INSOLVÊNCIA
APREENSÃO DE BENS
CASA DE HABITAÇÃO
FIEL DEPOSITÁRIO
Sumário

1- Declarada a insolvência, deve o administrador judicial proceder à apreensão imediata dos bens do insolvente.
2- Apreendido um imóvel para a massa insolvente, deve ser constituído fiel depositário do mesmo o insolvente que nele tenha a sua habitação, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 15º, n.º 1, do CIRE e 756º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Civil e só com fundamento justificado poderá proceder-se à sua substituição (artigo 761º deste último Código).
3- Do despacho que reconheceu que, dado o facto de o imóvel apreendido constituir a casa de habitação da insolvente, esta não estava obrigada a proceder à respectiva entrega “até ao momento da venda”, não resulta que a insolvente só tenha que proceder à entrega do imóvel após a celebração da escritura de compra e venda.
4- Estando já em curso a fase da venda - tendo, inclusive, já sido transferida para a massa insolvente a quantia de 36.100,00 Euros, “a título de caução” relativa à proposta de aquisição apresentada – e não tendo o Administrador da Insolvência tido acesso ao imóvel para o apresentar aos interessados, há fundamento para que a insolvente seja desde já substituída como depositária.

Texto Integral

Acordam as Juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I-RELATÓRIO
C… R… F… G… apresentou-se à insolvência, tendo sido declarada insolvente por sentença proferida em 15.03.2023, já transitada em julgado.
Em 29.06.2023, o Administrador da Insolvência juntou auto de apreensão do qual consta ter sido apreendido para a massa insolvente o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número …, freguesia de …, concelho de …, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ….
Em 25.08.2023, após ter sido notificada pelo Administrador da Insolvência para proceder à entrega do imóvel, a insolvente, invocando que o mesmo constitui a sua casa de família e que continua a ser a respectiva depositária, requereu o indeferimento da pretensão do Administrador.
Na sequência desse requerimento, em 30/10/2023, foi proferido o seguinte Despacho:
“Requerimento de 25.08.2023:
Declarada a insolvência, procede-se à imediata apreensão de todos os bens integrantes da massa insolvente, devendo o administrador de insolvência diligenciar no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues, para que deles fique depositário (artigos 149º e 150º do CIRE).
Todavia, tal não sucede nas situações previstas no art. 756.º n.º 1 do CPC, nomeadamente quando o bem apreendido constituir a casa de habitação efectiva do insolvente, caso em que é este o depositário – cfr. art. 756º n.º 1 alínea a) do CPC, ex vi do art. 150º n.º 1 do CIRE.
Deste modo, face ao invocado pela insolvente e tendo em conta as disposições legais supra referidas, assiste-lhe inteira razão, pelo facto de o imóvel apreendido nos autos constituir a sua casa de habitação efectiva (independentemente da falta de indicação de “razões sociais imperiosas”, já que não está em causa a apreciação do diferimento da desocupação).
Face ao exposto, reconhece-se à insolvente a qualidade de depositária do imóvel apreendido nos autos, não estando obrigada a proceder à sua entrega até ao momento da venda.
Adverte-se a insolvente de que, enquanto depositária, está obrigada ao exacto cumprimento do dever de apresentação do bem e de facultar o seu exame com vista à efectivação da venda (nomeadamente o acesso ao interior do imóvel para obtenção de fotografias e averiguação do estado de conservação, bem como visitas de potenciais compradores) – cfr. artigos 771º e 818º do CPC.
Notifique”.
Em 04/03/2024, o R. Administrador prestou informação acerca do estado da liquidação nos seguintes termos:
“(…)
VERBA 1- Prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de …, sob o número …, freguesia …, Concelho de …, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, duas hipotecas registadas a favor da Sociedade …  – STC, S.A., valor patrimonial tributário 108 885,57 Euros.
Conforme comunicado, foi dado início à venda por meio de leilão eletrónico, o qual teve início no dia 22 de janeiro de 2024 pelas 15h00 e encerrou no dia 22 de fevereiro de 2024, pelas 15h00.
Pelos interessados, foi solicitada a visita ao imóvel, não sendo possível a realização das mesmas, por o ora signatário não ter conseguido o acesso ao mesmo, em virtude de não conseguir contactar com a devedora e seu mandatário.
