INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
INSOLVÊNCIA FORTUITA
PATRIMÓNIO DO DEVEDOR
Sumário

i) no rol dos factos provados não têm cabimento considerações que constituam apreciações de condutas à luz de normativos legais;
ii) a insolvência que, à luz do disposto no artigo 186.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), do CIRE é de qualificar como culposa reporta-se aos atos, às ações materiais que incidam direta e imediatamente sobre as coisas que integram o património do devedor, e que sejam de configurar de destruição, danificação, inutilização, ocultamento ou desaparecimento dos bens;
iii) na alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE está consagrada a qualificativa alicerçada na disposição dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiro, censurando o ato de alienar, de transferir, de se desfazer dos bens do devedor, privando este da posse, do gozo das respetivas utilidades e/ou da propriedade deles, de modo a que revertam em proveito pessoal daquele que dispõe dos bens do devedor ou de terceiro;
iv) tal qualificativa não é aplicável à atuação de pessoa singular insolvente;
v) a alínea i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE reporta-se ao incumprimento reiterado dos deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º, o que vale por dizer ao incumprimento de forma repetida, sistemática, frequente;
vi) o dever de apresentação ali mencionado não é o dever de apresentação à insolvência, dever este que, consagrado nos moldes estatuído no artigo 18.º do CIRE, assume relevância unicamente para efeitos de presunção de culpa grave na atuação do devedor ou dos seus administradores, de direito ou de facto.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora

I – As Partes e o Litígio

Recorrente / Insolventes: (…) e (…)

Os presentes autos consistem no Incidente de Qualificação da Insolvência como culposa, afetando ambos os Insolventes, conforme proposto pelo Administrador Judicial.

II – O Objeto do Recurso
Decorridos os trâmites processuais legalmente previstos, foi proferida sentença julgando o incidente totalmente procedente, qualificando como culposa a insolvência dos Devedores, tendo o Tribunal de 1.ª Instância exarado que:
«o tribunal qualifica como culposa a insolvência e, em consequência:
a) Declara afetado pela qualificação de:
1. (…);
2. (…);
b) Declarar os atrás referidos inibidos, pelo período de dois anos, para o exercício do comércio, e para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de atividade económica, empresa pública ou cooperativa –cfr. artigo 189.º/2, alíneas a), b) e c), do CIRE;
c) Condeno os requeridos a indemnizar os credores reconhecidos no montante dos créditos verificados e reconhecidos não satisfeitos nos autos, ou seja a totalidade desse créditos por nada ter sido apreendido com valor para ser objeto de liquidação, até às forças do seu património e apenas na medida da sua culpa e prejuízo realmente provocado com a conduta (venda do imóvel por € 300.000,00 e feito desaparecer o valor das suas contas) – cfr. artigo 189.º, n.º 2, alínea e), do CIRE;.»
Inconformados, os Insolventes apresentaram-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que declare a insolvência fortuita. Concluíram a sua alegação de recurso nos seguintes termos:
«A) – Os Insolventes/Apelantes ao contrário do que foi decidido não se verificam os pressupostos da qualificação da insolvência como culposa.
B) – Os Insolventes/Apelantes antes de contra eles ter sido requerida a Insolvência pelos Requerentes (…) e o companheiro (…) tinham uma situação económica estável pelo que nenhuma obrigação tinham ou existia para se terem apresentado à insolvência por não estarem impossibilitados de cumprir quaisquer créditos/obrigações vencidas.
C) – Os Insolventes em Abril do ano de 2013 não tinham, não conheciam, não sabiam por nunca terem sido notificados da existência de qualquer dívida, designadamente dos dois credores, a (…) Portugal, Lda. e a (…)-STC, SA, ao contrário do que o sr. AJ. refere na Lista de Créditos Provisória Reconhecidos que em 08 de Agosto de 2023 juntou aos autos.
D) – Nessa Lista, o sr. AJ, identifica os credores, os mandatários, os montantes (capital e juros) que reconheceu, o fundamento do crédito, a sua natureza e a percentagem de cada um dos créditos sobre o montante total que apurou mas nada, absolutamente nada diz ou refere quando é que esses dois créditos anteriores ao pedido da insolvência foram constituídos, fixados e qual a data do seu vencimento.
E) - Não o diz naquela LISTA, nunca o apresentou na instrução do Processo e nem o fez no depoimento que fez em juízo na sessão de julgamento quando inquirido pelo sr. Juiz primeiro e a esclarecimento do mandatário. Não soube responder e não sabia essa data como consta e pode verificar-se por esse depoimento feito do minuto 51:26 ao minuto 53:31 onde expressamente respondeu que não sabia e que não conseguia responder (vide esse depoimento retro transcrito).
F) - Os dois credores elencados na LISTA provisória são duas instituições que compram créditos, não são os credores originais, como pode ver-se.
