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RECTIFICAÇÃO DE SENTENÇA
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
INCIDENTE DE ATRIBUIÇÃO
DECISÃO PROVISÓRIA
FIXAÇÃO DE COMPENSAÇÃO AO CÔNJUGE
Sumário
I - O erro material (designadamente, de escrita) consiste numa inexactidão na expressão da vontade do julgador que consubstancia uma notória e patente divergência entre a vontade declarada pelo juiz e aquilo que é a sua vontade real (ou seja, o teor expresso na decisão não coincide com aquele que o juiz tinha em mente) Cfr. Ac. STJ 13/10/2020, Juiz Conselheiro Henrique Araújo, proc. nº5957/12.6TBVFR-C.P1.S2, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. , equivalendo ao erro-obstáculo tratado no direito substantivo. II - O “quadro rectificativo” previsto no nº2 do art. 614º do C.P.Civil de 2013 só tem aplicação quando o erro material é ostensivo, evidente e devido a lapso manifesto. III - Em face do disposto no nº2 do art. 614º, havendo recurso, o Tribunal de 1ª Instância apenas pode corrigir/rectificar os erros materiais da sentença, seja a requerimento, seja oficiosamente, até ao momento da subida do recurso, sendo que, a partir desse momento, competirá ao Tribunal da Relação, e enquanto o recurso se mantiver em curso, o poder de determinar (ou não) a rectificação, seja a requerimento, seja oficiosamente. IV - No âmbito do incidente de atribuição provisória da casa de morada de família previsto no nº7 do art. 931º do C.P.Civil de 2013, é legalmente admissível a fixação de uma compensação patrimonial ao cônjuge privado do seu uso até à partilha, sendo que tal fixação depende da avaliação das circunstâncias pessoais e patrimoniais de cada um dos cônjuges e terá que ser fundada em razões de equidade e justiça. V - Para a fixação de compensação a favor do cônjuge não beneficiado com a atribuição da casa de morada de família deve verificar-se, de facto, uma verdadeira situação de necessidade da habitação para ambos os ex-cônjuges. VI - A obrigação de pagamento da compensação só nasce (ou melhor, só se constitui) a partir do momento em que o Tribunal atribui provisoriamente a um dos cônjuges (ou dos ex-cônjuges) o uso e a fruição exclusivos da casa de morada de família e em que, nessa sequência, reconhece ser equitativo e justo conferir ao outro cônjuge (ou ex-cônjuge) o direito a receber uma compensação patrimonial. Estamos, portanto, perante um incidente em que a sentença é constitutiva do direito dos cônjuges (ou ex-cônjuges), seja o relativo à atribuição provisória da casa e morada de família, seja o relativo à fixação da compensação monetária.
ACORDAMOS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES,
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1. RELATÓRIO 1.1. Da Decisão Impugnada
Na data de 10/05/2021, por apenso ao processo relativo à acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, o Requerente AA deduziu contra a Requerida BB, incidente de atribuição provisória da casa de morada de família nos termos do nº7 do art. 931º do C.P.Civil de 2013, pedindo que seja «atribuída a casa de morada de família ao requerente até à partilha bens comuns do casal, e, subsidiariamente, caso se mantenha a atribuição do imóvel de modo exclusivo à requerida, deverá ser fixada equitativamente uma compensação/renda a atribuir ao requerente, que lhe permita obter condições económicas para arrendar habitação condigna até à partilha dos bens comuns do casal».
Fundamentou a sua pretensão, essencialmente, no seguinte: «contraíram casamento em ../../1976, no regime de comunhão de adquiridos; fixaram residência na casa de morada de família sita na Rua ..., ..., ..., ...; na sequência de desentendimento entre o casal, a requerida participou criminalmente contra o requerente por violência doméstica, usando o requerente de igual faculdade; ambos os processos de inquérito correm termos, por apenso, no juízo Criminal de Barcelos - Juiz 2, sob o n.º 1072/20.7GBBCL; o requerente foi constituído arguido em 03/11/2020, acabando por ser obrigado a deixar o lar conjugal na sequência de uma das medidas de coação aplicadas; a partir dessa data, e sem qualquer outro local para residir, o requerente foi acolhido provisoriamente na casa da sua irmã CC; a requerida continuou a residir, na companhia da sua nora DD, na casa de morada de família constituída por dois pisos, rés-do-chão e primeiro andar, ambos, inclusivamente, independentes e susceptíveis de arrendamento; o requerente reside num pequeno quarto, não usufruindo de grande privacidade nos demais compartimentos da casa, vendo-se obrigado a seguir regras e procedimentos que fazem parte do “modus vivendi “ da sua irmã; o requerente e a requerida não são proprietários de qualquer outra casa para onde aquele se possa mudar; o requerente aufere uma reforma mensal de cerca € 460,00; contribui mensalmente para as despesas do seu actual agregado com cerca de € 150,00; em medicamentos, despende em média, mensalmente, cerca de € 50,00; o valor restante não é, por vezes, suficiente para o pagamento das demais despesas correntes; a requerida é uma empresária em nome individual, que vive desafogadamente; com a requerida, há mais de 5 anos, reside a sua nora DD, que nada contribui a título de renda ou como contrapartida pelo uso e fruição do imóvel do casal; a Requerida aufere mensalmente cerca de € 750,00; a nora da requerida, DD, tem um salário mensal de cerca de € 1.000,00; a requerida tem apenas as despesas correntes do dia-dia, designadamente água, luz, alguma alimentação; o requerente necessita mais da casa de morada de família do que a requerida que pode perfeitamente, sem qualquer esforço, arrendar um imóvel para si e para a sua nora, partilhando ambas as despesas mensais; na eventualidade de se entender que a requerida deverá permanecer com a restante família na casa de morada família até à partilha dos bens, sempre deverá ser fixada uma contrapartida económica a pagar pela requerida ao requerente».
Notificada, a Requerida veio pugnar pelo indeferimento de «qualquer das pretensões do requerente».
Defendeu, essencialmente, o seguinte: por acusação proferida a 31/05/2021 o requerente foi acusado de um crime de violência doméstica praticado sobre a requerida, esse é o único motivo pelo qual ele foi impedido de habitar a sua casa; foi ele que criou tal situação; a aproximação do aqui requerente da requerida poderá revelar-se fatal; a requerida teme-o; apesar de dois andares autónomos o requerente e a requerida apenas habitavam o rés do chão, pois no primeiro andar vive o seu filho, nora e filhos, há mais de quinze anos; era impossível o requerente ir morar para a casa, pois teria que habitar com a requerida, o que violaria a medida de coação que lhe foi imposta, e colocaria em risco a segurança da requerida; todas as despesas da casa, tais como ..., telecomunicações, avarias, entre outros estão a ser pagas pela requerida e se aquele para ali fosse morar teria que as pagar; está desempregada, fazendo uns biscates com a nora em frutaria, pertença desta, sendo que não aufere mais de € 250/mês; não tem a requerida que pagar o quer que seja ao requerente a título de renda, primeiro porque não pode, e segundo porque foi o requerido o único culpado da situação em que se encontra».
Na data de 24/06/2021, o Tribunal a quo proferiu sentença com o seguinte decisório: “Pelo exposto, atenta as considerações tecidas e os preceitos legais citados,decide-se atribuir a fruição da casa de morada de família à requerida, até à partilha, sem a imposição de qualquer contrapartida monetária”.
O Requerente interpôs recurso de apelação relativamente àquela sentença, pedindo que “deve o recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência, a douta sentença recorrida ser declarada nula. Caso não proceda a arguição das nulidades, alterar-se a douta sentença, fixando-se uma efectiva renda/ compensação, a pagar pela recorrida ao recorrente, como contrapartida pelo uso e fruição da casa de morada de família”.
Por acórdão proferido por este Tribunal da Relação de Guimarães na data de 17/02/2022, «o recurso foi julgado parcialmente procedente e, em consequência, foi revogada a decisão recorrida, e determinou-se que os presentes autos incidentais prosseguissem os seus termos, com a produção da prova apresentada e para a final ser proferida nova sentença, de acordo com os factos que vierem a ser provados e não provados e com os critérios legais aplicáveis».
Tendo os autos prosseguidos os seus termos, na sequência de despacho proferido pelo Tribunal a quo na data de 06/04/2022, foi realizada avaliação do valor locativo da casa de habitação.
Na data de 29/09/2022, foi realizada diligência de inquirição das testemunhas arroladas, no âmbito da qual o Requerente formulou pretensão nos seguintes termos: “No âmbito do presente incidente, o requerente requereu que lhe fosse atribuída provisoriamente a casa de morada de família até à partilha dos bens e, subsidiariamente, a fixação de uma compensação a atribuir pela requerida ao requerente na eventualidade da casa de morada de família lhe ser atribuída. Já foi realizada a avaliação, tendo sido fixado o valor mensal locativo do imóvel de 716,00€. Ora, por mera cautela de dever processual, pretende o requerente, nos termos do art.º 265.º, nº 1, do CPC, ampliar o pedido subsidiário, no sentido de se retroagir o valor da eventual compensação a atribuir ao requerente à data da apresentação em juízo do incidente, caso o titular decida atribuir a casa de morada de família à requerida. Mais, reitera o requerimento apresentado em 27 de junho de 2022, corrigido o lapso de que o IRS não é de 2021/2022, mas sim de 2020/2021.”. Na sequência, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho: “Proceda à correcção do ano a que se refere o IRS no requerimento dirigido aos presentes autos pelo requerente em 27-06-2022, nos termos requeridos. De igual modo, oficie à AT, nos termos requeridos. Notifique”. Na data de 08/01/2024, o Tribunal a quo proferiu sentença, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, e cujo decisório se transcreve: “Face ao exposto, atentas as considerações tecidas e os preceitos legais citados o Tribunal decide: - O uso e fruição da casa de morada de família será atribuído à requerida, fixando-se a título de compensação monetária, a favor do requerente, o montante de €350,00”.
Na data de 15/01/2024, através de requerimento (com a ref. citius «15593445»), o Requerente veio «requerer, nos termos do art. 614º do C.P.C, a retificação da sentença nos termos e com os seguintes fundamentos»: “ 1º Por sentença de fls_, foi decido atribuir o uso e fruição da casa de morada de família à requerida, fixando-se a título de compensação monetária a favor do requerente, o montante de € 350,00. 2º Acontece que, certamente por lapso, na referida decisão (não obstante ficar subentendido) não foi referido que o valor fixado a titulo de compensação ao requerente é mensal, 3º Ademais não consta da decisão a data a partir da qual retroage o valor fixado a titulo de compensação, que nos termos legais, retroage sempre à data da apresentação em juízo do incidente, mas que, por mera cautela, o requerente fez questão de o requerer através da ampliação do pedido, em 29/09/2022, data da inquirição de testemunhas ( veja-se acta de fls_ ). 4º Nesse sentido, deverá retificada sentença, passando a constar da decisão o seguinte: Face ao exposto, atentas as considerações tecidas e os preceitos legais citados o Tribunal decide: - O uso e fruição da casa de morada de família será atribuído à requerida, fixando-se a titulo de compensação monetária, a favor do requerente, o montante mensal de € 350,00, cujo montante retroage à data da apresentação em juízo do incidente. Termos que se requer a retificação da sentença nos termos requeridos”.
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1.2. Do Recurso da Requerida
Inconformada com a sentença, a Requerida interpôs recurso de apelação, pedindo que seja “concedido provimento ao presente recurso, revogando-se parcialmente a sentença recorrida na parte em que fixa uma compensação monetária a pagar pela recorrente ao recorrido ou, se assim não se entender, que reduza o montante fixado”, e formulando as seguintes conclusões no final das respectivas alegações: “1. O Tribunal de primeira instância atribuiu a fruição da casa de morada de família à recorrente, até à partilha, com a imposição do pagamento de uma compensação monetária, a favor do recorrido, no montante de 350,00 €. 2. O Tribunal de primeira instância fundamenta a sua decisão com base no preenchimento de critérios de justiça e equidade, porém os mesmos não estão preenchidos. 3. O recorrido encontra-se afastado de casa em virtude de decisão judicial proferida no âmbito de um processo crime de violência doméstica relativamente à recorrente, no qual foi condenado numa pena de dois anos e três meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, e sujeito a medida de coação de afastamento da residência do casal, medida de perdura à data de hoje. 4. O recorrente encontra-se a residir com uma irmã, em local que dispõe de condições habitacionais, não estando assim em causa o seu direito a uma habitação condigna. 5. A atribuição da casa de morada de família a um dos cônjuges pode ou não comportar a fixação de uma compensação pecuniária a pagar ao cônjuge privado do uso daquele bem comum do extinto casal. 6. A recorrente aufere mensalmente e de forma exclusiva um valor de 350,00€, sendo o seu agregado familiar distinto do agregado familiar do filho, assim como são distintas as suas economias domésticas. 7. A fixação de uma compensação monetária a favor do recorrido, no montante de 350,00 € afeta gravemente o direito a uma existência condigna da recorrente constituindo decisão manifestamente injusta e desadequada às circunstâncias de vida não só da recorrente como do recorrido.”