Não obstante a falta de colaboração da devedora, que não reclama as cartas registadas do ora signatário, não informa os seus contactos alternativos, como um contacto telefónico, nem contacta o mesmo pessoalmente ou através do mandatário, foram registadas 10 licitações de adjudicação do imóvel, sendo a mais elevada no valor de 180.500,00 Euros.
Considerando que a licitação no valor de 180.500,00 Euros, é superior ao valor mínimo definido para a venda (155.540,00 Euros), foi a mesma aceite.
Foi transferida para a conta da massa insolvente a quantia de 36 100,00 Euros, a título de caução, pelo que a proposta de aquisição se tornou eficaz.
De acordo com o douto despacho de 30 de outubro de 2023, ref. 429767190, reconheceu o tribunal à insolvente a qualidade de depositária do imóvel apreendido, não estando obrigada a proceder à sua entrega até ao momento da venda.
Ora, considerando o exposto, e prevendo-se a continuação de falta de colaboração da devedora com o ora signatário, requer-se que a mesma seja notificada pelo Tribunal da adjudicação do imóvel e em consequência a entrega do mesmo, devoluto de pessoas e bens, no prazo de 15 dias.
Só após a entrega efetiva do imóvel é possível a realização da escritura pública.”
Em 09/04/2024, foi proferido despacho, indeferindo a nulidade invocada por C… A… P… por falta de citação do mesmo para exercer os seus direitos nos termos dos artigos 786º, nº 1, alínea a), e 787º, nº 1, do CPC, ex vi do artigo 17º, do CIRE, em virtude de o imóvel constituir a casa de família do casal constituído pelo próprio e pela insolvente, que ali vivem em união de facto.
Nessa mesma data, foi proferido o seguinte despacho:
“Requerimento de 04.03.2024 ref.ª 38674598:
Tomei conhecimento da adjudicação do imóvel.
Notifique a insolvente para, no prazo de 15 dias, proceder à entrega do imóvel devoluto de pessoas e bens”.
Este despacho foi notificado à insolvente, mediante notificação elaborada em 10/04/2024.
C… A… P… interpôs recurso do aludido despacho, o qual foi processado no apenso D. Por acórdão deste Tribunal da Relação de 13/09/2024, foi o recurso julgado improcedente.
Em 29/10/2024, foi proferido o seguinte Despacho:
“Face ao douto acórdão proferido no apenso D, determino o prosseguimento das diligências de liquidação da verba 1, devendo a insolvente, no prazo de 15 dias, proceder à entrega do imóvel devoluto de pessoas e bens nos termos anteriormente determinados.
Notifique”.   
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Inconformada, a insolvente interpôs recurso, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
1- A interposição do presente Recurso de Apelação é tempestiva;
2 - No âmbito dos presentes autos foi proferido Despacho que deferiu a pretensão do Exmo. Senhor Administrador da Insolvência, decretando a entrega do imóvel no prazo de 15 (quinze) dias, sem mais;
3 - Por douto Despacho datado de 30/10/2023, com a referência 429767190, foi reconhecida à Insolvente a qualidade de depositária do imóvel supra descrito, que é a sua casa de morada de família;
4 - “Em processo de insolvência, apreendido um imóvel para a massa insolvente, deve ser constituído fiel depositário do mesmo o Insolvente que nele tenha a sua habitação, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 150º, n.º 1, do CIRE e 756º, n. 1, al. a) do Código de Processo Civil.
- E só com fundamento justificado poderá proceder-se à sua substituição (artigo 761º do Código de processo Civil).”
(Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 11-09-2018, Processo nº 12580/17.7T8SNT-D.L1-1, in www.dgsi.pt);
5 - O objecto da matéria em crise é a remoção, sem mais, da Insolvente, aqui Recorrente, como depositária do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial do Seixal sob o nº …, freguesia de …, concelho …, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo …, correspondente à fracção autónoma designada pela letra “E”, destinada a habitação, correspondente ao segundo andar direito e arrecadação na cave, localizado na Avenida …, em …;
6 - A Insolvente não foi notificada do requerimento do Exmo. Senhor Administrador da Insolvência para a entrega do imóvel, nem que fosse, sequer, para o exercício do contraditório a que teria direito face à presunção e à pretensão invocadas pelo Exmo. Senhor Administrador da Insolvência;
7 - Conforme resulta do artigo 761º, do CPC, apenas com fundamento justificado se pode proceder à substituição do fiel depositário, neste caso a Insolvente;
8 – “…
4 – Não se tendo operado a transmissão do imóvel penhorado, por ainda não ter sido depositado o preço na sequência de venda executiva em leilão eletrónico, o depositário não pode ser desapossado do bem que tem à sua guarda, designadamente para ser entregue ao proponente, sem ser através do incidente de remoção previsto no artigo 761º do CPC.” (Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 12-01-2023, Processo nº 558/21.T8CHV-B.G1, in www.dgsi.pt);
9 – Não houve qualquer incidente de remoção;
10 – A Mma. Juiz a quo decretou a entrega do imóvel, a pedido do Exmo. Senhor Administrador da Insolvência, sem mais;
11 – Ainda não foi concretizada a venda do imóvel;
12 - Até à concretização da compra e venda do imóvel sub judice, ou seja, até à celebração da respectiva escritura pública, com o consequente pagamento do preço, a Insolvente não tem que entregar o imóvel, por falta de fundamento legal, mantendo-se como depositária do bem;
13 - Ao decidir como decidiu, a Mma. Juiz a quo violou as disposições conjugadas dos artigos 150º, n.º 1, do CIRE, e 756º, n. 1, al. a), e 761º, nºs 1 e 2, do CPC, pois decretou a entrega do imóvel, com a consequente e implícita remoção da depositária, a Insolvente aqui Recorrente, antes da venda efectiva do imóvel e sem que se verificasse qualquer incidente de remoção conforme está legalmente preceituado.
Terminou peticionando que o despacho recorrido seja revogado e substituído por outro que decrete que a Insolvente deverá ser mantida como fiel depositária do bem imóvel apreendido a favor da massa insolvente até à concretização efectiva da compra e venda do mesmo.
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Não foram apresentadas Contra-Alegações.
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Em 26/03/2025, a Mmª Juiza a quo proferiu despacho admitindo o recurso.
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Foram colhidos os Vistos das Exmªs Adjuntas.
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II– OBJECTO DO RECURSO
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608º, nº 2, ex vi do artigo 663º, nº 2, do mesmo Código). Acresce que os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido.
Assim, em face das conclusões apresentadas pela recorrente, importa decidir se se encontram reunidos os pressupostos para que a mesma, insolvente, se mantenha como depositária do imóvel apreendido, ou, se pelo contrário, deve o mesmo ser entregue ao Administrador da Insolvência.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
A) De Facto
Com relevância para a decisão, encontram-se provados os factos vertidos no relatório que antecede e que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
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B) Do Direito
Atento o disposto no artº 36º, nº1, alínea g), do CIRE, na sentença que declarar a insolvência, o juiz: “Decreta a apreensão, para imediata entrega ao administrador da insolvência, dos elementos da contabilidade do devedor e de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos e sem prejuízo do disposto no n.º 1 do artigo 150.º”.
Sob a epígrafe Apreensão dos bens prevê o art. 149º, nº 1 do mesmo diploma:
Proferida a sentença declaratória da insolvência, procede-se à imediata apreensão dos elementos da contabilidade e de todos os bens integrantes da massa insolvente.
Por sua vez, sob a epígrafe “Entrega dos bens apreendidos prevê o art. 150º do mesmo diploma que:
“1- O poder de apreensão resulta da declaração de insolvência, devendo o administrador da insolvência diligenciar, sem prejuízo do disposto nos n.os 1 e 2 do artigo 756.º do Código de Processo Civil, no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues, para que deles fique depositário, regendo-se o depósito pelas normas gerais e, em especial, pelas que disciplinam o depósito judicial de bens penhorados.
2 - A apreensão é feita pelo próprio administrador da insolvência, assistido pela comissão de credores ou por um representante desta, se existir, e, quando conveniente, na presença do credor requerente da insolvência e do próprio insolvente.
3 - Sempre que ao administrador da insolvência não convenha fazê-lo pessoalmente, é a apreensão de bens sitos em comarca que não seja a da insolvência realizada por meio de deprecada, ficando esses bens confiados a depositário especial, mas à ordem do administrador da insolvência.
