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PROPRIEDADE HORIZONTAL
CONDOMÍNIO
ENCARGOS DE CONSERVAÇÃO DE PARTES COMUNS
FRACÇÃO AUTÓNOMA
ALIENAÇÃO
Sumário
I - A Lei n.º 8/2022, de 10-01, que procedeu à revisão do regime da propriedade horizontal, resolveu expressamente a controvertida questão da ambulatoriedade da obrigação de pagamento dos encargos do condomínio em caso de transmissão da fração autónoma; II – O novo regime entrou em vigor 90 dias após a publicação da Lei n.º 8/2022, de 10-01, em data posterior à da assembleia de condóminos a que respeita a ata apresentada como título executivo, bem como às datas das alienações pela embargante das frações autónomas, pelo que não é diretamente aplicável ao caso presente; III – A questão da eventual natureza interpretativa da Lei n.º 8/2022 carece de relevo numa situação, como a presente, em que a alienação das frações autónomas ocorreu sem a imposição do cumprimento do procedimento estabelecido nos n.ºs 1 e 2 do artigo 1424.º-A, aditado ao Código Civil pela referida Lei; IV – A obrigação imposta aos condóminos pelo artigo 1424.º, n.º 1, do CC (na redação anterior à decorrente da Lei n.º 8/2022) – obrigação de suportar, na proporção do valor das suas frações, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum –, impendendo sobre o titular de um direito real, configura uma obrigação real ou propter rem, o que não implica a transmissão automática, para o adquirente de uma fração autónoma, de dívidas já vencidas, resultantes do incumprimento da aludida obrigação; V – Tratando-se de obrigações pecuniárias vencidas à data da alienação das frações autónomas, não se vislumbrando que o respetivo cumprimento implique a titularidade do direito real e inexistindo fundamento legal que imponha a respetiva transmissão automática para os adquirentes das frações, é de considerar não ambulatórias as prestações vencidas à data da alienação. (Sumário da Relatora)
Texto Integral
Processo n.º 7742/23.0T8STB-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal
Juízo de Execução de Setúbal
Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
1. Relatório
A executada (…) – Sociedade Imobiliária, Lda. deduziu oposição à execução para pagamento de quantia certa que lhe moveu, em 22-11-2023, o Condomínio do Prédio sito na (…) – Monte (…), Lote 198 (Urbanização …), na qual são apresentadas, como título executivo, atas de reuniões da assembleia de condóminos.
A embargante fundamenta a oposição invocando, em síntese, a falta de título executivo quanto às quantias respeitantes a uma quota extraordinária fixada na ata n.º 15 e a honorários de advogado, bem como alegando não ser devedora de quota fixada na ata n.º 15, por vencida em data anterior à da aquisição das frações, nem de quota extraordinária fixada na ata n.º 19, por se reportar a obra concluída após a venda das frações, como tudo melhor consta do articulado apresentado.
Recebida a oposição à execução, o embargado contestou, pugnando pela respetiva improcedência.
Dispensada a audiência prévia, foi comunicado às partes que o estado do processo permitia conhecer do mérito da causa, sendo-lhes dirigido convite para exercerem contraditório.
As partes não se pronunciaram.
Foi proferida decisão, na qual se fixou o valor à causa, se proferiu despacho saneador, se discriminou os factos considerados provados e se conheceu do mérito da causa, tendo os embargos de executado sido julgados parcialmente procedentes, decidindo-se o seguinte: Por tudo o exposto julgo os embargos parcialmente procedentes, determinando que: 1. A ata n.º 15 não constitui título executivo quanto aos créditos peticionados. 2. As despesas de contencioso no valor de 615,00 EUR não são suscetíveis de ser executadas com base em ata de condomínio. 3. A execução deverá prosseguir quanto ao remanescente, devendo o Senhor Agente de Execução subtrair à quantia exequenda as quotas extraordinárias referentes à ata n.º 15, num total de 1.543,58 EUR, bem como as despesas de contencioso no valor de 615,00 EUR, bem como os respetivos juros. Custas por ambas as partes, na proporção do decaimento de cada parte. Registe e notifique.