G) - O credor (…) somente surge no ano de 2022 a reclamar um crédito de € 2.522,73 e fá-lo na sequência de várias e diversas cessões a saber:
Banco …  …, SARL  … Lx., SARL
 Lx. … – até à … em 29-06-22
H) - Destas cessões todas nunca os Insolventes/Apelantes foram conhecedores nem destinatários de qualquer notificação a dar-lhes conhecimento ou a reclamar qualquer pagamento até à declaração da insolvência em 30-06-2023.
O sr. AJ não fez nem documental nem no seu depoimento em juízo qualquer prova da existência destes dois créditos/credores e muito menos das datas em que, se existiam (?), eles se venceram.
Não existe prova no Processo e no depoimento que fez em juízo, mais uma vez se repete, afirmou ao minuto 53:31 (cita-se):
-“ ..... Não consigo através desta reclamação de créditos dar essa resposta”.
I) - A matéria dos pontos 3 e 4 alegados pelo Sr. Administrador constantes do seu Relatório e que o Tribunal deu por provados sob o ponto 3 da matéria de facto foi erradamente dada como provada, por ser contrária a prova documental existente nos autos e contrária ao depoimento prestado em juízo pela testemunha Administrador Judicial pelo que não podem V. Exas., srs. Desembargadores deixar de alterar essa resposta e dar esses factos como: Não provados.
J) - O Tribunal a quo deu como provado sob o ponto 4 da matéria de facto que foi a sentença prolatada em 13-12-2022 pelo Juízo Central Cível de Almada – J1 e que os Insolventes/Apelantes depois não pagaram, que deu causa à insolvência.
Depois sob o ponto 7 da matéria de facto que tal facto conclui que tal facto revela a contínua incapacidade dos Insolventes em cumprirem as suas obrigações vencidas.
Ora,
J) - Esta dedução conclusiva do Tribunal a quo não corresponde à verdade no que respeita à “contínua incapacidade” dos Insolventes cumprirem as suas obrigações vencidas (?).
M) - Até àquele momento e data de 31-12-2022 e mais concretamente até à data de 16-05-2023 em que os Autores naquela ação e Requerentes da Insolvência a vieram requerer, os Insolventes/Apelantes como já nas conclusões anteriores se deixou alegado não tinham dívidas reconhecidas, certas e exigíveis, nem credores conhecidos que os tivessem contactado, notificado ou reclamado (como já retro se deixou alegado nas alíneas anteriores) e tinham património imobiliário valioso desde logo o bem/casa que só foi alienado em 19 de Agosto de 2022 como dado por provado sob o ponto 8 dos factos provados.
N) - Resulta assim à evidência que a decisão da matéria dada por provada sob o ponto 7 está em manifesta e flagrante contradição com a matéria de facto constante dos pontos 8 e seguintes dos mesmos factos provados.
O) - Ou seja, não é de todo verdade que se os Insolventes eram proprietários de um bem/casa tão valioso que só alienaram em 22-08-2022 estivessem nessa altura e circunstâncias na situação de não poderem cumprir as suas obrigações se as conhecessem e se os ditos credores (?) lhas tivessem exigido e reclamado (se necessário pela via judicial).
P) - A sentença prolatada está por isso viciada, por erro na apreciação da prova sobre a matéria de facto, erro do julgamento e erro na aplicação do direito.
Q) - Em boa verdade, se a fixação ocorrida da dívida gerada no auto de transação consumada pelo J-1 do Juízo Central Cível de Almada como provado sob o ponto 4 dos factos provados, antes não havia nem existia, repete-se, qualquer dívida/crédito vencido que fosse por eles reconhecido. E se existisse os ora Insolventes/Apelantes ao contrário do decidido, tinham plena capacidade de cumprir essas e outras obrigações se tal lhe tivesse sido exigido mesmo que fosse pela via judicial.
R) - É isso que resulta provado à saciedade dos pontos 8 a 11 da matéria de facto e que o Tribunal interpretou de forma errónea ao desvirtuar o valor porque a casa foi vendida e que, de forma inequívoca, dava para satisfazer todos os créditos provisórios elencados constantes da Lista elaborada pelo sr. AJ se existissem, fixos e válidos, e os seus credores, aqueles ou os seus antecessores, os tivessem exigido extrajudicialmente ou por recurso a juízo.
S) - O erro cometido na interpretação da prova e na sua apreciação e validação não deixa entender como um bem/casa tão valioso e com um preço/valor tão elevado no mercado não dava para pagar créditos passivos no total de € 74.007,62 como consta da Lista do sr. AJ (valor este que comporta já o crédito fixado pela sentença homologatória do J-1 do Juízo Central Cível de Almada porque, sem ele os anteriores seriam apenas de € 38.849,76)?!.
T) - A questão é: Como é que um bem/casa tão valioso alienado em Agosto de 2023 por € 300.000,00 não era suficiente para pagar as dívidas (se existissem?) constantes da Lista do sr. AJ referentes aos credores (…), SA e (…), SARL se tivessem sido reclamados?
U) - Obviamente que era pelo que não podem os Insolventes/Apelantes deixar de escrutinar e censurar por viciada a sentença proferida que julgou a insolvência contra eles requerida como culposa.
