no art. 20º nº1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, que permitem presumir a insolvência do devedor.
Ou seja, por um lado os factos que integrem cada uma das previsões do art. 20º nº1 são requisitos de legitimidade para a própria formulação do pedido pelo credor e, por outro, são também condição suficiente da declaração de insolvência[10].
Tal conclusão retira-se linearmente das disposições contidas no art. 30º nº5 (em caso de confissão dos factos alegados na petição inicial a insolvência é decretada se tais factos preencherem a hipótese de alguma das alíneas do nº1 do art. 20º) e 35º nº4 (em caso de não comparência à audiência de julgamento, do devedor ou de um seu representante, o juiz profere desde logo sentença de declaração de insolvência se os factos alegados na petição inicial forem subsumíveis ao nº1 do art. 20º).
Completando este quadro com as disposições do artigo 30º, nºs 3 e 4 do CIRE, a situação fica assim desenhada: o credor ou outro legitimado apenas pode requerer a declaração de insolvência com base na impossibilidade de cumprimento de obrigações vencidas do devedor nos casos previstos no art. 20º nº1 e no caso de manifesta superioridade do passivo sobre o ativo quando o devedor seja uma pessoa coletiva ou património autónomo nos termos do art. 3º nº2 in fine. O devedor, por sua vez, pode basear a sua oposição ao pedido na inexistência do facto em que se fundamenta o pedido (20º nº1) ou na inexistência da situação de insolvência.
A prova da solvência cabe ao devedor, e, no caso de sujeição legal a escrituração obrigatória, com base nesta, “devidamente organizada e arrumada”.
No caso de manifesta superioridade do passivo sobre o ativo pode o devedor lançar mão do disposto no art. 3º nº3 do CIRE, cabendo-lhe ainda a prova da sua solvência nos termos do preceito em causa.
Finalizando e sumariando o tracejado legal – nos casos previstos no art. 20º nº1 do CIRE forma-se, com a prova de factos integradores de uma ou mais das situações ali previstas, uma presunção de que o devedor se encontra insolvente; essa presunção pode ser ilidida pelo devedor, provando a sua solvência, com base na sua escrita devidamente organizada (no caso de devedores sujeitos à obrigação legal de manutenção de escrita organizada) – cfr. art. 347º do Código Civil[11].
A requerente/recorrida alegou factos conducentes, na sua perspetiva, à verificação da situação prevista na alínea b) do nº1 do art. 20º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Em sede de alegações voltou a invocar o preenchimento da alínea b) do nº1 do art. 20º.
O tribunal a quo considerou verificado o preenchimento das situações previstas nas alíneas b) e d) do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE.
Considerou que se demonstrou a qualidade de credora da Requerente, a existência de outros credores do requerido, os incumprimentos do Requerido em relação à Requerente após providência cautelar de arresto e execução, e o não apuramento de outros bens em ação executiva que não as participações do requerido na sociedade Ardiepa, as quais foram penhoradas.
Analisou seguidamente se existiu dissipação do património social que houvesse retirado valor às participações penhoradas. Fundamentando que:
- um aumento de capital não acompanhado que reduz a participação social de um sócio a menos de 10%, devido à limitação de exercício de direitos sociais a que fica sujeito acarreta, por regra, para essa participação, um valor de mercado inferior;
- a transferência dos imóveis de uma sociedade cujas quotas estão penhoradas para outra sociedade, ainda que detida pela primeira, aumenta riscos de perda do património, pois a sociedade detida tem diversa personalidade jurídica, tem credores diferenciados e exposição a riscos e responsabilidades jurídicas autónomas; e
- a transformação em sociedade anónima facilita a transmissão de participações a terceiro e a diluição da garantia de credores,
Concluiu que os atos praticados de reestruturação social, aumento de capital ao valor nominal não acompanhado pelo requerido e transferência de imóveis para diversa esfera jurídica se traduzem em atos de dissipação patrimonial, com objetivo de diminuir o valor das participações penhoradas pela requerente.
Ou seja, o tribunal considerou formada a presunção de insolvência, e, no caso, que o requerido não havia feito prova de factos que permitissem afastar essa presunção.
O recorrente defendeu a existência de um acréscimo de valor das quotas detidas pelo recorrente na Ardiepa por esta deter a sociedade Condado Refrescante, SA, que detém bastante património e ainda que não acompanhar um aumento de capital não é um ato de diminuição patrimonial, dado que não alienou, doou ou transmitiu património por qualquer forma. Refere ainda que inexistindo ora ações ao portador a conclusão do tribunal de que as ações são mais fáceis de transmitir não é correta. Alega, finalmente que o Recorrente é titular de participações sociais em sociedades que hoje têm mais património do que tinham antes das prestações acessórias gratuitas realizadas por terceiros e, por conseguinte, existe uma ambiguidade na sentença que deve determinar a sua revogação.
