EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
REVOGAÇÃO
RENDIMENTO DISPONÍVEL
Sumário

Sumário - Elaborado pela Relatora nos termos do art.º 663º, n.º 7, do Código de Processo Civil (CPC).
1 - No direito português a concessão, a final, da exoneração do passivo restante está dependente de um período de prova posterior ao encerramento do processo, por parte do devedor.
2 - Se durante esse período de prova, que o legislador denomina período de cessão, os devedores incumprem, ainda que parcialmente, a sua obrigação de entregar ao fiduciário, imediatamente, a parte dos rendimentos objeto de cessão por si recebida, sabendo estarem obrigados a fazê-lo, dizendo, quando notificados nos termos do art.º 244º, n.º 1, do CIRE, pretender proceder a esse pagamento, mas nada fazendo, atuam com negligência grave, não revelando, ao longo desse período, um mínimo exigível de preocupação, cuidado ou auto exigência, mostrando sim desatenção, incúria e indiferença, com as obrigações que lhe foram impostas e das quais tinham conhecimento.
3 - O facto de terem questionado posteriormente à apresentação por parte da fiduciária dos relatórios juntos pela mesma, a forma de cálculo efetuada pela fiduciária no apuramento das quantias a ceder, mas após várias notificações para o efeito, nada terem vindo esclarecer ou documentar sobre a questão suscitada, não releva para afastar a mencionada atuação com negligência grave referida.
4 - Ao não entregar as quantias devidas objeto de cessão ao fiduciário, impediram os devedores os pagamentos aos credores nos termos previstos no art.º 241º, n.º 1, do CIRE, sendo o prejuízo dos credores inerente ao não recebimento desses quantias consequência direta dessa não entrega, independentemente do valor que está em causa, desde que não seja insignificante.
5 – Ao contrário do que sucede para a revogação da exoneração, onde se exige que ocorra prejuízo relevante (artigo 246.º, n.º 1, in fine), na cessação antecipada e na recusa mostra-se suficiente um qualquer prejuízo para a satisfação dos créditos, desde que, como referido em 4, não seja o mesmo insignificante
6 - A lei consagra, após a alteração efetuada ao Código pela Lei 9/2022, de 11.01, duas possibilidades de prorrogação do período da cessão: ou um pedido como alternativa à recusa final de exoneração nos termos do n.º 1, do art.º 244º, daí a referência no normativo previsto no art.º 242º-A, ou um pedido, esse sim a deduzir ainda durante o período de cessão, nos termos do art.º 242-A, como pedido alternativo à cessação antecipada
7 - Verificando-se o preenchimento dos fundamentos e dos requisitos previstos no art.º 243º, n.º 1, al. a), relativamente ao devedor, deverá a exoneração, a final, ser recusada, considerando o disposto no art.º 244º, n.º 2, ambos do CIRE.

Texto Integral

Acordam as Juízas da Secção de Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa

1. Relatório
V e M apresentaram-se à insolvência, em 03.02.2015, formulando pedido de exoneração do passivo restante, dizendo encontrarem-se em situação de insolvência atual.
A insolvência dos requerentes foi declarada por sentença datada de 11.02.2015.
Em 14.06.2021, foi proferida decisão que deferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, constando da mesma o seguinte dispositivo:
“Em conformidade com o exposto e de acordo com o que resultou da Assembleia de Credores:
- Admito liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante;
- Nomeio, para desempenhar as funções de fiduciário, o Administrador de Insolvência que desempenhou funções nestes autos (cfr. art.ºs 240º a 242º do CIRE).
- Fixo a remuneração do Fiduciário em 10% das quantias objecto de cessão – cfr. art.º 240º, n.ºs 1 e 2, 241º, n.º 1, al. c) e 60º, n.º 1, do CIRE e art.º 25º, da Lei n.º 32/2004, de 22/07, que será suportado pelo Insolvente.
- Determino que o rendimento disponível que os Devedores venham a auferir, no prazo de 5 anos a contar da data de encerramento do processo de insolvência, que se denomina, período da cessão, se considere cedido ao fiduciário ora nomeado, com exclusão da quantia mensal de DOIS SALÁRIOS MÍNIMOS NACIONAIS e meio (de acordo com a lei vigente durante o período em que vigorar esta decisão), que se reputa adequada ao sustento dos Insolventes e seu agregado tendo em conta as actuais despesas e rendimentos dos mesmos;
- Sob pena de não lhe ser concedido, a final, o pedido de exoneração do passivo restante, durante este período de cinco anos, os Devedores ficam obrigados a (art.º 239º, n.º 4, do CIRE):
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património, na forma e no prazo em que isso lhes seja requisitado;
b) Entregar imediatamente ao Fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;
c) Informar o tribunal e o Fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 (dez) dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do  fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.”
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Por decisão proferida na mesma data foi declarado encerrado o processo, nos termos
do disposto no artigo 230.º, n.º 1, als. a), e e) do CIRE, com a menção de que:
“Cessam todos os efeitos decorrentes da declaração de insolvência, pelo que o/a/s devedor/a/es recupera/m o direito de disposição dos seus bens, sem prejuízo dos efeitos resultantes da admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante - art.º 233°, n.º 1, al. a), e 239º do CIRE.”.
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Em 31.07.2022, veio a fiduciária nomeada apresentar relatório anual respeitante ao período da cessão, dizendo, designadamente no mesmo que:
“Conforme se alcança da leitura da tabela supra, durante o período de cessão ora considerado, o montante dos rendimentos obtidos pelos devedores excedeu em 819,35€ aquele que lhes havia sido fixado por douto Despacho Inicial de Exoneração do Passivo Restante como mínimo de subsistência, ou seja, 2,5 salários mínimos nacionais/mês, doze meses considerados.
Sendo certo que, até à presente data, a referida quantia não foi reposta pelos insolventes.
Nesta conformidade, cumpre informar V. Exa. que, os devedores foram, nesta data, notificados pela ora signatária para regularizar o valor em falta pelo que, tempestivamente, será prestada informação aos autos relativamente ao cumprimento dessa mesma obrigação.
