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CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
MORA DO DEVEDOR
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
Sumário
1. A mora do devedor não permite, excepto se existir convenção em contrário, a imediata resolução do contrato, a menos que se transforme em incumprimento definitivo, o que pode acontecer se sobrevier a impossibilidade da prestação, se o credor perder o interesse na mesma, e ainda em consequência da inobservância do prazo suplementar e peremptório que o credor fixe, razoavelmente, ao devedor relapso. 2. O artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil exige que o incumprimento seja imputável a algum dos contraentes. 3. No caso do incumprimento não ser imputável ao promitente-vendedor – este não logrou suprimir, em tempo útil, a anómala inscrição de um usufruto na caderneta predial, face à recusa do Serviço de Finanças em fazê-lo, obrigando-o a interpor uma acção de impugnação de acto administrativo, cuja decisão demorou anos e lhe veio a ser favorável – não lhe pode ser exigida a restituição do sinal em dobro. 4. Invocando os promitentes-compradores a resolução do contrato por perda de interesse na prestação, esta é justificada, face ao artigo 808.º, n.º 2, do Código Civil, se está demonstrado que pretendiam adquirir o imóvel para sua habitação e mudar-se rapidamente, que nesse pressuposto abandonaram a casa onde residiam, e que a demora na resolução da inscrição do usufruto na caderneta os colocou na contingência de irem viver para a casa do pai de um deles. 5. Neste caso, os promitentes-compradores apenas têm direito à restituição do sinal em singelo, pois essa é a consequência da resolução do contrato, que tem eficácia retroactiva, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado. 6. A condenação na restituição do sinal em singelo é um minus em relação ao pedido de restituição em dobro (este compreende aquele). (Sumário do Relator)
Texto Integral
Sumário: (…)
Acordam os Juízes da 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:
No Juízo Central Cível de Setúbal, (…) e (…) demandaram (…), pedindo que o Réu seja condenado a reconhecer que não cumpriu aquilo a que se obrigou no contrato-promessa de compra e venda e que, em consequência, os AA. perderam o interesse na sua celebração; e que em consequência o R. lhes deve pagar o montante de € 92.250,00, nos termos do disposto no artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil, gozando tal crédito de hipoteca judicial sobre o imóvel prometido vender.
Para o efeito alegaram a celebração de um contrato-promessa, pelo qual prometeram comprar, e o R. prometeu vender, um imóvel que aqueles destinavam a habitação, livre de ónus e encargos, mas vieram a ter conhecimento que existia um direito de usufruto registado a favor de terceiro, não tendo o R. libertado o imóvel desse ónus no prazo acordado para a celebração do contrato prometido, nem mesmo na prorrogação que lhe foi concedida; a isto acresce que surgiu registada uma penhora sobre o imóvel, motivo pelo qual perderam o interesse no negócio, que consideram definitivamente incumprido pelo R..
Na contestação, o R. alegou que o usufruto está extinto, e o seu cancelamento consta do registo predial, mas que na caderneta predial esse ónus continua inscrito, apesar de ter envidado todos os esforços para corrigir essa situação. Na verdade, requereu a correcção da situação no Serviço de Finanças e, confrontado com a recusa pelo Chefe de Finanças, foi obrigado a interpor acção de impugnação desse acto junto do TAF de Almada, que à data da contestação ainda não estava decidida. Quanto à penhora, apenas implicaria o incumprimento definitivo se estivesse pendente à data de realização da escritura.
Realizado julgamento, a sentença julgou a acção procedente e condenou o R. a pagar aos AA. a quantia de € 92.250,00, declarando que tal crédito goza de hipoteca judicial.