A recorrida aponta que o requerido não produziu qualquer prova atinente à sua situação económica e debate que o recorrente passou de sócio maioritário de uma sociedade que detinha sete imóveis para sócio minoritário de uma sociedade que detém outra sociedade para a qual foi transmitido todo o património imobiliário da primeira sociedade o que constitui dissipação e não aumento de património.
Procedendo à análise dos factos apurados começaremos por analisar se estes permitem concluir pela formação de presunção de insolvência.
A ação de insolvência não é uma ação de cobrança de dívida – sendo necessário, não basta a alegação de uma obrigação vencida. Situando-nos numa ação de insolvência requerida por credor (ou outro legitimado) necessário se torna que dos factos apurados seja possível retirar o preenchimento de uma ou mais situações presuntivas previstas no nº1 do art. 20º do CIRE. Daí que a causa de pedir, em processo de insolvência, seja sempre uma causa de pedir complexa, composta pelos vários factos, incluindo o incumprimento, que em determinado momento, consentem a conclusão pela impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas.
Porque estamos ante o requerimento de declaração de insolvência de uma pessoa física, arredado fica o critério do nº2 do art. 3º do CIRE (e o seu correspetivo acervo de factos previsto na alínea h) do nº1 do art. 20º).
O primeiro exercício a fazer é o de se está verificada a situação presuntiva prevista na al. b) do nº1 do art. 20º do CIRE.
O nº1 e o nº2 do art. 3º do CIRE postulam que o critério geral de insolvência, aplicável a todos os devedores é o da impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas e que, quanto a algumas entidades, podem também ser declaradas insolventes quando a insuficiência do ativo para satisfazer o passivo seja manifesta, “quando reveste uma expressão que, de acordo com a normalidade da vida, torna insustentável, a prazo, o pontual cumprimento das obrigações do devedor.”[12]
Uma manifesta superioridade do passivo sobre o ativo consubstancia uma situação de insolvência atual porquanto, implica, necessariamente, o incumprimento de obrigações.
O que estes artigos não consagram, por qualquer forma, é qualquer critério de “ativo superior ao passivo”, ou seja, e como já se deixou justificado acima, um ativo superior ao passivo vencido não significa solvência, uma vez que o devedor nessa situação pode não ter liquidez no seu ativo – este pode não estar disponível ou não ser facilmente convertível em liquidez.
E isto é válido para todos os tipos de entidades, naturais e legais, de responsabilidade limitada ou ilimitada.
Além do argumento literal – as pessoas singulares pura e simplesmente não estão contempladas no preceito – note-se que a esmagadora maioria dos devedores pessoas singulares não tem contabilidade organizada que lhes permita apresentar ativo e passivo. Ativo e passivo estão aqui usados pelo legislador no sentido técnico do termo como o confirma à saciedade o elemento final da norma: “avaliados segundo as normas contabilísticas aplicáveis.”
Ativo não é, para este efeito, sinónimo de património e passivo não é, para os efeitos desta norma, equivalente a dívidas. O vocábulo passivo é usado nesse sentido genérico noutros locais do Código[13], mas não aqui.
Assim, quanto a pessoas singulares, o critério de insolvência é o do nº1 do art. 3º, sendo as situações das alíneas a) a g) do nº1 do art. 20º presunções de impossibilidade do cumprimento de obrigações vencidas. Obviamente que o património é relevante – e por isso foi objeto de prova, analisado e relevado – mas nos exatos termos propugnados no Ac. TRL de 14/07/2020 (Relatora Adelaide Domingos - 3035/19.6T8SNT.L1), cujo sumário, por expressivo, se transcreve:
“1. Embora a correlação entre ativo e passivo seja apenas relevante em sede de aferição da situação de insolvência de pessoas coletivas e patrimónios autónomos como decorre do artigo 3.º, n.º 2, do CIRE, e desde que haja manifesta superioridade do ativo sobre o passivo, na verdade, o critério determinante é o da liquidez, pois pode o ativo exceder o passivo e, ainda, assim, não ter liquidez para satisfação das obrigações vencidas.
2. Também em relação às pessoas singulares a existência de património de valor substancial e que em termos de valores até pode cobrir o valor do passivo, se aquele património não se encontrar desimpedido de modo a ser transformado em liquidez que possibilite o pagamento dos créditos vencidos da requerente da insolvência e dos demais credores, não permite elidir a presunção de insolvência decorrente da verificação dos fatores-índice das alíneas b) e g), subalíneas i) e iv) do n.º 1 do artigo 20.º do CIRE.”