Inconformada, a embargante interpôs recurso desta decisão, na parte em que lhe foi desfavorável, pugnando pela prolação de decisão que julgue totalmente procedentes os embargos deduzidos, terminando as alegações com a formulação das conclusões que se transcrevem:
«A. O presente recurso tem como objeto a improcedência de parte dos embargos apresentados pela Recorrente, concretamente no que diz respeito à existência de dívidas, na esfera jurídica da Recorrente, relativamente às quotas atinentes à ata n.º 19.
B. Salvo o devido respeito, o entendimento do Tribunal a quo relativamente à existência de dívidas na esfera jurídica da Recorrente, derivadas das quotas atinentes à ata n.º 19, não se afigura correto.
C. A jurisprudência citada nos embargos apresentados pela Recorrente demonstra de forma clara que a responsabilidade pelo pagamento de despesas extraordinárias relativas a obras ainda não concluídas à data da alienação da fração recai sobre o adquirente.
D. O Tribunal a quo reconhece a validade da argumentação presente nos referidos Acórdãos, inclusive qualificando-os como "salomónicos", mas opta por não seguir o entendimento neles vertido, baseando a sua decisão unicamente num exemplo hipotético, para assim justificar a alegada dificuldade prática da aplicação das soluções invocadas.
E. Ora, o exemplo hipotético a que o Tribunal recorreu é desajustado da realidade por não se reconduzir à realidade em apreço, uma vez que as obras não se encontravam concluídas à data da transmissão do imóvel.
F. De facto, a jurisprudência nacional tem reafirmado esta posição de forma reiterada, como demonstrado pelos diversos Acórdãos citados no corpo destas alegações, incluindo decisões do Supremo Tribunal de Justiça e dos Tribunais da Relação de Porto e Lisboa.
G. Adicionalmente, também a generalidade da doutrina sobre o tema tem sido clara e consistente ao defender que as obrigações propter rem, como as que estão em causa, devem acompanhar a titularidade do direito real sobre a fração, recaindo sobre o adquirente quando as obras ainda não foram executadas ou concluídas.
H. Assim, não se compreende como pode o Despacho Saneador-Sentença do qual se recorre afastar-se desse entendimento consolidado, adotando uma fundamentação desprovida de suporte legal ou jurisprudencial adequado, exclusivamente com base num exemplo teórico e alheado da factualidade dos autos.
I. Face ao exposto, impõe-se concluir pela inexistência de qualquer dívida na esfera jurídica da Recorrente relativamente às quotas resultantes da ata n.º 19, devendo, por conseguinte, ser revogada a decisão recorrida.»
Não foram apresentadas contra-alegações.
Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar se a embargante é responsável pelo pagamento dos valores peticionados a título de quota extraordinária para a realização de obras no edifício, deliberada na reunião da assembleia de condóminos a que respeita a ata n.º 19.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
2. Fundamentos
2.1. Decisão de facto
2.2.1. Factos considerados provados em 1.ª instância:
1. A executada (…) – Soc., foi proprietária das frações autónomas, do prédio sito na (…) – Monte (…), Lote 198 (Urbanização …), no Pinhal Novo (condomínio embargado), designadas pelas letras:
a. «J» (até 09-07-2021).
b. «M» (até 29-12-2020).
c. «Q» (até 13-12-2020).
d. «V» (até 25-08-2021).
2. Foi realizada a Assembleia Geral Extraordinária do condomínio embargado, no dia 16-08-2017, atestada pela ata n.º 15 junta como documento n.º 3 com o requerimento executivo e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, constando da mesma, além do mais, o seguinte: «colocadas à votação foi a proposta da empresa (…) aprovada pelos presentes com as condicionantes do parecer técnico elaborado pelos membros da comissão. Pelo que, as quotas anteriormente aprovadas, é reduzido pelo parecer técnico para 63.586,33, EUR».
3. Foi realizada a Assembleia Geral Extraordinária do condomínio embargado, no dia 09-03-2021, atestada pela ata n.º 19 junta como documento n.º 4 com o requerimento executivo e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, constando da mesma, além do mais, o seguinte: «5 – Fixação da quota de condomínio: postas à votação foram as presentes propostas aprovadas por unanimidade, de acordo com a tabela que se anexa».
