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NULIDADE DA DECISÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REJEIÇÃO
QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
DISPOSIÇÃO DE BENS
PRINCÍPIO DA IGUALDADE DOS CREDORES
Sumário
Sumário (da relatora) – artigo 663.º, n.º 7, do CPC[1] I. Impõe-se a rejeição da impugnação da matéria de facto quando, para além de não serem indicadas as passagens da gravação dos depoimentos que determinariam a modificação da mesma, a recorrente se limita a efectuar uma síntese do que defende ter resultado de tais depoimentos, procedimento que não se mostra adequado, nem suficiente, para que se considere cumprido o estatuído no artigo 640.º do CPC. II. As previsões elencadas nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE correspondem a condutas que integram uma presunção iuris et de iure da existência de insolvência culposa (elenco taxativo de presunções inilidíveis de culpa e de nexo de causalidade entre a actuação e a criação ou agravamento da situação de insolvência). III. O instituto da qualificação da insolvência tem subjacente dois princípios estruturantes: a) o da garantia patrimonial dos bens e direitos dos credores dada pelo património do devedor, e b) o da satisfação igualitária dos direitos dos credores. IV. Tendo o gerente da sociedade (proposto afectado), no ano que antecedeu a sua apresentação à insolvência, transferido quantias monetárias da conta da sociedade para a sua conta pessoal, vindo depois a: a) pagar-se das respectivas remunerações; b) efectuar pagamentos a terceiros não credores (seus amigos que lhe tinham emprestado dinheiro a título pessoal), e c) efectuar pagamentos apenas a alguns credores (os quais nem sequer gozam de qualquer preferência no pagamento) em detrimento de outros (os quais ficam impossibilitados de verem satisfeitos os respectivos créditos), estamos em face de uma conduta integradora da previsão da al. d) do n.º 2 do artigo 186.º do CPC.
[1] Por opção da relatora, o presente acórdão não obedece às regras do novo acordo ortográfico, salvo quanto às transcrições/citações, que mantêm a ortografia de origem.
Texto Integral
Acordam as juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa.
I - RELATÓRIO
Veio a sociedade Datadecimal, Lda. apresentar-se à insolvência, a qual foi declarada por sentença proferida em 21/12/2023, já transitada em julgado.
Foram apreendidos bens móveis – cfr. apenso C.
Em 20/02/2024, a Administradora da Insolvência (AI) juntou o relatório para efeitos do artigo 155.º do CIRE[1]. No relatório apresentado pode ler-se: “(…) A administradora judicial considera que deverá ser aberto incidente de qualificação, uma vez que possui elementos que parecem fundamentar a qualificação como culposa.“
Por despacho proferido em 14/03/2024, determinou-se o encerramento da actividade da insolvente e o prosseguimento dos autos para liquidação do activo.
Em 20/06/2024 foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos, a qual já transitou em julgado – cfr. Apenso D.
A graduação dos créditos verificados foi efectuada nos moldes propostos pela AI, a saber: “Da liquidação dos bens apreendidos: // 1º - Os créditos Privilegiados dos trabalhadores; // 2º O crédito Privilegiado da Fazenda Nacional/Autoridade Tributária e do Instituto da Segurança Social, I.P., em igualdade de circunstâncias e rateadamente. // 3º Os créditos comuns, em igualdade de circunstâncias e rateadamente (…)”. Da lista de credores reconhecidos, verificados e graduados, entre outros, constam como créditos laborais os identificados sob os n.ºs 3, 7, 15 e 16.
Em 01/03/2024, a AI apresentou o seguinte requerimento: “A Administradora Judicial, para o seu parecer de qualificação de insolvência, tomou em consideração factos que tomou conhecimento e que poderão fundamentar a aplicação de presunções do artigo 186º do CIRE. // A Administradora Judicial, através da análise da contabilidade, concluiu que foi vendido um bem imóvel em 11 de Dezembro de 2023, tendo a insolvência sido declarada em 22 de dezembro de 2023. DOC.1 // O imóvel foi vendido por 135.000,00 €, tendo sido adquirido por 85.000,00 € em contrato de locação financeira em dezembro de 2019, à data do cumprimento do contrato o valor em divida era de 51.573,17 €, o remanescente de 83.426,83 €, foi depositado em 8 de novembro de 2023 e o remanescente na data da escritura 24.898,63 C. DOC.2 // No mês de Novembro o sócio gerente, levantou 22.000,00 €. // No mês de dezembro o valor de 24.898,63 €, serviu para efetuar o pagamento de dívidas à Autoridade Tributária e Segurança Social. // Tal circunstância fundamenta que se aplique a presunção do artigo 186º nº 2 a) do CIRE, que determina que a insolvência é sempre culposa quando os administradores da insolvente fazem desaparecer no todo ou em parte o património da devedora. // Ao caso, o administrador fez desaparecer parte do património. // No decorrer do exercício de 2023, foram efectuadas um conjunto de transferências bancárias para o sócio gerente no montante de 73.778,47 €, sendo que o valor anual de remunerações declaradas pelo sócio gerente totaliza o montante de 28.994,60 €, havendo a considerar uma diferença de 44.783,87 €. DOC.3 // Por outro lado, a insolvente vinha registando prejuízos gravíssimos, pelo menos desde 2020, concretamente, e neste referido ano, um prejuízo superior a 51.000,00€ e em 2022 um prejuízo superior a 42.000,00€. // Ora, analisando as contas da sociedade insolvente, verifica-se que a mesma que há muito que teria de se ter apresentado à insolvência, pelo menos desde 2022. // Assim, e atendendo a que a apresentação à insolvência deve ser feita 30 dias após o conhecimento da mesma e, uma vez que na situação em concreto se passaram vários anos, presume-se a existência de culpa grave dos administradores do devedor do dever de requerer a declaração de insolvência, portanto, verifica-se o preenchimento da presunção de culpa grave referida no artigo 186º nº3 alínea a) do Cire. // Os atos que fundamentam as presunções acima referidas, foram praticados pelo administrador da insolvente e, portanto, deve ser afetada pela qualificação da insolvência como culposa o Sr. PH.”
Em 14/03/2024, foi proferido despacho a declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, ordenando a publicação do mesmo, mais se determinando que fossem os autos com vista ao Ministério Público (MP).
Em 15/04/2024[2], o MP apresentou Parecer no sentido de deverem considerar-se verificados os requisitos previstos no artigo 186.º, n.º 2, als. a), d), g) e i), e n.º 3, al. a), bem como que a insolvência deverá ser qualificada como culposa, pela mesma devendo ser afectado o gerente PH.
Para tanto alegou: “(…) Resulta dos autos que: // . a sociedade insolvente, constituída a 15-3-2016, exerceu a sua atividade comercial com o seguinte objeto social, desde 20-3-20219: “Atividades de mediação imobiliária e de gestão de imóveis, compra e venda de bens e revenda dos mesmos adquiridos para esse fim. Serviços de consultoria para os negócios. Atividade fotográfica comercial e de consumo. Atividades de intermediários de crédito, a título acessório”; // . a sociedade insolvente exerceu a sua atividade social com sede na Rua Quinta da Brita, n.º 32, 2815-886 Sobreda; // . as funções de gerência da sociedade insolvente foram exercidas por PH; // . no dia 12-12-2019, foi celebrado o contrato de locação financeira imobiliária entre o Banco BPI, SA, na qualidade de locador, e a sociedade insolvente, na qualidade de locatária, pelo prazo de 144 meses, com início naquela data, relativamente à fração autónoma designada pela letra “H”, correspondente ao rés do chão, com entrada pelos n.ºs 31-A a 52, destinado a comércio e armazém na cave, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, situado na Rua …, e Rua …, na Baixa da Banheira, descrita na Conservatória do Registo da Moita sob o n.º …, da freguesia da Baixa da Banheira, e inscrita na respetiva matriz sob o artigo …; // . no dia 11 de dezembro de 2023, a insolvente, representada pelo respetivo gerente, adquiriu ao Banco BPI, SA, a fração acima indicada, pelo preço de 51.573,17€; // . no mesmo dia 11 de dezembro de 2023, a insolvente, representada pelo respetivo gerente, vendeu a referida fração autónoma “H” à sociedade …& …, Lda., pelo preço de 135.000,00€; // . no decurso do mês de novembro de 2023, o gerente da insolvente procedeu à transferência da quantia total de 22.000,00€ da conta bancária da insolvente para a sua conta bancária pessoal, nos seguintes montantes parcelares e datas: // . no dia 11-11-2023, a quantia de 10.000,00€; // . no dia 12-11-2023, a quantia de 10.000,00€; // . no dia 20-11-2023, a quantia de 1.000,00€; // . no dia 21-11-2023, a quantia de 1.000,00€. // . no dia 13 de dezembro de 2023, a insolvente destinou o montante de, pelo menos, 24.314,83€ para o pagamento de dívidas à Autoridade Tributária e Aduaneira e à Segurança Social; // . não obstante o valor anual de remunerações declaradas pelo gerente totalizar o montante de 28.994,60€, foram efetuadas, no período compreendido entre 14 de fevereiro e 12 de novembro de 2023, transferências bancárias a favor do gerente no valor total de 73.778,47€; // . o gerente da sociedade insolvente apropriou-se das referidas quantias, fazendo-as suas; // . a insolvente apresentou, nos anos de 2020 e 2022, prejuízo superior a 51.000,00€ e 42.000,00€, respetivamente; // . por outro lado, apesar de ser devedora da Autoridade Tributária e Aduaneira, desde maio de 2021, a insolvente não se apresentou, como deveria, à insolvência; // . por não ter cumprido o dever de apresentação atempada à insolvência, a sociedade insolvente agravou a situação de insolvência em que se encontrava; // . a insolvente apresentou-se à insolvência a 19-12-2023; // . no processo de insolvência e até à presente data, apenas foram apreendidos os bens constantes do auto de apreensão de bens que deu início ao apenso respetivo a 29-2-2024, entre os quais, o veículo automóvel com a matrícula -- -64- --; // . no âmbito do processo de insolvência foram reconhecidos créditos no montante global de 237.473,28€, correspondentes a dívidas laborais, tributárias, contributivas, bancárias e de fornecedores, conforme lista definitiva de credores elaborada nos termos do artigo 129.º do CIRE, que deu início ao apenso reclamação de créditos a 21-2-2024. (…) // No caso dos autos, tendo em atenção que a ação deu entrada no dia 19 de dezembro de 2023, deve ser considerado para a qualificação da insolvência o período compreendido entre 19 de dezembro de 2020 e 21 de dezembro de 2023 (artigos 186.º, n.º 1, e 4.º, n.º 2, ambos do CIRE). // Face a tal enquadramento legal, e aos elementos dos autos acima coligidos, afigura-se que a atuação PH, enquanto gerente da sociedade DATADECIMAL, Lda., é suscetível de ser qualificada como culposa ao concorrer para a declaração de insolvência da empresa. // Com efeito, a venda do único estabelecimento comercial, que constituía o significativo ativo da insolvente, gerou a inatividade da empresa, que deixou, desta forma, de gerar lucros, receitas e proveitos, suscetíveis de satisfazer as despesas correntes e os seus credores. Tal venda impediu, pois, o prosseguimento da atividade incluída no objeto social da insolvente. // Por outro lado, as sucessivas transferências bancárias, a favor do gerente da insolvente, de quantias da insolvente, agravaram a já débil situação financeira desta. // De igual modo, o gerente da empresa não requereu a respetiva apresentação à insolvência, ou qualquer medida de recuperação, pese embora o montante elevado das dívidas, desde, pelo menos, o ano de 2021, à Autoridade Tributária e Aduaneira e ao Instituto de Segurança Social. // O gerente da insolvente, considerando o prejuízo acumulado da insolvente desde o ano de 2020, sabia que a situação de incumprimento se iria agravar, com real probabilidade de gerar a insolvência da empresa. (…)”.