Acresce informar V. Exa. que, nos termos do estatuído no nº 2 do art.º 240º do CIRE, foi dado conhecimento do conteúdo do presente relatório aos ilustres mandatários dos credores e dos devedores, via plataforma CITIUS pelo que, oportunamente, será junto aos autos o comprovativo dessa mesma diligência.”
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Em 08.09.2022, informou a mesma, nos autos, que: “Notificada que fui, no v/ ofício em “Referência”, venho muito respeitosamente informar a V. Exa. que até à presente data, os insolventes não procederam à regularização da quantia em dívida à fidúcia.
Todavia, por email do pretérito dia 8 de setembro, os devedores comunicaram que irão proceder à regularização do valor 819,35€ até ao fim do presente mês de setembro.
Assim, oportunamente a signatária informará aos presentes autos o cumprimento da referida regularização.”
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Em 01.08.2023, veio a fiduciária nomeada nos autos apresentar novo relatório, no qual refere, designadamente que:
“Conforme se alcança da leitura da tabela supra, durante o período de cessão ora considerado, o montante dos rendimentos obtidos pelos devedores excedeu em 1.538,75€ aquele que lhes havia sido fixado por douto Despacho Inicial de Exoneração do Passivo Restante como mínimo de subsistência, ou seja, 2,5 salários mínimos nacionais/mês, doze meses considerados.
Sendo certo que, até à presente data, a referida quantia não foi reposta pelos insolventes.
Nesta conformidade, cumpre informar V. Exa. que, os devedores foram, nesta data, notificados pela ora signatária para regularizar o valor em falta pelo que, tempestivamente, será prestada informação aos autos relativamente ao cumprimento dessa mesma obrigação.
Acresce informar V. Exa. que, nos termos do estatuído no nº 2 do art.º 240º do CIRE, foi dado conhecimento do conteúdo do presente relatório aos ilustres mandatários dos credores e dos devedores, via plataforma CITIUS pelo que, oportunamente, será junto aos autos o comprovativo dessa mesma diligência.”
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Em 03.10.2023 foi proferido despacho nos seguintes termos:
“Relatório Anual do Fiduciário – 01/08/2023
Tomei conhecimento do relatório anual apresentado pela Sra. Fiduciária relativo ao 2.º ano do período de cessão.
(…)
Notifique os Devedores (na sua pessoa e na pessoa do seu Mandatário) para, em 60 dias, entregarem à Sra. Fiduciária a quantia em dívida à fidúcia relativamente ao 2.º ano do período de cessão (€ 1.538,75), advertindo-os de que a falta de entrega dos rendimentos objeto de cessão, dever a que ficaram sujeitos aquando da admissão liminar da exoneração do passivo restante, pode implicar a não concessão, a final, de tal benefício.”
O referido despacho foi notificado aos insolventes na mesma data.
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Em 24.07.2024, foi junto novo relatório pela fiduciária nomeada, no qual a mesma refere, designadamente que: “Conforme se alcança da leitura da tabela supra, durante o período de cessão ora considerado, o montante dos rendimentos obtidos pelos devedores excedeu em 500,99€ aquele que lhes havia sido fixado por douto Despacho Inicial de  Exoneração do Passivo Restante como mínimo de subsistência, ou seja, 2,5 salários mínimos nacionais/mês, doze meses considerados.
Acresce que, a quantia de 1.538,75€ referente ao excedente de rendimentos auferidos no decurso do 2º ano de cessão, não foi, até à presente data, reposta pelos insolventes.
Assim, atualmente, os devedores encontram-se em falta com a entrega do montante total de 2.039,74€ (1.538.75 + 500,99€).
Nesta conformidade, cumpre informar V. Exa. que, os insolventes, foram nesta data, notificados pela ora signatária para regularizar o valor em falta pelo que, tempestivamente, será prestada informação aos autos relativamente ao cumprimento dessa mesma obrigação.
Acresce informar V. Exa. que, nos termos do estatuído no nº 2 do art.º 240º do CIRE, foi dado conhecimento do conteúdo do presente relatório aos ilustres  mandatários dos credores e dos devedores, via plataforma CITIUS pelo que, oportunamente, será junto aos autos o comprovativo dessa mesma diligência.”
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Em 28.07.2024, apresentaram os insolventes requerimento nos autos, o qual concluem requerendo um prazo de cinco dias para juntarem aos autos “informações sobre valores pagos de contribuições junto da Segurança Social no período de cessão no sentido das mesmas poderem ser deduzidas ao valor em falta na fidúcia que entendem, pelo exposto, ser de 1.280,65€.”
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Em 18.09.2024, foi proferido despacho ordenando a notificação da fiduciária nomeada nos autos para tomar posição.
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A mesma apresentou requerimento em 11.10.2024, dizendo que:
“1) Relativamente às contribuições alegadamente pagas à segurança social pela insolvente mulher, a ora signatária desconhece por completo os valores liquidados, na medida em que nunca foi remetido qualquer documento com a referida informação.
2) Importa ainda salientar que na declaração Mod. 3 de IRS, não consta o anexo “G”, nem tampouco constam quaisquer valores no campo 7 do anexo “B” que sustentem a informação trazida aos autos pelos insolventes.

3) Nesta medida não foram considerados para o cálculo do valor a ser cedido à Fidúcia, quaisquer quantias pagas a título de contribuições para a Segurança Social.
4) Acresce ainda que não obstante, terem sido notificados dos relatórios de fidúcia apresentados nos termos do nº2 do artº 240º do CIRE, apenas agora após a apresentação do último relatório, vêm suscitar a incorreção na elaboração dos mapas.
5) Há ainda que informar V. Exa. que relativamente ao valor de 819,35€ cedido no 1º ano, o mesmo foi distribuído pelos credores.
6) Quanto ao valor de 1.538,75€ referente ao 2º ano de cessão, pese embora o ilustre Mandatário dos insolventes ter remetido comunicação a indicar que os s/ constituintes procederiam ao seu pagamento até ao término do período de cessão de rendimentos, certo é que até à presente data, não foi realizado.
7) Nesta conformidade, s.m.o., os cálculos apresentados pela fiduciária estão corretos e foram consistentemente efetuados, consoante os elementos apresentados pelos insolventes, pelo que deverão ser mantidos nos precisos termos apresentados.”