Inconformado, o R. recorre e conclui:
a) Entende a sentença ora recorrida ter ocorrido um incumprimento definitivo e culposo do contrato promessa de compra e venda de imóvel celebrado entre recorrente e recorridos por motivo imputável ao primeiro, o que, em seu entendimento determina a invocada perda de interesse por parte dos recorridos.
b) Condenando o recorrente, nos termos, do disposto no n.º 2 do artigo 442.º do Código Civil, na restituição do sinal em dobro e, bem assim, constituindo hipoteca judicial sobre a fracção autónoma em apreço nos presentes autos.
c) Não foi produzida nos presente autos qualquer prova que demonstre que o recorrente tenha assegurado perante os recorridos, face à constatação de que o imóvel se encontrava onerado com um usufruto, que “(…) estava tudo bem e que a situação estava a ser resolvida (...)”.
d) Não foi demonstrado que o ora recorrente tenha declarado que a inscrição do usufruto na caderneta predial do imóvel em apreço “(…) estava errada e que bastavam duas semanas para tratar de tudo, comprometendo-se a fazê-lo”.
e) Pelo que, o facto constante do ponto 12 da fundamentação de facto – factos provados, deverá ser dado como não provado.
f) Da prova testemunhal produzida, resulta que os recorridos tiveram conhecimento de que o imóvel em causa se encontrava onerado com um usufruto em momento anterior à data de celebração do contrato promessa de compra e venda.
g) Mais tendo ficado provado que foi o próprio recorrido (…) que alertou directamente aquele consultor de que tal situação se verificava.
h) Devendo ser dado como provado o ponto 1 dos factos não provados, ou seja, que os recorridos tiveram conhecimento de que o imóvel em apreço se encontrava onerado com um usufruto em momento anterior à data da celebração do contrato promessa.
i) E que os recorridos formaram a sua vontade negocial livre e atempadamente.
j) Devendo, consequentemente, ser dado como não provado o ponto 8 dos factos provados, na parte, “(...) à data da celebração do referido contrato promessa (...)”.
k) O recorrente em nada contribuiu para a formação da vontade negocial dos recorridos, uma vez que não teve qualquer contacto com aqueles antes do momento da assinatura do contrato promessa de compra e venda.
l) A formação da vontade negocial dos recorridos, para além de ter sido formada antes do momento da assinatura do contrato promessa, resultou das informações que lhe foram prestadas pela sua própria agência mediadora, na pessoa do sr. (…) apoiado pelo parecer do departamento jurídico da Remax (…).
m) Os recorridos não podiam deixar de ter presente na formação da sua vontade negocial que, estando o imóvel onerado na caderneta predial com usufruto, a sua remoção não dependia unilateralmente de acção do recorrente, implicando sempre da decisão da Autoridade Tributária.
n) O que resulta da experiência do homem médio comum colocado na mesma situação.
o) Tendo os recorridos livre e esclarecidamente aceite tal situação.
p) O recorrente tudo fez ao seu alcance para diligenciar pela remoção do usufruto em apreço, tendo requerido junto do serviço de finanças competente a imediata correcção da inscrição em causa.
q) Tendo, perante o indeferimento do mesmo, intentado acção de impugnação de acto administrativo.
r) Não poderá ser imputado ao recorrente a causa da não realização, até a presente data, da escritura de compra e venda do imóvel.
s) Inexistindo, como tal, qualquer constituição em mora por parte do recorrente.
t) Não se verificando, como tal, o pressuposto essencial para a invocada perda de interesse.
u) O Tribunal a quo não apreciou objectivamente a verificação de mora por parte do recorrente.
v) A sentença recorrida não apreciou objectivamente a perda de interesse invocada.
w) Os fundamentos aduzidos pelos recorridos – o decurso do tempo, o facto do imóvel se encontrar onerado com uma penhora e habitado por terceiros – não poderiam, objectivamente, proceder para efeitos da invocada perda de interesse dos recorridos;
x) A penhora a que alude a sentença ora recorrida nunca poderia ser considerada como motivo para perda de interesse, nem impeditivo da celebração da compra e venda em apreço.
y) Desde que no momento da celebração da escritura de compra e venda o imóvel se encontre livre da penhora em causa.