4. Consta de aviso de pagamento junto pelo embargado como documento único da contestação, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, os seguintes valores, nas seguintes datas de vencimento e relativamente às seguintes frações, quanto à quota extraordinária relativa à ata n.º 15:
a. 30-01-2018: 1.170,31 EUR (fração M)
b. 30-01-2018: 263,99 EUR (fração Q)
c. 30-01-2018: 109,28 EUR (fração J)
5. Consta da fatura junta pela embargante como documento único da petição de embargos os mesmos valores referidos nas alíneas do ponto anterior.
2.2.2. Outros factos provados:
6. Consta da ata n.º 19 (cujo conteúdo foi considerado integralmente reproduzido no ponto 3), além do mais, o seguinte: (…) 7 – Ponto de situação das obras de segurança: Foi esclarecido a todos os presentes (…) as diligências tomadas quanto a este tema, tendo-se concluído que existe uma diferença de € 28.034,46 entre o total quotizado aos condóminos e o custo real da obra. (…) A fracção BN propôs quotizar extraordinariamente o valor de € 28.034,46 (…) em 12 prestações nos termos da folha anexa, com início em Março/2021 e término em Fevereiro/2022. (…) Colocada a votação foi a proposta aprovada por maioria dos presentes, com os votos contra das fracções CB e CG e abstenções das fracções BL, BX, BZ, CA, CF e CM e Arrendamento Mais. (…).
7. As obras a que alude o ponto 6, a cuja realização se destinava a quota extraordinária fixada na ata n.º 19, não estavam concluídas à data da transmissão pela embargante das frações autónomas designadas pelas letras J e V.
[O facto constante do ponto 6 foi julgado provado em virtude de consistir numa especificação de parte do teor da ata n.º 19, considerado integralmente reproduzido sob o ponto 3.
O facto constante do ponto 7, por seu turno, foi alegado pela embargante no artigo 34º da petição de embargos e não foi impugnado na contestação deduzida pelo embargado, sendo certo que configura um facto novo, que não está em oposição com qualquer facto expressamente alegado pelo exequente no requerimento executivo; como tal, não tendo sido objeto de impugnação especificada, considera-se o mencionado facto admitido por acordo, nos termos previstos no artigo 574.º, n.ºs 1 e 2, aplicável por força do artigo 551.º, n.º 1, ambos do CPC.]
2.2. Apreciação do objeto do recurso
Vem posta em causa na apelação a parte da decisão recorrida em que se considerou caber à executada a obrigação de pagamento dos valores peticionados a título de quota extraordinária para a realização de obras no edifício – deliberada na reunião da assembleia de condóminos realizada no dia 09-03-2021, a que corresponde a ata n.º 19 apresentada como título executivo – e se julgou improcedente, nessa parte, a oposição à execução.
Estão em causa as prestações daquela quota extraordinária – deliberada na reunião da assembleia de condóminos a que respeita a ata n.º 19 – vencidas nos meses de março, abril, maio e junho de 2021, relativas às frações autónomas designadas pelas letras J e V, pertencentes à embargante à data da deliberação e posteriormente alienadas, em 09-07-2021 e 25-08-2021, respetivamente.
Entendeu a 1.ª instância que cabe à embargante proceder ao pagamento das peticionadas prestações da quota extraordinária, tendo em conta que se venceram em datas anteriores à transmissão das frações em causa pela executada, que era a respetiva proprietária aquando do vencimento das quotizações em apreciação.
Discordando deste entendimento, a apelante defende que a responsabilidade pelo pagamento de tais prestações pertence ao novo proprietário de cada uma das frações em causa, o que justifica afirmando que as obras a cuja realização se destinava aquela quota extraordinária ainda não estavam concluídas à data da transmissão das mencionadas frações autónomas, sustentando que, nessa situação, as dívidas acompanham a titularidade do direito real sobre as frações.
É sabido que a execução tem necessariamente de se basear num título, pelo qual se determinam o fim e os limites da ação executiva, conforme dispõe o artigo 10.º, n.º 5, CPC, podendo servir de título executivo, além dos documentos enumerados nas alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 703.º do mesmo Código, ainda os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva, conforme prevê a alínea d) deste preceito.