V) - Até àquele momento a dívida/crédito não o era porque a verba por eles reclamada em juízo como ex Promitentes Compradores no Processo era o dobro do sinal e os Insolventes/Apelantes contestavam esse valor e nunca o aceitaram e o acordo / transacção conseguido e homologado entre as duas partes foi fixado por metade na sentença homologatória.
X) – A sentença homologatória não ficou sujeita a condição mas só se tornou definitiva após 15 de Janeiro de 2023 pelo que não existia antes qualquer situação de incumprimento por parte dos Insolventes/Apelantes e a venda do bem/casa já tinha ocorrido em 19 de Agosto de 2022, facto este que nada teve a ver com a situação de insolvência que veio posteriormente a verificar-se.
Z) – O Tribunal errou na interpretação da factualidade ocorrida, errou no julgamento que fez e errou na aplicação do direito.
AA) – O Tribunal a quo errou na interpretação, na apreciação e na validação da prova documental junta ao Processo e na apreciação que fez do depoimento do Senhor Administrador Judicial feito em juízo.
BB) – Ao assim decidir deu como provado os factos constantes dos pontos 3 e 4 a 7 de forma errónea pelo que deve essa decisão ser alterada e dar essa matéria de facto como Não provada.
CC) – Consequentemente os erros verificados quanto ao julgamento da matéria de facto conduziram a que os factos constantes dos pontos 11,13 e 14 da matéria fossem dados por não provados.
DD) – Assim e como consequência da alteração àquela matéria erradamente dada por provada deve o Alto Tribunal da Relação, proceder à reapreciação de toda a factualidade e dar como provada a matéria constantes dos pontos 1 a 22 uma vez que todos estes pontos constam provados:
 Na acção interposta pelos Requerentes da insolvência decidida por homologação pelo J-1 do Juízo Central Cível de Almada dada como provada no ponto 4 da matéria de facto.
 No CPCV assinado em 16-10-2019 pelos Requerentes da insolvência quando se recusaram a outorgar a escritura de Compra e Venda definitiva do dito bem/casa pelo valor de € 300.000,00 que haviam prometido comprar.
Acresce dizer:
EE) – Que os Insolventes/Apelantes a partir da declaração da insolvência também não sonegaram nem venderam qualquer outro património que pusessem em causa o pagamento aos ditos credores.
FF) – Trata-se de mais um erro de interpretação e de apreciação praticada pelo Tribunal no julgamento que fez:
Vejamos:
GG) – O próprio sr. Administrador Judicial, declarou e admitiu que os Insolventes / Apelantes são proprietários de um outro bem imóvel (garagem) fracção “A” descrita na Conservatória do Registo Predial de Almada sob o n.º (…) constante do Auto de Apreensão de Bens datado de 08-08-2023 junto aos autos.
HH) – Esse bem existe e o sr. AJ declarou-o susceptível de avaliação como consta do seu requerimento da mesma data.
II) – A sentença proferida omite-o como omite o valor da dita (referida) avaliação que o sr. AJ menciona.
JJ) – Torna-se de inquestionável importância saber se o valor desse bem no mercado satisfaz ou não os ditos e alegados créditos provisoriamente admitidos e este facto a sentença pura e simplesmente o olvidou e omitiu.
LL) – Mais ainda o Tribunal pelo seu despacho de 27-09-2023 decidiu pronunciar-se pela liquidação e mandou prosseguir os autos nesse sentido por ter verificado que nenhum dos elencados e ditos credores se ter pronunciado e/ou deduzido oposição à proposta.
MM) – E o bem em causa/garagem foi decidido aliená-lo através de leilão electrónico – plataforma e-leilões.
NN) – Desconhece a sentença como desconhecem os Insolventes / Apelantes o que aconteceu a esse bem e ao valor porque foi avaliado.
OO) – O sr. AJ fê-lo desaparecer, ocultou-o (?), não o mandou avaliar (?), desinteressou-se dele (?) os ditos credores não o quiseram (?).
No fundo é: O que lhe aconteceu para a insolvência ser declarada culposa?.
PP) – Esse bem é um imóvel, ele existe, tem valor no mercado, os Insolventes / Apelantes perderam-lhe o rasto, o Sr. Administrador não o refere e o Tribunal nada decidiu quanto ao mesmo.
QQ) – Trata-se de mais um erro de apreciação e de valoração praticado pelo Tribunal que se torna determinante para a boa decisão da causa e, designadamente a qualificação da insolvência culposa que foi decidida, o que constitui uma omissão de pronúncia grave!
Mais ainda,
RR) – Srs. Desembargadores o procedimento do AJ é de tal modo imperceptível e ininteligível que:
 Em 09-10-2023 pronunciou-se “nada ter a opor” à exoneração do passivo restante (vide seu requerimento dessa data nos autos);
 Logo a seguir, em 11-10-2023 sob o pretexto de “esclarecer” veio dar o dito por não dito e pronunciar-se pelo não deferimento (vide esses seus dois requerimentos juntos aos autos nessas datas de 09-10 e 11-10).