Faz-se esta exposição dado que o tribunal recorrido parece ter considerado relevante o valor do património do requerido e recorrente para aferição da situação de insolvência.
Passando à análise da matéria de facto provada à luz da alínea b) do nº1 do art. 20º do CIRE temos a considerar:
- um crédito da requerente no montante mínimo de € 81.250,00, incumprido pelo requerido desde outubro de 2019 – facto 1;
- a pendência de uma execução, intentada pela requerente – factos 3 e 4;
- o requerido é avalista de sociedades por créditos de valor não apurado – facto 7;
- o requerido está desempregado, não aufere subsídio e tem três filhos – facto 8.
Ponderando o montante vencido, perto de cem mil euros e a ausência de liquidez apurada – meios que permitam o pagamento do que já está vencido há quase seis anos, estando desempregado e sobre ele impendendo obrigações de sustento – estamos ante o incumprimento de obrigação cujo montante e longevidade demonstram claramente a impossibilidade do cumprimento da generalidade das obrigações vencidas. A conclusão é essa, mesmo não se acompanhando o raciocínio do tribunal recorrido de considerar o requerido/recorrente devedor a outras entidades por ser avalista de terceiros, dado desconhecer-se a exigibilidade de tais créditos.
Na verdade, se o devedor, em mais de cinco anos não logrou meios para pagar uma dívida de cerca de 81 mil euros de capital, a que acrescem juros, não vemos como poderá, desempregado e sem rendimentos, fazer face a todas as suas demais obrigações.
Temos, assim, com clareza, verificada situação fáctica subsumível ao disposto na alínea b) do nº1 do art. 20º do CIRE e a presunção de insolvência do requerido.
O tribunal considerou ainda preenchida a al. d) do nº1 do art. 20º, do CIRE.
Estabelece o referido preceito: «Dissipação, abandono, liquidação apressada ou ruinosa de bens e constituição fictícia de créditos;»
O tribunal recorrido considerou que as operações de integração das quotas cedidas pela requerente (na Terminus da Carne – Comércio da Carne, Lda e Latitude dos Temperos Produtos Alimentares, Lda) na Ardiepa, SA(ora SA), seguidas do aumento de capital desta sociedade, sem que o requerido o acompanhasse, passando de detentor de 58% do capital a menos de 10%, a sua transformação em sociedade anónima e a subsequente transmissão de todos os imóveis detidos pela Ardiepa, SA para outra sociedade, por esta detida, consubstanciam atos de dissipação patrimonial.
Notamos desde logo que faltam valores em todas as parcelas desta sequência de operações que nos permitissem aferir a referida dissipação.
Sabemos os valores porque foram cedidas quotas ao recorrente e que as mesmas foram cedidas a outra sociedade de que o recorrente não era, já então sócio único.
Não sabemos como e por quanto foram valorizadas.
Não temos apurados quaisquer dados contabilísticos da Ardiepa, SA antes e depois da cessão de quotas, da transformação em sociedade anónima e da transferência dos imóveis.
Não sabemos que imóveis, com que valor, qual o seu valor de mercado nem sequer a que título foram transferidos, dado que tais factos não foram apurados.
Não temos, assim, qualquer fundamento para considerar que existiu dissipação do património do requerido – nem aumento, alegação que padece dos mesmos e exatos defeitos.
Dissipação é um conceito com um sentido uniforme: “situação de destruição, total ou parcial, de consumo, de gasto, de dispersão, desvanecimento ou desfazimento no que concerne à integridade do bem”, – cfr. Ac. TRL de 11/05/2023 (Carlos Castelo Branco – 30852/22); “desaparição, desvanecimento, dispersão, desperdício e perda inútil”[14] ou “processo que consiste em desaparecer, fazer desaparecer ou fazer cessar alguma coisa”[15] ou seja, e transpondo, teríamos que ter apurados factos que nos permitissem concluir que o requerido havia feito desaparecer, desvalorizado ou alienado o seu património (conhecido).
O que sabemos é que cedeu quotas de que era titular (cujo valor de mercado não foi apurado) a sociedade de que era sócio e que esta sociedade transmitiu o seu património imobiliário (de valor não apurado) para outra sociedade que detém.
Na verdade, o que esta sequência de factos ilustra não é a dissipação de património, mas sim a colocação do património conhecido do devedor em situação jurídica que limita e dificulta a satisfação dos seus credores com recurso a este. E que igualmente o faz afastar do conceito de liquidez que poderia ser argumentado pelo recorrido para provar a sua solvência.