O Requerente contra-alegou, pugnando pela «improcedência do recurso da Requerida».
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1.3. Do Recurso do Requerente
Igualmente inconformado com a sentença, o Requerente interpôs recurso de apelação, pedindo que seja “julgado procedente o presente recurso retificando-se a sentença em conformidade, sem prejuízo da nulidade da sentença, por violação do disposto no artigo 615, n.º 1, alínea d) do CP.C.” e requerendo a “alteração da sentença quanto ao valor atribuído ao recorrente/Apelante a titulo de compensação, devendo a Relação fixar o montante de € 500,00/ mensais, que deverá retroagir à data da apresentação a juízo do incidente”, e formulando as seguintes conclusões no final das respectivas alegações: “1. O requerente/Apelante requereu a atribuição da casa de morada de família ou, subsidiariamente a fixação equitativa de uma compensação/renda a atribuir a este que permita condições económicas para arrendar habitação condigna até á partilha dos bens comuns. 2. Por sentença de fls_, foi decido atribuir o uso e fruição da casa de morada de família à requerida, fixando-se a título de compensação monetária a favor do requerente ( aqui Apelante ), o montante de € 350,00. 3. O recorrente/Apelante requereu nos termos do n.º 1 do artigo 614 do C.P. C. a retificação da sentença porquanto não foi referido que o valor fixado, e cuja alteração ora se pretende a titulo de compensação ao requerente, seria mensal, 4. nem consta da decisão a data a partir da qual retroage o valor fixado a titulo de compensação, que deverá retroagir à data da apresentação em juízo do incidente, mas que, por mera cautela, o requerente fez questão de o requerer através da ampliação do pedido, em 29/09/2022, na data da inquirição de testemunhas ( veja-se acta de fls_ ). 5. À data da apresentação do presente recurso o Tribunal a quo ainda não se havia pronunciado sobre o pedido de retificação da sentença por parte do ora recorrente/Apelante, pronunciando agora, nos termos do n.º 2 do artigo 614 do C.P.C. 6. Deverá o Tribunal “a quem” pronunciar-se sobre o pedido de retificação da sentença, a qual, a final, deverá ser alterada no sentido de constar da mesma o seguinte: “O uso e fruição da casa de morada de família será atribuído à requerida, fixando-se a título de compensação monetária, a favor do requerente, o montante mensal de € 500,00, cujo montante retroage à data da apresentação em juízo do incidente de atribuição de casa de morada de família” 7. A decisão do Tribunal a quem não poderá ser, pois se o valor fixada a titulo de compensação só produzisse efeitos a partir da sentença e não da apresentação em juízo do pedido de fixação da compensação, estaríamos perante uma decisão manifestamente injusta porquanto dependente da celeridade da sentença, o que in casu nem sequer ocorreu, pois a acção deu entrada em juizo em 10/05/2021 e a sentença apenas foi proferida a 08/01/2024. 8. Se a condenação do pagamento da compensação só produzisse efeitos a partir do trânsito em julgado da decisão, estar-se-ia a premiar a parte ( e respectivo agregado familiar ) que ficou com o uso e fruição da casa de morada de família durante vários anos, fruto de uma decisão tardia, 9. passando a requerida a beneficiar de um “bónus de utilização “ pelo período, até ao momento, de 32 meses, prejudicando naturalmente o beneficiário da compensação, in casu, o recorrente, que se vê ainda forçado a residir num simples quarto, sem conforto nem condições na casa da sua irmã que não obstante o respeito e consideração pelo seu irmão, pretende a sua independência e privacidade, augurando que o recorrente com a máxima brevidade saia da sua casa para o conforto do seu próprio lar, cuja procura está condicionada ao montante que a requerida e respectivo agregado familiar venham a contribuir para encontrar um imóvel condigno à sua situação. 10. Tendo por referência o valor fixado de € 350,00, cuja alteração se pretende, o recorrente/apelante teria que ser ressarcido, até ao momento, em € 11.200,00 ( onze mil e duzentos euros ), correspondente à compensação devida desde a apresentação a juízo do respectivo incidente. 11. O recorrente/apelante não pode ser penalizado pela decisão tardia do julgador, consagrando-se inclusivamente o artigo 20, n.º 4 da Constituição da Republica Portuguesa que “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”, o que não se verificou no caso concreto. 12. Aliás, o incidente perderia o seu efeito útil se a compensação só operasse juridicamente após o trânsito em julgado da decisão, pois em muitos casos a partilha dos bens comuns é concluída ainda na pendência do incidente de atribuição da casa de morada de familia, sendo que o actual processo prova evidente e inequívoca da delonga do incidente que apenas foi decidido quase três anos após ter dado entrada. 13. A sentença é nula, nos termos do artigo 615, n.º 1, alínea d) do CP.C. ). 14. O requerente/recorrente, na data da inquirição das testemunhas, realizada no dia em 29/09/2022 ( veja-se acta de fls_ ), veio nos termos do art.º 265.º, nº 1, do CPC, ampliar o pedido subsidiário, no sentido de se retroagir o valor da eventual compensação a atribuir ao requerente à data da apresentação em juízo do incidente, caso o titular decida atribuir a casa de morada de família à requerida. 15. A Meritíssima Juiz não se pronunciou na douta sentença sobre a ampliação do pedido, cuja nulidade, nos termos da aliena d) do artigo 615º do C.P., poderia ficar sanada, não obstante a sua omissão na fundamentação, se tivesse proferido decisão no sentido retroagir o valor da compensação fixada de € 350,00 à data da apresentação em juízo do incidente, o que não correu. 16. Nesse sentido, ao não conhecer a Meritíssima Juiz de tal matéria ( ampliação do pedido nos termos do artigo 265º do C.P.C. ) omitiu pronúncia sobre questões de que devia ter apreciado, o que constitui causa da nulidade da sentença nos termos alínea d) do n.º 1 do artigo 615º do C.P.C., que se invoca. 17. O Recorrente/Apelante não concorda com o valor de € 350,00, fixado a titulo de compensação, manifestamente reduzido face às suas necessidades e condição económica, por um lado, e face aos rendimentos da requerida e o seu agregado familiar, por outro. 18. Face ao aumento exponencial dos valores das rendas, o recorrente não consegue arrendar nenhum imóvel com condições condignas de habitabilidade, no concelho ..., sua área de residência, por menos de € 500,00 ( quinhentos euros ), valor esse peticionado e não atendido. 19. Ficou provado que: o valor locativo atribuído ao imóvel foi de € 716,00 ( setecentos e dezasseis euros ). 20. - O recorrente/Apelante recebe uma reforma mensal de € 460,00 (quatrocentos e sessenta euros), e que desse valor tem de fazer face às suas despesas do dia-a-dia, como alimentação, transporte, medicamentos, combustível, e ainda entregar alguma quantia mensal à sua irmã pelo facto de utilizar um quarto da sua residência ( ponto 9º ) 21. - Que a requerida, trabalha com a sua nora, auferindo mensalmente cerca de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros) – ( ponto 12º ) 22. - Que a requerida reside na casa que era de morada de família, constituída por dois pisos, rés-do-chão e primeiro andar, independentes e com entradas autónomas entre si, residindo a nora e filhos no primeiro andar. ( ponto 6 ) 23. - O agregado familiar da requerida e o do filho, emigrante, nora e neto, apresentam economias familiares distintas, pese embora exista entreajuda entre ambos.( ponto 7 ). 24. Na fixação da atribuição da compensação ao requerente, o Tribunal a quo deveria ter tido em consideração o rendimento de todo o agregado familiar e não apenas o rendimento da requerida. 25. Sabendo-se que a casa de morada de família, é uma moradia constituída por dois pisos, e que no piso superior reside o filho e a sua nora DD à mais de 18 anos, e que ambos trabalham, o Tribunal desconsiderou, erradamente, na fixação da compensação o rendimento auferido por este casal ( filho e nora ) e que constitui o agregado familiar da requerida. 26. Para aferir concretamente o rendimento global do agregado familiar da requerida, fundamental para a fixação da compensação, o requerente, por requerimento de 27/06/2022, requereu que fosse notificada a Autoridade Tributária para juntar aos autos a declaração de IRS dos anos de 2020 e 2021 da requerida BB, bem como a declaração de IRS dos anos de 2020 e 2021 da nora da requerida DD, e o seu filho, emigrante, EE. 27. Na sequência da informação prestada pela Autoridade Tributária, aferiu-se que a requerida no ano de 2020 apresentou lucros no valor de € 11.647,81 e vendas no valor de € 293.479,96 e que que no ano de 2021 ( já divorciada!), apresentou lucros no valor de € 7.579,09 e vendas no valor de € 40.311,17. 8 fls_ ) 28. Já a nora do recorrente/Apelante DD não apresentou declaração de rendimentos no ano de 2020 e no ano de 2021, apresentou rendimentos de e 5.369,33 e vendas no valor de € 60.131,26 ( fls_ ), sendo curioso na declaração de rendimento do casal não são apresentados os rendimentos do seu marido, filho do recorrente/apelante. 29. Por requerimento de 27/10/2022, o apelante/recorrente requereu que fosse notificada a nora da requerida DD para indicar a entidade patronal do seu marido EE, emigrante, e para juntar aos autos a declaração de rendimentos ou recibos de vencimentos dos anos de 2020 e 2021 e ainda para informar os autos os rendimentos auferidos por este neste período. 30. Notificada para autorizar e consentir na prestação das informações, a nora do recorrente/apelante recusou a fazê-lo, por requerimento de 27/12/2022, 31. A senhora DD, recusou-se sempre, mesmo quando formalmente ( veja-se acta de 29/09/2022 ) inquirida, a informar o seu rendimento mensal, da mesma forma que se recusou a prestar qualquer informação quanto ao rendimento do seu marido, emigrado na .... 32. É fácil perceber que a nora do recorrente/Apelante não tinha interesse em informar o rendimento do seu agregado familiar, que na verdade, não será inferior a € 7.000,00 ( sete mil euros ), 33. pois, pelas declarações do IRS apresentados nos autos, facilmente se conclui que enquanto sócia-gerente de uma frutaria não aufere quantia inferior a € 1000,00 ( mil euros ) mensais e o seu marido EE, emigrante na ..., não aufere seguramente quantia inferior a € 4.000,00 francos ( € 4.200,00 ) correspondente ao salário mínimo, sendo certo, que sendo operário da construção civil, segundo os indicadores, auferirá cerca de € 6.000,00 euros mensais. 34. Acontece que a Meritíssima Juiz, para além de não ter insistido que a nora do recorrente prestasse as informações por si solicitadas, extremamente relevantes e pertinentes no sentido de aferir qual o rendimento real do agregado familiar, e, em ultima instância, requerer oficiosamente tais informações, 35. não teve sequer em consideração, na fixação da reduzida compensação, o desleal e incorrecto comportamento da nora do recorrente, que recusou em cooperar com a justiça para a descoberta da verdade material , tirando as devidas ilações da recusa de prestar as informações. 36. Somando o vencimento da requerida ( € 750,00 ) ao vencimento da sua nora DD ( nunca inferior a € 1000,00 ) e ao vencimento do seu filho EE ( € 6.000,00 ), significa que o agregado familiar da requerida tem um rendimento mensal de € 7.750,00 ( sete mil setecentos e cinquenta euros ). 37. Deverá assim, ser alterado o valor da compensação a atribuir ao recorrente/Apelante, fixando-se o seu montante e, € 500,00 euros mensais que deverá retroagir à data da apresentação a juízo do incidente.”
A Requerida não contra-alegou.
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1.4. Da Admissão dos Recursos
Na data de 22/05/2024, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho (que se transcreve na parte que releva): “Por se mostrar legal e tempestivo admito o recurso interposto, o qual é de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito devolutivo, nos termos do disposto nos artigos 629º, 631º, 639º,n.º 1 e 2, alínea a), 644.º, n.º 1, 645º e 647º, todos do C.P.C. (…)”.
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Este Tribunal da Relação, por despacho datado de 24/06/2024, determinou a baixa dos autos à 1ª Instância com vista a: «1) identificar se despacho de admissão de recurso (proferido em 22/05/2024) se reporta ao recurso interposto pelo Requerente ou ao recurso interposto proferido pela Requerida, e, em seguida, proferir despacho de admissibilidade (ou não) relativamente ao recurso que não foi objecto daquele despacho anterior; 2) e dar expresso cumprimento disposto no art. 617º/1 do C.P.Civil de 2013».
Na data de 02/07/2024, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho (que se transcreve na parte que releva): “Em obediência ao decidido pelo Venerando Tribunal da Relação profiro o seguinte despacho: 1. Por se mostrarem legais e tempestivos admito os recursos interpostos pelo Requerente e pela Requerida, os quais são de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo. 2. Nos termos do disposto no art.º 617.º, n.º 1 do CPCivil, mantenho na íntegra o teor da sentença proferida por entender que a mesma não padece de qualquer das invocadas nulidades, indeferindo-se a retificação pretendida por entender que prolatada a decisão fica esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto á matéria da causa -art.º 613.º do CPC (…)”.