SS) – Em 24 horas tudo se resolveu num círculo de 365.º com o pretexto descoberto do alegado incumprimento do dever de colaboração e da não apresentação voluntária à insolvência por parte dos Apelantes.
TT) – Trata-se duma argumentação descabida, descontextuada no espaço no tempo e sem qualquer elemento de prova minimamente justa e séria quanto à referida falta de colaboração (?) e à não apresentação voluntária à insolvência. Argumentos estes que o sr. AJ descobriu do dia para a noite entre o dia 09 e o dia 11 de Outubro de 2023 quando até ali nada disto tinha acontecido.
UU) – Também o Tribunal ao ter validado e valorada esta irrazoável posição do sr. AJ e a registá-la por fundamento incorreu um erro de julgamento e levou-o a produzir uma decisão errada nos pressupostos de facto e errada para a qualificação da insolvência.
O Ministério Público, em sede de contra-alegações, pugna pela manutenção da decisão recorrida.

As questões suscitadas no recurso são as seguintes:
- da impugnação da decisão relativa à matéria de facto;
- da falta de fundamento para a qualificação da insolvência como culposa.

III – Fundamentos
A – Os factos provados em 1.ª Instância
1. Em 23/5/2023, os credores (…) e (…) requereram a insolvência de (…) e (…), de forma a obter a satisfação do crédito.
2. A sentença de insolvência foi decretada em 30/6/2023.
3. Os insolventes deveriam ter se apresentado à insolvência a partir da data que tiveram conhecimento da impossibilidade em cumprir as suas obrigações vencidas, nomeadamente a partir de abril do ano de 2013, data em que se venceu a primeira dívida, o que não se verificou.
4. Por sentença proferida a 13 de Dezembro de 2022, no processo 3149/20.0T8ALM, que correu termos no Juízo Central Cível de Almada, J1, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi homologado o acordo celebrado entre os aqui requerentes e os aqui requeridos, pelo qual os primeiros reduziram o pedido que formularam, para o valor de € 34.500,00, que os aqui requeridos se confessaram devedores.
5. O valor do acordado na referida transação corresponde ao valor do sinal pago pelos aqui requerentes aos aqui requeridos no contrato promessa entre ambos celebrado.
6. Os requeridos não pagaram o valor aos requerentes até ao momento em que foi requerida a insolvência (16/5/2023), nem até ao presente.
7. Esta situação de incumprimento revela a contínua incapacidade dos insolventes em cumprirem as suas obrigações vencidas.
8. Em 19 de agosto de 2022, dentro dos dois anos anteriores à data da declaração de insolvência, os insolventes venderam o imóvel descrito na CRP sob o n.º (…) e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º (…), da freguesia de (…), a (…), pelo montante de € 300.000,00, diminuindo e ocultando o seu património global, em prejuízo dos credores;
9. O referido negócio foi prejudicial, tendo diminuído, frustrado, dificultado e colocado em causa a satisfação dos credores, tendo em conta que, caso o imóvel se encontrasse na propriedade dos insolventes, seria apreendido e vendido no âmbito da insolvência, revertendo pelo menos o montante de € 300.000,00 para a Massa Insolvente, e consequentemente, para a satisfação das custas processuais e dos credores.
10. O montante do pagamento foi depositado numa conta da insolvente, tendo, de seguida, sido levantado, desconhecendo se o paradeiro do valor correspondente ao preço recebido pelo imóvel (extratos bancários).
11. O ato foi praticado em benefício dos devedores, uma vez que estes realizaram € 300.000,00, através da sua capitalização no Banco (…), tendo, posteriormente, sido levantado, para fins desconhecidos.
12. Logo após o decretamento da insolvência, o mandatário dos devedores foi notificado por email enviado pelo Exmo. AI em 25 de junho de 2023, pelas 15h31 para o endereço de correio eletrónico “manuel.(…)advogados.oa.pt, bem como os próprios foram contatados por carta registada com aviso de receção datado de 30 de junho de 2023, para a residência fixada na sentença de insolvência Rua (…)n.º 4, 1.º esquerdo/frente, 8300 Silves, cujo o aviso de receção foi assinado pelo próprio (…), no sentido de disponibilizarem a documentação elencada no artigo 24.º do CIRE e qualquer outra informação que achassem relevante para o processo, no entanto não foi obtida qualquer resposta, nem enviado necessários à elaboração do relatório do artigo 155.º do CIRE (Doc. 7 E-mail e carta registada com aviso de receção), não obstante meses mais tarde (7 de setembro de 2023, já o relatório havia sido entregue, o mandatário dos devedores entrou em contato com o AJ, esclarecendo apenas sobre o paradeiro de veículos ainda registados em nome dos mesmos (Doc. 8 E-mail).
13. Este tipo de comportamento indicia a necessidade de ocultar não só as informações relevantes sobre a situação da insolvência, bem como ocultar a existência de bens que pudessem ser chamados à massa Insolvente, em particular o imóvel referido em 8.