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Em 22.10.2024, foi proferido despacho nos seguintes termos:
“Notifique os devedores para, querendo, tomarem posição relativamente ao r/ em apreço apresentado pela Sra. Fiduciária e, bem assim, para comprovarem nos autos os valores pagos a título de contribuições à Segurança Social durante o período de cessão.
Prazo: 5 (cinco) dias.”
O referido despacho foi notificado aos insolventes com data de 22.10.2024.
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Em 13.11.2024 foi proferido novo despacho com o seguinte teor:
“Notifique novamente os devedores para, em dez dias, comprovar nos autos os valores pagos a título de contribuições à Segurança Social durante o período de cessão e, bem assim, para discriminar (e comprovar) os valores que auferiram mensalmente, durante o mesmo período.
Advirta-os de que, nada dizendo, serão validados os valores indicados pela Sra. Fiduciária.”
 O referido despacho foi notificado aos insolventes em 13.11.2024.
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Em 12.12.2024 foi proferido despacho nos autos nos seguintes termos:
“Atento o silêncio (reiterado) dos devedores e os esclarecimentos prestados pela Sra. Fiduciária em 11/10/2024, valido os valores por esta indicados como estando em dívida à fidúcia no relatório anual que apresentou nos autos em 24/07/2024 relativo ao 3.º ano do período de cessão.
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O período de cessão do rendimento disponível em curso nestes autos já completou três anos, pelo que se mostra findo (art.º 239.º, n.º 2, do CIRE na redação dada pela Lei n.º 9/2022, de 11/01, e art.º 10.º, n.º 1, deste diploma).
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Fixo em 1,5 UC anual a remuneração da Sra. Fiduciária, a adiantar pelo IGFEJ.
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Notifique os devedores (na sua pessoa e na pessoa do seu Mandatário) para, em dez dias, entregar à Sra. Fiduciária a quantia em dívida à fidúcia (€ 2.039,74) ou, em alternativa, requerer o que tiverem por conveniente.
No ato de notificação, advirta os devedores de que a exoneração do passivo restante será imediatamente recusada se os mesmos, sem motivo razoável, não entregarem a referida quantia no aludido prazo, em cumprimento das suas obrigações impostas pelo art.º 239.º, do CIRE.”
O referido despacho foi notificado aos insolventes na mesma data.
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Em 02.01.2025, vieram os insolventes apresentar requerimento dizendo estarem a articular com a fiduciária nomeada a entrega da quantia em falta na fidúcia.
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Em 23.01.2025, veio a fiduciária nomeada dizer nos autos que:
“Notificados que foram os insolventes, por douto Despacho de 12-12-2024, para, no prazo de 10, dias entregarem à Fiduciária a quantia em dívida à fidúcia (2.039,74€) vieram os mesmos, na sua comunicação datada de 02-01-2025, declarar que se encontravam a reunir o valor em falta e solicitar mais prazo para a sua reposição (Cfr. Doc. 01).
Não obstante e, atenta ao tempo já decorrido, verifica-se que a referida quantia não foi reposta pelos devedores nem tampouco foi apresentado qualquer plano de pagamento do valor em divida, apresentando a conta da fidúcia, na presente data, saldo nulo, conforme o extrato bancário que ora se junta sob Doc. 02.
Nesta conformidade, em face do incumprimento por parte dos insolventes, das obrigações a que se encontravam adstritos durante o período da cessão nos termos da alínea c) do nº 4, do art.º 239º do CIRE e, persistindo rendimento disponível em dívida, não pode a exponente, na presente data, pronunciar-se favoravelmente, no sentido da concessão imediata do benefício da exoneração do passivo restante aos devedores, V e M.”
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Em 27.01.2025, veio o credor Intrum Debt Finance AG, requerer a recusa da concessão da exoneração do passivo restante, por violação dos deveres previstos no artigo 239º do CIRE.
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 Em 20.02.2025, foi ordenada a notificação dos devedores e dos restantes credores para se pronunciarem, querendo, sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante nos termos do art.º 244º, n.º 1, do CIRE.
O mencionado despacho foi notificado aos insolventes na mesma data.
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Banco Credibom S.A. veio, por requerimento de 21.02.2025, pronunciar-se desfavoravelmente relativamente à concessão da exoneração do passivo restante aos insolventes.
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Os insolventes vieram apresentar requerimento, em 06.03.2025, pedindo que lhe seja concedida a exoneração do passivo restante, dizendo, em síntese, que entendem que o apuramento dos valores a ceder por parte da Fiduciária não refletem com exatidão os valores por si auferidos nos 36 meses do período de cessão e que a alínea a) do nº 1 do 243º do CIRE remete a rejeição da exoneração para o incumprimento dos deveres de cessão (artº 239º) acrescido de dois pressupostos cumulativos: comportamento doloso ou com grave negligência do insolventes e que tenham prejudicado os créditos sobre a insolvência e que não está demonstrado no processo qualquer deles pelo que, não obstante saberem e reconhecerem que há valores em falta e que não foram entregues, por si só não é bastante para que lhes seja negada a exoneração final do seu passivo não pago no processo de insolvência.
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Em 25.03.2025, foi proferida decisão nos autos com o seguinte dispositivo:
“Por conseguinte, decido não conceder a exoneração do passivo restante a … e …, nos termos do disposto no artigo 244.º, n.º 2, do CIRE, declarando-se extinto o presente procedimento.
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Inconformados com a decisão referida, vieram os insolventes apresentar recurso da mesma, em 15.04.2025.
Apresentam os recorrentes as seguintes conclusões:
“I- Entendem os insolventes que não estão verificados os requisitos legalmente enunciados pela lei falimentar portuguesa para que o Tribunal decidisse pela não concessão da exoneração do passivo restante.
II- Em concreto:
- Os insolventes, ao contrário do que é referido na decisão que se recorre, não só apresentaram razões para não fazer as entregas do seu rendimentos disponível como questionaram o método de cálculo apresentado pela Srª Fiduciária, quer no requerimento datado de 28.07.24 como na exposição por si efectuada para efeitos do artº 244 do CIRE, através do requerimento de 06 de Março de 2025.
