CABEÇA DE CASAL
PRESTAÇÃO DE CONTAS
ACTO DE ADMINISTRAÇÃO
CONFUSÃO
Sumário

1. Importa dissociar a posição de cabeça-de-casal e a obrigação de prestar contas, porquanto a natureza intuitu personae daquela posição, que determina a respetiva intransmissibilidade em vida ou por morte, não obsta à transmissão por via sucessória da obrigação de prestar contas, a qual assume natureza patrimonial.
2. No entanto, quando os herdeiros do cabeça-de-casal são eles próprios os únicos interessados na partilha, como sucede no caso em apreço, porquanto as duas irmãs A. e R. são as únicas herdeiras do seu falecido pai, de cuja herança era cabeça-de-casal a mãe de ambas, deve considerar-se que ocorre uma causa de extinção da obrigação de prestação de contas consubstanciada na reunião, no mesmo sujeito jurídico, das qualidades de credor e devedor, na medida em que cada uma das duas herdeiras tem simultaneamente o direito de exigir e de prestar contas à outra.
3. A posição de auxiliar na execução de atos de administração decididos pelo cabeça-de-casal não consubstancia exercício de administração de facto.
(Sumário da Relatora)

Texto Integral

Apelação n.º 1348/20.3T8FAR-F.E1
(1ª Secção)

Sumário: (…)

(Sumário da responsabilidade da Relatora, nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil)


***

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

I – Relatório

1. (…) intentou o presente processo especial de prestação de contas contra (…), que corre os seus termos como apenso F ao processo de inventário instaurado para partilha da herança deixada por (…), pedindo a prestação de contas por parte da R. relativamente à administração das heranças deixadas pelos pais da A. e da R., com respeito ao período compreendido entre 29.03.2007 e 31.12.2016.

Alegou, essencialmente, que sendo a obrigação de prestar contas de natureza patrimonial, ela é suscetível de transmissão para os respetivos herdeiros de quem fez administração de bens alheios, não se verificando, por isso, em sede de ação de prestação de contas, a impossibilidade originária da lide pelo facto de ter ocorrido a morte de quem exerceu essa administração.

Conclui, assim, estar a sua irmã obrigada a prestar contas da administração da herança dos pais, por virtude do falecimento da mãe.

2. Citada, a R. invocou a exceção de caso julgado, e contestou a obrigação de prestar contas com referência a tal período de tempo, alegando que nos termos do artigo 2095.º do Código Civil o cargo de cabeça-de-casal não é transmissível em vida, nem por morte, pelo que não foi transmitido à R. esse cargo, por morte da mãe de ambas, antes as duas filhas, A. e R., sendo as suas únicas herdeiras, assumiram, num todo e em bloco, os direitos e obrigações patrimoniais que cabiam à mãe.

A esta exceção, respondeu a A..

3. Foi, de seguida, proferido despacho saneador, onde começou por se afirmar que “Atendendo aos factos assentes por confronto dos articulados das partes, o Tribunal encontra-se em condições de proferir já decisão sobre a contestada obrigação de prestar contas com referência ao período compreendido entre 29.03.2007 e 31.12.2016”, e se conheceu, de imediato, da exceção de caso julgado, que foi julgada improcedente, bem como do objeto da causa, finalizando com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, julga-se a presente acção improcedente por inexistência da obrigação de prestar contas por parte da Ré no período compreendido entre 29.03.2007 e 14.12.2016; e por verificação da excepção dilatória de litispendência na parte referente ao período compreendido entre de 15.12.2016 e 31.12.2016 e, consequentemente, decide-se absolver a Ré do peticionado pela Autora.”

4. Inconformada com a decisão acima transcrita, veio a Autora interpor recurso da mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

A- A recorrente (…) não se pode conformar com a douta sentença proferido em 19.11.2024 pelo Juízo Local Cível de Faro-Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Faro, que decidiu julgar a presente acção de prestação de contas improcedente, por inexistência da obrigação de prestar contas por parte da Ré no período compreendido entre 29.03.2007 e 14.12.2016; e por verificação da excepção dilatória de litispendência na parte referente ao período compreendido entre de 15.12.2016 e 31.12.2016.

B- No caso em apreço, a obrigação da Ré, de prestar contas do património hereditário relativamente ao período compreendido entre 29.03.2007 e 14.12.2016, decorre dos poderes de gestão do património hereditário conferidos pela mãe (…) na procuração 15 de Dezembro de 2016 e dos poderes de representação no processo especial de prestação de contas n.º 2512/13.7T8FAR, que correu termos pelo Juízo Local Cível de Faro-Juiz 1, que tinha por objecto o da prestação de contas da herança indivisa daquele período temporal.

C- Na realidade, a Ré (…), com ou sem poderes legais ou convencionais de administração da herança, sempre exerceu, de facto, a administração do património hereditário, ainda que em determinados períodos não possuísse poderes legais ou convencionais para administrar os bens que compõem o património hereditário deixado pelos falecidos pais.

D- A douta sentença recorrida dá como provado que: “(…)

1. Em 27.09.2013, a aqui Autora instaurou contra sua mãe (…), esta na qualidade de cabeça de casal da herança deixada por (…), o processo especial de prestação de contas 2512/13.7TBFAR, que correu termos no Juízo Local Cível de Faro – Juiz 1.