4 - A apreensão é feita mediante arrolamento, ou por entrega directa através de balanço, de harmonia com as regras seguintes:
a) Se os bens já estiverem confiados a depositário judicial, manter-se-á o respectivo depósito, embora eles passem a ficar disponíveis e à ordem exclusiva do administrador da insolvência;
b) Se encontrar dificuldades em tomar conta dos bens ou tiver dúvidas sobre quais integram o depósito, pode o administrador da insolvência requerer que o funcionário do tribunal se desloque ao local onde os bens se encontrem, a fim de, superadas as dificuldades ou esclarecidas as dúvidas, lhe ser feita a entrega efectiva;
c) Quando depare com oposição ou resistência à apreensão, o próprio administrador da insolvência pode requisitar o auxílio da força pública, sendo então lícito o arrombamento de porta ou de cofre e lavrando-se auto de ocorrência do incidente;
(…)
5 - À desocupação de casa de habitação onde resida habitualmente o insolvente é aplicável o disposto no artigo 862.º do Código de Processo Civil. (subl. nossos).
Como se diz no Ac. da Rel. de Lisboa de 11/07/2024, proferido no Proc. nº 5353/17.9T8SNT.L2, relatora: Amélia Sofia Rebelo, subscrito pela ora relatora enquanto 2ª adjunta e, ao que sabemos não publicado, acórdão esse que nesta parte seguiremos de perto:
«Das normas citadas resulta que o cumprimento da apreensão dos bens pressupõe a atividade material do AI para que, aferindo da efetiva existência, localização, descrição e estado dos bens que integram a massa insolvente, diligencie para que estes fiquem na sua disponibilidade fáctica, poder que não só se compatibiliza como é condição de cumprimento dos deveres de administração e frutificação dos bens da massa insolvente que, até à venda dos bens, lhe estão legalmente deferidos (arts. 55º, nº 1, al. b) e 81º, nº 1 do CIRE). Deveres que pressupõem a referida disponibilidade jurídica e material sobre os bens que a integram enquanto representante da massa insolvente e do coletivo dos credores da insolvência. Ora, o nº 1 do art. 150º prevê expressamente o poder do AI proceder à apreensão (jurídica e material) dos bens da massa insolvente, e o dever de diligenciar o necessário para que os bens lhe sejam entregues logo que seja declarada a insolvência do devedor, sem que dependa de qualquer prévia apreciação, sindicância ou decisão judicial nesse sentido para além da já declarada insolvência.  Poder e dever que logicamente decorrem da sua qualidade legal de representante da massa insolvente, de [d]efensor dos seus interesses e enquanto “órgão funcional” da insolvência, ou seja, enquanto órgão dotado de funções adequadas à realização prática dos valores tutelados pelo Direito da Insolvência9 Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Almedina, 2018, p. 22 - , e que se enquadra na marcada desjudicialização do processo levada a cabo pelo CIRE “com a redução da intervenção do juiz ao que estritamente releva do exercício da função jurisdicional, permitindo a atribuição da competência para tudo o que com ela não colida aos demais sujeitos processuais.”10 Ponto 10 do preâmbulo do Decreto Lei nº 53/2004 de 18.03 que aprovou o CIRE.