14. Só posteriormente é que o AJ veio a ser conhecedor da situação da existência da escritura de alienação do imóvel e promoveu a investigação sobre o seu pagamento, de forma a esclarecer se se tratou de ato simulado.
Mais está documentalmente provado que:
15. O prédio urbano identificado no n.º 9 tinha sido objeto do CPCV celebrado a 26/10/2019 entre os Insolventes e os Credores (…) e (…).
16. Pela ap. de (…) foi registada penhora sobre o referido prédio relativa à quantia exequenda de € 38.120,01, em favor de (…) e outras, no âmbito do processo n.º 8203/19.8T8ALM.
17. Foram reclamados créditos sobre a insolvência pelo valor global de € 74.007,62;
18. Foi apreendida em favor da massa insolvente a fração autónoma designada pela letra A composta por garagem fechada, em (…), inscrita na matriz predial urbana com o artigo (…) e descrita na CRP de Almada sob o n.º (…), com o valor patrimonial de € 3.887,45, a sujeitar a avaliação.
19. Da caderneta predial consta a propriedade de tal fração em favor da Insolvente;
20. No âmbito das diligências realizadas pelo AI, foram apuradas 4 viaturas automóveis registados em favor dos Insolventes, devidamente identificadas no relatório do AI relativo ao artigo 155.º do CIRE, datado de 08/08/2023.

B) O Direito
Da impugnação da decisão relativa à matéria de facto
Os Recorrentes sustentam que deve ser dado como não provado o que consta dos n.ºs 3, 7 a 9 dos factos provados.
Assiste-lhes razão.
Tais itens contêm menções relativas a juízos de cariz conclusivo e/ou jurídico que decorrem da interpretação do regime jurídico que conforma o Incidente de Qualificação da Insolvência e da respetiva aplicação a factos precisos e concretos.
Desde logo, o que consta sob o n.º 3 contende com o disposto no artigo 18.º do CIRE, normativo que rege o dever de apresentação à insolvência, a partir do qual há de lavrar-se o juízo tendente a determinar se sobre os Devedores recaía o dever de apresentação à insolvência.
Exclui-se, portanto, o n.º 3 do rol dos factos provados.
No n.º 7 ficou exarado que a falta de pagamento, pelos Devedores promitentes vendedores, da quantia fixada em transação judicial revela a contínua incapacidade dos insolventes cumprirem as suas obrigações vencidas.
O que, consubstanciando uma apreciação crítica do facto “incumprimento”, não tem cabimento na matéria de facto provada.
Exclui-se o n.º 7 do rol dos factos provados.
No n.º 8 consta a menção de que a venda do imóvel que anteriormente os Devedores tinham prometido vender aos Credores Requerentes da insolvência implicou a diminuição e ocultação do património global, em prejuízo dos credores. Segue o n.º 9 afirmando que o negócio foi prejudicial, tendo diminuído, frustrado, dificultado e colocado em causa a satisfação dos credores, tendo em conta que, caso o imóvel se encontrasse na propriedade dos insolventes, seria apreendido e vendido no âmbito da insolvência, revertendo pelo menos o montante de € 300.000,00 para a Massa Insolvente, e consequentemente, para a satisfação das custas processuais e dos credores.
Configura matéria conclusiva, que assenta em juízos e considerações, não se tratando da narração de factos, para além de que são considerações merecedoras de reparo. Pois se sobre o imóvel incidia penhora, não tem cabimento a afirmação de que, caso o prédio não tivesse sido alienado, este reverteria pelo valor de € 300.000,00 em favor da massa insolvente.
Acresce que nunca seria de afirmar que o negócio da venda do prédio urbano implicou na ocultação do património global porquanto foram identificados outros bens na titularidade dos Insolventes.
Termos em que vai excluído do n.º 8 dos factos provados a menção “diminuindo e ocultando o seu património global, em prejuízo dos credores” assim como o n.º 9 dos factos provados.
Sustentam ainda os Recorrentes que o n.º 13 deve dar-se como não provado.
Matéria conclusiva que, pelo que se deixa acima exposto, não pode integrar o rol dois factos provados.
Afigura-se que o mais alegado pelos Recorrentes em sede de impugnação da decisão relativa à matéria de facto não contende nem tem relevância para a decisão da causa, pelo que disso não se toma conhecimento – artigo 130.º do CPC.

Da falta de fundamento para a qualificação da insolvência como culposa
Nos termos do disposto no artigo 185.º do CIRE, a insolvência é qualificada como culposa ou fortuita.
A situação de insolvência do devedor traduz que este se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas – cfr. artigo 3.º/1, do CIRE. Esse estado de impossibilidade pode ser casual/fortuito ou pode ser culposo, o que se verifica se tiver sido criado ou agravado sem consequência da atuação, dolosa ou com culpa grave, do devedor, ou dos seus administradores, de direito ou de facto, nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência. É o que decorre do disposto no artigo 186.º/1, do CIRE.
«A qualificação da insolvência como culposa reclama, portanto, uma conduta ilícita e culposa do devedor ou dos seus administradores. A ilicitude do comportamento do devedor ou dos seus administradores reparte-se por elementos objetivos e subjectivos.