Este Tribunal da Relação, por despacho datado de 11/09/2024, determinou, novamente, a baixa dos autos à 1ª Instância com vista «a ser expressamente cumprido disposto no art. 617º/1 do C.P.Civil de 2013 (apreciação concreta da nulidade arguida)».
Na data de 28/10/2024, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho (que se transcreve na parte que releva): “No despacho de fls. 202 o Tribunal pronunciou-se quanto à admissibilidade do recurso interposto e quanto à retificação da sentença nos termos requeridos por via do requerimento Assim, quanto à retificação requerida mantemos a posição de que se encontra esgotado o poder jurisdicional do juiz no que concerne à matéria da causa. No entanto decide-se aclarar o segmento decisório da sentença, no sentido de que que a prestação fixada, como decorre do teor da sentença e foi compreendido pelas partes, como se surpreende das alegações de recuso apresentadas, reporta-se a uma quantia mensal. (…) No mais quanto à invocada nulidade, decide-se o seguinte: (…) In casu, afigura-se-nos que, em rigor, a pretensão do requerente não configura uma verdadeira alteração do pedido, mas outrossim, a pretensão de que os efeitos da sentença retroajam a determinada data, arrimado no facto de ação ter sido morosa e daí terem advindo alegados prejuízos para si e invocando questões de justiça. Porém, à data da interposição da acção o recorrente poderia ter expresso tal pretensão e não fez. Acresce que, em nosso entendimento a persistência da situação decorrente das vicissitudes processuais não confere ao cônjuge não utilizador da casa de morada de família o direito de ser compensado segundo as regras do enriquecimento sem causa, pois tal depende de circunstâncias alheias aos fundamentos da cauda de pedir. Todavia, caso se comprovasse que, ao contrário do cônjuge que usufrui da habitação sem qualquer pagamento, o outro teve de proceder a um pagamento pela utilização de outra casa que teve necessidade de arranjar, seria de admitir, em tese, que, aquando da partilha dos bens comuns do casal, pudesse haver lugar a um acerto de contas, nomeadamente, através da reclamação de um crédito por parte do segundo cônjuge, sobre o acervo patrimonial a partilhar. No entanto, nos presentes deflui que o recorrente vive na casa de uma irmã, sem qualquer contrapartida financeira. Pelo exposto, indeferindo-se a ampliação peticionada, mantenho na íntegra o teor da decisão proferida (…)”.
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Foram colhidos os vistos legais.
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2. OBJECTO DO RECURSO E QUESTÕES A DECIDIR
Por força do disposto nos arts. 635º/2 e 4 e 639º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o Tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas (as conclusões limitam a esfera de actuação do Tribunal), a não ser que se tratem de matérias que sejam de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, ou que sejam relativas à qualificação jurídica dos factos (cfr. art. 608º/2, in fine, aplicável ex vi do art. 663º, nº2, in fine, e 5º/3, todos do C.P.Civil de 2013).
Mas o objecto de recurso é também delimitado pela circunstância do Tribunal ad quem não poder conhecer de questões novas (isto é, questão que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismo destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis”[3] (pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, pelo que não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida[4]).
Neste “quadro legal” e atentas as conclusões dos recursos interpostos por ambas as partes, são as questões a apreciar por este Tribunal ad quem pela seguinte ordem de precedência lógica:
1) Se a sentença recorrida deve ser rectificada nos termos indicados pelo Requerente/Recorrente;
2) Se a sentença recorrida padece de nulidade processual em razão do «juiz ter deixado de se pronunciar sobre questão que devesse apreciar»;
3) E se a sentença recorrida deve ser alterada quanto à quantia fixada a título de compensação monetária pela atribuição do uso e fruição da casa de morada de família, no sentido de não ser fixada qualquer quantia ou ser reduzido o seu valor (recurso da Requerida/Recorrente), ou no sentido de ser aumentado o seu valor (recurso do Requerente/Recorrente), havendo ainda que apreciar da sua periodicidade e, sendo o caso, do momento a partir do qual é devida.
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3. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos que revelam para a presente decisão são aqueles que, na sentença recorrida, o Tribunal a quo considerou como provados e que são os seguintes:
1º Requerente e requerida contraíram casamento no dia ../../1976, sob o regime de comunhão de adquiridos, tendo fixado residência na casa sita na Rua ..., ..., ..., ....
2º Na sequência de desentendimentos ocorridos entre os membros do casal, a requerida participou criminalmente contra o requerente por factos suscetíveis de o fazer incorrer na prática de um crime violência doméstica.
3º O processo de inquérito instaurado pela requerida correu termos no Juízo Criminal de Barcelos - Juiz 2 - sob o n.º 1072/20.7GBBCL.
4º O requerente foi ali constituído arguido e sujeito, em sede de interrogatório judicial, além do mais, à medida de coação de afastamento da residência do casal, onde habita a requerida.
5º Desde dessa data o requerente foi residir para casa da sua irmã CC.
6º A requerida continuou a residir na casa que era de morada de família, constituída por dois pisos, rés-do-chão e primeiro andar, independentes e com entradas autónomas entre si, residindo a nora e filhos no primeiro andar.
7º- O agregado familiar da requerida e o do filho, nora e neto, apresentam economias familiares distintas, pese embora exista entreajuda entre ambos.
8º O requerente e a requerida não são proprietários de qualquer outra casa.
9º O requerente aufere uma reforma mensal de cerca € 460,00 (quatrocentos e sessenta euros), contribui mensalmente para as despesas do seu atual agregado e despende em medicamentos, em média, mensalmente, cerca de € 50,00 (cinquenta euros).
10.º A requerida exerce funções juntamente com a sua Nora numa frutaria na ... com a gíria comercial “Frutaria ...”.
11º A requerida trespassou este estabelecimento à sua nora.
12º A Requerida aufere mensalmente cerca de € 750,00 (setecentos e cinquenta euros).
13º No âmbito do processo-crime n.º1072/20.7GBBCL foi deduzida acusação contra o requerido, pela prática de factos suscetíveis de o fazer incorrer num crime de violência doméstica.
14º- Nesse processo, por sentença, transitada em julgado em 19-01-2022, o requerente foi condenado como autor material de um crime de violência doméstica, p.p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do CPenal, na pena de dois anos e três meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, acompanhada de regime de prova, assente num plano de reinserção social a elaborar pelos serviços competentes nos termos disposto no art.º 34.º-B, n.º 1, da Lei 112/2009, de 16/09, mantendo-se em vigor as medidas de coação aplicadas em sede de interrogatório judicial.
15º A requerida apresenta despesas correntes do dia-dia, designadamente água, luz, alguma alimentação.
16º- O filho do ex-casal encontra-se emigrado.
17º - O valor locativo do imóvel, constituído por dois pisos independentes, onde reside a requerida, foi fixado em €716,00.
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4. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
4.1. Da Rectificação da Sentença
Como é consabido, por força do disposto no nº1 do art. 613º do C.P.Civil de 2013, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
Este normativo consagra o princípio do esgotamento do poder jurisdicional que se justifica pela necessidade de evitar a insegurança e incerteza que adviriam da possibilidade de uma decisão poder ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, pelo que funciona como um obstáculo ou travão à possibilidade de serem proferidas decisões discricionárias e arbitrárias.
Como explica Rui Pinto[5], uma vez prolatada uma decisão, “o tribunal não a pode revogar, por perda de poder jurisdicional. Trata-se, pois, de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais. (...) Graças a esta regra, antes mesmo do trânsito em julgado, uma decisão adquire com o seu proferimento um primeiro nível de estabilidade interna ou restrita, perante o próprio autor da decisão”.
Referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa[6] que da “extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem dois efeitos: um positivo, que se traduz na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; outro negativo, consistente na insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar”.
Da extinção do poder jurisdicional do juiz decorre uma consequência irrecusável: o juiz não pode, motu proprio, voltar a pronunciar-se sobre a matéria apreciada. Mas, como se explica no Ac. da RC de 17/04/2012[7], “a intangibilidade, para o juiz, da decisão que proferiu, é, naturalmente limitada pelo objecto dela: a extinção do poder jurisdicional só se verifica relativamente às questões sobre incidiu a decisão. Por isso nada obsta, é claro, a que o juiz continue a exercer no processo o poder jurisdicional para tudo o que não tenda a alterar ou modificar a decisão proferida: o juiz pode - e deve - resolver todas as questões que não tenham com o objecto da decisão proferida uma relação de identidade ou ao menos de prejudicialidade, e, portanto, que não exerçam qualquer influência da decisão que emitiu, relativamente à qual o seu poder jurisdicional se extinguiu e se esgotou. É axiomático, porém, que a extinção do poder jurisdicional não impede que a parte interessada impugne a decisão proferida perante o tribunal que a proferiu - através de reclamação - ou perante um tribunal de recurso - por meio de recurso ordinário”.
Em conclusão: prolatada a decisão, e ressalvados os casos de rectificação, reforma ou suprimento de nulidades (cfr. nº2 do citado art. 613º), por força do esgotamento/extinção do poder jurisdicional fica vedada a possibilidade dessa decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, apenas sendo possível obter a sua alteração através de recurso que dela venha ser interposto[8].
A regra comporta as excepções previstas do nº2 do art. 613º: é lícito ao juiz rectificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a decisão, nos termos dos arts. 614º a 616º do C.P.Civil de 2013.
No que concerne à rectificação de erros materiais, prescreve o art. 614º: “1 - Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz. 2 - Em caso de recurso, a retificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à retificação. 3 - Se nenhuma das partes recorrer, a retificação pode ter lugar a todo o tempo”.
Perante o nº1 deste normativo, pode afirmar-se que constituem erros materiais: o manifesto erro de escrita ou de cálculo (art. 249º do C.Civil), revelado no próprio contexto da sentença ou através das circunstâncias em que a mesma é realizada (por exemplo, em peças do processo para que remeta); a omissão do nome das partes; a omissão de condenação em custas e/ou da indicação dos seus responsáveis ou da respectiva proporção de responsabilidade; e quaisquer inexactidões decorrentes de manifesto lapso ou omissão[9].
O erro material (designadamente, de escrita) consiste numa inexactidão na expressão da vontade do julgador que consubstancia uma notória e patente divergência entre a vontade declarada pelo juiz e aquilo que é a sua vontade real (ou seja, o teor expresso na decisão não coincide com aquele que o juiz tinha em mente)[10], equivalendo ao erro-obstáculo tratado no direito substantivo[11].
O erro material distingue-se do erro de julgamento, o qual assenta na própria vontade do julgador: este, no processo interno de formação do juízo expresso na decisão, expressa e escreve na decisão aquilo que realmente pretende, mas interpreta e julga erradamente, ou porque decide contra legem (isto é, contra a verdade jurídica) ou contra a factualidade apurada e/ou não apurada (isto é, contra a verdade fáctica)[12]. O meio legal de reacção ao erro de julgamento é a interposição de recurso com vista a modificar/alterar a decisão (art. 627º/1 do C.P.Civil de 2013) ou, quando a decisão não admite recurso, o pedido da sua reforma (art. 616º/2 do C.P.Civil de 2013).
O “quadro rectificativo” previsto no nº2 do art. 614º só tem aplicação quando o erro material é ostensivo, evidente e devido a lapso manifesto: é preciso que, ao ler-se o texto, logo se veja que há erro e logo se entenda o que efectivamente se queria dizer[13]. Explica-se no Ac. desta RG de 18/12/2024[14] que “Reconhecendo a dificuldade em apurar a vontade real do juiz, a lei impõe um requisito para que o erro material releve qua tale: a sua natureza manifesta. Erro manifesto é aquele que facilmente se deteta e evidencia por si próprio e no contexto em que a declaração é exarada, à semelhança do que sucede com os erros de cálculo ou de escrita dos atos das partes (art. 146/1) (…) E evidencia-se não apenas para o juiz que proferiu na decisão, mas também para quem a lê”, e afirma-se assertivamente no Ac. também desta RG de 30/11/2022[15] que “isto transmite claramente a ideia de que, não obstante o erro, quem lê a decisão percebe claramente qual o seu sentido, de modo que as alterações introduzidas não podem por definição, assumir natureza inovatória”.
A rectificação de erros materiais, nos termos dos nºs. 2 e 3 do art. 614º, realiza-se através de simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz, sendo que, em caso de recurso, só poderá ter lugar antes do recurso subir (mas podendo as partes alegar perante o tribunal superior aquilo que entenderem sobre a rectificação), e que, se nenhuma das partes recorrer, poderá ter lugar a todo o tempo. Mas se a questão da rectificação apenas for colocada perante o tribunal superior (ou seja, depois da subida do recurso), apenas a este cabe a decisão[16].