- Não requereram a prorrogação do prazo do período de cessão na medida em que o mesmo, nos termos do artº 242 -A do CIRE só é admissível antes de terminado o período de cessão, nunca após este estar terminado.
- Não se encontram verificados os requisitos cumulativos: actuação dolosa ou pelo menos com grave negligência dos devedores e, da violação das suas obrigações tenha prejudicado o interesse dos credores.
III- Pelo exposto, deverá a decisão de não concessão de exoneração ser revogada e alterada por outra que confira a exoneração do passivo restante dos insolventes nos termos do artº 244 do CIRE.”
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido, por despacho de 20.05.2025, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
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Foram colhidos os vistos.
Cumpre apreciar.                                         
2. Objeto do recurso
Analisado o disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável por via do art.º 663º, n.º 2, 635º, nºs 3 e 4, 639º, nºs 1 a 3 e 641º, n.º 2 al. b), todos do CPC, sem prejuízo das questões que o tribunal deve conhecer oficiosamente e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução a outras, este Tribunal apenas poderá conhecer das questões que constem das conclusões do recurso, que definem e delimitam o objeto do mesmo. Não está ainda o Tribunal obrigado, face ao disposto no art.º 5º, n.º 3 do citado diploma, a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar essas conclusões, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito.
Considerando o acima referido é a seguinte a questão a decidir no presente recurso:
- Saber se estão verificados os pressupostos para que seja recusada a  exoneração do passivo restante aos devedores.

3. Fundamentos de facto
Os constantes do Relatório, que se dão por integralmente reproduzidos e ainda os considerados na decisão proferida pelo tribunal a quo, nos seguintes termos:
1. Por decisão proferida nos autos em 14/06/2021, foi liminarmente admitido o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos devedores e foi declarado encerrado o processo de insolvência nos termos do disposto no art.º 230.º, n.º 1, alíneas a) e e), do CIRE, decisão publicitada em 15/06/2021.
2. Ao abrigo da decisão referida no ponto anterior, ficaram os devedores obrigados a ceder à Sra. Fiduciária, durante o período de cessão, o rendimento disponível (integrado por todos os rendimentos que lhe adviessem a qualquer título, com exclusão da quantia mensal de dois salários mínimos nacionais e meio, 12 vezes por ano) sob pena de não lhes ser concedido, a final, o pedido de exoneração do passivo restante.
3. Durante o 1.º ano do período de cessão, os devedores auferiram rendimentos que excederam em € 819,35 o valor do seu rendimento disponível, quantia que entregaram à fidúcia em 30/09/2022.
4. Durante o 2.º ano do período de cessão, os devedores auferiram rendimentos que excederam em € 1.538,75 o valor do seu rendimento disponível, quantia que não entregaram à fidúcia.
5. Durante o 3.º ano do período de cessão, os devedores auferiram rendimentos que excederam em € 500,99 o valor do seu rendimento disponível, quantia que não entregaram à fidúcia.
6. Por despacho de 12/12/2024, os devedores foram notificados para, em dez dias, entregar à Sra. Fiduciária a quantia em dívida à fidúcia (€ 2.039,74) ou, em alternativa, requerer o que tivessem por conveniente, e foram advertidos de que a exoneração do passivo restante seria imediatamente recusada se os mesmos, sem motivo razoável, não entregassem a referida quantia no aludido prazo, em cumprimento das suas obrigações impostas pelo art.º 239.º, do CIRE.
7. Notificados do despacho referido no ponto anterior, os devedores, apresentaram requerimento nos autos informando que estavam a articular com a Sr.ª Fiduciária no sentido de entregar a quantia que se encontra em falta na fidúcia e que tinham consciência que a não entrega do valor em falta na fidúcia poderia obstar à decisão final de exoneração do seu passivo restante.
8. Não obstante, em 23/01/2025, a Sra. Fiduciária veio informar que a quantia em dívida não foi reposta pelos devedores, situação que se mantém até à data.

4. Apreciação do mérito do recurso
Em apreciação no presente recurso está o instituto da exoneração do passivo restante.
Dispõe o art.º 235º, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), na sua versão atual, com a epígrafe “Princípio geral”, que: “Se o devedor for uma pessoa singular pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste …”.
Tal como refere Maria do Rosário Epifânio “A exoneração do passivo restante constitui uma novidade do nosso ordenamento jurídico, inspirada no direito alemão (…), determinada pela necessidade de conferir aos devedores pessoas singulares uma oportunidade de começar de novo (fresh start).”[1]
Catarina Serra enuncia, por sua vez, que: “A principal vantagem da exoneração é a libertação do devedor das dívidas que ficaram por pagar no processo de insolvência, permitindo-lhe encetar uma vida nova.”[2]
Está aqui em causa a proteção do devedor, a segunda oportunidade que o legislador entendeu conferir ao mesmo, mas não nos podemos também esquecer dos credores desse devedor, desde logo impondo-se que se tenha em consideração a finalidade do processo de insolvência prevista do art.º 1, do CIRE, de satisfação dos credores.
Tal como refere Manuela Espadaneira Lopes, em Acórdão desta mesma Relação, de 13.07.2023: “Subjacente ao instituto da exoneração do passivo está a ideia de existência de um equilíbrio entre os interesses dos credores na satisfação dos seus créditos e o interesse do devedor, de perdão de dívidas, o que implica sacrifícios de ambas as partes”.[3]
Analisemos então a decisão objeto de recurso.
De acordo com o disposto no art.º 237º, als. b) e d), do CIRE:
“A concessão efetiva da exoneração do passivo restante pressupõe que:
(…)
b) O juiz declare que a exoneração será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no art.º 239º durante os três anos posteriores[4] ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado por despacho inicial;
(…)
d) Após o período mencionado na alínea b), e cumpridas que sejam efetivamente as referidas condições, o juiz emita despacho decretando a exoneração definitiva, neste capítulo designado despacho de exoneração.”
Retira-se, em primeiro lugar, da leitura deste artigo, que admitir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, como foi feito nos autos, não significa conceder essa exoneração. Essa concessão está dependente, como resulta da leitura das citadas alíneas b) e d), do art.º 237º, da observação e cumprimento pelo devedor das condições previstas no art.º 239º, do CIRE.