2. (…) faleceu em 21.03.2007.

3. (…) é pai da aqui Autora e da aqui Ré.

4. (…) é mãe da aqui Autora e da aqui Ré.

5. (…) deixou como herdeiras: (…), com quem era casado; e as suas duas filhas.

6. A aqui Ré não interveio como parte no processo especial de prestação de contas n.º 2512/13.7TBFAR.

7. No âmbito do processo especial de prestação de contas 2512/13.7TBFAR, em 11.11.2013, a aí Ré, (…), apresentou contas de 23.03.2007 a 15.10.2013, as quais vieram a ser contestadas pela aí (também aqui) Autora.

8. Na Audiência Final, realizada em 27.01.2017 no âmbito do processo especial de prestação de contas n.º 2512/13.7TBFAR, estiveram as partes em vias de chegar a acordo requerendo a suspensão da diligencia até 22.03.2017 para melhor apurarem os saldos dos anos de 2015 e 2016, o que foi deferido.

9. Por requerimento de 21.09.2017, a aqui Ré juntou ao processo especial de prestação de contas 2512/13.7TBFAR uma Procuração, outorgada a 15 de Dezembro de 2016 por(…), pela qual esta constituiu a aqui Ré sua bastante procuradora, conferindo-lhe os mais amplos poderes para praticar os seguintes actos de gestão da herança indivisa: ”(…) a) Para dar ou tomar de arrendamento quaisquer bens imóveis ou frações autónomas de bens imóveis, quer para habitação, comércio ou indústria, nos termos e condições que entender convenientes, assinando os respetivos contratos promessa de arrendamento e escrituras, pagar ou receber as respetivas rendas, para subarrendar no todo ou em parte, todos os bens ou frações que tomar de arrendamento, pela condições e termos que entender convenientes, assinando os respetivos contratos promessa de subarrendamento e as respetivas escrituras, e ainda para dar ou tomar de trespasse quaisquer estabelecimentos comerciais pelos preços e condições que entender convenientes, e para ceder ou tomar a exploração temporária de quaisquer estabelecimentos comerciais em Portugal pelos preços e condições que entender adequados, assinando contratos promessa e as respetivas escrituras; b) Para assinar na qualidade de comodante quaisquer contratos de comodato relativamente a bens imóveis ou moveis de que seja ou venha a ser possuidora, podendo acordar os respetivos termos e condições e enviar notificações relacionadas com os referidos contratos de comodato; c) Para junto das Conservatórias do Registo Predial, Comercial ou Automóvel, requeres quaisquer atos de registo, provisórios ou definitivos, retificações, averbamentos ou cancelamentos, prestando declarações complementares; bem como representá-la no Serviço de Finanças, liquidar impostos ou contribuições, podendo reclamar dos indevidos ou excessivos, recebendo títulos de anulação e as suas correspondentes importância, requerer avaliações fiscais e inscrições matriciais, fazer manifesto, alterá-los ou cancelá-los e apresentar relações de bens; d) Para representar perante Câmaras Municipais, onde poderá submeter quaisquer projetos de construção, de legalização de construções, ou projetos de alterações, fazer declarações e apresentar exposições e requerer a junção de quaisquer documentos relativos a processos em seu nome, requerer vistorias e a emissão de alvarás de licença de construção e de habitabilidade, produzir defesa escrita ou oral em processos de contraordenação nos quais possa ser parte, requerer e contratar o fornecimento de água para os imóveis que lhe pertençam junto de quaisquer Serviços Municipalizados, requerer o licenciamento de cartazes publicitários, e o destaque ou desanexação de parcelas de bens imóveis, e de um modo geral para a representar em todos os assuntos de competência autárquica, incluindo a representação junto de Juntas de Freguesia; e) Para a representar perante a Repartição de Finanças, apresentando declarações de prédio novo ou de alteração de prédio inscrito, pagando contribuições e impostos, contestando e recorrendo de avaliações e de importâncias cobradas em excesso, e ainda para apresentar quaisquer declarações de rendimentos; f) Para a representar junto de qualquer Companhia, Gás, Eletricidade, Telefones e Águas, ou perante quaisquer outras entidades similares, em todos os assuntos que direta ou indiretamente lhe digam respeito, estabelecendo com as mesmas quaisquer contratos, nos termos que tiver por convenientes; g) Para a representar em quaisquer entidades Públicas e/ou Privadas, designadamente junto de todos e quaisquer Ministérios, Institutos, Delegações e outros serviços públicos ou privados, podendo solicitar, reclamar e receber subsídios e tudo o que tenha a ver com as suas propriedades, podendo apresentar projetos, nomeadamente, sobre energias alternativas, como produtor e/ou utilizador; h) Para receber em qualquer lugar inclusive nos CTT, quaisquer quantias, objetos ou valores, cartas registadas ou não, e tudo o mais que se apurar pertencer-lhe seja a que título for, assinando os competentes recibos e quitação; i) Para a representar perante todas as repartições, entidades e indivíduos, nomeadamente, tribunais ou juízos, em todos e quaisquer processos, seus incidentes e recursos, usando dos mais amplos poderes forenses em direito permitidos, devendo, quanto a estes, substituir-se por advogado ou solicitador, quando tenham de recorrer a juízo, podendo, em nome dele outorgar, assistir a audiências preparatórias, para tentativas de conciliação, transigindo, confessando, e desistindo do pedido ou da instância em qualquer ação, seja de que natureza for, assinando os respetivos termos de responsabilidade, assim como requerer penhora e arrematações; (…)”.