Interpretando o nº2 do art. 614º, afirma-se no Ac. da RP de 19/12/2023[17] que, embora a sua redacção “não prime pela clareza, parece que a retificação da sentença, em caso de recurso, pode ter lugar antes de ele subir, mas nada obsta a que, nessa eventualidade, a retificação possa ser decidida no tribunal ad quem, pois que as partes podem alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à retificação”, mas assinala-se que “esta alegação das partes quanto ao seu direito à retificação da sentença não é o meio processual próprio de impugnação de uma decisão judicial de retificação que haja sido entretanto proferida”.
E no Ac. da RE de 30/06/2022[18] afirma-se que “Não existe dúvida que o n.º 2 do artigo 614.º do Código de Processo Civil apenas admite a retificação no tribunal a quo, havendo recurso, até ao momento em que o recurso subir, podendo, porém, as partes alegar perante o tribunal superior o que entenderem relativamente à retificação”.
Portanto, em face do disposto no nº2 do art. 614º, havendo recurso, o Tribunal de 1ª Instância apenas pode corrigir/rectificar os erros materiais da sentença, seja a requerimento, seja oficiosamente, até ao momento da subida do recurso[19], sendo que, a partir desse momento, competirá ao Tribunal da Relação, e enquanto o recurso se mantiver em curso, o poder de determinar (ou não) a rectificação, seja a requerimento, seja oficiosamente.
Frise-se que bem se compreende que, havendo recurso, o legislador tenha concedido às partes a faculdade de alegarem perante o tribunal superior o que entenderem de seu direito no que concerne à pretendida rectificação já que a formulação de uma pretensão no sentido de suprimento de erro material da sentença não tem qualquer reflexo/efeito (nomeadamente, suspensivo) sobre o decurso do prazo de interposição de recurso da mesma e já que, como vimos, o tribunal recorrido apenas pode ordenar a rectificação até ao momento da subida do recurso[20].
Caso o pedido de rectificação seja negado, não há lugar a recurso desta decisão de indeferimento, por aplicação analógica do disposto no art. 617º/1, parte final, e 6, 1ª parte, mas sem prejuízo do poder que o tribunal superior tem, no recurso interposto da sentença, de a interpretar[21].
Caso o pedido de rectificação seja acolhido, a correcção resultante do mesmo considera-se complemento e parte integrante da sentença (por aplicação analógica do disposto no nº2 do art. 617º), sendo que cabe recurso de apelação desta decisão de deferimento da rectificação, em face do disposto no art. 644º/2g) do C.P.Civil de 2013[22].
No caso em apreço, prolatada a sentença recorrida, antes da interposição de qualquer dos recursos, o Requerente/Recorrente, através de requerimento, ao abrigo do «art. 614º do C.P.C», veio requerer a rectificação da mesma por forma a que, no respectivo decisório, fosse consignado que «o valor fixado a titulo de compensação ao requerente é mensal» e que «montante retroage à data da apresentação em juízo do incidente». O Tribunal a quo não apreciou esta pretensão de rectificação da sentença até ao momento da subida do recurso (em 20/06/2024).
No recurso, o Requerente/Recorrente invoca que «à data da apresentação do presente recurso o Tribunal a quo ainda não se havia pronunciado sobre o pedido de retificação da sentença por parte do ora recorrente/Apelante», que «se pronuncia agora, nos termos do n.º 2 do artigo 614 do C.P.C.», e que «deverá o Tribunal “a quem” pronunciar-se sobre o pedido de retificação da sentença» (cfr. conclusões 5ª e 6ª), e mais alegou os fundamentos que, na sua perspectiva, justificam a rectificação (cfr. conclusões 7ª e 12ª).
Neste “quadro”, porque não o fez até ao momento processual legalmente fixado para o efeito, em razão da aplicação do disposto no nº2 do art. 614º, o Tribunal a quo deixou de ter competência legal para apreciar o pedido de rectificação da sentença, competência que passou ser exclusivamente do Tribunal da Relação: em rigor, a partir do momento da subida do recurso, o poder jurisdicional do Juiz de 1ª Instância também fica esgotado (precludido) quanto à rectificação de erros materiais.
Sucede que, tendo este Tribunal ad quem ordenado a baixa dos autos à 1ª Instância para «identificação de qual o recurso admitido, prolação de despacho de admissibilidade relativamente ao outro recurso, e cumprimento do art. 617º/1» (cfr. despacho de 24/06/2024), extravasando o âmbito do ordenado, através de despacho que proferiu em 02/07/2024, para além do mais, o Tribunal a quo apreciou o requerimento de rectificação («indeferindo-se a retificação pretendida por entender que prolatada a decisão fica esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto á matéria da causa -art.º 613.º do CPC»).
Como não havia sido dado cumprimento integral ao despacho de 24/06/2024 (omissão de apreciação concreta da arguida nulidade da sentença), este Tribunal ad quem determinou, de novo, a baixa dos autos à 1ª Instância (cfr. despacho de 11/09/2024), sendo que, extravasando igualmente o âmbito do ordenado, o Tribunal a quo, através dodespacho que proferiu em 28/10/2024, para além do mais, voltou a pronunciar-se sobre o requerimento de rectificação, mantendo o que havia decidido no despacho de 02/07/2024 [“No despacho de fls. 202 o Tribunal pronunciou-se (…) quanto à retificação da sentença nos termos requeridos por via do requerimento Assim, quanto à retificação requerida mantemos a posição de que se encontra esgotado o poder jurisdicional do juiz no que concerne à matéria da causa”].
Estes dois despachos (de 02/07/2024 e de 28/10/2024), nos segmentos que correspondem à apreciação do requerimento de rectificação, desrespeitam o comando ínsito no nº2 do art. 614º (com a subida do recurso, o Tribunal a quo deixou de ter poder jurisdicional para apreciar tal pretensão, acrescendo que a descida dos autos ordenada por este Tribunal ad quem não foi para que realizasse essa apreciação, mas sim para fins distintos), o que conduz necessariamente a que estejam afectados de vício processual, o qual se nos afigura dever ser qualificado como ineficácia jurídica: a lei processual não permite que o Juiz de 1ª Instância conheça de erros materiais da sentença após a subida do recurso, pelo que a prolação desses dois despachos num momento processual em que a respectiva competência legal está exclusivamente reservada ao Tribunal da Relação representa a prática de um acto processual que é inidóneo para produzir os respectivos efeitos jurídicos (efectiva e válida apreciação da verificação ou não de erro material na decisão objecto de recurso), tudo se passando como se não tivessem sido produzidos e, por isso, têm que ser considerados como ineficazes.
Deste modo, incumbe a este Tribunal ad quem apreciar o requerimento de rectificação da sentença apresentado pelo Requerente/Recorrente.
Pretende este que sejam aditados ao decisório os segmentos «mensal» e «retroage à data da instauração do incidente», defendendo essencialmente: no requerimento de 15/01/2024, que «certamente por lapso, na referida decisão (não obstante ficar subentendido) não foi referido que o valor fixado a titulo de compensação ao requerente é mensal» e «não consta da decisão a data a partir da qual retroage o valor fixado a titulo de compensação, que nos termos legais, retroage sempre à data da apresentação em juízo do incidente, mas que, por mera cautela, o requerente fez questão de o requerer através da ampliação do pedido, em 29/09/2022, data da inquirição de testemunhas»; e no recurso que «se o valor fixado a titulo de compensação só produzisse efeitos a partir da sentença e não da apresentação em juízo do pedido de fixação da compensação, estaríamos perante uma decisão manifestamente injusta porquanto dependente da celeridade da sentença, e estar-se-ia a premiar a parte que ficou com o uso e fruição da casa de morada de família durante vários anos, fruto de uma decisão tardia, passando a requerida a beneficiar de um “bónus de utilização” pelo período, até ao momento, de 32 meses, prejudicando naturalmente o beneficiário da compensação», «o recorrente/apelante não pode ser penalizado pela decisão tardia do julgador» e «o incidente perderia o seu efeito útil se a compensação só operasse juridicamente após o trânsito em julgado da decisão, pois em muitos casos a partilha dos bens comuns é concluída ainda na pendência do incidente de atribuição da casa de morada de família».
Analisando o teor da fundamentação expressa quer no requerimento de rectificação quer no recurso, constata-se que é insusceptível de traduzir a existência de um erro material: o Requerente/Recorrente não indica, em concreto, qual é a expressão da vontade do Juiz de 1ª Instância inserta da decisão da qual resulta uma notória divergência entre esse vontade e aquilo que tinha em mente, seja quanto ao carácter mensal da compensação seja quanto a ser devida desde a data da instauração do incidente (ainda que no requerimento de rectificação se aluda a «lapso», em referência ao carácter mensal, certo é que não se identifica um único elemento que permita aferir que tal omissão decorre de um engano manifesto). Ou seja: em nenhuma das fundamentações se materializa qual é o segmento (texto) da sentença que ateste que o Juiz 1ª Instância procedeu à apreciação da periocidade de pagamento da compensação e/ou do momento a partir do qual era devida, e que concluiu no sentido de «ser mensal» e/ou de «ser desde a instauração do incidente», sendo que, perante tal texto, se torna evidente que apenas, por mero lapso (esquecimento), tal conclusão não foi expressa no respectivo decisório.
Acresce que, considerando quer o próprio contexto da sentença, quer as circunstâncias que rodearam a sua prolação, é inequívoco que não se verificam os invocados erros materiais.
Por um lado, em estrita consonância com o pedido concretamente formulado pelo Requerente/Recorrente na petição incidental, no relatório da sentença, está expressamente consignado que a pretensão formulada consistiu em «ser atribuída a casa de morada de família ao requerente até à partilha bens comuns do casal, e, subsidiariamente, caso se mantenha a atribuição do imóvel de modo exclusivo à requerida, deverá ser fixada equitativamente uma compensação/renda a atribuir ao requerente, que lhe permita obter condições económicas para arrendar habitação condigna até à partilha dos bens comuns do casal». Inexistiu, portanto, qualquer mínima referência ao vencimento mensal da compensação ou a ser devida desde a instauração do incidente, sendo que a falta de alusão a estas duas matérias advém da própria petição incidental.
Por outro lado, o segmento da sentença recorrida que contém toda a fundamentação de direito relativamente à apreciação da questão de ser devida uma compensação e qual o respecivo montante, não integra qualquer referência à sua periocidade e/ou ao momento a partir da qual é devida. Efectivamente, tal segmento reconduz-se a: “No que tange à fixação duma Compensação Monetária Atenta o supra decidido visto que o direito de atribuição provisória da casa de morada de família foi concedido à requerida, decide-se pela fixação de uma compensação patrimonial ao cônjuge privado do seu uso até à partilha. Atendendo à avaliação das circunstâncias pessoais e patrimoniais de cada um dos cônjuges de acordo com razões de equidade e justiça, decido fixar tal compensação em €350,00, tendo em conta que a avaliação do valor locativo do imóvel foi apreciada considerando a totalidade deste, sendo certo que a requerida se encontra apenas a usufruir de uma parte do mesmo, residindo o agregado familiar do filho num dos pisos”.
Nestes termos, jamais se pode concluir, através da mera leitura do texto da sentença (designadamente da parte ora transcrita), que o Juiz de 1ª Instância teve em mente o carácter mensal da compensação e/ou o momento a partir da qual era devida e que, em razão disso, a omissão de qualquer referência a ambas matérias no decisório se deveu a notório e manifesto lapso.
E sempre importa assinalar que as alegações no sentido de que «o valor fixado a titulo de compensação, nos termos legais, retroage sempre à data da apresentação em juízo do incidente» e de que «a decisão seria injusta e perderia o efeito útil se tal valor só fosse devido desde a data da sentença» podem, eventualmente, consubstanciar um erro de julgamento, mas não constituem qualquer erro material.
Uma última nota cumpre fazer: no âmbito do despacho que prolatou em 28/10/2024, para além do já referido quanto ao pedido de rectificação e de ter apreciado a nulidade arguida, o Tribunal a quo pronunciou-se nestes termos: «No entanto decide-se aclarar o segmento decisório da sentença, no sentido de que que a prestação fixada, como decorre do teor da sentença e foi compreendido pelas partes, como se surpreende das alegações de recuso apresentadas, reporta-se a uma quantia mensal». A actual lei processual civil, por opção legislativa, afastou o instituto da aclaração da sentença que se encontrava previsto no art. 669º/1a) do anterior C.P.Civil [“o atual código, porém, não seguiu esta orientação: por um lado eliminou os pedidos de aclaração da sentença; por outro lado, passou a considerar causa de nulidade da sentença a ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (art.º 615-1-c), o que significa, além da introdução deste novo requisito da ininteligibilidade, que a ambiguidade ou obscuridade da respetiva fundamentação, não só não constitui objeto de aclaração, mas também não pode ser arguida nos termos do art. 615.º”[23]]. Não consagrando o actual art. 616º do C.P.Civil de 2013 (nem qualquer outro normativo deste diploma) a possibilidade legal de o Tribunal a quo fazer (aditar) esclarecimentos à sentença final, afigura-se-nos que este segmento deste despacho não pode ser considerado como constituindo «complemento e parte integrante da sentença» (já não está em vigor o nº1 do art. 670º do anterior C.P.Civil que assim o determinava para o caso de haver aclaração, o nº2 do art. 617º do C.P.Civil de 2013 só o prevê para os casos de supressão de nulidade da sentença ou de reforma desta).