Tal como menciona Maria do Rosário Epifâneo “Contrariamente a outros ordenamentos jurídicos (em que a exoneração é automática), o sistema português faz depender a exoneração do passivo restante de um período probatório posterior ao encerramento do processo (designado por “período de cessão”). (…) No lugar de um straight discharge, optou-se por um earned new start.”[5]
Após o decurso do período referido no art.º 237º, n.º 1, al. b), do CIRE, decorridos 10 dias, subsequentes ao termo desse período, ou havendo motivos para a cessação antecipada do procedimento de exoneração, antes do decurso desse período, cumpre ao tribunal proferir decisão de concessão ou não concessão da exoneração do passivo restante ao devedor, nos termos previstos respetivamente nos arts. 244º e 243º, do CIRE, respetivamente, ou, face ao aditamento do art.º 242º - A, pela Lei 9/2022, de 11 de janeiro, de prorrogação do período de cessão.
Na espécie, cumpre antes de mais precisar que o despacho inicial respeitante ao pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos devedores foi proferido em 14.06.2021, tendo, na mesma data, sido proferida decisão de encerramento do processo nos termos do art.º 230º, n.º 1, al. e), do CIRE.
O prazo de cessão de rendimentos, independentemente de estarmos a falar da versão anterior ou posterior à alteração da Lei 9/2022, de 11 de janeiro, conta-se a partir do despacho de encerramento do processo, nos termos do art.º 230º, n.º 1 al. e), do CIRE, considerando o disposto nos arts. 235º, 237º, al. b) e 239º, n.º 2, do CIRE.
Face à aplicação imediata da alteração da Lei 9/2022, de 11 de janeiro que alterou o citado artigo 237º, al. b), em 25.03.2025, quando a decisão em crise foi proferida pelo tribunal a quo, já tinha decorrido largamente o referido período de três anos, contados desde a data do encerramento do processo, acrescido de 10 dias.
Cumpre assim apreciar se estão verificados os pressupostos para que fosse proferida decisão final da exoneração, sendo que, nos termos do art.º 244º, n.º 2, do CIRE, na decisão final a proferir a exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente nos termos do artigo anterior.
Vejamos então o fundamento invocado na decisão em crise – o previsto no art.º 239º n.º 4 al. c), do CIRE
“Durante o período de cessão, o devedor fica ainda obrigado a:
(…)
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão.”
Tal como referem Carvalho Fernandes e João Labareda: “O n.º 4 impõe ao devedor uma série de obrigações acessórias decorrentes da cessão do rendimento disponível, às quais preside, genericamente, a preocupação de assegurar a efetiva prossecução dos fins a que é dirigida.”[6]
Ora uma dessas obrigações é precisamente aquela que vimos, a da entrega ao fiduciário, por parte do insolvente, da parte dos rendimentos por si recebidos, objeto de cessão.
Tal como resulta da factualidade dada como provada, que os recorrentes não impugnaram, os mesmos não entregaram, durante os dois últimos anos do período da cessão, à fiduciária, a quantia de 2.039,74€, não obstante, tal como resulta das informações prestadas pela fiduciária nomeada nos autos, e que foram notificadas aos recorrentes, tenham auferido rendimentos objeto de cessão nesse período, rendimentos que deveriam, pois, ter sido entregues à fiduciária, nos termos referidos, mas não o foram.
Importa, em primeiro lugar, assentar que os insolventes foram notificados do despacho liminar de exoneração do passivo restante, nada dizendo quanto ao mesmo, nem nada requerendo posteriormente nos autos, nomeadamente quanto a qualquer alteração superveniente das suas condições económicas, que determinassem uma modificação posterior do montante disponível fixado inicialmente. Igualmente, e quanto à questão suscitada da incorreção da forma de cálculo dos rendimentos por parte da fiduciária nomeada nos autos, resulta da análise do processo que os mesmos, por requerimento de 28.07.2024, vieram requerer um prazo de cinco dias para juntarem aos autos “informações

sobre valores pagos de contribuições junto da Segurança Social no período de cessão no sentido das mesmas poderem ser deduzidas ao valor em falta na fidúcia que entendem, pelo exposto, ser de 1.280,65€.”.
Em 22.10.2024, foi proferido despacho ordenando a notificação dos recorrentes para tomarem posição relativamente ao requerimento apresentado pela fiduciária nomeada sobre a questão e para comprovarem nos autos os valores pagos a título de contribuições à Segurança Social durante o período de cessão, tendo-lhe sido concedido um prazo de cinco dias para o efeito. O referido despacho foi notificado aos insolventes com data de 22.10.2024.
Em 13.11.2024 foi proferido novo despacho sobre a questão, ordenando novamente a notificação dos recorrentes para, em 10 dias comprovarem nos autos os valores pagos a título de contribuições à Segurança Social durante o período de cessão e, bem assim, para discriminar (e comprovar) os valores que auferiram mensalmente, durante o mesmo período. Foi ainda feita a advertência de que, “nada dizendo, serão validados os valores indicados pela Sra. Fiduciária.” O referido despacho foi notificado aos insolventes em 13.11.2024.
Os recorrentes nada disseram ou juntaram na sequência das notificações efetuadas dos mencionados despachos.
Em 12.12.2024 foi proferido despacho novo despacho pelo tribunal a quo, nos seguintes termos: “Atento o silêncio (reiterado) dos devedores e os esclarecimentos prestados pela Sra. Fiduciária em 11/10/2024, valido os valores por esta indicados como estando em dívida à fidúcia no relatório anual que apresentou nos autos em 24/07/2024 relativo ao 3.º ano do período de cessão.//O período de cessão do rendimento disponível em curso nestes autos já completou três anos, pelo que se mostra findo (art.º 239.º, n.º 2, do CIRE na redação dada pela Lei n.º 9/2022, de 11/01, e art.º 10.º, n.º 1, deste diploma).//Notifique os devedores (na sua pessoa e na pessoa do seu Mandatário) para, em dez dias, entregar à Sra. Fiduciária a quantia em dívida à fidúcia (€ 2.039,74) ou, em alternativa, requerer o que tiverem por conveniente.//No ato de notificação, advirta os devedores de que a exoneração do passivo restante será imediatamente recusada se os mesmos, sem motivo razoável, não entregarem a referida quantia no aludido prazo, em cumprimento das suas obrigações impostas pelo art.º 239.º, do CIRE.”. O referido despacho foi notificado aos insolventes na mesma data.
