COMPETÊNCIA MATERIAL
INDEMNIZAÇÃO
OBRAS
CONTRATO DE SEGURO
LEGITIMIDADE ACTIVA
Sumário

1. A competência do tribunal, sendo um pressuposto processual, afere-se pelo pedido e respectivos fundamentos, nos termos que são configurados pelo Autor.
2. Quem configura os termos da petição inicial, nomeadamente a causa de pedir, o pedido e os sujeitos demandados, é a parte demandante, não a parte demandada.
3. Os tribunais comuns são os competentes, em razão da matéria, para conhecer uma acção de indemnização por danos sofridos por terceiros, em obras levadas a cabo por entidades privadas, mesmo que esteja em causa uma obra pública.
4. No seguro de responsabilidade civil facultativo, o artigo 140.º, n.ºs 2 e 3, da LCS concede ao lesado o direito de demandar directamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado, apenas em dois casos: 1.º - quando tal se encontre expressamente previsto no contrato de seguro; 2.º - quando o segurado tenha informado o lesado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações directas entre o lesado e o segurador.
5. O lesado pode demandar directamente o segurador se o contrato de seguro lhe concede o direito de propor acção judicial contra o segurado ou o segurador, por factos susceptíveis de accionar as garantias do contrato e inerente pagamento de indemnização.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Sumário: (…)

Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:

No Juízo Central Cível de Portimão, (…) demandou (…), Construções, Lda., e (…) Seguros, S.A., pedindo a sua condenação a pagar-lhe a quantia de € 97.500,00, em consequência de lesões corporais sofridos em obra que a 1ª Ré executava, tendo esta transferido a sua responsabilidade civil para a 2ª Ré.
Na sua contestação, a Ré seguradora invocou, para além do mais, a excepção de incompetência em razão da matéria – estava em execução uma obra pública – e a sua ilegitimidade, por estar em causa um seguro facultativo e não ocorrerem as situações previstas no artigo 140.º, n.ºs 2 e 3, da LCS (DL n.º 72/2008, de 16/04).