Por despacho de 01/05/2024, foi ordenada a notificação da devedora e a citação do proposto afectado, para os termos do n.º 9 do artigo 188.º.
A devedora/insolvente deduziu oposição em 29/05/2024, na qual concluiu: “- Não se encontram preenchidos os requisitos do artigo 183 e 186 nº 2 e 3 do CIRE. // - Deverá o presente incidente de qualificação de insolvência ser dado como improcedente por não provado e, com a consequente absolvição da Insolvente, devendo a Insolvência ser qualificada como fortuita.”
Na oposição alegou: “(…) 9º Não assiste razão ao MP quando afirma, que a Insolvente vendeu o estabelecimento comercial, gerando assim a inatividade da empresa impedindo a insolvente de gerar receitas e lucros. // 10º Na verdade no requerimento de apresentação à Insolvência, não foi indicada a morada onde a Insolvente desenvolvia a sua actividade comercial. // 11º O que gerou um equivoco que cumpre esclarecer, // 12º A Datadecimal desenvolvia a sua actividade na Estrada Nacional nº 209 e 211 2835 Baixa da Banheira. // 13º Este imóvel era arrendado e as rendas encontravam-se em dia à data da apresentação à Insolvência. // 14º À data da apresentação à Insolvência esta tinha três trabalhadores com contratos de trabalho sem termo além do gerente da Sociedade. // 15º Os trabalhadores da Insolvente à data da apresentação à Insolvência apenas tinham em divida o salário do mês de Novembro. // 16º Os trabalhadores mantiveram -se a trabalhar nas instalações até decisão da Sra Administradora de Insolvência em denunciar os contratos. // 17º A Sra Administradora de Insolvência visitou as Instalações, reuniu com os trabalhadores. // 18º Fez cessar os contratos de trabalho e fez a entrega aos trabalhadores do Mod 5044 para estes requerem o subsidio de desemprego. // 19º As instalações da Insolvente estavam completamente equipadas por forma a dar aos seus trabalhadores todas as condições para poderem trabalhar. // 20º A sra Administradora encerrou as Instalações procedeu à venda dos equipamentos. // 21º E procedeu à entrega da Chave ao senhorio. // 22º A insolvente sempre foi colaborante fornecendo todos os elementos e contactos solicitados. // 23º Reitera-se que foi a Sra Administradora no exercício das suas funções que decidiu encerrar o estabelecimento onde a insolvente desenvolvia a sua actividade. // 24º Pelo que, // Face ao supra exposto conforme documentos juntos nomeadamente o contrato de trespasse provam o local onde a Insolvente exercia a sua actividade. // 25º Assim, // Não assiste razão ao MP no que concerne ao encerramento das instalações // 26º Uma vez que, // A, Insolvente não vendeu o estabelecimento comercial onde exercia a actividade e não provocou a sua inatividade. // 27º E, tal facto por não ter existido não impediu a insolvente de gerar receitas e lucros. // 28º A Insolvente sempre acreditou que poderia superar a fase menos boa que estava a atravessar. // 29º Pelo que, // A insolvente era proprietária de um imóvel (loja) sito na Baixa da Banheira, imóvel esse que se encontrava livre de pessoas e bens. // 30º Imóvel esse que fazia aparte do activo da Insolvente e que foi avaliado em €135 000,00. // 31º E, para cumprir as obrigações nomeadamente pagar dividas decidiu vender o imóvel. // 32º Com a venda do imóvel pagou rateadamente aos credores e pagou salários aos trabalhadores. // 33º E liquidou o montante ainda em divida ao banco. // 34º A Insolvente acreditou que poderia ser possível evitar a Insolvência. // 35º As dividas ao Estado, estavam controladas, uma vez que a Insolvente fez acordos de pagamento prestacionais entre a Autoridade Tributária e Aduaneira e o Instituto da Segurança Social e estavam pontualmente a ser cumpridos. // 36º As restantes dividas derivavam da pontual e normal actividade da Insolvente. // 37º Que sempre acreditou que continuando a laborar poderia gerar lucros e pagar a todos os clientes credores. // 38º Uma vez que as dividas maiores eram ao Estado e estavam a ser pagas, // 39º Devido à crise económica gerada pelo SARS-COVID 19 no nosso País e no Mundo, o ramo Imobiliário foi bastante afectado. // 40º Não foi apenas a Insolvente que foi afectada como também bastantes empresas do ramo Imobiliário. // 41º Empresas essas, que tal como a Insolvente deixaram de poder pagar pontualmente a franquia ás marcas com as quais trabalhavam. // 42º A Era Portugal sem que nada o fizesse prever resolveu unilateralmente o contrato com efeitos imediatos e só após a resolução efectuou um acordo de pagamento com a Insolvente. // 43º O que fez com que a Insolvente, deixasse de ter acesso a todo o sistema informático da marca Era. // 44º Viu-se impedida de um dia para o outro de divulgar os imóveis e, viu-se impedida de ter acesso ao sistema Informático, e ao sistema de faturação. // 45º Alguns dos franchisados da marca Era não pagavam a franquia, fruto dos tempos difíceis vividos na pandemia , o que se tornava insustentável também para a marca. // 46º Os Franchisados, quer vendessem imóveis quer não vendessem teriam de pagar mensalmente a franquia, // 47º Mesmo após a Era Portugal ter resolvido o contrato de franchising a Insolvente acreditou ser possível continuar a sua actividade. // 48º Celebrou um contrato com a Predimed e ainda começou a trabalhar para esta marca. // 49º Colocou um reclame luminoso no exterior e começou a tentar colocar imóveis na sistema informático da marca PREDIMED. // 50º Porém os seus trabalhadores, (os comerciais) não queriam trabalhar com a marca Predimed. // 51º Queriam ficar a trabalhar para a marca Era, o que com a Insolvente já não era possível. // 52º E deixaram de fazer negócios para a insolvente quer angariações quer vendas e o mês de Novembro de 2023 revelou-se um mês muito complicado, não entraram novos negócios. // 53º De tudo a Insolvente fez para evitar apresentar-se á Insolvência e sempre acreditou que o conseguiria evitar. // 54º Pelo que, // Salvo o devido respeito entende a Insolvente que não violou o dever de se apresentar à Insolvência. // 55º Face á crise gerada pela Pandemia a nível mundial viveram-se tempos difíceis que terão de ser tidos em consideração. // 56º Não era possível angariar imóveis, também os proprietários não permitiam a entrada de estranhos nos seus lares. // 57º Nos momentos de maior dificuldade o gerente foi arranjando formas de injetar capital através de empréstimos particulares. // 58º Neste período 2020/2022 em que era para todos difícil realizar negócios a Insolvente conseguiu ir mantendo sempre os salários em dia, bem como as despesas correntes. // 59º Pese embora o valor dos imoveis tenha subido substancialmente na zona onde a Insolvente exercia a sua a actividade comercial, os salários em geral não acompanham essa subida // 60º O aumento dos juros e as regras impostas pelo Banco de Portugal levaram a que o ano de 2023 se verificasse uma baixa na procura de imóveis com a consequente diminuição das vendas e um decréscimo no volume de negócios. // 61º Devido à crise económica gerada pelo SARS-COVID 19 no nosso País e no Mundo, a actividade comercial da Insolvente , que como é publico foi extraordinariamente afectada pela pandemia. // 62º As dificuldades de tesouraria que a sociedade insolvente vivenciou foram o resultado da conjuntura económica e financeira que afetou o nosso país e ,em particular as actividades imobiliárias. // 63º Houve o encerramento de muitas empresas que não conseguiram sobreviver. // 64º O gerente da Insolvente sempre manteve a expectativa de recuperar a actividade e manter-se no mercado com o regresso á normalização. // 65º Nos momentos de maior dificuldade o gerente foi arranjando formas de injetar capital através de empréstimos particulares que fez. // 66º Neste período 2020/2022 em que era para todos difícil realizar negócios a Insolvente conseguiu ir mantendo sempre os salários em dia, bem como as despesas correntes. // 67º Transferiu o dinheiro que lhe foi emprestado e depositado da sua conta pessoal para ora Insolvente. // 68º Mas também foi conseguindo faseadamente pagar os empréstimos que fez. // 69º Todas as transferências que fez da conta da Insolvente para a sua pessoal foi para pagar empréstimos portanto para pagar dividas da ora Insolvente. // 70º A qualificação da insolvência como culposa pressupõe, que a situação de insolvência tenha sido criada ou agravada por determinada conduta ou actuação do devedor ou dos seus administradores; que tal actuação seja dolosa ou gravemente culposa e que esta actuação tenha ocorrido nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência, o que não sucedeu. // 71º Não foi tido em consideração: // O verdeiro momento e motivo que originou a Insolvência da DATADECIMAL; // Não foi tido em consideração os montantes pagos, quer à Autoridade Tributária, quer ao Instituto da Segurança Social e aos demais credores; // Também não foi tido em consideração, relativamente ao dever de apresentação à insolvência, a insolvente manteve sempre a sua actividade normal, efectuando os pagamentos dos vencimentos e das rendas do estabelecimento. // Não foi tido em consideração que não houve uma diminuição substancial da facturação, houve sim um corte abrupto com a perda da franquia o que fazendo cessar os negócios e as consequentes receitas.”