z) A extinção do processo executivo no qual foi decretada a penhora, pelo pagamento voluntário da quantia exequenda, determinou o cancelamento da penhora em apreço.
aa) Não tendo sido estipulado contratualmente entre recorrente e recorrido que o imóvel em causa não pudesse estar habitado por terceiros até à data da celebração da escritura de compra e venda, tal facto não poderá se valorado objectivamente como fundamento para a perda de interesse dos recorridos.
bb) Nem como qualquer incumprimento contratual por parte do recorrido.
cc) Não foi alegado nem demonstrando pelos recorridos que o imóvel em apreço se tenha efectivamente degradado por efeito do uso por terceiros.
dd) Quanto ao invocado fundamento do decurso de tempo, e sem conceder na não verificação da mora por parte do recorrente, não podia a sentença recorrida deixar de considerar os fundamentos aduzidos pelos recorridos, como, manifestamente, insuficientes para determinar a perda de interesse por parte dos ora recorridos.
ee) A sentença recorrida, não poderia considerar, quer pela não verificação de mora por parte do recorrente, quer pela ausência de fundamentos que concreta e objectivamente determinassem a perda de interesse por parte dos recorridos, ter havido qualquer incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda em apreço nos autos por parte do ora recorrente.
ff) Inexiste qualquer fundamento de facto ou de direito para que se possa considerar verificado qualquer incumprimento culposo das obrigações contratuais do recorrente.
gg) Pelo que, não poderia a sentença recorrida condenar o ora recorrido na restituição do sinal prestado em dobro.
hh) Sem conceder, mesmo que se entendesse que resultava demonstrada a perda de interesse nos presentes autos, a causa para o não cumprimento definitivo da obrigação nunca poderia ser imputável ao promitente ora recorrente.
ii) O que deveria determinar apenas a restituição do sinal em singelo.
jj) A sentença ora recorrida viola, assim, o disposto nos artigos 442.º, n.º 2, 801.º, 804.º, n.º 2 e 808.º, todos do Código Civil.
Na resposta sustenta-se a manutenção do decidido.
Cumpre-nos decidir.
Da admissão de documentos com as alegações
Com as suas alegações, o R. juntou um documento, consistente em decisão da agente de execução proferida no Proc. n.º 5121/20.0T8STB, em 04.07.2023 – portanto, após o encerramento da audiência em primeira instância, facto que ocorreu em 02.06.2023 – determinando a extinção da instância executiva pelo pagamento e informando ter sido efectuado o pedido de cancelamento da penhora registada sobre o imóvel.
As alegações de recurso foram apresentadas no dia 03.02.2025, e as contra-alegações no dia 19.03.2025.
No dia 25.02.2025 o R. juntou também sentença datada do dia 21.02.2025 e notificada por registo de 24.02.2025, proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada no Proc. n.º 28/22.0BEALM, pela qual foi julgada procedente a acção administrativa que havia intentado contra a decisão da Chefe do Serviço de Finanças de Palmela, decidindo essa sentença ordenar a rectificação do registo matricial do prédio identificado nos autos, no sentido de suprimir o registo de usufruto a favor de terceiro.
Face a este documento, o Relator solicitou àquele Tribunal a confirmação do trânsito em julgado da sentença, tendo sido respondido que o trânsito já ocorreu, no passado dia 31.03.2025. Decidindo, podem as partes juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425.º do Código de Processo Civil, ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância – artigo 651.º do mesmo diploma.
Da articulação lógica entre os artigos 651.º, n.º 1, 423.º e 425.º do Código de Processo Civil resulta que a junção excepcional de documentos na fase de recurso depende da alegação e da prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: superveniência do documento ou necessidade do documento revelada em resultado da novidade ou imprevisibilidade da sentença proferida na 1.ª instância.[1]
Quanto à superveniência, há que distinguir entre os casos de superveniência objectiva e de superveniência subjectiva: aqueles devem-se à produção posterior do documento; estes ao conhecimento posterior do documento ou ao seu acesso posterior pelo sujeito.[2]
No caso dos dois documentos apresentados pelo R., a superveniência é objectiva: o primeiro foi produzido já após o encerramento da discussão em primeira instância, o segundo no intervalo temporal situado entre o oferecimento das alegações e o oferecimento das contra-alegações.