10. Em 24.05.2018, no âmbito do processo especial de prestação de contas 2512/13.7TBFAR, realizou-se uma audiência de tentativa de conciliação, na qual a aí Ré, (…), foi representada pela aqui Ré, ficando suspensa a instância por um período de vinte dias para que fosse possível o apuramento dos saldos dos anos de 2015 e 2016 e ser posto termos ao litígio.

11. Por email de 24.06.2018, a aqui Ré enviou à Autora uma conta-corrente de despesas e receitas da herança indivisa, relativamente ao período compreendido entre 29.03.2007 e 28.04.2017.

12. No dia 28.04.2018, (…) faleceu deixando um Testamento Público a favor da aqui Ré, no qual esta foi nomeada testamenteira.

13. Com o falecimento da Ré, por despacho de 10.09.2018 proferido no âmbito do processo especial de prestação de contas n.º 2512/13.7TBFAR, foi declarada a suspensão da instância até ser promovida a habilitação dos sucessores da parte falecida.

14. No âmbito do processo especial de prestação de contas n.º 2512/13.7TBFAR, por falta de impulso processual, a instância foi declarada deserta e, consequentemente, julgada extinta a instância.

15. Em 13.01.2020, a aqui Autora intentou contra a aqui Ré, na qualidade de cabeça de casal das heranças por óbito de (…) e (…), acção com processo especial de prestação de contas que veio a ser apensada ao processo de inventário Proc. 1348/20.3T8FAR (apenso C), e no âmbito da qual, por decisão de 24.02.2021, foi reconhecido o dever da Ré de prestar contas da administração da herança dos inventariados relativamente ao período compreendido entre 15.12.2016 e o presente (data em que foi proferida a decisão).

16. No âmbito do processo de prestação de contas n.º 1348/20.3T8FAR-C, a Ré prestou contas da administração da herança dos inventariados relativamente ao período compreendido entre 15.12.2016 e 28.09.2021.”.

E- Da matéria de facto dado como provado na sentença recorrida resulta claramente que a Ré, pela procuração outorgada pela mãe (…) em 15-12-2016, foi investida de poderes de gestão do património hereditário deixado pelo pai (…) e de representação da mãe no processo especial de prestação de contas 2512/13.7TBFAR, que, à data, corria termos no Juízo Local Cível de Faro – Juiz 1.

F- Em 24.05.2018, no âmbito do processo especial de prestação de contas n.º 2512/13.7TBFAR, realizou-se uma audiência de tentativa de conciliação, na qual a aí Ré, (…), foi representada pela aqui Ré, ficando suspensa a instância por um período de vinte dias para que fosse possível o apuramento dos saldos dos anos de 2015 e 2016 e ser posto termos ao litígio.

G- A Ré, por email de 24.06.2018, enviou à Autora uma conta-corrente de despesas e receitas da herança indivisa, relativamente ao período compreendido entre 29.03.2007 e 28.04.2017.

H- Em 28.06.2018, (…) faleceu deixando um Testamento Público a favor da aqui Ré, no qual esta foi nomeada testamenteira.

I- Com o falecimento da (…), por despacho de 10.09.2018, proferido no âmbito do processo especial de prestação de contas 2512/13.7TBFAR, foi declarada a suspensão da instância e, posteriormente, por falta de impulso processual, aquela mesma instância foi declarada deserta e, consequentemente, julgada extinta a instância.

J- O falecimento da (…) e a falta de impulso processual naquele outro processo de prestação impediu a Autora de, nos termos do artigo 945.º, n.º 1, do CPC, apreciar as contas da herança indivisa apresentadas pela Ré por email de 24 de Junho de 2018 relativamente ao período de tempo compreendido entre de 29 de Março de 2007 a 14 de Dezembro de 2016.

K- A Ré, não obstante estar obrigada à prestação de contas da gestão do património hereditário em virtude dos poderes conferidos pela mãe na procuração outorgada em 15-12-2016 e, posteriormente, por ter sido nomeada testamenteira no testamento de 10-05-2013, sempre se escusou à prestação voluntária de contas da herança indivisa à Autora.

L- Situação de facto que obrigou a que a Autora deitasse mão de duas novas acções de prestação de contas, presentemente a correr termos por apenso ao processo de inventário n.º 1348/20.3T8FAR, no Juízo Local Cível de Faro-Juiz 1, com os n.ºs 1348/20.3T8FAR-C e 1348/20.3T8FAR-D.

M- Por decisão proferida em 24-02-2021, já transitada em julgado, no Processo n.º 1348/20.3T8FAR-C, o tribunal decidiu: “Ter a Ré o dever de prestar contas da administração da herança dos inventariados relativamente ao período compreendido entre 15.12.2016 e o presente”.

N- Pelo que, não se verifica a excepção dilatória de litispendência relativamente à obrigação de prestação de contas pela Ré, na parte referente ao período compreendido entre de 15.12.2016 e 14.12.2016.