O artigo 6.º, n.º 1, do DL n.º 268/94, de 25-10, na redação em vigor à data da realização da assembleia de condóminos a que respeita a ata n.º 19 (anterior às alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 8/2022, de 10-10), dispunha o seguinte: A ata da reunião da assembleia de condóminos que tiver deliberado o montante das contribuições devidas ao condomínio ou quaisquer despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum, que não devam ser suportadas pelo condomínio, constitui título executivo contra o proprietário que deixar de pagar, no prazo estabelecido, a sua quota-parte.
Atribuindo este preceito força executiva à ata da reunião da assembleia de condóminos que contenha deliberação sobre o montante das contribuições devidas ao condomínio ou quaisquer despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns e ao pagamento de serviços de interesse comum, que não devam ser suportadas pelo condomínio, tal documento constitui um título executivo da espécie prevista no artigo 703.º, n.º 1, alínea d), do CPC, isto é, consiste num documento particular a que é atribuída força executiva por disposição especial.
Estando em causa a obrigação de pagamento ao condomínio exequente, por parte da executada, na qualidade de proprietária de duas frações autónomas do edifício, de prestações de uma quota extraordinária deliberada na reunião da assembleia de condóminos a que corresponde a ata n.º 19, apresentada como título executivo, reporta-se a quantia exequenda ao pagamento de encargos do condomínio.
Enunciando os direitos dos condóminos, o artigo 1420.º do Código Civil dispõe, no n.º 1, que cada condómino é proprietário exclusivo da fração que lhe pertence e comproprietário das partes comuns do edifício.
Sendo comproprietários das partes comuns do edifício, cabe aos condóminos suportar os encargos necessários à respetiva conservação e fruição, dispondo o n.º 1 do artigo 1424.º do Código Civil, na redação em vigor à data da realização da assembleia de condóminos a que respeita a ata n.º 19 (anterior às alterações que lhe foram introduzidas pela Lei n.º 8/2022, de 10-10), o seguinte: Salvo disposição em contrário, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum são pagas pelos condóminos em proporção do valor das suas frações.
A interpretação deste preceito gerou controvérsia na doutrina e na jurisprudência, detetando-se entendimentos divergentes relativamente a várias questões, nomeadamente quanto à ambulatoriedade da obrigação de pagamento dos encargos do condomínio nos casos de transmissão da fração autónoma, designadamente nas situações em que tais encargos se reportam a obras não concluídas à data da alienação do bem, constando da decisão recorrida e das alegações de recurso a enunciação de determinadas teses em confronto, o que nesta sede se mostra dispensável repetir.
A Lei n.º 8/2022, de 10-01, procedeu à revisão do regime da propriedade horizontal, tendo alterado o Código Civil, o DL n.º 268/94, de 25-10, e o Código do Notariado.
No que respeita à responsabilidade pelo pagamento de encargos do condomínio, a Lei n.º 8/2022 alterou o artigo 1424.º do Código Civil, designadamente o n.º 1 do preceito, que passou a ter a redação seguinte: Salvo disposição em contrário, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e relativas ao pagamento de serviços de interesse comum são da responsabilidade dos condóminos proprietários das frações no momento das respetivas deliberações, sendo por estes pagas em proporção do valor das suas frações.
A referida lei aditou ao Código Civil o artigo 1424.º-A, com a redação seguinte: 1 - O condómino, para efeitos de celebração de contrato de alienação da fração da qual é proprietário, requer ao administrador a emissão de declaração escrita da qual conste o montante de todos os encargos de condomínio em vigor relativamente à sua fração, com especificação da sua natureza, respetivos montantes e prazos de pagamento, bem como, caso se verifique, das dívidas existentes, respetiva natureza, montantes, datas de constituição e vencimento. 2 - A declaração referida no número anterior é emitida pelo administrador no prazo máximo de 10 dias a contar do respetivo requerimento e constitui um documento instrutório obrigatório da escritura ou do documento particular autenticado de alienação da fração em causa, salvo o disposto no número seguinte. 3 - A responsabilidade pelas dívidas existentes é aferida em função do momento em que as mesmas deveriam ter sido liquidadas, salvo se o adquirente expressamente declarar, na escritura ou no documento particular autenticado que titule a alienação da fração, que prescinde da declaração do administrador, aceitando, em consequência, a responsabilidade por qualquer dívida do vendedor ao condomínio. 4 - Os montantes que constituam encargos do condomínio, independentemente da sua natureza, que se vençam em data posterior à transmissão da fração, são da responsabilidade do novo proprietário.