Por conseguinte e sem necessidade de outras considerações, a resposta à presente questão, que no âmbito do recurso incumbe a este Tribunal ad quem apreciar, é necessariamente no sentido de que sentença recorrida não padece dos invocados erros materiais e, por via disso, esta questão (rectificação da sentença) tem que improceder.
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4.2. Da Nulidade da Sentença
As nulidades da decisão (sentença ou despacho) constituem vícios intrínsecos da própria, deficiências da respectiva estrutura, o que não é confundível com o erro de julgamento, ou sequer com um alegado erro na forma de processo.
Explica-se no Ac. desta RG de 17/12/2018[24] que “Os vícios determinativos de nulidade da sentença encontram-se taxativamente enunciados no referido art. 615º, do CPC”,reportando-se à estrutura ou aos limites da sentença, representando defeitos de actividade ou de construção da própria sentença, isto é, constituem “vícios formais da sentença ou relativos à extensão do poder jurisdicional por referência ao caso submetido ao tribunal”: as causas de nulidade enunciadas nas alíneas b) [falta de fundamentação] e c) [oposição entre os fundamentos e a decisão] referem-se a vícios da estrutura da sentença; e as causas de nulidade enunciadas nas alíneas d) [omissão ou excesso de pronúncia] e e) [pronúncia ultra petitum] referem-se a vícios atinentes aos limites da sentença. Estes vícios “afetam formalmente a sentença e provocam a dúvida sobre a sua autenticidade, como é o caso da falta de assinatura do juiz, ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que se decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduzir logicamente a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de pretender resolver questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia) ou não tratar de questões que deveria conhecer (omissão de pronúncia)”. Distintos destes vícios “são os erros de julgamento (error in iudicando), os quais contendem com erros ocorridos ao nível do julgamento da matéria de facto ou ao nível da decisão de mérito proferida na sentença/decisão recorrida, decorrentes de uma distorção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error iuris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa”: estes erros correspondem a “uma deficiente análise crítica das provas produzidas” ou a “uma deficiente enunciação e/ou interpretação dos institutos jurídicos aplicados ao caso concreto”, e reportam-se ao mérito da relação material controvertida nela apreciada, não inquinando a sentença de invalidade, mas sim error in iudicando, sendo atacáveis por via de recurso.
Portanto, impõe-se distinguir as nulidades da decisão do erro de julgamento (seja de facto, seja de direito), sendo que aquelas reconduzem-se a vícios formais que emergem de um erro de actividade ou de procedimento (error in procedendo) respeitante à disciplina legal (“trata-se de vícios de formação ou actividade (referentes à inteligibilidade, à estrutura ou aos limites da decisão) que afectam a regularidade do silogismo judiciário, da peça processual que é a decisão e que se mostram obstativos de qualquer pronunciamento de mérito”), enquanto este ( error in judicando) emerge de uma distorção da realidade factual (error facti) ou na aplicação do direito (error juris) que conduz a que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa(“traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei, consiste num desvio à realidade factual - nada tendo a ver com o apuramento ou fixação da mesma - ou jurídica, por ignorância ou falsa representação da mesma”)[25].
Prescreve o art. 615º do C.P.Civil de 2013 (no que releva para o caso em apreço):“1 - É nula a sentença quando: (…) d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (…)”.
Atento o disposto no nº4 deste mesmo preceito (“As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades”), dúvidas não existem que, cabendo recurso da sentença ora impugnada, tais nulidades devem e têm que ser invocadas em sede de recurso. A causa de nulidade prevista na 1ª parte da alínea d) alicerça a sua razão de ser no incumprimento do disposto no art. 608º/2 do C.P.Civil de 2013, que estatui: “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras (…)”.
Sobre a interpretação desta causa de nulidade, na vertente «omissão de pronúncia» continuam a relevar os ensinamentos de Alberto dos Reis[26]: “(…) são, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão…” (o sublinhado é nosso).
Na mesma linha de entendimento, Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[27] explicam que, “(…) devendo o juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (608-2), o não conhecimento de pedido, causa de pedir ou excepção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado (…)”.
Prosseguindo o mesmo entendimento, Ferreira de Almeida[28] realça que as «questões» são todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas, integrando “esta causa de nulidade a omissão do conhecimento (total ou parcial) do pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão (não a fundamentação jurídica adrede invocada por qualquer das partes). Não confundir, porém, questões com razões, argumentos ou motivos invocados pelas partes para sustentarem e fazerem vigar as suas posições (jurídico processuais); só a omissão da abordagem de uma qualquer questão temática central integra vício invalidante da sentença, que não a falta de consideração de qualquer elemento de retórica argumentativa produzida pelas partes”.
Igualmente a Jurisprudência se tem pronunciado neste sentido.
Decidiu-se no Ac. do STJ de 03/10/2017[29] que “A nulidade consistente na omissão de pronúncia ou no desrespeito pelo objecto do recurso, em directa conexão com os comandos ínsitos nos arts. 608.º e 609.º do CPC, só se verifica quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões ou pretensões que devesse apreciar e cuja apreciação lhe foi colocada” e que “A expressão «questões» prende-se com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir e não se confunde com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia”.
E explica-se no Ac. do STJ de 03/11/2020[30] que “Apenas existe omissão de pronúncia quando o Tribunal deixe de apreciar questões submetidas pelas partes à sua apreciação, mas já não quando deixe de apreciar os argumentos invocados a favor da posição por si sustentada, não sendo de confundir o conceito de «questões» com o de «argumentos» ou «razões». Constitui igualmente entendimento pacífico, tanto na doutrina como na jurisprudência, que a noção de «questões» em torno das quais gravita a referida infração processual se reporta aos fundamentos convocados pelas partes na enunciação da causa de pedir e/ou nas exceções e, também, aos pedidos formulados”.
Há que ter em consideração que, para apreciar e determinar se existe omissão de pronúncia, a sentença tem que ser interpretada na sua totalidade, articulando a fundamentação e a decisão[31].
No recurso, o Requerente/Recorrente arguiu a nulidade da sentença recorrida por omissão de pronúncia (cfr. conclusões 13ª a 16ª), alegando essencialmente que: «na data da inquirição das testemunhas, realizada no dia em 29/09/2022, veio nos termos do art.º 265.º, nº 1, do CPC, ampliar o pedido subsidiário, no sentido de se retroagir o valor da eventual compensação a atribuir ao requerente à data da apresentação em juízo do incidente, caso o titular decida atribuir a casa de morada de família à requerida; a Juiz não se pronunciou na sentença sobre a ampliação do pedido; ao não conhecer de tal matéria omitiu pronúncia sobre questões de que devia ter apreciado».
Assiste-lhe razão.
Na data de 29/09/2022, no âmbito da diligência de inquirição das testemunhas o Requerente formulou a pretensão de ampliação do seu pedido subsidiário de fixação e atribuição de uma compensação (e que consistiu “nos termos do art.º 265.º, nº 1, do CPC, ampliar o pedido subsidiário, no sentido de se retroagir o valor da eventual compensação a atribuir ao requerente à data da apresentação em juízo do incidente, caso o titular decida atribuir a casa de morada de família à requerida”).
Ora, desde esse momento até à sentença, o Tribunal a quo não proferiu qualquer despacho de apreciação da pretensão de ampliação do pedido subsidiário, sendo que a sua simples leitura permite constatar que também não fez tal apreciação na sentença recorrida, quando estava efectivamente obrigado a conhecer desta «pretensão ampliatória» não só porque foi concretamente submetida à sua apreciação, mas também porque o conhecimento do pedido subsidiário não ficou prejudicado (muito antes pelo contrário, já que tendo sido a casa de morada de família atribuída à Requerida, o Tribunal a quo teve necessariamente que decidir sobre se havia lugar à atribuição ao Requerente de uma compensação monetária e concluiu em sentido afirmativo).
Nestas circunstâncias, atento o disposto na 1ª parte da alínea d) do nº1 do art. 615º, a sentença recorrida padece de nulidade por omissão de pronúncia quanto à pretensão de ampliação do seu pedido subsidiário.
Sucede que, tendo sido omitida a apreciação desta arguida nulidade no despacho em que admitiu o recurso, e tendo este Tribunal ad quem determinado a baixa dos autos à 1ªInstância com a vista a ser cumprido o disposto no art. 617º/1 do C.P.Civil de 2013 (por duas vezes), através do despacho que proferiu em 26/10/2024 (e para além do mais), o Tribunal a quo conheceu a nulidade arguida, sendo que, embora não o tenha declarado expressamente, é inquestionável que reconheceu a verificação da nulidade por omissão de pronúncia uma vez que veio a apreciar concretamente a pretensão de ampliação do pedido subsidiário e a decidir pela sua inadmissibilidade (“Pelo exposto, indeferindo-se a ampliação peticionada, mantenho na íntegra o teor da decisão proferida”).
Deste modo, entendemos que a supra identificada nulidade por omissão de pronúncia foi suprida pelo Tribunal a quo, sendo que, nos termos do nº2 do art. 617º, o aludido despacho datado de 26/10/2024, na parte, em que corresponde ao suprimento da nulidade e conhecimento da pretensão em causa (ampliação do pedido subsidiário), passa a constituir complemento e parte integrante da sentença recorrida, ficando o recurso interposto pelo Requerente/Recorrente a ter como objeto a nova decisão (composta pela sentença e pelo despacho de indeferimento da ampliação).
Embora na sequência do suprimento da nulidade (e indeferimento da ampliação) o Requerente/Recorrente nada tenha vindo dizer nos termos do nº3 do art. 617º (“No caso previsto no número anterior, pode o recorrente, no prazo de 10 dias, desistir do recurso interposto, alargar ou restringir o respetivo âmbito, em conformidade com a alteração sofrida pela sentença, podendo o recorrido responder a tal alteração, no mesmo prazo”), tem que se ter presente que, logo em sede de alegações, com respaldo nas conclusões, e com a invocação da fundamentação distinta da que sustenta a arguição da nulidade, o Requerente/Recorrente defende e pede, de forma expressa, que, para além da alteração para mais do valor fixado, a compensação deve «retroagir à data da apresentação a juízo do incidente» (cfr. conclusão 37ª).
Uma vez que deve prevalecer a substância sobre a forma, entendemos que o Requerente/Recorrente, desde logo e ainda que por via implícita, alargou o âmbito do recurso nos termos do nº3 do art. 617º para, havendo suprimento da nulidade, não lhe ser reconhecido o direito à ampliação do pedido subsidiário e, na sequência, o direito à compensação desde a data da instauração do incidente.
Deste modo, no âmbito da questão seguinte, este Tribunal ad quem apreciará do mérito da inadmissibilidade da ampliação do pedido subsidiário e, caso conclua no sentido da admissibilidade, do mérito da pretensão do Requerente/Recorrente quanto ao momento desde o qual é devida a compensação.
Por conseguinte e sem necessidade de outras considerações, a resposta à presente questão, que no âmbito do recurso incumbe a este Tribunal ad quem apreciar, é necessariamente no sentido de que a sentença recorrida padecia da invocada nulidade por omissão de pronúncia prevista na 1ª parte da alínea d) do art. 615º, mas tal vício foi sanado pelo Tribunal a quo nos termos dos nºs. 1, 2 e 5 do art. 617º.
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4.3. Do Valor Compensação pela Atribuição da Casa de Morada da Família, Da Periocidade e Desde que Momento é Devida
No que concerne à distinção entre o processo de jurisdição voluntária relativo à providência de atribuição da casa de morada de família previsto no art. 990º do C.P.Civil de 2013 e o incidente que visa regular a utilização da casa de morada de família durante a pendência do processo de divórcio que se encontra previsto nos nºs. 2 e 7 do art. 931º do mesmo diploma legal, remete-se para as considerações insertas no acórdão proferido no âmbito destes autos na data de 17/02/2022[32] (o qual, aliás, será seguido noutros pontos).
Neste caso, estamos perante o referido procedimento incidental uma vez que foi ao abrigo do normativo previsto no art. 931º/7 e no âmbito da acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, que o Requerente/Recorrente requereu, por apenso àquela acção, a fixação de um regime provisório quanto à atribuição da casa de morada de família até à partilha.