O- Com efeito, a decisão proferida em 24-02-2021 no Processo n.º 1348/20.3T8FAR-C, determina, para futuro, a data a partir da qual a Ré está obrigada a prestar contas no âmbito daquele processo: “Ter a Ré o dever de prestar contas da administração da herança dos inventariados relativamente ao período compreendido entre 15.12.2016 e o presente”.

P- A Ré, que 4 (quatro) dias antes da mãe falecer apresentou à Autora a Conta-Corrente da herança relativamente ao período compreendido entre 29.03.2007 e 28.04.2017, está obrigada a prestar as contas da herança relativamente ao período compreendido entre 29.03.2007 e 14.12.2026, por forma a que seja concluído o apuramento e aprovação de receitas obtidas e despesas realizadas naquele período de tempo.

Q- Em 07 de Agosto de 2013, no Cartório Notarial de Vilamoura, a (…) produziu e assinou a seguinte declaração: ”(…)

Declaro, na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de (…), que me assiste e auxilia na execução dos actos de decisões por mim tomadas enquanto administradora da herança supra referida, e sob a minha direcção, a minha filha (…) (também herdeira) numa coadjuvação e cooperação nos mesmos moldes que já exercia enquanto vida do meu falecido marido, sempre de acordo com as suas directrizes. (…)”;

R- Em 9 de Dezembro de 2016, no mesmo Cartório Notarial de Vilamoura, a (…) outorgou a favor da aqui Ré (…) uma primeira procuração a quem conferiu a os seguintes poderes de administração da herança indivisa: “(…)

Procuração

(…), NIF (…), natural da freguesia de (…), concelho de Faro, residente em Sítio do (…), (…), Faro, constituem bastante procuradora, a sua filha (…), casada, natural da freguesia de (…), concelho de Faro, residente na Praceta da (…), lote 2, (…), (…), Faro, a quem confere os poderes para:

a) Para me representar em quaisquer entidades Públicas e/ou privadas, designadamente Câmaras Municipais, Conservatórias do Registo Predial, Serviços de Finanças, Segurança Social, Juntas de Freguesia e junto de todos e quaisquer Ministérios, Institutos, podendo solicitar, reclamar e receber tudo o que tenha a ver com negócios ou contratos, inclusive anteriormente celebrados, liquidar impostos ou contribuições, podendo reclamar dos indevidos ou excessivos, recebendo título de anulação e as suas correspondentes importâncias, requerer avaliações fiscais e inscrições matriciais, fazer manifesto, alterá-los ou cancelá-los e apresentar relações de bens;

b) Arrendar e dar de arrendamento nos termos e nas condições que entender quaisquer imóveis, assinar os respetivos contratos, pagar ou receber as rendas, assinar e requerer tudo o que se mostre necessário para a prossecução deste fim;

c) Representar-me perante quaisquer bancos ou entidades financeiras, abrindo, movimentando, a credito ou a débito, ou encerrando quaisquer contas de depósito, à ordem ou a prazo, ou produtos financeiros de outra natureza, solicitando a emissão de cartões de débito e/ou de crédito, cheques, incluindo bancários ou visados, extratos de contas bancárias, códigos de acesso PIN ou acessos de homebanking, ou segundas vias de quaisquer documentos relacionados, podendo fazer levantamentos em numerário, assinando cheques do mandante como se deste se tratasse, podendo dar instruções de movimentação de contas de forma escrita ou verbalmente, designadamente por telefone, fax, email ou qualquer outra forma legalmente admitida; ordenando transferências, solicitando esclarecimentos ou formulando reclamações;

d) Para representar junto dos CTT correios, podendo levantar cartas registadas ou não, encomendas e mercadorias, assinando tudo o que se torne necessário;

e) Representar-me junto de qualquer Tribunal, conferindo os mais amplos poderes forenses, podendo ainda substabelecer estes poderes em advogado, caso seja necessário, podendo o representar em qualquer processo em que seja interveniente, ou que venha a dar entrada em tribunal, podendo submeter processos, declarando, requerendo e assinando tudo o que seja necessário.

Finalmente praticar, promover, requerer e assinar tudo o mais que se mostrar conveniente à prossecução dos aludidos fins.

Vilamoura, 09 de dezembro de dois mil e dezasseis.”;

S- Donde resulta que, na prática, a Ré (…), com ou sem poderes legais ou convencionais de administração da herança, sempre exerceu, de facto, a administração do património hereditário, ainda que em determinados períodos não possuísse poderes legais ou convencionais para administrar os bens que compõem o património hereditário deixado pelos falecidos pais.

T- O douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15/12/2022 (in WWW.dgsi.pt), proferido no processo de prestação de contas 300/21.6T8PVL.G1, que, acerca da questão aqui em apreço, sumariamente, decidiu nos termos seguintes:

4- A acção de prestação de contas só pode ser intentada por quem tenha direito de exigi-las ou por quem tenha o de prestá-las-

5- É admitida a prestação de contas por quem administrou ou está a administrar bens total ou parcialmente alheios, mesmo que se trate de mera administração de facto, sem que ao administrador assistam poderes legais ou convencionais para administrar os bens.

6- A prestação de contas pode ser exigida de quem detém e administra a herança ou parte dos bens que compõem o património hereditário, ou que pratica actos urgentes de administração no condicionalismo previsto no artigo 2047.º do Código Civil, não obstante não ter a qualidade de cabeça de casal . “(…)”.