Só na sequência deste despacho vieram os recorrentes responder, em 02.01.2025, dizendo estarem a articular com a fiduciária nomeada a entrega da quantia em falta na fidúcia, não pondo aqui em causa os valores objeto de cálculo pela fiduciária nomeada nos autos, para apurar o valor a ceder à fidúcia.
Posteriormente, vieram novamente suscitar essa questão, na sequência da notificação efetuada do despacho proferido pelo tribunal a quo em 20.02.2025, para se pronunciarem, querendo, sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante nos termos do art.º 244º, n.º 1, do CIRE, dizendo que o apuramento dos valores a ceder por parte da fiduciária não refletem com exatidão os valores por si auferidos nos 36 meses do período de cessão. Reconhecem, no entanto, no mesmo requerimento, “que há valores em falta e que não foram entregues.”
Nada mais esclareceram sobre a alegada inexatidão do referido cálculo ou juntaram com o requerimento em apreço.
Ou seja, do teor do descrito iter processual concluímos que os recorrentes tiveram várias oportunidades para virem esclarecer e comprovar a alegada inexatidão dos cálculos efetuados pela fiduciária nomeada nos autos, nada tendo feito, tendo o tribunal a quo, na falta dessa resposta, considerado como certas as quantias objeto dos cálculos efetuados pela referida entidade. Resulta assim que esta questão foi sanada nos autos e mesmo que assim não se entenda, importa considerar que, mesmo numa fase posterior, os recorrentes, não obstante terem suscitado novamente a questão, no requerimento de 20.02.2025, nada vieram esclarecer ou documentar quanto ao alegado, admitindo inclusive no mesmo, como vimos, que são devedores à fidúcia.
Não pode, pois, este tribunal, tal como não o fez, o tribunal a quo, tirar outra conclusão do comportamento dos recorrentes, senão a de que os mesmos atuaram com desatenção, incúria e negligência, suscitando a questão em apreço nos autos, mas nada fazendo para a esclarecer ou documentar, pelo contrário reiteradamente ignoraram as notificações do tribunal para esse efeito.
Mais se acrescenta que, ao contrário do que é sugerido nas alegações, foi apenas esta a questão suscitada pelos recorrentes nos autos e não qualquer outra, não sendo portanto correta a menção de que: “não só apresentaram razões para não fazer as entregas do seu rendimentos disponível, como questionaram o método de cálculo apresentado pela Srª Fiduciária, quer no requerimento datado de 28.07.24 como na exposição por si efectuada para efeitos do artº 244 do CIRE, através do requerimento de 06 de Março de 2025.”[7] Foi apenas esta última parte que o recorrentes fizeram, não apresentando, reitera-se, quaisquer outras razões para “não fazer as entregas do rendimento disponível.”, que cumprisse ao tribunal a quo ou a este tribunal ora apreciar.
Avancemos.
Tal como já acima vimos cumpre ter em consideração, por remissão, do art.º 244º, n.º 2, do CIRE, os fundamentos e requisitos previstos no art.º 243º, do CIRE.
Um desses fundamentos é o da alínea a), do n.º 1, do art.º 243º, do CIRE: “O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.”
Ora quando o requerimento se baseie nesta alínea, o tribunal, após cumprir o contraditório, recusa a exoneração se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer, no prazo que lhe seja fixado, informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las (n.º 3, do art.º 243º).
Igual previsão, relativamente ao cumprimento do contraditório, resulta do disposto no art.º 244º, n.º 2, do CIRE.
Analisemos assim, em primeiro lugar, se está verificado o fundamento referido na citada alínea a).
Tal como se menciona no Acórdão desta mesma Relação, de 13.07.2023: “A recusa da exoneração para efeitos do previsto na alínea a) do n.º 1 deste último preceito está dependente da verificação de pressupostos objectivos – incumprimento pelo devedor de alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º e prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência em razão desse incumprimento – e subjectivos – dolo ou negligência grave do devedor.
Decorre, assim, da lei que nem toda e qualquer violação das obrigações impostas ao
insolvente como corolário da admissão liminar do pedido exoneração releva como causa de recusa do benefício: o artigo 243.º, n.º 1, al. a), é taxativo ao exigir que se trate de uma prevaricação dolosa ou com grave negligência e, cumulativamente, que a actuação do devedor tenha prejudicado a satisfação dos credores da insolvência. Porém, ao contrário do que sucede para a revogação da exoneração, onde se exige que ocorra prejuízo relevante (artigo 246.º, n.º 1, in fine), na cessação antecipada e na recusa mostra-se suficiente um qualquer prejuízo para a satisfação dos créditos, desde que, claro está, não seja o mesmo insignificante.
A estes dois requisitos adiciona a doutrina um terceiro, a saber: existência de nexo causal entre a conduta dolosa ou gravemente negligente do insolvente e o dano para a satisfação daqueles créditos (este dano há-de ser causado pela conduta do insolvente)[8].”[9]
Importa assim apreciar, no caso em concreto, se os referidos requisitos estão verificados.