Tendo o saneador julgado improcedentes ambas as excepções, a Ré seguradora recorre e conclui:
1. Não se conformando com o teor do Despacho Saneador proferido pelo Tribunal a quo, vem a Recorrente, por via do presente recurso, sindicar tal decisão.
2. Efectivamente, do teor do despacho saneador em crise resulta que o mesmo julgou improcedente as excepções dilatórias da incompetência absoluta do tribunal e, bem assim, da ilegitimidade passiva da Recorrente, para figurar como parte principal nos presentes autos.
3. Pese embora o indeferimento da excepção dilatória da ilegitimidade não ser passível de apelação autónoma, entende a aqui Recorrente que o presente recurso é admissível ao abrigo do disposto no artigo 644.º/2, alínea h), porquanto os estatutos processuais de Ré e de Interveniente Acessória são processualmente incompatíveis.
4. De facto, caso o recurso quanto à aludida excepção arguida de ilegitimidade passiva apenas fosse interposto a final, a ora Recorrente poderia praticar actos processuais que, em caso de procedência do recurso, seriam considerados actos inúteis, atendendo à retroactividade do processo até à prolação do despacho saneador, razão pela qual considerando também o princípio da economia processual, deverá o Tribunal ad quem apreciar tal questão. Por outro lado,
5. Considerando que os presentes autos apenas foram propostos contra entidades particulares, entende o Tribunal a quo que os tribunais comuns são competentes para conhecer do mérito da presente acção.
6. Contudo, olvida-se o Tribunal a quo que a Autora pretende ser ressarcida dos danos alegadamente sofridos em virtude de uma queda na passadeira, provocada por poeiras, terras e gravilha e pela falta de sinalização legalmente obrigatória, que esta alega emergirem de uma obra executada nas proximidades pela tomadora do seguro da Recorrente, a solicitação do “Município de Portimão”, assumindo nesse contexto tal entidade a posição de dono de obra.
7. Nos termos do disposto no artigo 7.º/1, da Lei 67/2007, de 31/12, “o Estado e as demais pessoas colectivas de direito publico são exclusivamente responsáveis pelos danos que resultem de acções ou omissões ilícitas, cometidas com culpa leve, pelos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, no exercício da função administrativa e por causa desse exercício”, impendendo, assim, sob o “Município de Portimão” um claro dever de vigilância e fiscalização das obras por si contratadas.
8. Pelo exposto, o “Município de Portimão” deverá figurar como parte passiva na presente demanda e, em consequência o Tribunal a quo declarar-se incompetente em razão da matéria com vista a decidir do mérito dos presentes autos, absolvendo a Recorrente da instância, conforme a interpretação conjugada dos artigos 4.º/1, alínea f), do ETAF e 64.º, 96.º, alínea a), 99.º/1, 576.º/1 e 2, 577.º, alínea a), 578.º e 278.º, n.º 1, alínea a), todos do CPC. Sem prescindir,
9. A obra em discussão nos presentes autos, advém de um contrato de empreitada celebrado entre a Ré “(…) Construções, Lda.” e a “(…) – Empresa Municipal de (…) e (…) de Portimão, EM, S.A.”.
10. A “(…) – Empresa Municipal de (…) e (…) de Portimão, EM, SA”, é uma pessoa colectiva de direito público.
11. Pelo que, mesmo que se entenda que a responsabilidade pela omissão dos deveres de vigilância deve ser assacada a “(…) – Empresa Municipal de (…) e (…) de Portimão, EM, SA”, sempre se dirá que atendendo à sua natureza de pessoa colectiva de direito publico, o Tribunal a quo é incompetente em razão da matéria e, em consequência, deve a Recorrente ser absolvida da instância, nos termos do disposto nos artigos 4.º/1, alínea f), do ETAF e 64.º, 96.º, alínea a), 99.º/1, 576.º/1 e 2, 577.º, alínea a), 578.º e 278.º, n.º 1, alínea a), todos do CPC.
12. Por outro lado, decorre do disposto no artigo 140.º/2 e 3, do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (DL n.º 72/2008 de 16 de Abril) as situações em que, no caso de seguro facultativo, o lesado pode demandar directamente a seguradora.
13. No caso em apreço, está em causa um contrato de seguro facultativo celebrado entre as Rés mas não se encontram preenchidos os requisitos do supra citado artigo 140.º/2 e 3, porquanto pese embora o sinistro em apreço tenha sido participado à Recorrente e esta tenha realizado diligências de averiguação, não existiram negociações directas entre esta e a Autora.
14. Razão pela qual, a intervenção da seguradora provocada pelo lesado apenas pode ocorrer acessoriamente e nunca enquanto parte principal, pelo que mal andou o Tribunal a quo ao julgar improcedente a excepção dilatória da ilegitimidade passiva da Recorrente.
15. Por conseguinte, deve o Tribunal ad quem revogar o aludido despacho e substitui-lo por outro que julgue procedente as duas excepções dilatórias arguidas pela Recorrente, e em consequência, absolva-a da instância nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 4.º/1, alínea f), do ETAF e 64.º, 96.º, alínea a), 99.º/1, 576.º/1 e 2, 577.º, alínea a), 578.º e 278.º, n.º 1, alínea a) e artigos 278.º/1, alínea d), 576.º/2 e 577.º, alínea e), todos do CPC.

Não foi oferecida resposta.
Cumpre-nos decidir.