U- Ao contrário do entendimento do Tribunal recorrido, a prestação de contas pode ser exigida de quem, na prática, detém e administra a herança que compõe o património hereditário, mesmo que seja no condicionalismo previsto no artigo 2047.º do Código Civil, e ainda que se trate de mera administração de facto, não obstante não ter a qualidade de cabeça de casal, nem poderes legais ou convencionais para estar a administrar os bens.

V- Assim sendo, a Autora goza do direito de exigir da Ré a continuidade de prestação de contas da herança indivisa relativamente ao período compreendido entre 29.03.2007 e 31.12.2026, por forma a que seja concluído o apuramento e aprovação de receitas obtidas e despesas realizadas naquele período de tempo.

TERMOS EM QUE:

Nos melhores de Direito, que Vossas Excelências doutamente suprirão, deverá o presente recurso de apelação ser recebido e merecer provimento e, em consequência, ser proferido acórdão que, revogando a sentença recorrida, declare que a Ré está obrigada à prestação as contas do património hereditário relativamente ao período compreendido entre 29.03.2007 e 14.12.2026, por forma a que seja concluído o apuramento e aprovação de receitas obtidas e despesas realizadas no período de tempo em que a falecida (…) formalmente exerceu as funções de cabeça de casal, bem como a inexistência da excepção dilatória de litispendência relativamente à obrigação de prestação de contas pela Ré, na parte referente ao período compreendido entre de 15.12.2016 e 14.12.2016, por ser de inteira JUSTIÇA!”

5. Foram apresentadas contra-alegações, nas quais a R. pugnou pela improcedência do recurso.

6. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II – Questões a Decidir

O objeto do recurso está delimitado pelas conclusões da apelação, não sendo objeto de apreciação questões novas suscitadas em alegações, exceção feita para as questões de conhecimento oficioso (artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).

Não se encontra também o Tribunal ad quem obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes, sendo livre na interpretação e aplicação do direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).

No caso em apreço importa apreciar se deve ser revogado o despacho saneador sentença, o que implica decidir se está a R. obrigada a prestar contas à sua irmã sobre a administração da herança do pai.

III – Fundamentação

1. Os factos relevantes são os que constam do relatório.

Assinala-se ainda que no recurso a A. não impugnou a decisão da matéria de facto contida no despacho sindicado, com exceção do requerimento de retificação de um lapso de escrita evidente, de que padece o facto 12., pelo que onde consta que a mãe da A. e da R. faleceu a “28.04.2018” deve ler-se que o óbito ocorreu a “28.06.2018”.

Assim, os factos a considerar aqui são os que se mostram transcritos na alínea D) das conclusões, com aquela retificação do facto 12, que foi deferida pelo Tribunal a quo.

Importa adicionalmente atender aos seguintes factos, que extraímos da consulta dos autos no sistema informático Citius:

a) Em 15.11.2020, nos autos principais de inventário, foi proferido o seguinte despacho:

Cabeça de casal

Confirma-se que o exercício de funções de cabeça de casal cabe (...) – artigo 2080.º/1-b), do CPC; e o compromisso de honra prestado é válido.

Notifique.


*

Cumulação de inventários

Nos termos do artigo 1094.º, n.º 1, alínea b), do CPC, admite-se a cumulação de inventários para a partilha das heranças deixadas por (…) e (…).

Notifique.”

b) A 13.01.2020 foi instaurada ação de prestação de contas pela A. contra a R., onde é peticionada a prestação de contas:

- na qualidade de procuradora da falecida (…), da administração da herança indivisa, desde, pelo menos, o dia 15.12.2016 até ao dia 28.06.2018;

- na qualidade de testamenteira e cabeça de casal, de todo o património hereditário indiviso, desde 29.06.2018 até à presente data;

a qual corre termos no apenso C.

Nestes autos, citada, a R. apresentou contas referentes ao período compreendido entre 15.12.2016 e 30.09.2021, contas que foram contestadas pela A..

c) A 13.10.2022 foi instaurada ação de prestação de contas pela A. contra a R., onde é peticionada a prestação de contas relativamente à herança desde o dia 29.09.2021 até à presente data, a qual corre termos no apenso D.

Nestes autos, citada, a R. apresentou contas referentes ao período compreendido entre 30.09.2021 e 27.01.2023, contas que foram contestadas pela A..

d) A 20.03.2024 foi instaurada ação de prestação de contas pela A. contra a R., onde é peticionada a prestação de contas relativamente à herança desde o dia 28.01.2023 e até ao presente, a qual corre termos no apenso G.

Nestes autos, citada, a R. apresentou contas referentes ao período compreendido entre 01.02.2023 e 02.03.2025.

2. Na presente ação de prestação de contas pretende a A. que a sua irmã preste contas relativamente à administração das heranças do pai e da mãe de ambas, com respeito ao período que intercede entre 29.03.2007 e 31.12.2016.

O Tribunal a quo proferiu despacho saneador sentença, julgando improcedente a ação, com os seguintes fundamentos:

a) quanto ao período que decorreu entre 29.03.2007 e 14.12.2016, a R. não está obrigada a prestar contas;

b) quanto ao período de 15.12.2016 a 31.12.2016 ocorre litispendência, na medida em que esse período constitui precisamente o objeto da prestação de contas que está pendente como apenso C ao inventário.