Ambos os documentos não são impertinentes – o primeiro concerne ao cancelamento da penhora identificada no ponto 25 do elenco de factos provados na sentença recorrida e é relevante para decidir se a penhora constituía obstáculo à realização da escritura prometida, e o segundo documenta a sentença proferida na acção administrativa a que se refere também aquele elenco no seu ponto 32 e também é relevante para documentar os esforços alegados pelo R. para obter a correcção da anomalia existente na caderneta predial.
Quanto ao primeiro documento, a sua admissibilidade resulta directamente das disposições conjugadas dos artigos 425.º e 651.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, face à sua superveniência objectiva e pertinência para a decisão da causa.
Quanto ao segundo documento, é notório que a parte não o podia apresentar com as suas alegações, face à data em que a sentença na acção administrativa foi proferida e notificada, mas certo é que a parte foi expedita na sua junção aos autos, dando oportunidade à parte contrária para exercer o seu contraditório quanto ao seu conteúdo.
Deste modo, tendo em conta também a necessidade de atender à situação factual efectivamente existente na data da decisão, e face à regra do artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil – nomeadamente a necessidade de atender aos factos constantes de documento autêntico superveniente – deve o referido documento ser admitido. Decide-se, pois, admitir os supra-referidos documentos.
Da impugnação da matéria de facto
Reconhecendo, preliminarmente, que o R. cumpriu o ónus de impugnação fáctica a que se refere o artigo 640.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, e consignando que se procedeu à audição da prova gravada e à análise da documentação anexa aos autos, analisemos a matéria de facto impugnada.
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No ponto 8 dos factos provados a sentença declarou provado o seguinte: “Não obstante, ao analisar a caderneta predial, verificou-se que desta constava, à data da celebração do referido contrato-promessa de compra e venda e ainda consta, um registo de usufruto vitalício a favor de (…).”
Por seu turno, no ponto 12 dos factos provados a sentença declarou provado o seguinte: “Da mesma forma, o promitente-vendedor e ora R (…) declarou que a inscrição nas Finanças estava errada e que bastavam duas semanas para tratar de tudo, comprometendo-se a fazê-lo.”
Finalmente, no ponto 1 dos factos não provados a sentença declarou não provado o seguinte: “Desde, pelo menos, Janeiro de 2021 que os ora AA. têm conhecimento sobre o ónus que recai sobre o imóvel em questão, tendo livre e atempadamente formado a sua vontade negocial.”
O R. alega que os AA. tiveram conhecimento da inscrição na caderneta do usufruto vitalício a favor de terceira pessoa, não na data da celebração do contrato-promessa mas em momento anterior, pois esse documento foi-lhes entregue antecipadamente e estes atentaram nessa inscrição, que foi com esse conhecimento que outorgaram o contrato-promessa, e que não se comprometeu com qualquer prazo para a resolução do assunto pelas Finanças. Decidindo, há a referir que o R. e os AA. estiveram de acordo, nas suas declarações prestadas em audiência, que apenas se encontraram na data de assinatura do contrato-promessa, para a respectiva outorga, sendo previamente conhecedores do estado da documentação atinente ao imóvel, nomeadamente do registo predial e da caderneta predial.
Consta da cláusula segunda al. B) do contrato-promessa, que as partes declararam, “de livre e esclarecida vontade, sem qualquer tipo de reserva, serem conhecedores do actual estado físico e jurídico do imóvel, pelo que fazem parte integrante do presente contrato a informação predial simplificada e a caderneta predial urbana.”