Os credores reclamantes MM e NN pronunciaram-se quanto à oposição apresentada, pugnando pela improcedência da mesma, “por vaga, para além de não comprovada”.[3]
Pelo proposto afectado foi igualmente deduzida oposição ao incidente, concluindo nos exactos termos em que o havia feito a sociedade devedora.
E, ao que já anteriormente havia sido alegado pela insolvente, acrescentou: “(…) 31º Pelo que em Novembro de 2023 a Sociedade Datadecimal não teve nenhuma angariação e também não efectuou nenhuma venda. // (…) 60º Assim, // Em Junho de 2020 o R. creditou na conta da Sociedade a quantia de €30 000,00 em tranches de mil euros nos dias 03,04 e 05 de Junho de 2020 cf extrato nº 06/2020 que se junta doc 2. // É o R. credor desta quantia. // 61º Também pediu dinheiro emprestado a amigos, dinheiro esse que utilizou para pagar dividas da Sociedade, o que pode demonstrar. // 62º Foram esses empréstimos que lhe permitiram que durante o período da Pandemia 2020/2022 (em que era difícil realizar negócios), a Insolvente mantivesse os salários em dia bem como as despesas normais de funcionamento. // 63º Os montantes que lhe foram emprestados pelos seus amigos foram creditados na sua conta pessoal porque efectuados a nível pessoal cf documentos que se juntam. // 64º Quando efectuou o pagamento da dividas procedeu da mesma forma transferiu da conta da Datadecimal para a sua conta pessoal e seguidamente creditou esses montantes na conta de CA e FS. // 65º Em 19 -01.2022 foi creditada na sua conta a 5 000,00 euros em 20.01.2022 a quantia de 4750,00 e em 27.02.2023 a quantia de 5017,20 empréstimo efectuado por FS cf extrato que se junta DOC 3 4 E 5. // 66º No dia 7.03.2023 foi creditado por CA a quantia de €10,000,00 na sua conta pessoa c.f doc. 6 que se junta // 67º O R. transferiu esses montantes para a conta da Insolvente, constam dos extratos da Datadecimal créditos de PH. // 68º No dia 24 de Janeiro de 2022 o R. creditou € 9 900 ,00 na conta da Sociedade da cf extrato 01/22. // 69º Todas as transferências que fez da conta da Insolvente para a sua conta pessoal foi para pagar dividas da Insolvente. // 70º Não corresponde à verdade que em Novembro de 2023 tenha transferido 22000,00 da conta da sociedade para a sua conta pessoal, o que se verifica pela analise do extrato bancário é que transferiu € 20 000,00 para a sua conta. // 71º E seguidamente creditou € 2000,00 na conta da Datadecimal (20.11.2023 o R. creditou na conta da Sociedade 1 000,00 euros e no dia 21.11. 2023 creditou a quantia também1 000,00 euros). // 72º O que feitas as contas totaliza €18 000,00 e não 22000,00 conforme referido. // 73º O R. distribuiu o produto da venda do imóvel pagando salários e também pelos credores liquidando as dividas possíveis. // 74º Refere o MP que no período compreendido entre 14 de Fevereiro e 12 Novembro de 2023 foram efectuadas transferências a favor do gerente (cf quadro apresentado como doc. 3 pela administradora judicial referente a levantamento de socio) no montante de 73 778,47 euros , as quantias referidas tiveram a seguinte justificação: // • 14-02-2023- €8500,00 Entrega de valor empréstimo a FS. // • 24-02-2023- €5017,00 Entrega de valor empréstimo a FS. (no extracto são €5000). // • 09-03-2023 €2495,20 ordenado • 16-03-2023 €3610 subsidio ferias // • 31-03-2023 €2503 ordenado // • 04-04-2023 €2456 ordenado // • 01-06-2023 €2480 ordenado // • 30-06-2023 €1795 ordenado parcial // • 07-07-2023 €600.45 ordenado parcial // • 07.07-2023 €161.75 ordenado parcial // • 10-07-2023 €1000 empréstimo ao sócio (devolução no dia 11-07-2023 registado em extracto bancário) // • 31-07-2023 €2606,80 ordenado // • 15-08-2023 €2500 Entrega valor empréstimo a FS // • 07-09-2023 €2577,60 ordenado // • 12-09-2023 €2500 Entrega valor empréstimo a FS // • 29-09-2023 €2498,80 ordenado // • 09-10-2023 €840 ordenado parcial // • 12-10-2023 €1000 ordenado parcial // • 06-11-2023 €1200 13º mês // • 08-11-2023 €2354,80 ordenado // • 08-11-2023 €2000valor empréstimo Sócio (devolução parcial €1000 a dia 20.11.2023 + devolução parcial €1000 a dia 21.11.2023 registado em extrato bancário) // • 11-11-2023 €10000 entrega valor para empréstimo efectuado por CA // • 12-11-2023 €10000 entrega valor para empréstimo efectuado por CA. // • Protesta juntar extratos e recibos de vencimento das datas indicadas. // 75º Reitera que todas as transferências que fez da conta da Insolvente para a sua conta pessoal foram para pagar dividas da Insolvente. // 76º O R. não se locupletou com quaisquer quantias da Sociedade, pelo contrario foi injetando capital próprio na sociedade, quantias que nunca recuperou. // 77º Acresce que também o R. era trabalhador da Sociedade efectuava os normais e legais descontos pelos montantes recebidos. // 78º Vive do seu trabalho e do seu salário pelo que também ele ficou desempregado em Dezembro de 2023 como os demais trabalhadores da Datadecimal. // 79º O mês de Dezembro foi para si muito difícil não só a nível económico porque ficou sem rendimentos e com despesas para pagar, mas porque viu a Datadecimal a ruir sem o poder impedir. // 80º Como gerente efectuou o melhor que conseguiu considerando os tempos difíceis que se viveram e que não se pode olvidar e terá de ser tido em consideração. // 81º Primou sempre pelo pagamento dos salários dos colaboradores muita vezes e durante os anos difíceis da pandemia com seu prejuízo pessoal. // 82º Não consegue aceitar a qualificação da Insolvência como culposa porque tal não corresponde à verdade. // 83º Acresce que a Datadecimal tinha ainda alguns negócios por concretizar nomeadamente uma escritura que foi realizada em 4 de Janeiro de 2024 em que a Datadecimal foi mediadora e cujo montante a receber ronda os sete mil euros. Deu essa informação, desconhece se esse montante foi ou não tido em consideração. // 84º Não teve o gerente da sociedade uma conduta culposa, nem a situação económica da sociedade se agravou devido à sua conduta. // 85º Não conseguiu o ora R. impedir as consequências da conjuntara mundial que se viveu no período de 2020 e até finais de 2022, nem a subida dos juros, ou a subida desenfreada dos imoveis, inviabilizando créditos bancários e assim fragilizando as pequenas empresas como a Datadecimal. // 86º Tentou o gerente reabilitar a sociedade dos prejuízos sofridos por meses de confinamento sem que pudessem ser angariados ou vendidos imoveis e onde existiu uma ausência total de receitas. // 87º Mas a saída da Marca Era fez com que a Sociedade tivesse uma quebra de negócios com a consequente perda de receitas. (…)”
Novamente os supra identificados credores se pronunciaram pela improcedência desta segunda oposição[4].
Em 05/07/2024, a AI reiterou a sua anterior posição.
Por despacho de 19/09/2024 foi dispensada a realização de tentativa de conciliação e proferido despacho saneador, através do qual foi fixado o objecto do litígio e a matéria considerada assente, elaborados os temas da prova e apreciados os requerimentos probatórios, para além de ter sido agendada audiência de julgamento.
Após a realização do julgamento, por sentença proferida em 24/11/2024, o tribunal a quo decidiu: “Face ao exposto, nos termos do disposto nos artigos 189.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o tribunal decide: a) Qualificar como culposa a insolvência da sociedade DATADECIMAL, Ld., (…), e, em consequência: b) Declarar afetado pela qualificação da insolvência PH; c) Declarar a inibição do afetado para a administração do património de terceiros, para o exercício do comércio e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa, durante o período de dois anos; d) Determinar a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelo supra afetado; e) Condenar o afetado a indemnizar os credores da sociedade insolvente no montante dos créditos sobre a insolvência não satisfeitos, até ao montante máximo de 44.783,87€ (…).”