Da referida dualidade funcional – poder/dever - retiramos que a ressalva “[s]em prejuízo do disposto nos nºs 1 e 2 do art. 756º” - 11 No que ao caso releva, estabelece a al. a) do n 1 do art. 756º do CPC “É constituído depositário dos bens o agente de execução ou, nos casos em que as diligências de execução são realizadas por oficial de justiça, pessoa por este designada, salvo se o exequente consentir que seja depositário o próprio executado ou outra pessoa designada pelo agente de execução ou ocorrer alguma das seguintes circunstâncias: a) O bem penhorado constituir a casa de habitação efetiva do executado, caso em que é este o depositário;- do Código de Processo Civil não tem a virtualidade de por qualquer forma limitar o poder do AI de, nas situações ali previstas, diligenciar para que o bem lhe seja fisicamente entregue/disponibilizado no âmbito do cumprimento das suas funções e de acordo com as vicissitudes da administração ou da liquidação dos bens com que se depare (designadamente, nos casos em que o comprador exige que o imóvel se encontre ‘livre e devoluto de pessoas e bens’ como condição para a celebração de escritura de compra e venda12 - Condição que na perspetiva do interessado na aquisição é legítima porque não são desconhecidos os frequentes litígios judiciais suscitados pelos ocupantes dos imóveis apreendidos para a massa insolvente quando confrontados com o pedido de entrega dos mesmos pelos adquirentes, como é bem demonstrado pelos presentes autos - apenas o de limitar o dever do AI em diligenciar para que os bens lhe sejam imediatamente entregues após a declaração da insolvência, limitação que se compreende pelo facto de, verificadas as circunstâncias previstas pelos nºs 1 e 2 do art. 756º do CPC, os bens não se encontrarem em situação de ‘abandono’ ou de falta de guarda.  Assim, ainda que na pendência da liquidação a lei permita ao AI ‘desonerar-se’ do cargo de depositário dos bens da massa que se encontrem na posse do insolvente morador, a este não é concedida a prorrogativa de permanecer na posse do imóvel contra a vontade e desígnios do AI no âmbito do cumprimento das funções que lhe estão acometidas - de administração, frutificação e alienação dos bens - e que, em síntese, se resumem ao dever de otimização da massa insolvente em benefício do coletivo universal os credores, com vista à máxima satisfação dos seus créditos pelos rendimentos e pelo produto da venda dos bens da massa insolvente, exercendo/executando os poderes que para tanto lhe são funcional e legalmente atribuídos. Outro não será o alcance da ressalva prevista pela al. a) do nº 4 do art. 150º - embora eles [os bens] passem a ficar disponíveis e à ordem exclusiva do administrador da insolvência.
No contexto da finalidade imediata do processo de insolvência de cariz liquidatário (conversão do património do devedor em dinheiro) e das características da celeridade e da desjudicialização que o legislador lhe atribuiu, determinantes das especificidades do seu regime e dos poderes-deveres atribuídos ao AI, não se compreenderia que, sendo a massa insolvente integrada por imóvel que constitua casa de habitação do devedor, este pudesse impor e opor ao AI e, assim, aos credores da insolvência, a manutenção dessa qualidade de morador e continuar a beneficiar das utilidades de um imóvel da massa insolvente em detrimento da célere satisfação dos interesses dos seus credores, e até da concreta possibilidade de, na pendência da liquidação e até à sua venda, dele serem retirados rendimentos em benefício da massa insolvente. Da mesma forma que não se compreenderia que o devedor morador, por ser depositário do bem, nessa qualidade (por natureza, de auxiliar da justiça) pudesse obstar ou dificultar o célere cumprimento da liquidação e, assim, a mais rápida satisfação dos direitos do universo dos credores através da pronta realização da venda do bem objeto do depósito a interessado proponente que, nas negociações com o vendedor massa insolvente, estabeleceu como condição para a formalização/celebração da compra e venda a verificação da desocupação do imóvel de pessoas e bens; sendo que, conforme supra anotado, esta corresponde à situação de facto que, no confronto com interesses individuais do devedor ou do credor depositários, maior segurança ou garantia dá ao AI de dar imediato cumprimento ao dever que emerge da celebração da venda, de entrega do bem ao comprador, e, na mira do adquirente, a que com maior segurança lhe garante o imediato ingresso na posse e disponibilidade material do imóvel, porque dependente única e exclusivamente da vontade e ação do AI. Poder que enquadra e cria condições para o cumprimento do dever previsto pelo art. 158º, no sentido de “Transitada em julgado a sentença declaratória da insolvência e realizada a assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência procede com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente”».
Da conjugação do disposto nos arts. 36º, nº 1, al. g), 149º, nº 1, 150º, nº 1 supra referidos e ainda no artº 158º do CIRE, que determina que transitada em julgado a sentença declaratória da insolvência e realizada a assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência procede com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente, com a natureza (colectiva e universal), finalidade (optimização da satisfação dos direitos dos credores) e características do processo de insolvência (celeridade e desjudicialização das actividades de apreensão e liquidação), resulta que o CIRE não condiciona a realização das diligências de efectiva apreensão dos bens e respectiva venda à prévia autorização do órgão juiz da insolvência, nem tão pouco à prévia audição do insolvente relativamente aos termos e condições da venda.