Na respetiva fundamentação, aduz o Tribunal a quo o seguinte:

“No caso da presente acção intentada após o falecimento de (…), o quadro que se nos apresenta – ter as herdeiras da obrigação de prestar contas da administração da herança por óbito de (…), uma do lado activo (Autora) e a outra do lado passivo (Ré) – é uma verdadeira “confusão” – reunião nas mesmas pessoas das qualidades de credor e devedor da mesma obrigação, levando à extinção do crédito e da dívida cfr. artigo 868.º do Código Civil) – na medida em que ambas (Autora e Ré, na qualidade de herdeiras de seu pai) podem pedir a prestação de contas da administração da herança aberta pela morte do pai (até ao falecimento da mãe), ao mesmo tempo que, como herdeiras da falecida mãe, também estão obrigadas à prestação de tais contas, verificando-se a falta de direito da Autora sobre a Ré (quanto às contas da administração de …).

É esta falta de direito que deverá conduzir, sem mais, à improcedência da presente acção, com fundamento na não obrigação da Ré de prestar as contas conforme peticionado.

Reforça-se que é indubitável não resultar da alegação da Autora factos dos quais se retire ter sido a administração da herança aberta por óbito do pai (…), no período compreendido entre 29.03.2007 e 15.12.2016, efectuada pela aqui Ré.

E o alegado (e assente) facto de que a Ré enviara à Autora as contas da herança relativamente ao período compreendido entre 29.03.2007 e 14.12.2016, enquanto procuradora da mãe (…) no âmbito do processo especial de prestação de contas 2512/13.7T8FAR, não pode ser desgarrado dos factos – também eles alegados e assentes – de que no âmbito desse mesmo processo especial de prestação de contas 2512/13.7TBFAR, em 11.11.2013, a aí Ré, (…), apresentou contas de 23.03.2007 a 15.10.2013, assim como na Audiência Final desse mesmo processo, realizada em 27.01.2017, a aí Ré, (…), e a aí (também aqui) Autora, estiveram em vias de chegar a acordo requerendo a suspensão da diligência até 22.03.2017 para melhor apurarem os saldos dos anos de 2015 e 2016. Ou seja, a aqui Autora reconheceu ser a mãe a obrigada a prestar as contas e, efectivamente, a mãe apresentou-lhas (sem prejuízo da sua contestação).

Da factualidade apenas resulta ter a aqui Ré agido em matéria de administração propriamente dita da herança por óbito do pai, a partir da Procuração, outorgada a 15 de Dezembro de 2016, por (…), sendo que, no âmbito da acção com processo especial de prestação de contas n.º 1348/20.3T8FAR-C, foi reconhecido o dever da Ré de prestar contas da administração da herança dos inventariados relativamente ao período compreendido entre 15.12.2016 e o presente (data em que foi proferida a decisão).

Na presente acção, no que respeita ao período compreendido entre 15.12.2016 e 31.12.2016, verifica-se, assim, uma situação de litispendência.”

3. No caso em apreço as duas herdeiras dos Inventariados não se encontram em igual posição, na medida em que a R. exerce as funções de cabeça-de-casal, por virtude da sua indicação como testamenteira no testamento público feito pela mãe (artigo 2080.º, n.º 1, alínea b), do Código Civil).

Ora, o cabeça-de-casal está, efetivamente, obrigado à prestação de contas, nos termos do artigo 2093.º do Código Civil, com o seguinte teor:

“1. O cabeça-de-casal deve prestar contas anualmente.

2. Nas contas entram como despesas os rendimentos entregues pelo cabeça-de-casal aos herdeiros ou ao cônjuge meeiro nos termos do artigo anterior, e bem assim o juro do que haja gasto à sua custa na satisfação de encargos da administração.

3. Havendo saldo positivo, é distribuído pelos interessados, segundo o seu direito, depois de deduzida a quantia necessária para os encargos do novo ano.”

A obrigação de prestação de contas pelo cabeça-de-casal radica no seu dever de administrar a herança, até à respetiva liquidação e partilha, previsto no artigo 2079.º do Código Civil.

Quanto à nomeação do cabeça-de-casal, rege ainda o artigo 2095.º do Código Civil, do qual decorre que o cargo de cabeça-de-casal não é transmissível em vida nem por morte.

Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra, 1998, págs. 155-156) assinalam que o escopo desta norma é impedir que seja o cabeça-de-casal nomeado a indicar qual dos herdeiros deve substituí-lo, pois a nomeação do cabeça-de-casal deve fazer-se sempre no quadro desenhado pelo artigo 2080.º do Código Civil, ressalvada apenas a situação excecional prevista no artigo 2084.º do mesmo diploma legal.

Daqui decorre, pois, que na sequência da cessação de funções pelo cabeça-de-casal, e independentemente do respetivo motivo – o cabeça-de-casal pode cessar funções por diversos outros motivos para além do seu falecimento, desde aqueles que fundamentam a sua escusa, designadamente, idade avançada e razões de saúde, até às situações que justificam a sua remoção, entre as quais o incumprimento do seu dever de boa administração do património hereditário (artigos 2085.ºe 2086.º do Código Civil) –, o novo cabeça-de-casal será sempre nomeado em conformidade com o preceituado no artigo 2080.º do Código Civil.