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Inconformada com a sentença, dela interpôs RECURSO de apelação a insolvente, tendo formulado as seguintes CONCLUSÕES: 1- O objecto do presente recurso é a douta sentença proferida pelo Tribunal a quo, que qualificou a Insolvência da Sociedade Datadecimal como culposa, afetando o gerente da Sociedade. 2- Tendo o gerente sido condenado a indemnizar os credores da sociedade insolvente e fixado o período de inibição, referido no n.º 2 do artigo 189.º do CIRE, em dois anos, e o valor da indemnização correspondente ao somatório de €35.000,00 com € 9.783,87 totalizando a quantia de €. 44.783,87. 3- Entendeu o Tribunal à Quo que existiu apenas uma conduta subsumível ao disposto no artigo 186.º do CIRE, e decidiu Qualificar como culposa a insolvência da sociedade DATADECIMAL, Ld., e afetar o seu gerente pela insolvência . 4- O MM Juiz entendeu que o gerente optou por pagar parte das dívidas da sociedade, acabando por beneficiar, ou por tratar de modo necessariamente diferenciado, certos credores em detrimento de outros, o que implica “a violação de um dos princípios estruturantes do processo falimentar - o princípio do tratamento igualitário dos credores sociais 5- Algumas circunstâncias do caso concreto e objecto da sentença foram levadas em linha de conta de forma algo deficitária, e outras não foram de todo consideradas consequentemente, com omissão de apreciação e de pronuncia. 6- Foi dado como provado que o facto determinante que sentenciou a ruína da sociedade foi a rutura do contrato com a ERA Portugal, que ocorreu sensivelmente dois meses antes da apresentação à insolvência, em Outubro de 2023. 7 – Se a sociedade tivesse continuado a sua actividade normal, os negócios em curso teriam sido concluídos e certamente parte das dividas teriam sido liquidadas, restando apenas as dividas ao Estado com acordo de pagamento em curso. 8 - Eentendemos que houve um erro notório na apreciação da prova e uma contradição insanável, a sociedade ficou impedida de continuar a actividade, culpa que lhe não pode ser imputada ao gerente. 9 - Foi dado como provado que o imóvel vendido não era onde a sociedade desenvolvia a sua atividade e que a venda não gerou a inatividade da sociedade. 10 - Quando o gerente decidiu vender o imóvel, tinha como intenção prosseguir com a atividade da sociedade. 11- Foi dado como provado que a venda do imóvel sito Rua …, foi efetuada por decisão do gerente com a intenção de gerar capital para liquidar dívidas da sociedade. 12- Foi dado como provado que o gerente estabeleceu contactos comerciais com a Predimed logo após a rutura com a ERA Portugal. 13 - Foi dado como provado que gerente da sociedade insolvente acreditou que poderia evitar a insolvência da sociedade até à rutura com a ERA Portugal e ao insucesso das negociações com a Predimed. 14 - Foi dado como provado que o negocio com a Predimed não avançou porque os trabalhadores da Datadecimal não se quiseram vincular à PREDIMED tendo sido nesse seguimento que o gerente decidiu apresentar a sociedade à insolvência”. 15 - O artigo 11º dá como provado que a quantia de € 28 994,00 é referente ao salário auferido pelo gerente e declarado no ano de 2023. 16 – Ao montante de € 73 778,47 tem de se retirar o montante de 28,994,60 auferido pelo gerente a titulo de remuneração apurando-se o montante de € 44 873,67. 17- No artigo 12º dos factos provados em vez de constar o montante de € 73 778,47 deveria constar que o gerente transferiu a quantia de € 44 873,67. 18- Deveria ter sido dado como provado que o gerente da sociedade creditou na conta da Sociedade a quantia de € 35 000,00, quantia que lhe foi emprestado pelos seus amigos FS e CA para fazer face as dificuldades financeiras em contexto pandémico (vide artº21 factos provados). 19– Deveria ter sido dado como provado que do montante de € 44 873,67 a quantia de € 35000,00 se destinou ao pagamento de dividas da Sociedade e que foi entregue por CA e FS ao gerente e creditado na sua conta pessoal e posteriormente creditado na conta da sociedade. 20 - Deveria ter sido dado como provado que o gerente não fez prova do destino apenas da quantia de € 9783, 87. 21- Deveria ter sido dado como provado que todas as quantias que PH fez da conta bancaria da Sociedade se destinaram a pagar dividas da Sociedade. 22-Deveria ter sido dado como provado que PH gerente da Sociedade Insolvente fez pagamentos rateados a vários credores, acreditando que a actividade da empresa iria prosseguir. 23– O MM Juiz, incorreu em omissão de pronuncia ao não dar como provado que o gerente não beneficiou uns credores em detrimento de outros. 24-O MM Juiz, não fundamenta porque considera que foram privilegiados credores quando na verdade o não foram, foram pagos salários, foi pago à Era Portugal pagas dividas aos estado cujo (pagamento prestacional foi acordado), renda, e outras despesas correntes. 25- O imóvel foi adquirido através de um contrato de locação imobiliária e era uma fonte de despesa para a sociedade Datadecimal em virtude da prestação que tinha de paga mensalmente. 26 – Salvo o devido respeito, entendemos que deveriam ter ficado provados os factos constantes dos artigos das conclusões, e que face à prova produzida impunha que o fossem pelos argumentos explanados na analise critica dos factos que se dá por reproduzido. 27- Da prova produzida não resultam provados os pressupostos do artº 186 do CIRE. 28- Entendemos que existiu erro de julgamento de direito na apreciação dos pressupostos da qualificação da insolvência como culposa, uma vez que não se encontram preenchidos os pressupostos do artº 186 do CIRE. 29- Entende-se que os factos alegados e a prova carreada para o processo, apreciada correctamente, salvo o devido respeito, é suficiente para proferir decisão diversa, qualificando a insolvência como fortuita
O MP apresentou Resposta, pugnando pelo não provimento do recurso e pela manutenção da sentença recorrida.
Apresentou como CONCLUSÕES: “1- Resulta da douta sentença recorrida que, em consonância com a prova produzida nos autos, os factos apurados são suscetíveis de integrar a previsão da alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. 2- Na verdade, no que concerne ao facto 12, consta apenas provado que “no período compreendido entre 14 de Fevereiro e 12 de Novembro de 2023, foram efetuadas transferências bancárias a favor do gerente da insolvente no valor total de 73.778,47€”, pelo que não se podem extrair, como pretende a recorrente, quaisquer sugestões que o gerente se locupletou com €73.778,47. 3- Tal facto foi alicerçado, não só na prova documental que atesta as referidas transferências, como também na confissão do gerente da sociedade insolvente, requerido no presente incidente. 4- Tal confissão, com a força probatória plena conferida pelo n.º 1 do art. 358.º do Código Civil, seria suficiente, por si só, para se considerar tal facto provado. 5- De igual modo, ao contrário do que alega a recorrente, a remuneração do gerente da sociedade insolvente está igualmente elencada nos factos provados (facto 11), assim como a respetiva subtração do montante de 73.778,47€ (facto 14). 6- Ainda assim, não obstante decorrer das declarações prestadas pelo requerido em sede de julgamento a sua preocupação no pagamento aos credores, a verdade é que o mesmo não se coibiu de retirar, em primeiro lugar, o montante de 28.994,60€ relativo à sua própria remuneração. 7- Não se afigura que os factos 12, 13 e 14 estejam em contradição, uma vez que, da prova documental junta aos autos e das declarações prestadas pela Senhora Administradora de Insolvência, resultaram apuradas tais transferências bancárias, assim como o destino dado pelo gerente à maior parte dos referidos montantes. 8- O desconhecimento do “destino dado ao valor remanescente (9.783,87€)” não pode ser imputado à atuação da Senhora Administradora de Insolvência, sendo certo que o requerido, na qualidade de gerente da sociedade insolvente, deveria ter conhecimento sobre a forma como foi utilizado tal montante. 9- Por fim, no que tange ao benefício de alguns credores em detrimento de outros com os pagamentos efetuados, resulta igualmente da confissão do requerido que tal preferência no pagamento aos credores efetivamente ocorreu, nos termos descritos nos factos provados, pelo que tal seria suficiente, por si só, para se considerar preenchida a alínea d) do n.º 2 do art. 186.º do CIRE. 10- Não tendo sido violada qualquer norma jurídica e tendo o Tribunal a quo efetuado o correto enquadramento fáctico-jurídico, não merece reparo a qualificação como culposa da insolvência da sociedade DATADECIMAL, Lda., nos termos do disposto no artigo 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea d), abrangendo tal qualificação PH.”
O recurso foi admitido pelo tribunal a quo por despacho proferido em 11/02/2025, como sendo de apelação, com subida imediata e nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Mais se defendeu não padecer a sentença de quaisquer nulidades.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II – DO OBJECTO DO RECURSO
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões no mesmo formuladas, salvo no que concerne à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas pertinentes ao caso concreto e quando estejam em causa questões que forem de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido apreciadas com trânsito em julgado- artigos 5.º, n.º 3, 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, todos do CPC. Não está, porém, este tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pela recorrente, desde que prejudicados pela solução dada ao litígio.
Assim, as questões a decidir traduzem-se em aferir:
1. Da invocada nulidade da sentença;
2. Aferir da eventual alteração da matéria de facto provada;
3. Aferir da qualificação da insolvência – preenchimento da qualificativa valorada e constante do artigo 186.º, n.º 2, al. d).