No nº7 do referido art. 931º prevê-se a possibilidade de adopção, a requerimento das partes ou por iniciativa do próprio Tribunal, de uma medida que é meramente provisória e cautelar quanto à utilização da casa de morada de família na pendência do processo de separação ou divórcio, não tendo o legislador consignado aqui qualquer referência ao disposto nos arts. 1793º ou 1105º do C.Civil, ou seja, não se alude a qualquer contrato de arrendamento, o que tem como razão de ser precisamente o carácter urgente e muito provisório da medida decretada, ao contrário do que sucede no procedimento previsto no referido art. 990º, em que a casa de morada de família é atribuída a título definitivo (embora sujeita à possibilidade de alteração nos termos previstos no art. 988º do C.P.Civil de 2013).
Sobre a natureza deste procedimento, explica-se no Ac. do STJ de 26/04/2012[33] que, “como reiteradamente o Supremo Tribunal de Justiça tem sublinhado e decidido, a fixação judicial da regulação provisória da utilização da casa de morada da família é caracterizável como um procedimento especialíssimo ou incidente do processo de divórcio, distinto do processo de jurisdição voluntária de atribuição da casa de morada da família, configurando o primeiro uma antecipação dos efeitos da composição definitiva do litígio que se alcançará no último. Além disso, apesar de não ser expressamente qualificado como tal, o primeiro tem vindo a ser considerado um procedimento cautelar específico do processo judicial de divórcio, encerrando, assim, as características basilares da tutela cautelar em que avulta a provisoriedade e a instrumentalidade da regulação judicialmente estabelecida”.
Em razão do nº7 do art. 931º não estabelecer qualquer critério para o Tribunal atribuir provisoriamente a casa de morada de família suscita-se uma dificuldade na determinação do critério geral para definir o cônjuge ao qual deve ser atribuído o direito a habitar a casa de morada de família.
Quer a doutrina, quer a jurisprudência têm vindo a definir qual deve ser esse critério geral, sendo que também quanto a esta matéria se remete para os vários ensinamentos doutrinais e jurisprudenciais elencados no já referido acórdão proferido no âmbito destes autos na data de 17/02/2022, sendo que, nesse “quadro” doutrinário e jurisprudencial, afigura-se-nos que, no âmbito do incidente de atribuição provisória da casa de morada de família previsto no nº7 do art. 931º do C.P.Civil de 2013, deve ser sufragado o seguinte entendimento: o Tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, mas sim a critérios de conveniência e oportunidade, mas deve considerar os critérios orientadores que estão fixados para o regime definitivo no art. 1793º do C.Civil, sendo a necessidade/premência da casa o factor principal a atender (revelando aqui a situação patrimonial de cada um dos cônjuges), acompanhado do factor relativo ao interesse dos filhos (revelando aqui o interesse destes em viverem na casa que foi a morada de família), mas também pode e deve considerar outras razões atendíveis (o referido art. 1973º utiliza a expressão «considerando, nomeadamente), que devem ser ponderadas casuisticamente, como é o caso da idade, do estado de saúde dos cônjuges, da localização da casa relativamente ao local de trabalho da cada um, da circunstância de algum deles ter outra casa em que pode estabelecer a sua residência, etc.
Mas a fixação provisória do direito à casa de morada de família, e a sua concreta atribuição a um dos cônjuges, faz emergir outra dificuldade consistente na questão de saber se tal medida “cautelar” pode também integrar a fixação de uma compensação monetária ao cônjuge a quem não é atribuída a casa.
No Ac. desta RG de 18/01/2018[34] (ainda que o caso apreciado tivesse outra configuração), faz-se uma resenha pormenorizada sobre os vários entendimentos que se foram formando na jurisprudência sobre a atribuição ou não daquela compensação monetária, pelo que se remete para tal aresto quanto ao efectivo conteúdo desses entendimentos.
Porém, e como também se refere nesse aresto, afigura-se-nos que o Ac. do STJ de 13/10/2016[35] veio solucionar tal questão, plasmando o seguinte entendimento: “I. A medida provisória e cautelar de atribuição da casa de morada de família pode ou não comportar, em função de uma valoração judicial concreta das circunstâncias dos cônjuges e atentas as exigências de equidade e de justiça, a fixação de uma compensação pecuniária ao cônjuge privado do uso daquele bem, pressupondo esta atribuição a título oneroso, quando decretada, uma aplicação analógica do regime que está previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família. II. Na verdade, ao limitar-se a prescrever a possibilidade de o juiz proferir decisão provisória acerca da utilização da casa de morada de família na pendência do processo, a norma do nº7 do art. 931º do CPC é suficientemente ampla, indeterminada e flexível para consentir, em função de uma valoração prudencial das circunstâncias pessoais e patrimoniais dos cônjuges, quer numa atribuição do bem imóvel a título gratuito, quer numa atribuição a título oneroso, fundada em razões de equidade e justiça, estabelecida por analogia com o regime que está legalmente previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família. III. Deste modo, dependendo constitutivamente esse direito a uma compensação pelo uso exclusivo da casa de morada pelo outro cônjuge de uma ponderação judicial, casuística e equitativa, ele só existe se o juiz o tiver efectivamente atribuído na decisão oportunamente proferida sobre tal matéria, não podendo ser inovatoriamente reconhecido através da propositura de acção ulterior” (os sublinhados são nossos)[36].
No Ac. do STJ de 31/03/2022[37] prossegue-se a mesma linha de entendimento, acentuando que para a fixação de compensação a favor do cônjuge não beneficiado com a atribuição da casa de morada de família deve verificar-se, de facto, “uma verdadeira situação de necessidade da habitação para ambos os ex-cônjuges”.
Registe-se que, embora o legislador tenha optado por não definir o conceito, certo é que a equidade é a justiça do caso concreto e, julgar segundo equidade, é procurar a justiça do caso concreto limitada sempre pelos imperativos da justiça real (a justiça ajustada às circunstâncias), em oposição à justiça meramente formal[38]. Julgar segundo a equidade consiste em obter a solução mais equilibrada no contexto da factualidade apurada no caso concreto, mas dentro de limites determináveis, sob pena de, em caso contrário, se cair no puro e simples arbítrio. Como se explica no Ac. do STJ de 10/07/97[39], “Julgar segundo a equidade implica, de acordo com a especificidade do caso concreto, suprir a parcial falta de factos com princípios gerais de justiça e os ditames da consciência do julgador, sem que se chegue a um livre arbítrio”.
Deste modo, entendemos que, no âmbito do incidente de atribuição provisória da casa de morada de família previsto no nº7 do art. 931º do C.P.Civil de 2013, é legalmente admissível a fixação de uma compensação monetária ao cônjuge privado do seu uso até à partilha, sendo que tal fixação depende da avaliação das circunstâncias pessoais e patrimoniais de cada um dos cônjuges e terá que ser fundada em razões de equidade e justiça.
Revertendo ao caso em apreço, verifica-se que, na sentença recorrida, o Tribunal a quo decidiu, num primeiro plano, atribuir “o uso e fruição da casa de morada de família” à Requerida e, num segundo plano, fixar “a título de compensação monetária, a favor do requerente, o montante de €350,00”.
Atentas as conclusões formuladas quer no recurso da Requerida/Recorrente, quer no recurso do Requerente/Recorrente, conclui-se que as partes não a impugnam (não a colocam em causa) no que concerne ao segmento decisório que atribuiu a casa de morada de família à Requerida, pelo que, nesta parte, a sentença encontra-se transitada em julgado.
Em ambos os recursos, a impugnação visa (apenas) o segmento decisório que fixou a favor do Requerente uma compensação monetária no valor de € 350,00.
O Tribunal a quo fundou tal atribuição, e respectivo valor, na «avaliação das circunstâncias pessoais e patrimoniais de cada um dos cônjuges de acordo com razões de equidade e justiça» e em que «a avaliação do valor locativo do imóvel foi apreciada considerando a totalidade deste, sendo certo que a requerida se encontra apenas a usufruir de uma parte do mesmo, residindo o agregado familiar do filho num dos pisos».
No seu recurso, a Requerida/Recorrente defende que não devia ter sido fixada tal compensação ou que, sendo fixada, deve o seu valor ser reduzido, alegando, no essencial, que: «o recorrido encontra-se afastado de casa em virtude de decisão judicial proferida no âmbito de um processo crime de violência doméstica relativamente à recorrente, no qual foi condenado numa pena de dois anos e três meses de prisão suspensa na sua execução por igual período, e sujeito a medida de coação de afastamento da residência do casal, medida que perdura à data de hoje; encontra-se a residir com uma irmã, em local que dispõe de condições habitacionais, não estando em causa o seu direito a uma habitação condigna; a recorrente aufere mensalmente e de forma exclusiva um valor de 350,00€, sendo o seu agregado familiar distinto do agregado familiar do filho, como são distintas as suas economias domésticas; a fixação de uma compensação monetária a favor do recorrido, no montante de 350,00 € afeta gravemente o direito a uma existência condigna da recorrente constituindo decisão manifestamente injusta e desadequada às circunstâncias de vida não só da recorrente como do recorrido» (cfr. conclusões 2ª a 7ª).
No seu recurso, o Requerente/Recorrente defende que o valor da compensação deve ser alterado para € 500,00 mensais desde a data da apresentação em juízo do incidente, alegando, no essencial, que: «o valor de € 350,00 é manifestamente reduzido face às suas necessidades e condição económica e face aos rendimentos da requerida e do seu agregado familiar; não consegue arrendar nenhum imóvel com condições condignas de habitabilidade, no concelho ..., sua área de residência, por menos de € 500,00; o Tribunal desconsiderou, erradamente, na fixação da compensação o rendimento auferido pelo filho e nora, e que constitui o agregado familiar da requerida; a nora DD recusou-se sempre a informar o seu rendimento mensal, da mesma forma que se recusou a prestar qualquer informação quanto ao rendimento do seu marido, emigrado na ...; pelas declarações do IRS apresentados nos autos, facilmente se conclui que enquanto sócia-gerente de uma frutaria não aufere quantia inferior a € 1000,00 mensais e o seu marido EE, emigrante na ..., sendo operário da construção civil, auferirá cerca de € 6.000,00 euros mensais; na fixação da reduzida compensação, o Tribunal a quo não teve em consideração o desleal e incorrecto comportamento da nora; o agregado familiar da requerida tem um rendimento mensal de € 7.750,00» (cfr. conclusões 17ª a 37ª).
Vejamos.
Importa começar por avaliar as circunstâncias pessoais e patrimoniais de cada dos Recorrentes, avaliação que, necessariamente, só pode ter por base a factualidade que o Tribunal a quo considerou como provada (sendo que considerou inexistir factualidade não provada), já que, em nenhum dos recursos, foi deduzida impugnação da decisão de facto.
No que concerne à Requerida, está comprovado que: após ter participado criminalmente contra o Requerente, continuou a residir na casa que era de morada de família, constituída por dois pisos, rés-do-chão e primeiro andar, independentes e com entradas autónomas entre si, residindo a nora e filhos no primeiro andar; o agregado familiar da requerida e o do filho, nora e neto, apresentam economias familiares distintas, pese embora exista entreajuda entre ambos; a requerida exerce funções juntamente com a sua nora numa frutaria na ... com a gíria comercial “Frutaria ...”, estabelecimento que trespassou à nora; a requerida aufere mensalmente cerca de € 750,00; a requerida apresenta despesas correntes do dia-dia, designadamente água, luz, alguma alimentação; o filho do ex-casal encontra-se emigrado (cfr. factos provados nºs. 6, 7, 10 a 12, 15 e 16).
No que concerne ao Requerente, está demonstrado que: após a requerida ter participado criminalmente contra si e ter sido constituído arguido e sujeito à medida de coação de afastamento da residência do casal, foi residir para casa da sua irmã CC; o requerente aufere uma reforma mensal de cerca € 460,00, e contribui mensalmente para as despesas do seu atual agregado e despende em medicamentos, em média, mensalmente, cerca de € 50,00 (cfr. factos provados nºs. 5 e 9).
E relativamente a ambos, mais se constatou que: o requerente e a requerida não são proprietários de qualquer outra casa; e o valor locativo do imóvel, constituído por dois pisos independentes, onde reside a requerida, foi fixado em € 716,00 (cfr. factos provados nºs. 8 e 17).
Neste “quadro factual”, afigura-se-nos que, não dispondo de qualquer outra casa (da sua propriedade) para além da que corresponde à casa de morada de família, se verifica uma concreta e real situação em que quer a Requerida quer o Requerente necessitam desta habitação, a qual foi atribuída àquela.
A circunstância do Requerente se encontrar a viver na casa da sua irmã desde a data da participação criminal, ao contrário do invocado pela Requerida/Recorrente no âmbito do seu recurso, não só não afasta a necessidade de habitação daquele, como, até pelo contrário, confirma e reforça tal necessidade uma vez que, em razão de não usufruir da casa de morada de família, tem que viver em casa de um familiar, numa situação de claro favor, podendo, natural e legitimamente, pretender ter um local próprio para a sua habitação exclusiva.