Os factos relevantes para a decisão do recurso, assentes por acordo das partes ou por documento não impugnado, são os seguintes:
1. No dia 10.07.2024, a A. escorregou quando atravessava uma passadeira sita na Praceta (…), que fica paralela com a Rua (…) e a Estrada de (…), em Portimão, na altura em que ali estavam a decorrer trabalhos de empreitada na estrada levados a cabo pela 1ª Ré;
2. A 1ª Ré encontrava-se a executar naquele local trabalhos relativos ao “Contrato de Empreitada de Remodelação da Rede de Água, Esgotos Domésticos e Pluviais na Estrada de … (Proc. n.º …)”, celebrado com a “(…) – Empresa Municipal de (…) e (…) de Portimão”;
3. O objecto do aludido contrato consiste na realização de uma empreitada de remodelação da rede de água e esgotos domésticos na Estrada de (…);
4. A 1ª Ré havia celebrado com a 2ª Ré um contrato de seguro, titulado pela apólice n.º (…), na modalidade de “responsabilidade civil geral / exploração”;
5. Consta das condições gerais desse contrato, para além do mais, o seguinte:
“Artigo 1.º- Definições
Para efeitos do disposto no presente Contrato, entende-se por:
(…)
d) Terceiro: Aquele que, em consequência de um sinistro coberto pelas garantias deste Contrato, sofra uma lesão que origine danos susceptíveis de, nos termos da Lei Civil e desta Apólice, serem reparados ou indemnizados;
Artigo 2.º- Objecto do Contrato e Âmbito da Garantia
(…)
3. A garantia dada por este Contrato está limitada às consequências dos actos ou omissões geradores de responsabilidades ocorridos durante o período de vigência do contrato;
(…)
4. Para efeitos do número anterior, considera-se reclamação, qualquer acção judicial ou simples requerimento formal dirigido ao Segurado ou o Segurador (neste último caso), por parte de terceiros, motivado por factos susceptíveis de accionar as garantias do contrato e inerente pagamento de indemnização.”
6. A 1ª Ré participou à 2ª Ré a ocorrência de um sinistro com a A., iniciando a seguradora averiguações, após o que comunicou à A., por carta de 02.08.2024, que recusava o pagamento de qualquer indemnização.

Aplicando o Direito.
Da excepção de incompetência material
A competência do tribunal, sendo um pressuposto processual, afere-se pelo pedido e respectivos fundamentos, nos termos que são configurados pelo Autor – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 20.02.2019 (Proc. n.º 9086/18.0T8LSB-A.L1.S1), de 10.11.2020 (Proc. n.º 22652/17.2T8LSB.L1.S1) e de 12.02.2025 (Proc. n.º 375/22.0T8PTG-A.E1.S1), todos publicados em www.dgsi.pt.
A Recorrente afirma que, estando em causa uma empreitada de obra pública, a entidade pública que adjudicou a obra deveria figurar como parte passiva na acção, o que teria por consequência o tribunal a quo declarar-se incompetente em razão da matéria, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, alínea f), do ETAF.
No entanto, quem configura os termos da petição inicial, nomeadamente a causa de pedir, o pedido e os sujeitos demandados, é a parte demandante, não a parte demandada.
Se a A. optou por demandar apenas duas pessoas colectivas de direito privado, e definir a causa de pedir e o pedido no modo como o fez, exerceu tão só o seu direito de acesso ao direito, escolhendo livremente quem pretendia demandar.
Ademais, como bem anota a decisão recorrida, os tribunais comuns são os competentes, em razão da matéria, para conhecer uma acção de indemnização por danos sofridos por terceiros, em obras levadas a cabo por entidades privadas, mesmo que esteja em causa uma obra pública.
Esta é a jurisprudência que o Supremo Tribunal de Justiça tem expressado, nomeadamente nos seus Acórdãos de 08.11.2022 (Proc. n.º 57/21.0T8PST.L1-A.S1) e de 18.06.2024 (Proc. n.º 4803/22.7T8VIS-A.C1.S1), ambos publicados em www.dgsi.pt.
Esta parte do recurso improcede, pois.