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III – FUNDAMENTAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Na sentença recorrida foi considerada provada a seguinte factualidade: 1. Datadecimal, Lda., apresentou-se à insolvência em 19/12/2023, tendo sido declarada insolvente por sentença proferida nos autos principais em 21/12/2023, transitada em julgado. 2. O processo de insolvência, na sequência do relatório apresentado pela sra. Administradora da insolvência, prosseguiu para liquidação, tendo sido recuperado para a massa insolvente, até ao presente, o valor de 2.949,63€. 3. A sra. administradora da insolvência reconheceu créditos sobre a insolvente no montante global de € 237.473,28, referentes a dívidas tributárias, contributivas, laborais, a fornecedores e a instituições bancárias. 4. Datadecimal, Lda., constituída em 15/03/2016, com sede na Rua Quinta da Brita, n.º 32, 2815-886 Sobreda, tem por objecto actividades de mediação imobiliária e de gestão de imóveis, compra e venda de bens e revenda dos mesmos adquiridos para esse fim, serviços de consultoria para os negócios, actividade fotográfica comercial e de consumo, actividades de intermediários de crédito, a título acessório. 5. Desde a data da sua constituição, é gerente da insolvente PH, também sócio. 6. No dia 12/12/2019, foi celebrado contrato de locação financeira imobiliária entre Banco BPI, SA, na qualidade de locador, e a sociedade insolvente, na qualidade de locatária, pelo prazo de 144 meses, com início naquela data, pelo preço de 85.000,00€, relativamente à fração autónoma designada pela letra “H”, correspondente ao rés do chão, com entrada pelos n.ºs …, destinado a comércio e armazém na cave, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, situado na Rua …, e Rua …, na Baixa da Banheira, descrita na Conservatória do Registo da Moita sob o n.º …, da freguesia da Baixa da Banheira, e inscrita na respetiva matriz sob o artigo …. 7. Acordada a cessação da locação financeira, no dia 11/12/2023, a insolvente, representada pelo respetivo gerente, adquiriu a Banco BPI, SA, a fração acima indicada pelo preço de 51.573,17€. 8. No mesmo dia 11/12/2023, a insolvente, representada pelo respetivo gerente, vendeu a referida fração autónoma “H” à sociedade … & …, Lda., pelo preço de 135.000,00€. 9. No dia 13/12/2023, a insolvente destinou o montante de 24.314,83€ para o pagamento de dívidas à Autoridade Tributária e Aduaneira e à Segurança Social. 10. A insolvente apresentou, nos anos de 2020 e 2022, prejuízo superior a 51.000,00€ e 42.000,00€, respetivamente. 11. O valor anual de remunerações declaradas pelo gerente da insolvente, em 2023, totaliza o montante de 28.994,60€. 12. No período compreendido entre 14 de Fevereiro e 12 de Novembro de 2023, foram efetuadas transferências bancárias a favor do gerente da insolvente no valor total de 73.778,47€. 13. Do valor indicado em 12), parte do mesmo foi rececionado por PH em Novembro de 2023, tendo o gerente da insolvente procedido nesse mesmo mês à transferência da quantia total de 25.554,80€ da conta bancária da insolvente para a sua conta bancária pessoal, sendo: - no dia 06/11/2023 a quantia de 1.200,00€; - no dia 08/11/2023 a quantia de 2.354,80€ (salário); - no mesmo dia 08/11/2023 a quantia de 2.000,00€; - no dia 11/11/2023 a quantia de 10.000,00€; - e no dia 12/11/2023 a quantia de 10.000,00€; - Por sua vez, o gerente da insolvente efetuou duas transferências de 1.000,00€ da sua conta bancária pessoal para a conta bancária da sociedade insolvente, em 20/11/2023 e 21/11/2023 respetivamente. 14. Da quantia total de 73.778,47€ transferida da conta bancária da sociedade insolvente para a conta pessoal do seu gerente (facto 12)), 28.994,60€ destinaram-se ao pagamento das suas remunerações (facto 11)), e a quantia total de 35.000,00€ veio a ser entregue a FS (15.000,00€) e CA (20.000,00€), que haviam emprestado esses valores ao gerente da sociedade insolvente PH, a título pessoal, desconhecendo-se o destino dado ao valor remanescente (9.783,87€). 15. O local em que a sociedade insolvente exercia a sua atividade social era na Estrada Nacional nº 209 e 211, 2835 Baixa da Banheira. 16. Do produto da venda do imóvel descrita em 8), a sociedade insolvente: - efetuou a operação mencionada em 7) (distrate do contrato de locação financeira junto do Banco BPI, S.A.); - recebeu na sua conta um cheque de 55.000,00€ (a título de sinal e princípio de pagamento), em 08/11/2023; - recebeu na sua conta uma entrega correspondente a 24.898,63€, em 12/12/2023. 17. O gerente da sociedade insolvente tomou a decisão de vender o imóvel descrito em 8) para fazer face às despesas da sociedade e, nesse seguimento, entre 08/11/2023 e 12/12/2023, a sociedade insolvente fez, através da sua conta bancária, diversos pagamentos e transferências bancárias para trabalhadores, credores, Estado e para liquidação de despesas correntes. 18. Em 10/10/2023 a ERA Portugal resolveu o contrato de franchising celebrado com a insolvente e, em consequência, a atividade da sociedade ficou paralisada. 19. O gerente da sociedade insolvente estabeleceu contactos com a sociedade Predimed para dar continuidade à atividade comercial, no entanto, os trabalhadores da insolvente não se quiseram vincular à Predimed, tendo sido nesse seguimento que o gerente decidiu apresentar a sociedade à insolvência. 20. Até essa altura, o gerente da sociedade insolvente acreditou que poderia evitar a insolvência da sociedade. 21. O gerente da sociedade insolvente creditou na conta da sociedade, em Junho de 2020, a quantia total de 35.000,00€, para fazer face às dificuldades financeiras da sociedade em contexto pandémico.
E considerou não provados: A. O imóvel referido em 6) era o único estabelecimento comercial da sociedade insolvente onde esta exercia a sua atividade. B. A venda do referido imóvel gerou a inatividade da sociedade. C. PH transferiu a totalidade do dinheiro que lhe foi emprestado e depositado (facto 14)) da sua conta bancária pessoal para a conta bancária da sociedade insolvente. D. Todas as transferências que PH fez da conta bancária da sociedade insolvente para a sua conta bancária pessoal serviram para pagar dívidas da sociedade insolvente.
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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO Da invocada nulidade da sentença
Dispõe o artigo 615.º, n.º 1, do CPC que a sentença é nula quando: a) não contenha a assinatura do juiz; b) não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e e) condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.
Como decorre desta norma, as causas de nulidade aqui previstas reportam-se à violação de regras de estrutura, conteúdo e limites do poder-dever de pronúncia do julgador, consubstanciando as mesmas vícios formais da sentença ou vícios referentes à extensão/limites do poder jurisdicional (não contendendo, pois, com o mérito da decisão)[5].
No caso, a recorrente não invocou expressamente a existência de nulidade da sentença, mas invocou já padecer a mesma dos vícios de omissão de pronúncia, bem como de contradição entre os factos provados e a decisão proferida, o que nos reconduz às previsões das als. c) e d) do citado n.º 1 do artigo 615.º. Da nulidade decorrente da al. c)– a qual se reporta às situações nas quais “os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”
Alega a recorrente existir “[c]ontradição entre os factos provados e a decisão proferida”, bem como ter existido “um erro notório na apreciação da prova e uma contradição insanável”.
Vejamos se lhe assiste razão.
A invocada nulidade verifica-se quando existe contradição entre os fundamentos e a decisão, ou seja, quando a fundamentação aponta num sentido que contraria o resultado final (violação do chamado silogismo judiciário, segundo o qual as premissas devem condizer com a conclusão).
Como defende Amâncio Ferreira[6], “a lei refere-se à contradição real entre os fundamentos e a decisão: a construção da sentença é viciosa, uma vez que os fundamentos referidos pelo juiz conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente.”
Também segundo Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[7], entre “os fundamentos e a decisão não pode haver uma contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença.”
Ao nível da jurisprudência tem-se entendido que esta nulidade está conexionada com dois aspectos: com a obrigação de o juiz fundamentar os despachos e as sentenças que profere (cfr. artigos 154.º e 607.º, nºs. 3 e 4 do CPC) e com facto de a sentença dever constituir um silogismo lógico-jurídico (a que já aludimos supra), em que a decisão deverá ser a conclusão lógica da norma legal (premissa maior) com os factos (premissa menor).
Porém, já não ocorrerá nulidade se o julgador errou na subsunção que fez dos factos à norma jurídica aplicável, ou se errou na indagação de tal norma ou na sua interpretação.
Como se escreveu no acórdão desta Relação de 09/05/2024[8], referindo ao error in judicando, trata-se de “um vício de julgamento do thema decidendum (seja este de direito, processual ou material ou de facto). O juiz falha na escolha da norma pertinente ou na sua interpretação, não aplicando apropriadamente o direito – dito de outro modo, não subsume correctamente os factos fundamento da decisão à realidade normativa vigente (questão de direito) -; ou falha na afirmação ou na negação dos factos ocorridos (positivos ou negativos), tal como a realidade histórica resultou demonstrada da prova produzida, havendo uma divergência entre esta demonstração e o conteúdo da decisão de facto (questão de facto). Não está aqui em causa a regularidade formal do ato decisório, isto é, se este satisfaz ou não as disposições da lei processual que regulam a forma dos atos. A questão não foi bem julgada, embora a decisão – isto é, o ato processual decisório – possa ter sido formalmente bem elaborada.”
Desde já se dirá não padecer a sentença do invocado vício.
Por um lado, o facto de a recorrente alegar que os factos provados n.º 12, 13 e 14 “são contraditórios em si” - ponto I das alegações de recurso -, nunca consubstanciaria vício de nulidade nos moldes invocados (sendo antes questão a ponderar em sede de impugnação da matéria de facto).
Por outro lado, a recorrente não refere qualquer contradição entre os fundamentos e a decisão. O que a mesma invoca é antes que, a serem considerados provados os factos que enumera, a decisão seria já diversa – cfr. ponto II das alegações de recurso, sendo que, ao contrário do que aí se escreve, os factos elencados nas als. a) a g) não correspondem ao descrito na fundamentação de facto, mas sim, ao que a recorrente pretende que seja considerado provado.
Consequentemente, não se vislumbra o cometimento da invocada nulidade no caso da sentença recorrida, a qual não padece de qualquer contradição, nem tão pouco poderá ser apelidada de ambígua e ininteligível[9] - o Mmo. Juiz a quo justificou a razão pela qual, no seu entender, a insolvência deveria ser qualificada de culposa e a insolvente bem compreendeu as razões defendidas na sentença impugnada.
Simplesmente, a recorrente discorda da fundamentação adiantada, discordância essa que, quanto muito, consubstancia imputação de erro de julgamento, mas, insiste-se, já não contende ou interfere com um qualquer vício formal de estrutura na fundamentação da sentença. [10] Se o entendimento da 1.ª instância foi ou não o mais acertado será já outra questão, mas que não se confunde com o vício apontado, sendo que não se inclui na previsão do artigo 615.º do CPC o chamado erro de julgamento.
Conclui-se, pois, no sentido de não padecer a sentença recorrida da invocada nulidade, improcedendo, assim, nesta parte, a pretensão recursória. Da nulidade decorrente da al. d)– quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.
Alega a recorrente: “[a]lgumas circunstâncias do caso concreto e objecto da sentença foram levadas em linha de conta de forma algo deficitária, e outras não foram de todo consideradas consequentemente, com omissão de apreciação e de pronuncia”; incorrendo a sentença “em erro notório na apreciação da prova e consequente omissão de pronuncia”, mais acrescentando que “[o] MM Juiz, incorreu em omissão de pronuncia ao não dar como provado que o gerente não beneficiou uns credores em detrimento de outros”.