A Requerida/Recorrente invocou também que o Requerente «foi afastado da casa de morada de família em virtude de ter praticado crime de violência doméstica e ter sido (e continuar) sujeito à medida de coacção de afastamento da residência do casal», mas não se nos afigura que constitua matéria relevante para a decisão sobre se deve ou não ser fixada compensação a favor do Requerente (cônjuge a quem não foi atribuída provisoriamente a casa de morada de família). Com efeito, por um lado, aquela não concretizou em que termos tal circunstância pode configurar um fundamento legal impeditivo da fixação da compensação; e, por outro lado, como antedito, tal fixação depende do apuramento das condições pessoais e patrimoniais de cada um dos cônjuges, sendo que é perante tais concretas condições que devem operar as razões de equidade e justiça.
No que concerne às suas condições económicas, a Requerida/Recorrente alegou ainda que «aufere mensalmente e de forma exclusiva um valor de 350,00€ e que a fixação de uma compensação no montante de 350,00 € afeta gravemente o direito a uma existência condigna», mas não lhe assiste razão. Por um lado, a factualidade provada atesta que a Requerida aufere mensalmente cerca de € 750,00, e não apenas o valor de € 350,00, sendo que aquele valor era superior ao valor do salário mínimo nacional no ano de 2021 (€ 665,00), data em que foi deduzido o presente incidente. Por outro lado, como é consabido e de acordo com a Jurisprudência Constitucional[40] (“o salário mínimo nacional contém em si a ideia de que é a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador” e foi “concebido como o «mínimo dos mínimos»”), o legislador ao estabelecer o regime do salário mínimo nacional teve presente a intenção de garantir a remuneração básica estritamente indispensável para satisfazer as necessidades impostas pela sobrevivência digna do trabalhador. Assim, uma vez que à data da dedução do presente incidente, a Requerida auferia um rendimento mensal superior ao do salário mínimo nacional, a fixação de uma compensação monetário a pagar ao Requerente em razão de lhe ter sido atribuído o uso e fruição da casa de morada não afecta a sobrevivência digna da Requerida, até porque a despesa com a habitação (renda ou mesmo pagamento de empréstimo para a aquisição) constitui precisamente uma das necessidades básicas dessa sobrevivência. Portanto, considerando o efectivo rendimento mensal da Requerida, o mesmo não é, por si só, fundamento bastante para impedir a fixação da compensação (isto independentemente do valor de € 350,00, poder vir a ser, ou não considerado excessivo, o que adiante se analisará).
Ainda no que concerne às condições económicas da Requerida/Recorrente, o Requerente/Recorrente alegou que «foi desconsiderada, erradamente, na fixação da compensação o rendimento auferido pelo filho e nora, e que constitui o agregado familiar da requerida», que «a nora é sócia-gerente de uma frutaria não aufere quantia inferior a € 1000,00 mensais e o seu marido EE, emigrante na ..., sendo operário da construção civil, auferirá cerca de € 6.000,00 euros mensais, pelo que o agregado familiar da requerida tem um rendimento mensal de € 7.750,00». Não se pode lhe reconhecer qualquer razão, uma vez que tais alegações são totalmente contrariadas pela factualidade provada (relembrando-se que a decisão de facto não foi impugnada pelo Requerente/Recorrente). Com efeito, ficou probatoriamente demonstrado que o agregado familiar da Requerida e o agregado familiar do filho, nora e neto, apresentam economias familiares distintas, pese embora exista entreajuda entre ambos, sendo que até têm residências autónomas (aquela vive no rés-do-chão da moradia e estes no 1º andar). Deste modo, porque representam agregados familiares habitacional e economicamente independentes, o rendimento do agregado familiar da Requerida é constituído apenas e tão só pelo valor do seu salário mensal (€ 750,00), sendo irrelevantes (porque não integram o agregado da Requerida) os rendimentos auferidos pelo filho e nora (e, por isso, também não tem qualquer relevância a matéria invocada pelo Requerente/Recorrente no sentido de um alegado «desleal e incorrecto comportamento da nora» relativamente à prestação de informações sobre os seus rendimentos e do seu marido). Logo, inexiste qualquer erro de julgamento do Tribunal a quo por não ter considerado rendimentos de pessoas que, na realidade, não integram o agregado familiar da Requerida.
Já no que concerne às suas próprias condições económicas, o Requerente/Recorrente invocou que «não consegue arrendar nenhum imóvel com condições condignas de habitabilidade, no concelho ..., sua área de residência, por menos de € 500,00». Configura a alegação de um facto totalmente novo e que, por isso, não foi sequer objecto de discussão e prova na 1ª Instância (não integra a decisão de facto), pelo que não pode sequer ser tomado em consideração por este Tribunal ad quem para a resolução da questão em apreço.
Analisados os fundamentos essenciais e relevantes expostos em ambos os recursos, importa fazer as seguintes considerações.
Relativamente à Requerida/Recorrente não ficaram provadas quaisquer despesas relevantes, pelo que, para além do valor que tenha que despender com a compensação, terá naturalmente que suportar as normais despesas básicas de alimentação, electricidade, gás, água, vestuário e transporte. Logo, se o valor da compensação for € 350,00, do rendimento mensal que aufere (€ 750,00), remanesce-lhe o valor de € 400,00 para fazer face às referidas despesas.
Relativamente ao Requerente/Recorrente, verifica-se que aufere um rendimento mensal € 460,00 (reforma), e que tem despesas mensais relativas a medicamentos (numa média de € 50,00) e de contribuição para o seu actual agregado familiar (formado com a sua irmã), contribuição cujo valor concreto não foi apurado (tendo sido alegado o valor mensal de € 150,00) mas que naturalmente se reporta, pelo menos, a gastos com alimentação, electricidade, gás e água. Para além destas, o Requerente terá ainda que suportar despesas básicas com vestuário e transporte. Logo, se o valor da compensação for € 350,00, o seu rendimento mensal atingirá montante de € 810,00 para fazer face a todas as referidas despesas (€ 460,00 da reforma + € 350,00 da compensação).
No que concerne ao valor locativo do imóvel em que se situa a casa de morada de família, foi apurado um valor de € 716,00, mas como bem se refere na sentença recorrida, tal valor reporta-se à globalidade do imóvel, composto por dois pisos independentes, sendo que a Requerida apenas usa e usufrui do rés-do-chão, pelo que inexistindo qualquer elemento que permita distinguir ambos os pisos, entendemos que ao rés-do-chão corresponderá, no máximo, o valor locativo de € 358,00.
Em face de toda a exposição supra realizada, para além de se verificar uma concreta e real situação em quer a Requerida, quer o Requerente necessitam de habitação, sendo que a casa de morada de família foi atribuída àquela, temos que concluir que, avaliadas as condições pessoais e económicas de ambos, a Requerida dispõe de um rendimento mensal que lhe permite suportar uma compensação monetária a favor do Requerente e que o Requerente, por auferir um rendimento mensal inferior em mais de 1/3 ao daquela, tem necessidade do valor daquela compensação com vista a poder dispor de um valor mensal que lhe permita ter uma sobrevivência digna (ou seja, suportar as suas despesas básicas mensais), salientando-se que, através de tal compensação, poderá aumentar a sua contribuição para o seu agregado familiar ou arrendar uma casa para a sua própria e exclusiva habitação.
Por conseguinte, entendemos que se deve acompanhar a sentença recorrida quanto a existir fundamento legal para a fixação de uma compensação monetária a favor do Requerente em razão da casa de morada de família ter sido provisoriamente atribuída à Requerida, não se vislumbrando que esta fixação se revele como uma solução desequilibrada no caso concreto (isto é, que seja violadora dos imperativos da justiça real).
No que concerne ao valor da compensação, o Tribunal a quo fixou-a no montante de € 350,00, o qual equivale quase na íntegra ao valor locativo do rés-do-chão usado e fruído pela Requerida, sendo que, como resulta da respectiva fundamentação, não foi tomado em consideração qualquer outro elemento.
Ora, afigura-se-nos que, apesar de estar em consonância com o respectivo valor locativo, no caso concreto, o valor de € 350,00 é um pouco excessivo.
Por um lado, cria um desequilíbrio injustificado no rendimento mensal de que cada um deles passa a dispor: pagando uma compensação mensal de € 350,00, a Requerente dispõe apenas do valor mensal de € 400,00 (750,00-350,00) para fazer face a todas as outras despesas básicas; já o Requerido passará a dispor do valor mensal de € 810,00 (460,00+350,00) para fazer face a todas as despesas básicas, sendo que, para além destas, não demonstrou ter outras despesas revelantes, salientando-se que não ficou sequer comprovado o valor da sua contribuição mensal para o seu actual agregado familiar (e que foi alegado ser apenas no valor de € 150,00).
Por outro lado, representa um sacrifício algo exagerado para a Requerida já que o valor de € 350,00 representa uma despesa com a habitação na proporção de mais de 46% do seu rendimento mensal.
Por fim, tendo presente que o valor locativo do rés-de-chão é de € 358,00 mensais, e inexistindo qualquer elemento em sentido contrário, é de crer que, mesmo com um valor um pouco inferior, o Requerente poderá obter o arrendamento de uma habitação de um imóvel, necessariamente com menor dimensão do que aquele que constitui a casa de morada de família (constituído por dois pisos independentes), sendo certo que, permanecendo em casa da sua irmã, mesmo que com uma compensação de valor inferior poderá aumentar, de forma significativa, a contribuição para o seu actual agregado familiar.
Por conseguinte, porque se nos afigura permitir um maior equilíbrio entre as partes perante as suas condições pessoais e económicas e, por isso, obter uma solução mais justa e equitativa, entendemos que a compensação monetária a favor do Requerente deve ser fixada no valor de € 275,00, ou seja, num valor mais reduzido do que aquele que foi considerado pelo Tribunal a quo, pelo que nesta parte não se acompanha integralmente a sentença recorrida.
No âmbito da presente questão, importa ainda apreciar qual a periodicidade do pagamento da compensação. Na realidade, apesar da improcedência da pretensão rectificativa da sentença, no seu recurso, o Requerente/Recorrente pugna expressamente para que a compensação seja fixada de forma mensal (cfr. conclusão 37ª).
Ora, mostra-se indiscutível que se trata de uma obrigação mensal: o valor é fixado tendo (também) em consideração as condições económicas mensais dos cônjuges (ou ex-cônjuges) e visa compensar (patrimonialmente) o cônjuge (ou ex-cônjuge) que se vê privado, mensalmente, de usar e fruir da casa de morada de família até à partilha (uso e fruição, mensal, que são atribuídos ao outro cônjuge ou ex-cônjuge). Deve, portanto, reconhecer-se razão ao Requerente/Recorrente, devendo a sentença recorrida ser alterada por forma a ser reconhecido que a compensação é mensal.
Também em sede de apreciação da presente questão, e como anteriormente se explicou na análise da questão anterior, o âmbito do presente recurso encontra-se «alargado» à reapreciação da admissibilidade/inadmissibilidade da ampliação do pedido subsidiário e, caso se conclua no sentido da admissibilidade, à apreciação da pretensão do Requerente/Recorrente de que a compensação retroage ao momento da instauração do incidente.
Vejamos.
No despacho que indeferiu a ampliação, o Tribunal a quo entendeu que, «em rigor, a pretensão do requerente não configura uma verdadeira alteração do pedido, mas outrossim, a pretensão de que os efeitos da sentença retroajam a determinada data (…) à data da interposição da acção o recorrente poderia ter expresso tal pretensão e não fez».
Não podemos aderir a este entendimento, desde logo, porque contraria o próprio enquadramento jurídico realizado pelo Tribunal a quo quanto aos requisitos de admissibilidade da ampliação do pedido: «(…) a ampliação do pedido será processualmente admissível, por constituir desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo, quando o novo pedido (objecto de ampliação) esteja virtualmente contido no âmbito do pedido inicial, por forma a que pudesse tê-lo sido também aquando da petição inicial (…) Ou seja: a ampliação do pedido constitui o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo quando o pedido formulado esteja virtualmente contido no pedido inicial e na causa de pedir da acção (…)» (os sublinhados são nossos). Ora, é inquestionável que, como o próprio Tribunal a quo o afirmou e reconhece, «à data da interposição da acção» (ou seja, logo na petição inicial) o Requerente «podia logo ter expresso tal pretensão» (ou seja, podia logo ter requerido que a compensação fosse devida desde a instauração do incidente).
Acresce que, nos termos do art. 265º/2 do C.P.Civil de 2013 (aplicável ao presente incidente ex vi do art. 549º/1 do mesmo diploma legal), “O autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo”.
Explica-se no Ac. desta RG de 09/11/2023[41] que “ainterpretação dos conceitos de desenvolvimento ou consequência do pedido primitivo pressupõe a existência de uma origem comum”, sendo que, citandoRui Pinto, concretiza-se que “para que se possa dizer que o pedido é consequência ou desenvolvimento do pedido primitivo ‘é necessário que o autor se mova ainda dentro da mesma causa de pedir (para o que não poderá acrescentar novos ‘factos essenciais stricto sensu’)” e que, citando Alberto dos Reis, assinala-se que a modificação do pedido na vertente de ampliação contém um “limite de qualidade e de nexo: a ampliação há-de ser o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo, quere dizer, a ampliação há-de estar contida virtualmente no pedido inicial”.