Cumpre, no entanto, ainda mencionar que, tal como tem sido também entendido pela doutrina e jurisprudência, não está em causa um poder discricionário do juiz de conceder ou não a exoneração. Não ocorrendo nenhum motivo justificado de recusa, deve o juiz conceder a mesma.[10]
No que respeita ao elemento subjetivo – dolo, cita-se o referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 03.06.2014: “o insolvente só actua dolosamente quando se decida pela actuação contrária ao direito. Se a violação do dever – v.g., de entregar ao fiduciário o rendimento disponível – constitui intenção específica da conduta do insolvente, há dolo directo; se essa violação não é directamente querida, mas é desejada como efeito necessário da conduta, o dolo é necessário; finalmente, se a violação não é directamente desejada, mas é aceite como efeito eventual, mesmo que acessório, daquela conduta, há dolo eventual.”[11]
Quanto à negligência grave do devedor, citamos aqui também as palavras do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 09.11.2023, que precisa com rigor, nomeadamente com citação de outra jurisprudência, em que consiste essa negligência grave:
“Precisando agora o que seja uma actuação gravemente negligente do insolvente, distingue a doutrina entre culpa grave, culpa leve e culpa levíssima; e, assim, «a negligência grosseira corresponde à falta grave e indesculpável, que consiste na omissão dos deveres de cuidado, por não se ter usado daquela diligência que era exigida segundo as circunstâncias concretas, pelo que se exige um dever de prever um resultado como consequência duma conduta, em si ou na medida em que se omitem as cautelas e os cuidados adequados a evitá-lo». Logo, está-se perante «comportamentos desconformes ao proceder honesto, lícito, transparente e de boa-fé, cuja observância por parte do devedor é impeditiva de lhe ser reconhecida possibilidade de se libertar de alguma das suas dívidas, e assim, conseguir a reabilitação económica» (Ac. da RG, de 11.10.2018, Maria dos Anjos Melo Nogueira, Processo n.º 3695/12.9TBGMR.G1).
Não relevando aqui qualquer negligência, mas apenas uma negligência grave ou grosseira, dir-se-á que é «havida como negligência grave a “negligência grosseira, o erro imperdoável, a desatenção inexplicável, a incúria indesculpável”, vistos em confronto com o comportamento do comum das pessoas, mesmo daquelas que são pouco diligentes» (Ac. da RG, de 10.07.2019, Fernando Fernandes Freitas, Processo n.º 4201/09.8TBGMR.G2). Compreende-se, por isso, que se afirme que se exige aqui «uma negligência de grau essencialmente aumentado ou intensificado, portanto, uma violação particularmente qualificada dos deveres de cuidado ou diligência presentes no caso» (Ac. da RC, de 07.02.2012, Henrique Antunes, Processo n.º 2273/10.1TBLRA-B.C1).
Actua, por isso, com «negligência grave» quem, «consciente dos deveres a que se encontrava vinculado, e da possibilidade de conformar a sua conduta de acordo com esses deveres, não o faz, em circunstâncias em que a maioria das pessoas teria atuado de forma diversa» (Ac. da RP, de 08.02.2018, Freitas Vieira, Processo n.º 499/13.5TJPRT.P1).”[12]
Ora apreciando, no caso em concreto, os requisitos supra sinalizados, surge claro que os devedores durante o período de cessão, que foi antecipado para três anos como vimos, incumpriram, reiteradamente, a sua obrigação de entrega da totalidade do rendimento disponível que lhe competia à fiduciária[13], com exceção do primeiro ano, não tendo justificado, quer perante o tribunal, quer perante a fiduciária, esse comportamento, tendo sido notificados reiteradamente, para o efeito, quer pela fiduciária nomeada, quer pelo tribunal, na pessoa do seu mandatário e mesmo pessoalmente, nada igualmente tendo requerido, com exceção dos requerimentos que já apreciámos supra.
Ou seja, os recorrentes não revelaram, ao longo desse período, um mínimo  exigível de preocupação, cuidado ou auto exigência, com exceção do primeiro ano, mostrando sim grave desatenção, incúria e indiferença, mesmo tendo como padrão uma pessoa não muito diligente ou cuidadosa, com as obrigações que lhe foram impostas e das quais tinham conhecimento, e, nomeadamente, quando notificados expressamente para comprovar o cumprimento das suas obrigações em falta, ou para esclarecer e documentar no que respeita à questão dos cálculos que suscitaram, nada fizeram para cumprir efetivamente as mesmas, ou para esclarecer e documentar em conformidade, não obstante admitirem serem devedores à fidúcia.
Assim, embora não dispondo os autos de elementos que permitam concluir, sem mais, pelo dolo na conduta dos devedores, sem dúvida podemos concluir, como fez a decisão proferida na primeira instância, por uma negligência grave na violação da obrigação de entrega que tinha sido imposta aos devedores, não tendo estes entregue, na sua totalidade, as quantias em falta durante do período de cessão, no valor total de 2.039,74 €,  nem justificado, de forma válida, como acima vimos, a sua conduta omissiva.
Quanto ao prejuízo dos credores e o dano para a satisfação desses créditos, importa ter em consideração que está aqui em falta a entrega de uma quantia, como referimos de 2.039,74 €, sendo que a não entrega daquele valor constitui um claro prejuízo e dano para os credores, impedindo que os mesmos fossem ressarcidos, por essa via, pelo menos parcialmente, sendo esse prejuízo consequência direta do incumprimento pelos devedores da referida obrigação, sendo irrelevante o argumento utilizado pelos recorrentes, relativamente ao valor diminuto da quantia em apreciação.
O art.º 241º, n.º 1, do CIRE, determina que o fiduciário afeta os montantes cedidos pelo devedor, no final de cada ano em que dure a cessão, após os pagamentos previstos nas alíneas a) a c) do normativo, “pelos credores da insolvência, cujos créditos se mostrem verificados e graduados por sentença, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência.”
Ao não entregar as quantias em referência, ano após ano, com exceção do primeiro, impediram os devedores os pagamentos aos credores nos termos mencionados, sendo o prejuízo dos credores inerente ao não recebimento desses quantias consequência direta dessa não entrega.
Qualquer quantia não entregue aos credores, ainda que mínima, constitui um prejuízo para os mesmos, salientando-se que, como referimos ao contrário do que sucede para a revogação da exoneração, onde se exige que ocorra prejuízo relevante (artigo 246.º, n.º 1, in fine), na cessação antecipada e na recusa, mostra-se suficiente um qualquer prejuízo para a satisfação dos créditos, desde que, claro está, não seja o mesmo insignificante, o que no caso não podemos considerar ser, tendo em consideração que se trata de uma quantia superior a 2.000,00 €, ou seja o equivalente a mais do que duas retribuições mínimas mensais garantidas, com referência ao ano de 2025.[14] E mesmo que a totalidade dessa quantia, face ao disposto no art.º 241º, n.º 1, do CIRE, não seja de afetar ao pagamento aos credores, não podemos concluir, sem mais, que as quantias a afetar sejam insignificantes, como pretendem os recorrentes, face ao valor em causa.