A referida al. d) reporta-se às situações nas quais o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento, isto é, casos nos quais ocorre uma omissão ou um excesso de pronúncia.
Trata-se de uma nulidade que se mostra interligada com a previsão do artigo 608.º, n.º 2, do CPC, segundo o qual “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.
Como escreveu João Castro Mendes[11], o vício que o apelante imputa à sentença, de omissão de pronúncia, corresponde a vício de limite, por não conter o que devia conter por referência à instância e ao caso delineado na acção.
Cfr., ainda, o acórdão do STJ de 03/10/2017[12], no qual se consignou: "(…) II - A nulidade consistente na omissão de pronúncia ou no desrespeito pelo objecto do recurso, em directa conexão com os comandos ínsitos nos arts. 608.º e 609.º do CPC, só se verifica quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões ou pretensões que devesse apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada. (…)”.
Reportemos ao caso.
O tribunal conheceu das questões que lhe era imposto conhecer, a saber: qualificação da insolvência e inerentes consequências, nomeadamente para o proposto afectado.
Se valorou ou não algum facto ou algum meio probatório, ou se o fez correctamente, é já questão diversa.
Acresce que nunca estaríamos em face de uma nulidade por omissão de pronúncia com fundamento no constante na conclusão n.º 23 – “O MM Juiz, incorreu em omissão de pronuncia ao não dar como provado que o gerente não beneficiou uns credores em detrimento de outros.”
Conclui-se, assim, no sentido de não padecer a sentença recorrida do vício que lhe é imputado, improcedendo, uma vez mais, a pretensão da recorrente. Da impugnação da fundamentação de facto
Pretende a insolvente que seja alterada a redacção dos factos provados n.º 12 e n.º 21 e que sejam aditados novos factos (que considera deverem ter-se por provados – os constantes das als. a) a g) do ponto II da motivação de recurso).
Não obstante o artigo 662.º, n.º 1 do CPC permita que a decisão sobre a matéria de facto possa ser alterada pela Relação - “se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documentos superveniente impuserem decisão diversa” -, para que ocorra reapreciação da prova, exige-se que seja cumprido determinado formalismo.
Com efeito, prescreve o n.º 1 do artigo 640.º do CPC: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
No concerne à especificação dos meios probatórios, acrescenta a al. a) do seu n.º 2: “Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Defende Abrantes Geraldes[13] que, caso esteja em causa a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, impõe-se (sem que haja lugar a despacho convite de aperfeiçoamento), em síntese, que o recorrente: a) indique os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados (com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões); b) especifique, na motivação, os meios de prova que determinam uma decisão diferente (que constem do processo ou que nele estejam registados); c) tratando-se de prova gravada, indique com exactidão as passagens relevantes da gravação (e, se assim o entender, transcreva os excertos que julgue oportunos); e d) deixe expresso, na motivação, a decisão que entende que deverá ser proferida sobre as questões impugnadas[14].
Note-se que, como veio o STJ a decidir no seu AUJ n.º 12/2023, de 17/10/2023[15], “Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”.
Atente-se, também, que vigora no nosso ordenamento jurídico o princípio da livre apreciação da prova (artigo 607.º, n.º 5 do CPC[16]), sustentando o tribunal a sua decisão (relativamente às provas produzidas), na sua íntima convicção[17], formada a partir do exame e avaliação que faz dos meios de prova trazidos ao processo, e somente quando a força probatória de certos meios se encontra pré-estabelecida na lei[18] é que não domina, na apreciação das provas produzidas, o referido princípio.
Em sede de incidente de qualificação da insolvência, vigora igualmente o princípio do inquisitório, pelo que a decisão pode ser fundada em factos que não tenham sido alegados pelas partes, se a prova produzida assim o impuser (designadamente face ao que consta do relatório a que alude o artigo 155.º do CIRE e demais documentação carreada para os autos) – artigo 11.º do CIRE e artigos 411.º e 413.º do CPC ex vi artigo 17.º do CIRE.
Tecidas estas considerações, impõe-se concluir não ter a recorrente dado cumprimento ao disposto no artigo 640.º do CPC.
Com efeito, a mesma limita-se a invocar os depoimentos da AI, do gerente/proposto afectado e das testemunhas FS e CA, sem que, no entanto, indique concretamente quais as passagens da gravação dos mesmos que determinariam, na sua opinião, que a factualidade fixada pela 1.ª instância fosse modificada (apenas refere quando se inicia e quando termina cada um dos depoimentos).
Na prática, a recorrente efectua uma síntese do que defende ter resultado de tais depoimentos (síntese essa que versa sobre o que, no entender da mesma, será relevante), o que não se mostra adequado, nem suficiente, para que se considere cumprido o estatuído na al. a) do n.º 2 do já citado artigo 640.º.
Mais relevante ainda, importa referir que, da leitura das referidas sínteses, nem sequer se mostra possível estabelecer qualquer correlação com a modificação pretendida efectuar à matéria de facto.
Por seu turno, no que respeita à invocada prova documental, a recorrente limita-se a aludir ao contrato de trespasse que celebrou, sem que depois daí extraia qualquer consequência (tanto mais em face das razões que levaram a 1.ª instância a qualificar a insolvência como culposa).
Ainda com pertinência para o ónus imposto em sede de impugnação da matéria de facto, veja-se o acórdão do STJ de 06/02/2024[19]: “(…) III - A especificação dos concretos meios probatórios convocados e a indicação exata das passagens da gravação dos depoimentos que se pretendem ver analisados, além de constituírem uma condição essencial para o exercício esclarecido do contraditório, servem sobretudo de parâmetro da amplitude com que o tribunal de recurso deve reapreciar a prova, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação, como decorre do preceituado no artigo 662.º/1 do CPCivil. IV – O recorrente terá de tomar posição especifica sobre os motivos da discordância, indicando e explicitando de forma pormenorizada, individualizada e minuciosa os concretos pontos de facto que se pretendem impugnar, os concretos meios probatórios que impunham decisão diversa e a decisão que entenda ser a correta, não sendo para o efeito suficiente uma genérica ou exemplificativa afirmação dessa discordância. V – A lei comina a inobservância destes requisitos de impugnação com a sanção da rejeição imediata do recurso, sem possibilidade de suprimento, na parte afetada, nos termos do artigo 640.º/1, do CPCivil.”
Termos em que se rejeita, nesta parte, o recurso. Do mérito do recurso – da qualificação da insolvência:
O incidente de qualificação (previsto e regulado nos artigos 185.º e ss) visa averiguar quais os motivos que determinaram a situação de insolvência e se os mesmos foram puramente fortuitos ou se, pelo contrário, traduzem alguma actuação gravemente negligente ou fraudulenta do devedor.
O artigo 185.º consagra, assim, dois tipos de incidentes de qualificação da insolvência - culposa ou fortuita.
No caso, como já descrito no relatório deste acórdão, foi requerido que a insolvência fosse qualificada como culposa, sendo essa a posição defendida pela AI e pelo MP, a qual veio a ser igualmente sustentada pelos credores MM e NN (os quais pugnaram pela improcedência das oposições apresentadas).
Instruída e julgada a causa, o tribunal recorrido proferiu sentença pela qual veio a corroborar a posição consensualmente defendida, qualificando, assim, a insolvência como culposa, não obstante tenha entendido que a mesma apenas se subsume à previsão constante da al. d) do n.º 2 do artigo 186.º, tendo afastado o preenchimento das qualificativas previstas na als. a), g) e i) do n.º 2 e na al. a) do n.º 3.[20]
Prescreve o n.º 1 do artigo 186.º que “A insolvência é culposa quando a situação tiver sido criada ou agravada em consequência da actuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência.“
O período juridicamente relevante cifra-se entre 19/12/2020 e 19/12/2023 (data da apresentação à insolvência).
Em face do transcrito n.º 1, são requisitos cumulativos da insolvência culposa: a) o facto inerente à actuação, por acção ou omissão, do devedor ou dos seus administradores (tanto de direito, como de facto), nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência; b) a culpa qualificada (dolo ou culpa grave); e c) o nexo causal entre aquela actuação e a criação ou o agravamento da situação de insolvência.[21]
O conceito constante deste n.º 1 é depois complementado nos dois números seguintes por um conjunto de situações em que a insolvência se considera sempre culposa (n.º 2) ou nas quais se presume a existência de culpa grave (n.º 3).
No caso, como referido, a sentença recorrida julgou verificada a circunstância prevista na al. d) do n.º 2 (as circunstâncias descritas neste número têm carácter disjuntivo, pelo que bastará a verificação de uma delas para que a insolvência seja qualificada culposa).
Rege este normativo, no que aqui releva, que “Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham: (…) d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros”.
Como já mencionado, as previsões elencadas nas diversas alíneas deste n.º 2 correspondem a condutas que integram uma presunção iuris et de iure, da existência de insolvência culposa.[22] Trata-se de um elenco taxativo de presunções inilidíveis de insolvência culposa, de culpa e de nexo de causalidade – cfr. artigo 350.º, n.º 2, in fine, do CCivil.[23] Por assim ser, e como refere Maria do Rosário Epifânio[24], “quando se preencha algum dos factos elencados no n.º 2 do art. 186º, a única forma de escapar à qualificação da insolvência como culposa será a prova, pela pessoa afetada, de que não praticou o ato”.
O Tribunal Constitucional, no seu acórdão n.º 570/2008 (publicado no D.R., 2.ª Série, n.º 9, de 14/01/2009), considerou ser “… duvidoso que na previsão do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE se instituam verdadeiras presunções … o que o legislador faz corresponder à prova da ocorrência de determinados factos não é a ilação de que um outro facto (fenómeno ou acontecimento da realidade empírico -sensível) ocorreu, mas a valoração normativa da conduta que esses factos integram. Neste sentido, mais do que perante presunções inilidíveis, estaríamos perante a enunciação legal de situações típicas de insolvência culposa”. Não obstante, quer se trate de presunção inilidível de culpa ou de factos-índice, perante a prova de determinados comportamentos sempre se terá de concluir que a insolvência é culposa (sem necessidade de demonstração do nexo causal entre as condutas constantes das diversas alíneas do n.º 2 e a situação de insolvência ou o seu agravamento).