O elemento objetivo afere a ilicitude da atuação do devedor ou dos administradores pela sua correspondência com o estado de insolvência do primeiro: a conduta é ilícita se dela resulta a criação ou agravamento da situação de insolvência. O elemento subjectivo valora a conduta pelo conhecimento e vontade do devedor ou dos seus administradores na criação ou agravamento da situação de insolvência, i.e., pelo dolo ou pela negligência daquele ou destes. Mas não releva uma qualquer negligência – mas apenas uma negligência grave ou grosseira, quer dizer, uma negligência de grau essencialmente aumentado ou intensificado, portanto, uma violação particularmente qualificada dos deveres de cuidado ou diligência presentes no caso.
A culpa do devedor ou dos seus administradores decorre de um juízo de censurabilidade, em cuja formulação devem ser consideradas as condições que justificam que lhes seja dirigida essa censura. A censurabilidade da conduta é uma apreciação de desvalor que resulta do reconhecimento de que o devedor, ou os seus administradores, nas circunstâncias concretas em que atuaram, podiam ter conformado a sua conduta de molde a evitar a queda do primeiro na situação de insolvência ou agravamento do estado correspondente. A censurabilidade do comportamento do devedor ou dos seus administradores é um juízo feito pelo tribunal sobre a atitude ou motivação de um e de outros, segundo o que pode ser deduzido dos factos provados.
O desvalor que fundamenta a ilicitude da conduta do devedor ou dos seus administradores encontra-se no resultado: a criação ou agravamento da situação de insolvência. Devendo a ilicitude referenciar-se a esse resultado antijurídico, importa verificar, não apenas que esse resultado se produziu, mas se ele pode ser atribuído – imputado – à conduta.
É a exigência de um relacionamento ou de uma conexão dessa conduta com o evento a que se procura dar resposta com a causalidade.»[1]
Importa, pois, aferir o caráter doloso da conduta do devedor ou dos respetivos administradores e, bem assim, estabelecer a relação de causalidade entre a conduta em causa e a criação ou agravamento da situação de impossibilidade de cumprimento das obrigações vencidas.
Assim,
Considera-se sempre culposa a insolvência do devedor que não seja uma pessoa singular quando os seus administradores, de direito ou de facto, tenham:
a) Destruído, danificado, inutilizado, ocultado, ou feito desaparecer, no todo ou em parte considerável, o património do devedor;
b) Criado ou agravado artificialmente passivos ou prejuízos, ou reduzido lucros, causando, nomeadamente, a celebração pelo devedor de negócios ruinosos em seu proveito ou no de pessoas com ele especialmente relacionadas;
c) Comprado mercadorias a crédito, revendendo-as ou entregando-as em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente, antes de satisfeita a obrigação;
d) Disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiros;
e) Exercido, a coberto da personalidade coletiva da empresa, se for o caso, uma atividade em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;
f) Feito do crédito ou dos bens do devedor uso contrário aos interesses deste, em proveito pessoal ou de terceiros, designadamente para favorecer outra empresa na qual tenham interesse direto ou indireto;
g) Prosseguido, no seu interesse pessoal ou de terceiro, uma exploração deficitária, não obstante saberem ou deverem saber que esta conduziria com grande probabilidade a uma situação de insolvência;
h) Incumprido em termos substanciais a obrigação de manter contabilidade organizada, mantido uma contabilidade fictícia ou uma dupla contabilidade ou praticado irregularidade com prejuízo relevante para a compreensão da situação patrimonial e financeira do devedor;
i) Incumprido, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º,
conforme dispõe o n.º 2 do citado artigo 186.º do CIRE.
Por via do disposto no n.º 4 da mesma disposição legal, tal regime aplica-se à atuação de pessoa singular insolvente, onde a isso não se opuser a diversidade das situações.
Os atos enunciados no n.º 2 do artigo 186.º do CIRE consubstanciam uma presunção iuris et de iure de insolvência culposa, ou seja, a verificação de alguma das situações a que alude o n.º 2 do referido artigo 186.º do CIRE, determina, inexoravelmente, a atribuição de caráter culposo à insolvência.[2] Verificada a existência de factos que se reconduzam às situações previstas no n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, extrair-se-á, em princípio (a lei extrai, ficciona) a ilação da verificação da insolvência culposa, sem necessidade de comprovação (ou alegação) de outros factos. «Em princípio» porquanto, analisadas as situações previstas nas várias alíneas do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, se constata que, em algumas das situações aí previstas, será preciso alegar algo mais – ver previsão das alíneas h) e i) do n.º 2 do citado artigo 186.º do CIRE, já que a referência a «incumprimento substancial» ou «reiterado» pressupõe a sua concretização em termos de facto que conduzam a essa conclusão.[3]
O n.º 3 consagra a presunção de culpa grave nas indicadas situações fácticas, o que admite prova em contrário, nos termos do disposto no artigo 350.º, n.º 2, do CC. Ainda que se verifique tal presunção, como se trata unicamente da presunção de culpa grave, sempre será de apurar o nexo de causalidade entre as condutas aí referidas e a criação ou o agravamento da situação de insolvência, ou seja, que tais condutas causaram ou agravaram a situação de insolvência, nos termos do disposto no artigo 186.º/1, do CIRE. Certo é que, no entanto, «o incumprimento da obrigação de apresentação à insolvência nunca poderá ser a causa da criação da situação de insolvência, uma vez que é na situação de insolvência que reside a fonte desta obrigação.»[4]
Em 1.ª Instância, a insolvência foi qualificada como culposa nos termos do disposto no artigo 186.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a), d) e i), do CIRE.