Da legitimidade passiva da Ré seguradora, face ao artigo 140.º n.ºs 2 e 3, da LCS
Argumenta a Recorrente que, estando em causa um contrato de seguro facultativo, não se encontram preenchidos os requisitos do artigo 140.º, n.ºs 2 e 3, da LCS para a demanda a seguradora como parte principal, pois embora o sinistro lhe tenha sido participado e tenha realizado diligências de averiguação, não existiram negociações directas com a Autora.
A jurisprudência vem reconhecendo[1] que, no seguro de responsabilidade civil facultativo, o artigo 140.º, n.ºs 2 e 3, da LCS concede ao lesado o direito de demandar directamente o segurador, isoladamente ou em conjunto com o segurado, apenas em dois casos: 1.º - quando tal se encontre expressamente previsto no contrato de seguro; 2.º - quando o segurado tenha informado o lesado da existência de um contrato de seguro com o consequente início de negociações directas entre o lesado e o segurador.
A jurisprudência não é unânime quanto ao preenchimento do conceito de “negociações directas”, mas estas “consistirão na intervenção do lesado, admitida pela seguradora, que o tem como interlocutor, no processo de regularização do sinistro, mediante troca de argumentos e eventual fornecimento de informações, com vista à regularização extrajudicial do sinistro. Assim, se após a participação (do sinistro) o segurador verificar que os factos participados não se enquadram nas condições do contrato e rejeita liminarmente o sinistro, não pode falar-se em início de negociações. Mas se o segurador inicia a fase de instrução do sinistro, realizando perícia nos bens lesados e contacta o lesado para o efeito; e se, posteriormente, lhe comunica a recusa de sinistro e, perante a “reclamação” do lesado “reanalisa” o processo com vista a decidir sobre a recusa do sinistro ou o pagamento de indemnização, temos de convir que houve negociações, isto é, houve participação do lesado no processo de regularização do sinistro” – formulação do Acórdão da Relação de Lisboa de 17.02.2022 (Proc. n.º 254/21.9T8ALM-A.L1-6), publicado na DGSI.
No caso, a mera realização de averiguações pela Ré seguradora e o envio de uma carta de recusa de indemnização, por si só, não preenche o conceito legal de negociações directas que permitiria a demanda desta.
Sucede que o contrato de seguro, nomeadamente o artigo 2.º, n.º 4, das suas condições gerais, admite expressamente a possibilidade de o terceiro lesado demandar directamente o segurador, ao estipular que se “considera reclamação, qualquer acção judicial ou simples requerimento formal dirigido ao Segurado ou o Segurador (neste último caso), por parte de terceiros, motivado por factos susceptíveis de accionar as garantias do contrato e inerente pagamento de indemnização.”
Visto que esta cláusula do contrato de seguro expressamente confere ao lesado o direito de demandar directamente o segurador, isolada ou conjuntamente com o segurado, a legitimidade da 2ª Ré fica estabelecida, para os fins do artigo 140.º, n.ºs 2 e 3, da LCS, e tanto basta para a improcedência do recurso.[2]

Decisão.
Destarte, nega-se provimento ao recurso e confirma-se a decisão recorrida.
Custas pela 2ª Ré.

Évora, 5 de Junho de 2025
Mário Branco Coelho (relator)
Cristina Dá Mesquita
Isabel de Matos Peixoto Imaginário


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[1] Vide, por todos, os Acórdãos da Relação do Porto de 15.12.2021 (Proc. 635/20.5T8PVZ-B.P1), da Relação de Coimbra de 13.06.2023 (Proc. n.º 1144/21.0T8CVL.C1) e do Supremo Tribunal de Justiça de 10.04.2024 (Proc. n.º 5395/19.0T8BRG.G1.S1), todos publicados em www.dgsi.pt.
[2] Numa situação semelhante, vide o Acórdão da Relação do Porto de 24.09.2018 (Proc. n.º 15764/17.4T8PRT-A.P1), publicado na página da DGSI.