Em síntese, poder-se-á concluir que, se, por um lado, a qualificação culposa da insolvência exige sempre, como requisito, uma actuação do devedor que seja causadora da situação de insolvência ou do seu agravamento; por outro lado, verificando-se alguma das circunstâncias previstas nas diversas alíneas do n.º 2 do artigo 186.º tal requisito presume-se verificado e impõe-se a qualificação como culposa da insolvência[25] – sem prejuízo de, como referem Carvalho Fernandes e João Labareda[26], as alíneas deste n.º 2 exigirem uma ponderação casuística, ou seja, na apreciação de cada uma das situações aí previstas dever-se-á atender às circunstâncias próprias da situação de insolvência do devedor.
Cumpre, pois, aferir se o comportamento da devedora é subsumível à invocada al. d) do n.º 2 do artigo 186.º
Nesta alínea estão em causa comportamentos dos administradores e gerentes da insolvente que, afectando a situação patrimonial desta, implicam concomitantemente benefício para o próprio administrador/gerente que os adopta ou para terceiros. Embora a hipótese mais comum se traduza na saída de bens do património do devedor (venda ou doação) ou perda de disponibilidade dos mesmos, não se reduz tal disposição a actos de alienação, abrangendo igualmente os que afectem em geral o seu património (o capital administrado), pondo-o em risco.
Visa-se a protecção do património da insolvente, penalizando-se actos de disposição com fins contrários aos da empresa (atendendo a que o património da devedora deverá ser afecto à satisfação dos credores, há que obstar a que haja uma afectação ao benefício ilegítimo dos próprios administradores/gerentes ou de terceiros).
Reportando-se à “legitimidade das operações de distribuição do produto da venda efetuadas pelo gerente da sociedade”, a 1.ª instância defendeu:
“(…) é neste aspeto em particular que a atuação do gerente da sociedade se considera culposa e danosa para a sociedade e para os seus credores, tendo agravado a situação de insolvência da sociedade. // Com efeito, sendo certo que parte do produto da venda se destinou ao pagamento de credores (facto 17)), existem duas circunstâncias que irremediavelmente recriminam a atuação do gerente: i) o produto da venda não serviu integralmente para pagar a credores, sendo que 20.000,00€ (já descontando os 2.354,80€ do seu salário e os 2.000,00€ que veio posteriormente a creditar na conta da sociedade) tiveram como destino a sua conta pessoal (facto 13), quantia que a sociedade não detinha antes de receber o valor da venda do imóvel (em 08/11/2023); ii) o gerente optou por pagar parte das dívidas da sociedade, acabando por beneficiar, ou por tratar de modo necessariamente diferenciado, certos credores em detrimento de outros, o que implica “a violação de um dos princípios estruturantes do processo falimentar - o princípio do tratamento igualitário dos credores sociais” (in Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07/05/2024, proc. 1798/22.0T8BRR-B.L1-1, Rel. Manuela Espadaneira Lopes). // Neste tocante, importa referir que, mesmo que se considere que os 20.000,00€ transferidos para a conta pessoal do gerente serviram, na totalidade, para pagar a FS e/ou CA (sendo que não há nos autos comprovação da(s) data(s) de tais pagamentos), tal circunstância não releva como causa de exclusão da culpa na atuação do gerente PH, porquanto FS e CA não eram credores da sociedade (conforme resultou provado em 14) – os “empréstimos” efetuados foram feitos a título pessoal e não diretamente para a conta da sociedade, nem existindo nos autos qualquer prova de que o valor tenha integralmente dado entrado nalgum momento na conta da sociedade). // O que realmente se demonstrou é que o gerente criou uma confusão entre o património pessoal do administrador e o património da própria sociedade, confusão essa que se revela intolerável segundo os padrões exigíveis de credibilidade do comércio e de respeito pelo princípio do tratamento igualitário dos credores sociais. // Em acréscimo, reforça-se que a transferência de capital em causa foi efetuada diretamente para a conta bancária pessoal titulada pelo administrador e não para a de quaisquer credores. Ademais, nem os próprios beneficiários finais de tais transferências, para quem reverteu o capital, eram credores da sociedade, pelo que, em bom rigor, a transferência do capital provindo da sociedade veio a beneficiar terceiros que não credores daquela. // Certo é que as quantias “emprestadas” por FS e CA foram entregues a título pessoal ao administrador e não entraram, pelo menos diretamente, na conta da sociedade. Por conseguinte e da mesma forma, na altura em que o administrador da sociedade perspetivou a insolvência da sociedade como uma circunstância inevitável decidiu resgatar parte do capital primeiramente para a sua conta pessoal e, depois, optou por utilizar parte dessas quantias transferidas para satisfazer os empréstimos feitos pelos amigos, a título pessoal, em detrimento dos demais credores afetados pela situação deficitária da sociedade que geria. // O modus operandi levado a cabo pelo administrador da sociedade demonstra a sua incúria no exercício de tais funções que, na prática, não só agravou a situação de insolvência da sociedade como prejudicou direta e necessariamente os seus credores. // Tal escolha, independentemente da motivação associada, traduziu-se num agravamento da posição financeira da sociedade face aos seus credores. // A circunstância de o motivo principal para inevitabilidade e irreversibilidade da situação de insolvência da sociedade ter sido a rutura do contrato que existia com a ERA Portugal não obsta a que se conclua que tal situação tenha sido agravada por atuação culposa do seu administrador, como de resto ocorreu. // Não tivesse sido a escolha efetuada pelo administrador em transferir capital proveniente da sociedade para a sua conta pessoal e a sociedade teria tido possibilidade de liquidação de parte das dívidas que se verificavam aos credores. // Adicionalmente, por referência à factualidade que se deu como provada em 12) e 14), conclui-se que ao longo do ano de 2023, mais precisamente entre 14/02 e 12/11, o gerente recebeu na sua conta pessoal 73.778,47€, com proveniência da conta da sociedade, dos quais 35.000,00€ foram entregues a FS e CA e 9.783,87€ tiveram finalidade não concretamente apurada, não tendo o gerente logrado fazer prova de que tenham servido para pagar dívidas da sociedade (facto D)). // Diga-se, ainda, que o facto provado 21) em nada altera a fundamentação e o raciocínio ora explanado, porquanto se desconhece a que título o gerente efetuou tais transferências, não se tendo provado que se tratavam de suprimentos realizados nos termos do artigo 243.º do CSC ou de transferências para repor ou devolver quantias anteriormente transferidas para a sua conta (conforme se demonstrou ser recorrente). // Pelo exposto, é imperioso considerar que o gerente PH fez suas quantias monetárias que pertenciam à sociedade. // Todo o circunstancialismo descrito supra consubstancia por parte do gerente PH a disposição de bens da sociedade (neste caso de capital monetário – bem móvel) para o seu proveito pessoal (pelo menos no que diz respeito à quantia de 9.783,87€ transferida da conta da sociedade para a sua conta e que não conseguiu justificar) e para o proveito pessoal de terceiros (FS e CA – quantia total de 35.000,00€), preenchendo-se, desta forma, a presunção inilidível prevista na al. d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE. // Por conseguinte, julga-se a insolvência culposa afetando o gerente da sociedade insolvente PH.” (sublinhado nosso)
Não vemos motivos para censurar a posição assumida pela 1.ª instância, nem a argumentação na qual a mesma se sustenta.
A conduta descrita e realçada no segmento acabado de transcrever, não obstante não ter sido causadora da criação da insolvência, levou já ao agravamento desse estado de insolvência, agravamento esse que só ao gerente da insolvente é imputável.
A isto acresce que não nos poderemos alhear que o instituto da qualificação da insolvência tem subjacente dois princípios estruturantes: a) o da garantia patrimonial dos bens e direitos dos credores dada pelo património do devedor, e b) o da satisfação igualitária dos direitos dos credores. Ambos visam proteger os credores e é com vista a tal protecção que o legislador elencou as qualificativas constantes do n.º 2 do artigo 186.º.
E, sendo inquestionável que o objectivo visado pela al. d) do n.º 2 do artigo 186.º é o de obstar que o património do devedor seja utilizado em proveito pessoal ou de terceiros (que ocorra benefício ilegítimo dos próprios administradores ou de terceiros, ao invés de tal património ser canalizado para a satisfação dos credores), no caso, tal obstáculo foi transposto (saindo beneficiando o próprio gerente e os seus amigos, as testemunhas FS e CA, os quais nem sequer eram credores da sociedade insolvente).
Só assim não seria possível concluir caso se tivesse demonstrado diferente conduta da descrita, demonstração essa que não foi efectuada.
Não é a venda do imóvel que se mostra censurada na sentença (não tendo sido esse o facto considerado causador da insolvência), mas antes o destino dado ao produto dessa venda (acarretando agravamento da situação de insolvência), mais a mais quando existiam créditos avultados sobre a sociedade insolvente (no montante global de 237.473,28€), sendo alguns deles créditos laborais (os quais foram graduados em 1.º lugar).
Ao decidir canalizar as verbas existentes para pagamento das suas próprias remunerações e dívidas pessoais (porquanto os 35.000€ foram emprestados por FS e CA ao próprio gerente, a título pessoal, não à sociedade, da qual não são credores pelo que, no âmbito do processo, nada poderiam reclamar/receber), bem como escolher quais os credores a quem iria pagar (os quais nem sequer beneficiavam de qualquer preferência de pagamento dos seus créditos, como resulta da sentença de verificação e graduação de créditos), o gerente/proposto afectado desprotegeu e prejudicou todos os demais credores, os quais viram inviabilizada a possibilidade de serem ressarcidos dos seus créditos (tanto mais que, em sede de liquidação, a massa insolvente apenas arrecadou 2.949,63€). Tal acto sempre consubstanciará violação do princípio da igualdade dos credores, como defendido na sentença recorrida.
Como advertem Carvalho Fernandes e João Labareda, as previsões/qualificativas em causa exigem uma ponderação casuística e, no caso, mostra-se inequivocamente demonstrado ter o gerente da recorrente praticado factos que se revelam integradores da al. d) do n.º 2 do artigo 186.º, porquanto geradores de proveito pessoal do gerente, nessa medida se impondo que seja insolvência qualificada como culposa com esse fundamento.