A alínea a) da mencionada disposição legal reporta-se aos atos de destruir e danificar o património do devedor, implicando na diminuição do respetivo valor; aos atos de o inutilizar, o que vale por dizer, de tornar imprestável, sem utilidade ou inoperacional bens que integrem o património; aos atos de ocultação ou descaminho por via dos quais não seja possível alcançar a localização dos bens para efeitos de apreensão e sujeição ao processo de insolvência.
«Estão em causa na sobredita alínea “atuações que, por vários meios – destruição, danificação, inutilização, ocultamento ou desaparecimento dos bens – afetam o património do devedor, no todo ou em parte considerável.”[5] A previsão típica é dirigida a ações materiais, isto é, ações que incidam direta e imediatamente sobre as coisas que integram o património do devedor, em consequência das quais este sofre pelo menos considerável afetação, e não uma atuação dirigida à alteração da situação jurídica do bem. A entender-se de outro modo, qualquer negócio de disposição de bens da devedora, ainda que legítimo, desde que preenchido o requisito da segunda parte da previsão legal implicaria a qualificação da insolvência como culposa, porque dele sempre resultaria dificultado o acionamento desse mesmo bem pelos credores.»[6]
Trata-se, no caso em apreço, da venda do imóvel, em agosto de 2022, pelo valor de € 300.000,00.
Trata-se da venda do imóvel que foi objeto do CPCV celebrado entre os Insolventes e os Requerentes da insolvência e donde emergiu o direito destes a obter daqueles a quantia de € 34.500,00, conforme sentença de 13/12/2022.
Os demais créditos reclamados ascendem a cerca de € 40.000,00, não estando evidenciado os que se encontravam já vencidos e em que medida.
Não consta que a venda tenha sido efetivada com sujeito relativamente a qual os Insolventes tivessem relação.
Acaso a aquisição que os Requerentes da insolvência perspetivaram efetuar, reportando-se ao mesmo imóvel e por aquele preço, consubstanciava uma atuação concertada com os ora Insolventes no sentido de estes lograrem ocultar dos seus credores parte considerável do respetivo património?
Afigura-se inexistirem dados de facto que revelem que tal negócio constituía meio de os ora Insolventes fazerem desaparecer o imóvel do seu património, com isso criando ou agravando a situação de insolvência.
Assim como se afigura inexistirem dados de facto donde se retire que o contrato de compra e venda celebrado em agosto de 2022, concretizando a já conhecida predisposição dos proprietários para a alienação do bem, possa assumir-se como um ato consumado para ocultação ou descaminho do imóvel.
A utilização pelos Devedores Insolventes do saldo líquido desse negócio (sobre o imóvel estava registada penhora, cujo crédito há de ter sido pago no âmbito dessa operação), na falta de outros elementos, não configura ocultação de património.
Nem há fundamento para afirmar que os Devedores deviam ter afetado o referido saldo ao pagamento do crédito dos Requerentes da Insolvência, uma vez que se tratava de crédito litigioso: estes reclamavam daqueles a devolução do sinal em dobro (no montante global de € 69.000,00); aqueles sustentavam nada terem a pagar; a sentença homologatória da transação judicial que reconheceu o crédito de € 34.500,00 foi proferida a 13/12/2022. Por conseguinte, não é censurável a conduta dos Devedores de omissão de pagamento da verba pretendida pelos Credores Requerentes da insolvência aquando do recebimento do preço da venda do imóvel.
Termos em que se conclui pela não verificação da circunstância qualificativa versada na alínea a) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
Na alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE está consagrada a qualificativa alicerçada na disposição dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiro. A conduta censurável, que implica se considere sempre culposa a insolvência do devedor, consiste na atuação de determinado sujeito que tenha disposto dos bens do devedor em proveito pessoal ou de terceiro. O que está em causa é o ato de alienar, de transferir, de se desfazer dos bens do devedor, privando este da posse, do gozo das respetivas utilidades e/ou da propriedade deles, de modo a que revertam em proveito pessoal do referido sujeito ou de terceiro.
Ora, é bom de ver que esta qualificativa não é aplicável à atuação de pessoa singular insolvente (cfr. artigo 186.º/2 e 186.º/4, do CIRE). Não é concebível circunstância em que o devedor pessoa singular se desfaça de bem seu em seu próprio proveito, continuaria a ser bem seu. O que aqui se pretende aludir é à atuação de administradores do devedor, que dispõem de bens da entidade que representam em seu próprio benefício ou em benefício de terceiros.