Com estas alterações ao Código Civil, a Lei n.º 8/2022 regulou expressamente a supra enunciada questão, nos termos seguintes: i) salvo disposição em contrário, o pagamento dos encargos de condomínio é da responsabilidade dos condóminos proprietários das frações no momento das respetivas deliberações, em proporção do valor das suas frações, conforme dispõe a nova redação do n.º 1 do artigo 1424.º; ii) em caso de alienação de fração, a responsabilidade pelas dívidas existentes é aferida em função do momento em que as mesmas deveriam ter sido liquidadas, sendo da responsabilidade do alienante as dívidas vencidas à data da transmissão, salvo aceitação pelo adquirente da responsabilidade pelo respetivo pagamento, e da responsabilidade do adquirente os montantes que constituam encargos do condomínio, independentemente da sua natureza, que se vençam em data posterior à transmissão da fração, conforme decorre dos n.ºs 3 e 4 do novo artigo 1424.º-A.
Este regime entrou em vigor 90 dias após a publicação da Lei n.º 8/2022, de 10-01, conforme estatuído no respetivo artigo 9.º, isto é, em 10-04-2022, data posterior à da ata n.º 19, da assembleia de condóminos realizada em 09-03-2021, apresentada como título executivo, bem como às datas das alienações pela embargante das frações autónomas designadas pelas letras J e V, em 09-07-2021 e 25-08-2021, respetivamente, pelo que não é diretamente aplicável ao caso presente.
Acresce que a questão da eventual natureza interpretativa da Lei n.º 8/2022, que tem recentemente vindo a discutir-se, carece de relevo numa situação, como a presente, em que a alienação das frações autónomas ocorreu sem a imposição do cumprimento do procedimento estabelecido nos n.ºs 1 e 2 do novo artigo 1424.º-A – a obrigatoriedade da instrução da escritura, bem como do documento particular autenticado de alienação da fração, com uma declaração emitida pelo administrador do condomínio, a requerimento do condómino alienante, da qual conste o montante de todos os encargos de condomínio em vigor relativamente à sua fração, com especificação da sua natureza, respetivos montantes e prazos de pagamento, bem como, caso se verifique, das dívidas existentes, respetiva natureza, montantes, datas de constituição e vencimento –, o que exige se aprecie se as prestações a que respeita a quantia exequenda, que se encontravam vencidas aquando da alienação de cada uma das frações autónomas, se transmitiram automaticamente para os adquirentes do direito de propriedade.
A obrigação imposta aos condóminos pelo n.º 1 do artigo 1424.º - obrigação de suportar, na proporção do valor das suas frações, as despesas necessárias à conservação e fruição das partes comuns do edifício e ao pagamento de serviços de interesse comum –, impendendo sobre o titular de um direito real, configura uma obrigação real ou propter rem, pelo que cumpre aferir, face ao objeto da apelação, se tal conduz à transmissão automática, para o adquirente de uma fração autónoma, de dívidas já vencidas, resultantes do incumprimento da aludida obrigação.
Conforme supra se expôs, a interpretação do regime anterior à Lei n.º 8/2022, de 10-01, gerou controvérsia, designadamente quanto à questão em apreciação.
Em anotação ao artigo 1424.º do Código Civil, Ana Taveira da Fonseca (Comentário ao Código Civil: Direito das Coisas, Coord. Henrique Sousa Antunes, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2021, págs. 460-461) sintetiza a controvérsia nos termos seguintes: «Discute-se se esta obrigação deve ser considerada ambulatória. O entendimento prevalecente na jurisprudência, ainda que com diferentes fundamentos, é o de que as obrigações periódicas de contribuição para as despesas de fruição e conservação das partes comuns já vencidas à data da transmissão da propriedade sobre a fração autónoma não se transferem para os adquirentes, salvo se as partes acordarem essa transmissão e os restantes condóminos aceitarem a libertação do antigo devedor (a título meramente exemplificativo, v. Acs. STJ 08.06.2017, e RP 10.12.2011). Se as contribuições se referirem a um período em que o adquirente da fração não usufruiu das partes comuns, é natural que a dívida não lhe seja transmitida com a aquisição da fração. Podem, contudo, ser consideradas ambulatórias as obrigações que respeitem a reparações extraordinárias de que venha a beneficiar exclusivamente o adquirente da fração.»