Refere o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10.07.2024, abordando esta questão que: “Sabendo-se que o processo de insolvência tem como objectivo primacial a satisfação dos credores com liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (art. 1º do CIRE), afigura-se-nos mais curial não abrir excepções em função da grandeza do valor em que se traduziu o incumprimento dos insolventes e, por conseguinte, qualquer que seja o valor do rendimento que não foi e devia ter sido entregue à fiduciária, desde que permita diminuir, seja em pouca ou grande medida, o montante dos créditos reconhecidos caso fosse entregue e repartido pelos mesmos, deve considerar-se verificado o requisito do prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.”[15] Claramente concordamos com o mesmo, embora se tenha em consideração o enunciado limite da insignificância, o que não será o caso.
Por último, quanto às referências feitas quanto à ausência de pedido de prorrogação nos termos do art.º 242º-A, do CIRE, importa referir, em primeiro lugar, que este foi apenas um dos argumentos usados na decisão recorrida para salientar no que respeita à “postura” negligente dos recorrentes nos autos e não claramente o determinante da recusa, acrescentando-se ainda que o entendimento referido pelos recorrentes sobre esta matéria não é válido, uma vez que, tal como tem vindo a ser entendido já por alguma jurisprudência, nomeadamente por esta Secção de Comércio de Lisboa e ainda por alguma doutrina, importa considerar que a lei consagra, após a alteração efetuada ao Código pela Lei 9/2022, de 11.01, duas possibilidades de prorrogação do período da cessão: ou um pedido como alternativa à recusa final de exoneração, nos termos do n.º 1, do art.º 244º, daí a referência no normativo previsto no art.º 242º-A, ou um pedido, esse sim, a deduzir ainda durante o período de cessão, nos termos do art.º 242-A, como pedido alternativo à cessação antecipada.[16] Podiam assim os recorrentes, de acordo com o referido entendimento, requerer a prorrogação do período de cessão, ainda que já decorrido o elencado período de três anos.
Em suma, e no que ora interessa, estão assim verificados, na espécie, todos os pressupostos referidos, que determinam a recusa da exoneração.
Assim sendo, importa concluir que não assiste razão aos recorrentes e que o recurso deverá improceder na sua totalidade, mantendo-se a decisão recorrida de recusa da exoneração.
As custas deverão ser suportadas pelos recorrentes (arts. 663º, n.º 2, 607º, n.º 6, 527º, nºs 1 e 2, 529º e 533º, todos do CPC).

5. Decisão
Pelo exposto, acordam as Juízas desta Secção de Comércio em julgar o recurso
totalmente improcedente e, consequentemente, mantêm a decisão recorrida de recusa da exoneração.
Custas pelos recorrentes.
Notifique.

Lisboa, 17.06.2025
Elisabete Assunção
Renata Linhares de Castro
Amélia Sofia Rebelo
_______________________________________________________
[1] Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 8ª edição, Almedina, pág. 400.
[2] Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 3ª edição, Almedina, pág. 773.
[3] Proc. n.º 18394/22.5T8LSB-C.L1.1., disponível em www.dgsi.pt.
[4] À data do despacho liminar proferido nos autos o prazo era de cinco anos, sendo atualmente de três anos, após a alteração introduzida no preceito pela Lei 9/2022, de 11 de janeiro (que entrou em vigor em 11.04.2022), de aplicação imediata aos processos pendentes, à data da sua entrada em vigor, nos termos do art.º 10º, n.º 1, da citada lei,  referindo ainda em particular, este artigo 10º, quando aos processos de insolvência de pessoas singulares pendentes à data de entrada em vigor da presente lei, nos quais haja sido liminarmente deferido o pedido de exoneração do passivo restante e cujo período de cessão de rendimento disponível em curso já tenha completado três anos à data de entrada em vigor da mencionada lei, que considera-se findo o mencionado período com a entrada em vigor da lei (n.º 3, do art.º 10º) e que o referido não prejudica a tramitação e o julgamento, na primeira instância ou em fase de recurso, de quaisquer questões pendentes relativas ao incidente de exoneração do passivo restante, tais como as referentes ao valor do rendimento indisponível, termos de afetação dos rendimentos do devedor ou pedidos de cessação antecipada do procedimento de exoneração (nº 4, do art.º 10º).
[5] A Exoneração do passivo restante - Algumas questões, Revista Julgar, 48, Setembro-Dezembro, 2022, Almedina, pág. 40.
[6] Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas anotado, 3ª edição, Quid. Juris, pág. 858.
[7] Sublinhado nosso.
[8] Citando aqui o Acórdão a posição de L. M. MARTINS, in Recuperação de Pessoas Singulares, Volume I, 2ª edição, 2012, Almedina, Coimbra, pág. 163.
[9] Proc. n.º 693/19.5T8BRR.L1-1, Relatora Renata Linhares de Castro, disponível em www.dgsi.pt.
[10] Cf. neste sentido, entre outros, Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada (nota 6), pág. 870 e Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09.11.2023, Proc. n.º 5712/19.2T8VNF.G1, Relatora Maria João Matos, disponível em www.dgsi.pt.
[11] Proc. n.º 747/11.6TBTNV-J.C1, Relator Henrique Antunes, disponível em www.dgsi.pt.
[12] Cf. Acórdão citado na nota 10.
[13] Devendo essa entrega ser imediata, como exige o art.º 239º, n.º 4, al. c), do CIRE.
[14] Atualmente fixada em 870,00 €, cf. Decreto-Lei n.º 112/2024, de 19 de dezembro.
[15] Proc. n.º 7963/19.0T8VNG.P1, Relatora Maria da Luz Seabra, disponível em www.dgsi.pt
[16] Cf. Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa: de 11.02.2025, Proc. n.º 1755/20.1T8BRR-G.L1-S, Relatora Fátima Reis Silva; de 15.12.2022, Proc. n.º 124/18.8T8BRR.L1-1, Relatora Paula Cardoso; de 06.12.2022, Proc. n.º 35/13.3TBPVC.L1-1, Relatora Isabel Fonseca, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
Na doutrina cf. Catarina Serra, obra citada, nota 2, pág. 792.