Por outro lado, assim que inicie as suas funções, o cabeça-de-casal fica obrigado à prestação de contas anual relativa à administração que o próprio tenha exercido, porquanto tal obrigação está filiada na regra geral ínsita no artigo 573.º do Código Civil do dever de prestação de contas por parte de quem administre bens alheios, traduzindo-se numa obrigação de informação.

É este o enquadramento da nomeação da R. como cabeça-de-casal no processo de inventário ao qual a presente ação de prestação de contas se mostra apensa, isto é, a mãe da A. e da R. veio a ser substituída pela R., que é a nova cabeça-de-casal relativamente à herança do pai, acumulando também as funções de cabeça-de-casal relativamente à herança da mãe.

Nesta qualidade de cabeça-de-casal encontra-se a R. obrigada à prestação de contas anual da administração que exerce, o que lhe foi exigido pela A. nos apensos C, D, G e nos presentes autos, com respeito a diversos períodos de tempo.

Mas já no que concerne ao período de tempo que antecedeu o início de funções da R. como cabeça-de-casal, esta não se encontra, consequentemente, obrigada a prestar contas nessa qualidade.

Sem prejuízo, tem sido maioritariamente entendido na jurisprudência que importa dissociar a posição de cabeça-de-casal e a obrigação de prestar contas, porquanto a natureza intuitu personae daquela posição, que determina a respetiva intransmissibilidade em vida ou por morte, não obsta à transmissão por via sucessória da obrigação de prestar contas, a qual assume natureza patrimonial.

Entre outros, pronunciou-se neste sentido o muito recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.12.2024 (Fátima Gomes) (Proc. n.º 2734/19.7T8LSB.L1.S1, in http://www.dgsi.pt), com abundantes referências jurisprudenciais, e cuja decisão foi assim sumariada:

“Embora o cargo de cabeça-de-casal revista carácter pessoal, pelo que não é transmissível (artigo 2095.º do Código Civil), a obrigação de prestação de contas tem carácter patrimonial, pelo que a mesma se transmite aos herdeiros do cabeça-de-casal, nos termos dos artigos 2024.º e 2025.º, n.º 1, a contrario, também do Código Civil.”

É esta a orientação adotada por Teixeira de Sousa, citado por Luís Filipe Pires de Sousa (Processos Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 3ª ed., Coimbra, 2023, pág. 158): “(…) apesar da não transmissibilidade da obrigação de prestação de contas pelo cabeça-de-casal, é claro que uma ação de prestação de contas pode ser continuada pelos herdeiros daquela parte. Mas isso sucede, não porque os habilitados sejam herdeiros da obrigação dessa prestação, mas antes porque são herdeiros de quem tinha essa obrigação. Isto é: o título de herdeiro atribui a alguém legitimidade para se substituir à parte falecida (título legitimante), sem que esteja em causa a sucessão na obrigação que é apreciada na ação (título sucessório).

A habilitação destina-se a permitir a substituição de uma parte falecida pelos seus herdeiros, não a transferir, a título sucessório, o objeto do processo para os herdeiros. Há apenas a substituição de uma parte falecida por uma outra parte. Em tudo o mais (nomeadamente quanto ao objeto), a instância permanece a mesma.”

Surge, no entanto, um problema quando os herdeiros do cabeça-de-casal são eles próprios os únicos interessados na partilha, como sucede no caso em apreço, porquanto as duas irmãs A. e R. são as únicas herdeiras do seu falecido pai, de cuja herança era cabeça-de-casal a mãe de ambas.

Nesta particular situação deve considerar-se, como decidiu o Tribunal a quo, que ocorre uma causa de extinção da obrigação de prestação de contas consubstanciada na reunião, no mesmo sujeito jurídico, das qualidades de credor e devedor, na medida em que cada uma das duas herdeiras tem simultaneamente o direito de exigir e de prestar contas à outra, precisamente porque o título que determina esse direito e essa obrigação é o mesmo para ambas, isto é, a mera condição de herdeira.

Esta solução foi já sufragado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 02.02.2016 (Barateiro Martins) (Proc. n.º 91/14.7T8SEI.C1 in http://www.dgsi.pt/), referenciado pelo Tribunal a quo na sua decisão, dizendo-se precisamente no respetivo sumário que:

“1 - O cargo de cabeça-de-casal não é transmissível em vida nem por morte, porém, uma coisa é o cargo de cabeça-de-casal – que não se transmite e que se extingue com a sua morte – e outra, diversa, a obrigação de prestar contas que, tendo natureza eminentemente patrimonial, constitui objecto de sucessão e se transmite aos herdeiros (do cabeça-de-casal).

2 - Porém, se tais herdeiros (do cabeça-de-casal que não prestou contas) são também herdeiros da primeira herança (em que as contas não foram prestadas) – como é o caso dos irmãos nas heranças dos seus pais – não podem exigir uns dos outros a prestação de contas em falta (por serem devedores e credores da mesma obrigação).”

Mostra-se, deste modo, inteiramente correta a asserção do Tribunal a quo de que a R. não se encontra obrigada à prestação de contas à A., relativamente à administração da herança do pai de ambas, com respeito ao período que antecede o início das suas funções como cabeça-de-casal, com exceção da administração que a R. desenvolveu após a procuração outorgada pela mãe a 15.12.2016.