Uma vez que, no caso em apreço, o pedido subsidiário, que integra a petição inicial, consistiu em, «caso se mantenha a atribuição do imóvel de modo exclusivo à requerida, deverá ser fixada equitativamente uma compensação/renda a atribuir ao requerente, que lhe permita obter condições económicas para arrendar habitação condigna até à partilha dos bens comuns do casal» (o sublinhado é nosso), e que a ampliação do pedido consistiu em «pretende o requerente, nos termos do art.º 265.º, nº 1, do CPC, ampliar o pedido subsidiário, no sentido de se retroagir o valor da eventual compensação a atribuir ao requerente à data da apresentação em juízo do incidente, caso o titular decida atribuir a casa de morada de família à requerida» (o sublinhado é nosso), impõe-se concluir que a pretensão de ampliação, no sentido de que a compensação seja devida desde a data da apresentação em juízo do incidente, está virtualmente contida no pedido subsidiário inicial (ao deduzir em juízo tal pretensão, sem indicar qualquer data de vencimento anterior, é manifesto que, caso não lhe fosse atribuída a casa de morada de família, o Requerente pretendia, desde esse momento receber a compensação, até porque era a Requerida quem nessa data já usava e fruía da mesma).
Por isso, a ampliação do pedido subsidiário constitui um desenvolvimento do pedido subsidiário inicial e, nos termos do art. 265º/2, é legalmente admissível, ao contrário do entendido e decidido pelo Tribunal a quo.
Há, portanto, que apreciar a pretensão (ampliada) do Requerente/Recorrente de ser retroagida a compensação ao momento da instauração do incidente.
Diga-se, desde já, que não lhe assiste qualquer razão.
Acompanhando-se uma vez mais o já citado Ac. do STJ de 13/10/2016[42], salienta-se que a medida provisória de atribuição da casa de morada de família ao abrigo do disposto no art. 931º/7 pode ou não comportar a fixação de uma compensação monetária ao cônjuge privado do uso do bem, pressupondo a eventual atribuição a título oneroso uma aplicação analógica do regime que está previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família. Ora, da configuração normativa conferida à decisão que atribui, a título provisório, a um dos cônjuges a casa de morada de família emerge que só existe direito a uma compensação pelo uso exclusivo se o juiz a atribuir na decisão proferida, ou seja, o direito a uma compensação pressupõe necessariamente, em termos constitutivos, a formulação de um juízo equitativo, em que o julgador, ponderadas as circunstâncias concretas, considera que o equilíbrio dos interesses em confronto só se satisfaz com a imposição ao beneficiário da utilização do bem de uma contrapartida por tal uso exclusivo. Assim sendo, afigura-se-nos que a obrigação de pagamento da compensação só nasce (ou melhor, só se constitui) a partir do momento em que o Tribunal atribui provisoriamente a um dos cônjuges (ou dos ex-cônjuges) o uso e a fruição exclusivos da casa de morada de família e em que, nessa sequência, reconhece ser equitativo e justo conferir ao outro cônjuge (ou ex-cônjuge) o direito a receber uma compensação patrimonial.
Estamos, portanto, perante um incidente em que a sentença é constitutiva do direito dos cônjuges (ou dos ex-cônjuges), seja o relativo à atribuição provisória da casa de morada de família, seja o relativo à fixação da compensação monetária.
Neste sentido, pronunciou-se o Ac. da RP de 19/05/2022[43]: “Por se tratar do exercício de um direito potestativo, constituído pela sentença, a compensação pela atribuição do direito é devida desde a data dessa decisão”. Explica-se que: “Seja na ação definitiva, seja na ação provisória, aqui em causa, a sentença é sempre constitutiva do direito do cônjuge ou do ex-cônjuge. Naquela ação autónoma e no incidente em que o pedido é deduzido, a parte requerente exerce um direito potestativo à utilização da casa de morada da família, após o que a sentença declara, ou não, constituído esse direito a favor do requerente. Em qualquer caso, mesmo quando o incidente ocorre por iniciativa do tribunal, a sua decisão é constitutiva do direito, porquanto autoriza uma mudança na ordem jurídica existente. Tem na sua base o direito potestativo cujos efeitos se produzem ope judicis na esfera da contraparte. O direito que o A. passou a ter com a decisão recorrida, de utilizar, com exclusão da seu cônjuge, a casa de morada da família, sendo embora um efeito do divórcio não é um direito patrimonial, a que se possa considerar aplicável o disposto no art.º 1789º, nº 1, do Código Civil, mas um direito pessoal, não determinante de qualquer modificação ou limitação da propriedade da casa enquanto bem comum do casal, a vender ou a partilhar oportunamente no interesse de ambos os seus membros. Por conseguinte, os seus efeitos, nomeadamente a obrigação de pagar a renda ou compensação pela utilização (como se lhe queira chamar) não retroagem à data da instauração da ação de divórcio, nem ao momento da dedução do pedido incidental na ação, mas à data da sentença, a data da constituição do direito de utilização da casa de morada da família com a respetiva contrapartida a favor da apelante”.
Por conseguinte, o direito do Requerente/Recorrente a receber da Requerida a compensação monetária apenas se constitui com a sentença que atribuiu provisoriamente a esta a casa de morada de família e reconheceu àquele tal direito de compensação, pelo que não se lhe poder reconhecer o direito de receber a compensação desde o momento da instauração do presente incidente.
Consequentemente e sem necessidade de outras considerações, a resposta à presente questão, que no âmbito do recurso incumbe a este Tribunal ad quem apreciar, é necessariamente no sentido de que sentença recorrida deve ser alterada mas apenas por forma a reduzir o valor da compensação monetária para o valor de € 275,00 e por forma a reconhecer-se que se trata de um valor mensal e, por via disso, ambos os recursos apenas procedem de forma parcial quanto a esta questão.
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4.4. Do Mérito dos Recursos
Perante as respostas alcançadas na resolução das questões supra apreciadas, deverão julgar-se parcialmente procedentes os recursos de apelação interpostos quer pela Requerida/Recorrente quer pelo Requerente/Recorrente, devendo alterar-se a sentença recorrida por forma a que o montante da compensação monetária seja no valor de € 275,00 mensais, mantendo-se a mesma quanto ao demais.
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4.5. Da Responsabilidade quanto a Custas
Procedendo ambos os recursos de forma apenas parcial, porque ficaram ambos vencidos, deverão o Requerente/Recorrente e a Requerida/Recorrida suportar as custas na proporção do respectivo decaimento, que se fixa 1/10 e 9/10 para cada um no caso do recurso daquele, e que se fixa em 1/3 e 2/3 para cada um no caso do recurso desta, tudo sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia o Requerente/Recorrente - art. 527º/1 e 2 do C.P.Civil de 2013.
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5. DECISÃO
Face ao exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedentes os recursos de apelação interpostos pela Requerida/Recorrente e pelo Requerente/Recorrente e, em consequência, decidem:
1) alterar a sentença recorrida nos seguintes termos - “Face ao exposto (…) fixando-se a título de compensação monetária, a favor do requerente, o montante de € 275,00 (duzentos e setenta e cinco euros) mensais”;
2) e manter a sentença recorrida no demais.
Custas do recurso da Requerida/Recorrente, por esta e pelo Requerente/Recorrente, na proporção de ½ respectivamente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia este último.
Custas do recurso do Requerente/Recorrente, por este e pela Requerida/Recorrente, na proporção de 9/10 e 1/10 respectivamente, sem prejuízo do apoio judiciário de que aquele beneficia.
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Guimarães, 05 de Junho de 2025.
(O presente acórdão é assinado electronicamente)
Relator - Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício; 1ºAdjunto - José Carlos Pereira Duarte; 2ºAdjunto – Rosália Cunha.
[1]Cfr. Ac. STJ 13/10/2020, Juiz Conselheiro Henrique Araújo, proc. nº5957/12.6TBVFR-C.P1.S2, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [2]A presente decisão é redigida segundo a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, mas respeita-se, no caso das transcrições, a grafia utilizada nos textos originais. [3]António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 6ªedição actualizada, Almedina, p. 139. [4]Ac. STJ de 07/07/2016, Juiz Conselheiro Gonçalves da Rocha, proc. nº156/12.0TTCSC.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [5]In C.P.Civil Anotado, Volume II, Almedina, 2021 p. 174 [6]In Código de Processo Civil Anotado - vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração, Almedina, 3ªedição, p. 790. [7]Juiz Desembargador Henrique Antunes, proc. nº116/11.8T2VGS.C1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc. [8]Cfr. Ac. RG 02/03/2023, Juíza Desembargadora Rosália Cunha (aqui 1ªadjunta), proc. nº120724/15.0YIPRT.1.G1-A, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg. [9]Cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Artigos 362.º a 626.º, 4.ª edição, Almedina, p. 730. [10]Cfr. Ac. STJ 13/10/2020, Juiz Conselheiro Henrique Araújo, proc. nº5957/12.6TBVFR-C.P1.S2, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [11]Cfr. Ac. STJ 12/02/2008, Juiz Conselheiro Sebastião Póvoas, proc. nº08A2680, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [12]Cfr. o citado Ac. STJ 13/10/2020, Juiz Conselheiro Henrique Araújo, proc. nº5957/12.6TBVFR-C.P1.S2. [13]Cfr. Ac. RG 22/11/2018, Juíza Desembargadora Ana Cristina Duarte, proc. nº56/18.0T8BRG.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg. [14]Juiz Desembargador Gonçalo Oliveira Magalhães, proc. nº901/24.0T8GMR-B.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg. [15]Juiz Desembargador José Alberto Moreira Dias, proc. nº2273/07.9TBBCL-N.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg. [16]Cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in obra referida, p. 732. [17]Juiz Desembargador Carlos Gil, proc. nº22046/20.2T8PRT.P1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp. [18]Juíza Desembargadora Emília Ramos Costa, proc. nº998/14.1TBSTB-N.E1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtre. [19]Cfr. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Antunes Varela, in Manuel de Processo Civil, 2ª edição revista e actualizada Coimbra Editora, p. 685. [20]Cfr. Ac. STJ 12/10/2017, Juiz Conselheiro António Leones Dantas, proc. nº40/11.4TTSTR.L2-A.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [21]Cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in obra referida, p. 732. [22]Cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in obra referida, p. 732. [23]José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in obra referida, p. 741. [24]Juiz Desembargador José Moreira Dias, proc. nº1867/14.0TBBCL-F.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [25]Ac. STJ 03/03/2021, Juíza Conselheira Leonor Cruz Rodrigues, proc. nº3157/17.8T8VFX.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [26]In Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, 1984, p. 143. [27]In Código de Processo Civil Anotado, 1ºVolume, 4ªedição, 2018, p. 737. [28]In Direito de Processo Civil, vol. II, Almedina, 2015, p. 371. [29]Juiz Conselheiro Alexandre Reis, proc. nº2200/10.6TVLSB.P1.S1, disponível em www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/Civel_2017_10.pdf. [30]Juíza Conselheira Maria João Vaz Tomé, proc. nº2057/16.3T8PNF.P1.S1 disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [31]Cfr. Ac. STJ 23/01/2019, Juiz Conselheiro Júlio Gomes, proc nº4568/13.3TTLSB.L2.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [32]No qual intervieram os mesmos Juízes relator e 1ªadjunto, proc. nº2462/20.0T8BCL-A.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg. [33]Juiz Conselheiro António Piçarra, proc. nº1448/15.1T8VNG.P2.S2, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [34]Juiz Desembargador José Amaral, proc. nº120/16.0T8EPS.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrg. [35]Juiz Conselheiro Lopes do Rego, proc. nº135/12.7TBPBL-C.C1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [36]No mesmo sentido, o Ac. da RC de 27/04/2017, Juíza Desembargadora Sílvia Pires, proc. nº120/16.0T8EPS.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrc. [37]Juiz Conselheiro Vieira e Cunha, proc. nº756/20.4T8SXL.L1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt/jstj. [38]Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, in Noções Fundamentais Direito Civil, 6ª edição, p. 104, nota 2. [39]In BMJ, 469º, p. 524. [40]Cfr. Ac. nº177/2002 de 23/04/2002, in DR, série I-A, de 02/07/2002. [41]Juíza Desembargadora Rosália Cunha (aqui 2ªadjunta, e no qual o aqui relator foi 1ºadjunto), proc. nº133/22.2T8BRG.G1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp. [42]Juiz Conselheiro Lopes do Rego, proc. nº135/12.7TBPBL-C.C1.S1. [43]Juiz Desembargador Filipe Caroço, proc. nº 8813/20.0T8PRT-B.P1, disponível em http://www.dgsi.pt/jtrp.