Na verdade, é por referência aos princípios da garantia patrimonial dos direitos dos credores e do tratamento igualitário dos credores que se determina o alcance dos elementos normativos disposto dos bens e proveito pessoal ou de terceiros que integram o facto qualificador da insolvência previsto pela alínea d). Assumindo-se a insolvência como como processo de execução universal e concursal, que tem como finalidade a satisfação dos interesses patrimoniais dos credores através da liquidação da totalidade do património do devedor para afetação do respetivo produto à satisfação dos direitos dos credores (sem embargo de estar consagrada no artigo 1.º/1, do CIRE a finalidade preferencial de recuperação do devedor), a circunstância qualificativa consagrada na alínea d) pretende sancionar a conduta de disposição dos bens do devedor para proveito próprio do sujeito (que não o devedor) ou de terceiro, designadamente para satisfação de crédito de terceiro: ato que, redundando na diminuição da massa insolvente, é prejudicial ao património do devedor e, consequentemente, aos interesses dos credores, e que traduz o favorecimento do credor/terceiro beneficiário dessa disposição em detrimento de todos os demais credores.[7]
Relevantes são, portanto, os “…comportamentos dos administradores do insolvente que, afetando a situação patrimonial deste, implicam concomitantemente benefício para o próprio administrador que os adota ou para terceiros”[8] «Para o efeito da previsão normativa, são atos de disposição tanto aqueles que têm por efeito a saída dos bens do património do devedor (como sucede, por exemplo com a venda ou a doação dos bens) como os que, não implicando necessariamente a saída dos bens do património do devedor, retiram-lhe, no entanto, a disponibilidade, colocando-os na disponibilidade de outrem, formulando no entanto o legislador a exigência adicional de que o ato de disposição seja feito em proveito pessoal dos administradores ou de terceiros.»[9]
«Ter-se-ão de apurar factos de onde decorra que os Administradores, de facto ou de direito, da devedora/Insolvente realizaram:
1. atos de disposição;
2. de bens do devedor;
3. em proveito pessoal (do Administrador) ou de terceiros.»[10]
Decorre linearmente do exposto não ser de chamar à colação, no caso em apreço, a previsão da alínea d) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.
Mais se exarou em 1.ª Instância ter-se verificado a circunstância qualificativa prevista na alínea i) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE, ou seja, que os Devedores incumpriram, de forma reiterada, os seus deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º até à data da elaboração do parecer referido no n.º 6 do artigo 188.º. Aludiu-se à falta de apresentação à insolvência, à falta de junção dos documentos versados no artigo 24.º/1, do CIRE e à não indicação de informação relevante, tendo para tanto os Devedores sido interpelados.
A previsão da norma reporta-se a incumprimentos de forma reiterada, o que vale por dizer, de forma repetida, sistemática, frequente.
Por outro lado, o dever de apresentação é o dever de apresentação em tribunal, sempre que seja convocado (cfr. artigo 83.º, n.º 1, alínea b), do CIRE). Não se trata do dever de apresentação à insolvência – até porque tratando-se, como se trata, de devedores pessoas singulares que não consta fossem titulares de uma empresa, não estão sujeitos ao dever de se apresentarem à insolvência (cfr. artigo 18.º, n.º 2, alínea b), do CIRE).
A falta de resposta à carta datada de 30/06/2023 remetida pelo AI aos Devedores intimando-os a disponibilizarem a documentação elencada no artigo 24.º do CIRE e a indicarem informação relevante para o desenvolvimento do processo não consubstancia incumprimento reiterado dos deveres de apresentação e de colaboração previstos no artigo 83.º.
Não resulta, pois, preenchida a previsão do mencionado normativo legal.

Em face do que cabe concluir pela falta de fundamento para qualificar como culposa a insolvência dos Devedores Recorrentes.

Sumário: (…)

IV – DECISÃO
Nestes termos, decide-se pela total procedência do recurso, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, qualificando-se a insolvência como fortuita.

Custas pela massa insolvente.
Évora, 5 de junho de 2025
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Maria Domingas Simões
Cristina Dá Mesquita

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[1] Ac. do TRC de 07/02/2012 (Henrique Antunes).
[2] Cfr. Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE anotado, 3.ª edição, pág. 680.
[3] Ac. do TRP de 10/02/2011.
[4] Catarina Serra, Julgar n.º 48 – 2022, pág. 21.
[5] Carvalho Fernandes, Themis, Edição Especial, Novo Direito da Insolvência, 2005, pág. 95, nota 23.
[6] Ac. do TRC de 16/12/2015 (Maria Domingas Simões, aqui 1.ª Adjunta).
[7] Cfr. Ac. do TRL de 18/04/2023 (Amélia Rebelo).
[8] Carvalho Fernandes, Themis, loc. cit., conforme citação no Ac. do TRC transcrito.
[9] Ac. do TRC de 16/12/2015 (Maria Domingas Simões).
[10] Ac. do TRG de 01/06/2017 (Pedro Damião e Cunha).