4. Nas suas alegações sustenta, porém, a A. que a sua irmã sempre exerceu, de facto, a administração da herança do pai, não obstante não ter a qualidade de cabeça-de-casal, nem poderes legais ou convencionais para o efeito.

Em concreto, invoca em abono da sua tese a procuração emitida pela mãe a favor da sua irmã, datada de 15.12.2016, bem como a procuração que a mãe emitiu a favor da sua irmã no âmbito da ação de prestação de contas que correu termos sob o n.º 2512/13.7TBFAR.

A A. cita ainda, em suporte da sua pretensão, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 15.12.2022 (Joaquim Boavida) (Processo 300/21.6T8PVL.G1, in http://www.dgsi.pt/), onde se afirma que deve prestar contas quem exercer a administração da herança, ainda que meramente de facto.

Ora, a bondade da orientação jurisprudencial exposta é inquestionável, mas importa apreciá-la à luz da respetiva fundamentação de facto e de direito, verificando-se que naqueles autos foi alegado que a aí autora, a pedido da cabeça de casal, efetuou o pagamento de despesas da herança, com dinheiro próprio, o que suportou a sua alegação de ser cabeça-de-casal de facto.

No aresto rejeita-se, contudo, esta argumentação, aduzindo-se que “o facto de um herdeiro suportar uma despesa ou encargo da herança não faz dele cabeça de casal, seja de facto ou de direito, ou, genericamente, administrador da herança. Do mesmo modo, quem paga dívidas, despesas ou encargos da herança ou adianta dinheiro ao cabeça de casal para este pagar despesas com a administração da herança não é, só por isso, administrador de bens alheios.

Mais, dificilmente a prática de tais actos a pedido do cabeça de casal consubstancia o exercício do cargo de cabeça de casal de facto ou sequer a administração de bens alheios.”

Ou seja, sendo verdade que a mera administração de facto pode gerar a obrigação de prestação de contas, deve primeiramente delimitar-se o alcance desta administração de facto, acompanhando-se o Acórdão citado no sentido de que a atuação por conta de outrem não faz de quem assim procede um administrador.

O conceito assume relevância, designadamente, no quadro da administração de sociedades, citando-se, a este propósito, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 31.10.2023 (Amélia Sofia Rebelo) (Processo n.º 10840/21.1T8SNT-A.L1-1, in http://www.dgsi.pt/):

“XV - A administração de facto exige, por natureza, o efetivo exercício de poderes de gestão no âmbito do objeto social de forma sistemática, continuada, e de modo independente, com total autonomia na tomada de decisões e na atuação, influindo e conformando de forma decisiva os destinos da sociedade, com compressão da autonomia do administrador de direito na tomada dessas decisões sobre o qual, por princípio, exerce influência decisiva, decidindo, ordenando e determinando-o à execução de atos de gestão e de direção da insolvente, impondo-lhe a cada ato as suas decisões.”

Ora, como bem aponta o Tribunal a quo, não está demonstrado nos autos que a R. tenha exercido a administração de facto da herança até à data de 14.12.2016, data na qual a sua mãe lhe outorgou poderes para o efeito.

Veja-se que na Declaração de 07.08.2013, a mãe, na qualidade de cabeça-de-casal, afirma que a sua filha aqui R. a “assiste e auxilia na execução dos actos de decisões por mim tomadas enquanto administradora da herança” (alínea Q) das conclusões), ou seja, não é a R. quem administra a herança, mas sim a mãe.

A posição da R. de mera colaboradora na execução das decisões da mãe revela que a R. não era a administradora da herança.

Do mesmo modo, no que tange à intervenção da R. no âmbito da ação de prestação de contas que correu termos sob o n.º 2512/13.7TBFAR, atinente à administração da herança do pai da A. e da R., verifica-se que semelhante intervenção não teve lugar em nome próprio, antes tendo sido efetuada em representação da mãe, que era aí a ré.

Só após o falecimento da mãe, na ação de prestação de contas instaurada em 2020 e dirigida contra a R., que corre termos no apenso C, veio a ser reconhecido o dever da R. de prestação de contas relativamente à administração da herança do pai, mas apenas a partir da data em que foi outorgada a procuração onde a mãe lhe conferiu poderes para a prática de atos de administração (facto provado 15).

Acresce que não se aplica, na situação vertente, o artigo 2047.º do Código Civil, também invocado pela A. nas suas alegações, porquanto tal norma diz respeito à herança jacente, mas a administração de que aqui se cura respeita a um período de tempo no qual a herança havia já sido aceite pelas duas herdeiras, tratando-se, portanto, de uma herança indivisa.

Por fim, quanto ao segmento da decisão fundado em litispendência, a A. nada argumenta no recurso em sentido contrário, limitando-se a aludir à “continuidade de prestação de contas” (alínea V) das conclusões), o que se revela inconsequente, à luz de todo o exposto.

Improcede, assim, o recurso, devendo manter-se a decisão recorrida.

5. As custas são suportadas pela A., que fica vencida (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV – Dispositivo

Em face do exposto e tudo ponderado, acordam os Juízes da Secção Cível deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida.

Custas pela Autora.

Notifique e registe.

Sónia Moura (Relatora)

Manuel Bargado (1º Relator)

Susana Ferrão da Costa Cabral (2ª Adjunta)