No despacho proferido em 23-08-2023 reconheceu-se que, dado o facto de o imóvel apreendido constituir a casa de habitação efectiva da insolvente, esta não estava obrigada a proceder à respectiva entrega “até ao momento da venda”.
Não se decidiu ali que a insolvente só estava obrigada a entregar o imóvel ao depositário após a celebração da respectiva escritura pública de compra e venda.
Em 09/04/2024, na sequência do requerimento do Administrador da Insolvência de 04/03/2024, em que este invocou que estava em curso a venda do imóvel, que os interessados haviam solicitado a visita ao mesmo, o que não tinha sido possível em virtude de não ter conseguido contactar com a devedora ou com o seu mandatário, o tribunal determinou que a insolvente fosse notificada para, no prazo de 15 dias, proceder à entrega do imóvel devoluto de pessoas e bens. Este despacho foi notificado à insolvente, que nada disse.
Em 29/10 do mesmo ano, após ter sido julgado improcedente o recurso interposto por C… A… P… do despacho que indeferiu a  nulidade invocada por falta de citação para exercer os seus direitos nos termos dos artigos 786º, nº 1, alínea a), e 787º, nº 1, do CPC, foi, então, determinado o prosseguimento das diligências de liquidação do imóvel e novamente que a insolvente procedesse à sua entrega no prazo de 15 dias.
Conforme disse o Administrador da Insolvência, no requerimento supra referido de 04/03/2024: “Não obstante a falta de colaboração da devedora, que não reclama as cartas registadas do ora signatário, não informa os seus contactos alternativos, como um contacto telefónico, nem contacta o mesmo pessoalmente ou através do mandatário, foram registadas 10 licitações de adjudicação do imóvel, sendo a mais elevada no valor de 180.500,00 Euros”. Uma vez que esta é superior ao valor mínimo estabelecido para a venda, foi a mesma aceite. Nessa sequência, há mais de um ano, já tinha sido transferido para a massa insolvente a quantia de 36.100,00 Euros, “a título de caução, pelo que a proposta de aquisição se tornou eficaz”. E igualmente há mais de ano, foi determinado que a insolvente procedesse à entrega do imóvel.
Invoca ora a insolvente que não foi notificada do requerimento do Administrador da Insolvência para a entrega do imóvel, para efeitos do exercício do contraditório.
Todavia, consta dos autos que com a notificação do despacho proferido em 09/04/2024, notificação essa efectuada à insolvente através de carta registada expedida em 10/4 e dirigida, nessa mesma data, via citius, ao seu Ilustre Mandatário, foi enviada cópia da informação acerca do estado da liquidação apresentada pelo Administrador em 04/03. No prazo de 10 dias a contar da notificação desse despacho, pela insolvente nada foi  dito. A verificar-se qualquer irregularidade processual, teria a mesma que ter sido invocada nesse prazo – cfr artº 149º, nº1, do C.P.Civil ex vi do artº 17º, nº1, do CIRE -, o que não aconteceu.
Não há dúvidas que está em curso a venda do imóvel e resultando dos autos que a permanência da insolvente no mesmo pode dificultar a concretização de tal venda, com os prejuízos que daí resultarão para os credores, pela privação de um aumento patrimonial da massa, não há fundamento para que não tenha desde já lugar a sua entrega ao Administrador da Insolvência. As propostas para aquisição foram apresentadas sem que tenha sido possível o acesso ao imóvel, para efeitos de visita por parte dos proponentes, uma vez que se frustraram as tentativas com vista ao contacto com a insolvente.
E o ora decidido não contradiz, de modo nenhum, o determinado pelo tribunal no despacho de 23-08-2023. Já foi atingido “o momento da venda”, estando a mesma em curso. Contrariamente ao alegado pela insolvente, no despacho em apreço não foi decidido que a entrega apenas teria lugar após a celebração da escritura pública de compra e venda.  
Pelo exposto, tem o recurso que ser julgado improcedente.
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IV- DECISÃO
Em face do exposto, acordam as juízas na Secção do Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o recurso improcedente, mantendo-se o despacho recorrido.
Custas pela apelante – artº 527º do C.P.Civil. 
Registe e Notifique.          
                                                   
Lisboa, 17/06/2025
Manuela Espadaneira Lopes
Paula Cardoso
Susana Santos Silva