Em súmula:
Tendo ficado provada factualidade susceptível de integrar a alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º, factualidade essa que, por si só, integra uma presunção iuris et de iure de insolvência, bem andou a primeira instância em qualificar a insolvência como culposa.
Atendendo a que nenhuma questão foi suscitada quanto às consequências a que alude o artigo 189.º - e a que correspondem as als. b), c), d) e e) do dispositivo final da sentença (tanto mais que o afectado pela qualificação nem sequer recorreu, apenas a sociedade insolvente o tendo feito) -, nada mais há a conhecer e decidir no presente recurso.
Mantém-se, pois, a sentença recorrida.
*
IV - DECISÃO
Perante o exposto, acordam as Juízas da Secção do Comércio deste Tribunal da Relação em julgar a apelação totalmente improcedente, por não provada, e, consequentemente, manter a sentença que qualificou como culposa a insolvência da devedora, nos termos da mesma constantes.
Custas pela apelante.
*
Lisboa, 17 de Junho de 2025
Renata Linhares de Castro
Manuela Espadaneira Lopes
Fátima Reis Silva
_______________________________________________________ [1] Diploma ao qual se estará a aludir sempre que outro não for indicado. [2] Em 19/03/2024, o MP requereu: “Antes de mais e por se afigurar imprescindível para a descoberta da verdade, promovo se notifique a Senhora Administradora de Insolvência para, em prazo a fixar, juntar aos autos os documentos comprovativos dos seguintes factos alegados no respetivo parecer: // . “no mês de novembro, o sócio gerente levantou 22.000,00€”; // . “no mês de dezembro, o valor de 24.898,63€ serviu para efetuar o pagamento de dívidas à Autoridade Tributária e Segurança Social”.
Em 10/04/2024, a AI veio informar: “Relativamente ao levantamento pelo sócio gerente no mês de novembro da quantia de 22.000,00 €, junta-se o extrato de novembro, na qual se pode verificar as seguintes retiradas: // - em 11 de novembro: 10.000,00 €; // - em 12 de novembro: 10.000,00 €; // - em 20 de novembro: 1.000,00 €; // - em 21 de novembro: 1.000,00. // Relativamente ao pagamento de dívidas à Autoridade Tributária e Segurança Social no mês de dezembro, junta-se o extrato de dezembro, na qual se pode verificar em 13 de dezembro os pagamentos ao Estado e à Segurança Social.” [3] Nesse requerimento consignou-se: “1- A oposição conta uma história, com diversos factos, mas nenhum explica/contradita, concretamente, o requerimento inicial apresentado pela Exma. Senhora Administradora de Insolvência. // 2- Muito menos explica as transferências feitas para a conta pessoal do seu sócio-gerente, em particular, um mês antes de requerer a insolvência e depois de ter recebido uma parte do preço da venda do único imóvel por si titulado. // 3- Não comprova, minimamente, os factos que alega. Nomeadamente, através de documentos. // 4- Não justifica o motivo pelo qual o seu sócio-gerente recebeu, no ano em que foi requerida a insolvência, mais de € 40.000,00 do que deveria receber. // 5- Não menciona, também, o facto da insolvente ter ficado com uma grande soma de dinheiro dos clientes. // 6- A crise económica e o SARS-COVID 19 não excluem a necessidade de provar os factos alegados.” [4] Pronúncia nos seguintes termos: “1- É de lamentar a explicação apresentada pelo gerente da insolvente, em especial, porque falta à verdade. // 2- Entre outros factos, destaque-se o alegado nos artigos 31º e seguintes da sua oposição ao referir que em novembro de 2023 não angariou nenhum imóvel, nem vendeu. // 3- Talvez se tenha distraído e não tomado atenção à reclamação apresentada pelos aqui credores, nem aos documentos com ela juntos. // 4- A escritura de venda do imóvel dos credores foi efetuada, precisamente, em novembro de 2023. // 5- E foi, também, em novembro de 2023 que os credores não foram reembolsados do sinal recebido em setembro pela insolvente. // 6- A explicação apresentada pelo gerente da insolvente é gritante quando refere que retirou do dinheiro da insolvente valores para liquidar empréstimos particulares. // 7- Não comprova, minimamente, os factos que alega. Nomeadamente, através de documentos. // 8- Onde está comprovada a entrada desses “empréstimos” particulares na conta da insolvente e o fim a que se destinaram, realmente? // 9- Quando refere no artigo 60º da sua oposição que “creditou”, por três vezes, € 10.000,00 na conta da insolvente, esqueceu-se de referir que cada uma dessas transferências foi seguida de uma transferência a retirar o dinheiro da conta. Basta avaliar o extrato que juntou. // 10- Ou seja, dos € 30.000,00 que alega ter transferido para a insolvente, retirou imediatamente € 20.000,00. // 11- Não justifica o motivo pelo qual o seu sócio-gerente recebeu, no ano em que foi requerida a insolvência, mais de € 40.000,00 do que deveria receber. // 12- Não menciona, também, o facto da insolvente ter ficado com uma grande soma de dinheiro dos clientes. // 13- A crise económica e o SARS-COVID 19 não excluem a necessidade de provar os factos alegados. (…)”. [5] Veja-se, nesta matéria, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 17/12/2018 (Proc. n.º 1867/14.0TBBCL-F.G1, relator José Alberto Moreira Dias), disponível in www.dgsi.pt, como os demais que vierem a ser citados, sem referência à respectiva fonte. [6]Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 8.ª edição, 2008, pág. 54. [7]Código de Processo Civil Anotado, volume II, 3ª edição, Almedina, pág. 736. [8] Proc. n.º 16858/22.0T8SNT-A.L1-2, relator Arlindo Crua. [9] No que concerne à obscuridade conducente à ininteligibilidade da decisão, já ALBERTO DOS REIS, escrevia que “A sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido é ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe, ao certo, qual o pensamento do juiz.”, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 151. [10] Segundo ANTUNES VARELA, Manual de Processo Civil, pág. 686, não se inclui na previsão do artigo 615.º o chamado erro de julgamento, designadamente quando se discorda do enquadramento jurídico adoptado (erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou na interpretação desta última) ou quando possa ter ocorrido injustiça na decisão. [11]Direito Processual Civil, Vol. II, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Ed. da Associação Académica, 1987, pág. 802. [12] Proferido no âmbito do Proc. n.º 2200/10.6TVLSB.P1.S1 e relatado por Alexandre Reis, cujo sumário está disponível nos sumários de acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça. Secções Cíveis. [13]Recursos em Processo Civil, Almedina, 6.ª edição actualizada, 2020, págs. 196-198. [14] Continuando a citar o mesmo Conselheiro: deverá ter lugar a rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto se se verificar: a) falta de conclusões sobre tal impugnação – artigos 635.º, n.º 4 e 641.º, n.º 2, al. b), ambos do CPC; b) falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados – artigo 640.º, n.º 1, al. a); c) falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios; d) falta de indicação exacta, na motivação, das passagens de gravação em que se funda; e) falta de decisão expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação – cfr. obra citada (Recursos …), págs. 199-200. [15] Proc. n.º 8344/17.6T8STB.E1-A,S1, relatora Ana Resende. [16] Segundo o qual: “O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.” [17] Na reapreciação da decisão de facto, cumpre à Relação observar o que dispõe o artigo 662.º do CPC, devendo formar a sua própria convicção, o que ocorre através da avaliação de todas as provas carreadas para os autos, ou seja, em face dos meios probatórios que estão disponíveis (sem que esteja sujeita às indicações dadas pelo recorrente e pelo recorrido). [18] Força probatória plena dos documentos autênticos (artigo 371.º do CCivil). [19] Proc. n.º 18321/21.7T8PRT.P1.S1, Relator Nelson Borges Carneiro. [20] Ao afastar-se a verificação das demais circunstâncias invocadas, sem que nessa parte tenha havido recurso, o decidido transitou em julgado – cfr. artigo 635.º, n.º 5 do CPC. [21] Com relação à análise da culpa, por pertinente, veja-se o acórdão da Relação do Porto de 22/09/2022 (Proc. n.º 2367/16.0T8VNG-H.P1, relator Filipe Caroço). [22] Já assim defendia MENEZES LEITÃO, in Direito da Insolvência, 3.ª edição, págs. 284/285, defendia que este n.º 2, contém “uma presunção juris et de jure de insolvência culposa, considerando-a como tal sempre que os administradores, de direito ou de facto, do devedor que não seja pessoa singular tenham praticado actos destinados a empobrecer o património do devedor ou incumprido determinadas obrigações legais”; considerando ainda, mais adiante que “A lei institui … no art. 186.º, n.º 2, uma presunção juris et de jure, quer da existência da culpa grave, quer do nexo de causalidade desse comportamento para a criação ou agravamento da situação de insolvência, não admitindo a produção de prova em sentido contrário”. [23] Cfr. CARVALHO FERNANDES, A Qualificação da Insolvência, Themis, Edição Especial, 2005, pág. 81 e ss.; CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, Quid Juris, Lisboa, 2015, pág. 680. [24] In Manual de Direito de Insolvência, 7.ª edição, 2020, pág. 155. [25] Já no que respeita ao estatuído no n.º 3 do mesmo artigo 186.º, prevê-se unicamente uma presunção ilidível da culpa grave, pelo que não se mostra suficiente para a qualificação culposa que tenha ocorrido algum dos comportamentos omissivos descritos nas suas alíneas. Será ainda necessário que tais comportamentos tenham contribuído para causar ou agravar a situação de insolvência. Já assim se entendia maioritariamente e, com a alteração introduzida a este número pela Lei n.º 9/2022 de 11/01, nomeadamente pela introdução do advérbio “unicamente”, afastada fica a posição que defendia que este n.º 3 abrangia igualmente o nexo de causalidade a que alude o n.º 1 – cfr., quanto a esta questão, os acórdãos do STJ de 17/01/2023 (Proc. n.º 14604/18.1T8LSB-A.L2.S1, relatora Graça Amaral) e de 28/09/2022 (Proc. n.º 2770/18.0T8VNG-B.P2.S1, relatora Ana Resende). [26]Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, já citado, pág. 681.