Manuel Henrique Mesquita (Obrigações Reais e Ónus Reais, Coimbra, Almedina, 1990, pág. 323) entende ser «de rejeitar a doutrina (tradicional) que considera a ambulatoriedade uma característica de todas as obrigações propter rem, no sentido de que a transmissão do direito real de cujo estatuto a obrigação emerge implica automaticamente a transmissão desta para o novo titular do ius in re»; afirma o autor (loc. cit.) que se «há obrigações em que a ambulatoriedade se impõe, outras existem, pelo contrário, que devem considerar-se intransmissíveis, por ser essa a solução que melhor se harmoniza com os vários interesses a que importa conferir tutela adequada», propondo-se enunciar «um critério geral que permita resolver todos os casos em que o problema se suscite». O autor sugere (ob. cit., págs. 330-331 e 336) a solução seguinte: «a) Devem considerar-se ambulatórias todas as obrigações reais de “facere” que imponham ao devedor a prática de actos materiais na coisa que constitui o objecto do direito real. (…) b) Devem considerar-se não ambulatórias todas as demais obrigações “propter rem”, com excepção daquelas cujos pressupostos materiais se encontram objectivados na coisa sobre que o direito real incide».
Afirma o autor (ob. cit., págs. 336-337) o seguinte: «(…) considerámos ambulatórias as obrigações reais de facere que impõem ao devedor a prática de atos materiais no objecto do ius in re. Trata-se sempre, em síntese, de obrigações que só podem ser cumpridas por quem seja titular do direito real de cujo estatuto promanem, acrescendo ainda, em muitos casos, a favor da ambulatoriedade, a circunstância de a existência da obrigação resultar directa e imediatamente da simples aplicação do estatuto do direito à situação em que a coisa sobre que este incide objectiva ou ostensivamente se encontra. (…) todas as demais obrigações propter rem – quase sempre, obrigações de dare – devem considerar-se, em princípio, não ambulatórias. Além de a alienação do direito real não impossibilitar o alienante de realizar a prestação, nenhuma razão se descortina que aconselhe a transmissão da dívida para o subadquirente. Bem pelo contrário, da equilibrada ponderação dos interesses em jogo resulta sempre que deve ser o alienante a efectuar o cumprimento, como se de uma vulgar obrigação se tratasse».
Está em causa, no caso presente, a obrigação de pagamento em prestações mensais, pelos condóminos de um edifício, de determinado montante destinado a suportar uma parte do custo de obras de segurança no edifício (cuja realização foi deliberada na reunião da assembleia de condóminos realizada no dia 16-08-2017, a que corresponde a ata n.º 15), por se ter concluído, conforme consta da ata n.º 19, que existe uma diferença de € 28.034,46 entre o total quotizado aos condóminos e o custo real da obra.
Apesar de se encontrar assente que as obras em causa, a cuja realização se destinava a quota extraordinária fixada na ata n.º 19, não estavam concluídas à data da transmissão pela embargante das frações autónomas designadas pelas letras J e V, não se encontra provado qualquer elemento que permita considerar que a realização de tais obras venha a beneficiar exclusivamente os adquirentes das frações, nem que estes dispusessem de qualquer elemento objetivo que lhes permitisse aferir de tal benefício ou que o mesmo tenha tido algum reflexo no preço de aquisição dos bens.
Nesta conformidade, tratando-se de obrigações pecuniárias vencidas à data da alienação pela embargante das frações autónomas, não se vislumbrando que o respetivo cumprimento implique a titularidade do direito real e inexistindo fundamento legal que imponha a respetiva transmissão automática para os adquirentes das frações, é de considerar não ambulatórias as prestações vencidas à data da alienação, conforme decidido pela 1.ª instância.
Improcede, assim, a apelação.
As custas recaem sobre a apelante, por vencida.
Em conclusão: (…)
3. Decisão
Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Notifique.
Évora, 05-06-2025
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite (Relatora)
Mário Branco Coelho (1.º Adjunto)
Maria Domingas Simões (2.ª Adjunta)