As quotas que eram do devedor agora são de terceiro – as sociedades comerciais têm personalidade jurídica e judiciária distinta da dos seus sócios, nos termos do art. 5º do CSC – e a participação social que o devedor detém na Ardiepa só realizará liquidez se a participação desta sociedade na Condado Refrescante, SA tiver valor de mercado que possa ser realizado pela Ardiepa e depois distribuído aos sócios desta.
O que implica que esta factualidade, longe de demonstrar dissipação, concorre para a demonstração de ausência de liquidez por parte do devedor, confirmando a situação presuntiva de insolvência prevista na al. b) do nº1 do art. 20º do CIRE.
Aqui chegados, embora com argumentação não inteiramente coincidente, podemos confirmar o juízo do tribunal recorrido de que se mostra formada presunção da situação de insolvência do recorrente, e que este não provou quaisquer factos que permitissem afastar aquela presunção.
Torna-se necessário frisar, antes de mais, como já foi bastamente referido, que a correlação ativo-passivo apenas é relevante para as pessoas coletivas ou patrimónios autónomos por cujas dívidas nenhuma pessoa singular responda pessoal e ilimitadamente e só como revelador de situação de insolvência em caso de manifesta superioridade do passivo sobre o ativo. A superioridade do ativo sobre o passivo não implica afastamento da situação de insolvência, porquanto o critério determinante é a liquidez, podendo existir abundante património, sem liquidez.
Ora o que se apurou na situação dos autos foi a existência de património, de valor não concretamente apurado, mas que, de acordo com os factos apurados em 4, 5 e 6 da matéria de facto provada, não se encontra livre e desimpedido por forma a ser transformado em liquidez para proceder ao pagamento do crédito da requerente.
E finalmente deve referir-se que o facto de o crédito da recorrente se encontrar já em execução sem que se tenha obtido ressarcimento concorre também para demonstrar a incapacidade de qualquer destes bens ou direitos gerarem meios disponíveis para satisfazer este e os demais créditos vencidos sobre o requerido/apelante.
Em conclusão, improcedem as conclusões de recurso, impondo-se a confirmação da decisão recorrida.
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O apelante, porque vencido, suportará integralmente as custas do presente recurso sem prejuízo do benefício de apoio judiciário – arts. 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil.
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5. Decisão
Pelo exposto, acordam as juízas desta Relação em julgar integralmente improcedente a apelação, decidindo-se manter a sentença recorrida.
Custas de parte na presente instância recursiva pelo recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário
Notifique.
Lisboa, 17 de junho de 2025
Fátima Reis Silva
Elisabete Assunção
Paula Cardoso
_______________________________________________________ [1] Numeração e identificação introduzidas por este Tribunal, a fim de facilitar a compreensão e referência. [2] Cfr. Abrantes Geraldes em Recursos no Novo Código de Processo Civil, 7ª edição, Almedina, 2022, pgs. 201 e 202. [3] Relatora Maria da Graça Trigo, processo nº 363/07, disponível, como todos os demais citados sem referência, em www.dgsi.pt. [4] Abrantes Geraldes, local já citado, pgs. 200 e 202 e jurisprudência ali citada e, no sentido de que a decisão alternativa não tem que constar das conclusões, o AUJ nº 12/2023, de 14/11, publicado no DR. Iª série de 14/11/2023. [5] Neste sentido, entre outros, acórdão do STJ de 11-03-2025 (Henrique Antunes – 2404/20), disponível em www.dgsi.pt e António Abrantes Santos Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 7ª edição, Almedina, pgs. 199 a 201. [6] Processo nº 10300/18.8T8SNT.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt. [7] EmManual de Direito da Insolvência, 8ª edição, Almedina, 2022, pg. 30. [8] Em Lições de Direito da Insolvência, 3ª edição, Almedina, 2025, pg. 60. [9] Disponível inwww.dgsi.pt/jtrl.nsf, relatado por Amélia Sofia Rebelo. – proc. nº 14089/18. [10] Cfr. Lebre de Freitas in Pressupostos Objectivos da Declaração de Insolvência, Themis, Edição Especial, 2005, “Novo Direito da Insolvência”, pgs. 13 e ss. [11] Cfr. Lebre de Freitas, loc. cit. [12] João Labareda e Carvalho Fernandes em Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2015, pg. 89. [13] Por exemplo na regulamentação da exoneração do passivo restante – arts. 235º e ss. ou quando é usada genericamente a expressão verificação do passivo (158º nº1) para significar verificação de créditos. [14] Em https://dicionario.priberam.org/dissipa%C3%A7%C3%A3o. [15] Em Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa, Verbo, 2001, pg. 1281.