Estes documentos, com a data de emissão na própria data de outorga do contrato-promessa – 24.02.2021 – estão efectivamente anexos a esse contrato e mostram-se rubricados por ambas as partes.
Como revelaram as testemunhas … e … (a primeira, a advogada que prestava apoio jurídico à agência imobiliária que angariou o promitente-vendedor, o segundo o consultor imobiliário que acompanhou os AA. na agência imobiliária que os angariou), a documentação do imóvel, nomeadamente a informação predial simplificada e a caderneta predial, tinham previamente circulado entre as agências imobiliárias que haviam angariado o promitente-vendedor e os promitentes-compradores, e havia sido notada a discrepância existente entre os factos inscritos no registo predial e na caderneta.
Com efeito, no registo predial documentava-se que o direito de usufruto estava cancelado, primeiro pelo óbito de um dos dois usufrutuários, depois pela doação pela usufrutuária restante do seu direito de usufruto ao aqui R., que depois adquiriu a nua propriedade – em estrita aplicação, pois, das regras de extinção do usufruto previstas no artigo 1476.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Civil, primeiro pela morte de um dos usufrutuários, depois pela reunião do direito de usufruto restante e da propriedade na mesma pessoa.
Pelo contrário, na caderneta predial constava outra realidade jurídica: o R. seria apenas titular de metade da propriedade plena e na outra metade deteria apenas a nua propriedade, pois haveria um usufruto vitalício, na proporção de metade, titulado por (…), filha e única herdeira do usufrutuário falecido, revelando o entendimento do Serviço de Finanças de Palmela, que veio a ser manifestado no despacho da respectiva Chefe, de 20.10.2021, que o direito de usufruto era transmissível mortis causa – em interpretação absolutamente contra legem, porquanto ao arrepio de uma regra, bastante clara e que não merece dúvidas interpretativas de maior, de extinção do usufruto pelo morte do usufrutuário, prevista nos artigos 1443.º e 1476.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil.
A agência imobiliária que angariou os promitentes-compradores, aqui AA., apresentou-lhes os documentos supra-referidos, e o A. (…) também reparou que na caderneta predial constava que a referida (…) seria titular de um usufruto vitalício, na proporção da metade. Tendo o A. (…) chamado à atenção para esse facto ao consultor da sua agência imobiliária, a testemunha … (como este declarou no seu depoimento, entre 04m07s e 04m35s e entre 19m10s e 19m45s), este contactou o advogado que dava apoio à sua agência, que por seu turno contactou a testemunha (…), a advogada que dava apoio jurídico à agência que havia angariado o promitente-vendedor, iniciando esta diligências junto do Serviço de Finanças de Palmela para resolver o problema.
Face às regras impressivas sobre extinção do usufruto que constam do artigo 1476.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Civil, a opinião destes advogados foi no sentido que se trataria de um mero lapso do Serviço de Finanças e que a questão seria resolvida rapidamente, e foi isso que o (…) transmitiu ao A. (…), e cientes dessas informações os AA. decidiram avançar para a assinatura do contrato-promessa.
A testemunha (…) declarou também (entre 15m05s e 15m20s do seu depoimento) que no momento da assinatura do contrato ninguém falou da questão do usufruto, confirmando também as declarações de parte do A. (…), o qual afirmou que apenas viu o R. no momento da assinatura do contrato-promessa e que nesse acto não conversou com ele acerca do usufruto que surgia inscrito na caderneta predial, nem este se comprometeu ali com prazos para resolução do assunto junto das Finanças (entre 17m45s e 18m20s do seu depoimento).
Deste modo, não apenas a resposta ao ponto 8 deve ser alterada, para reflectir o conhecimento pelos AA., em data anterior à celebração do contrato-promessa, da existência de um usufruto vitalício inscrito na caderneta, como o ponto 12 deve ser alterado, reflectindo que foi com esse conhecimento que a vontade negocial foi formada, eliminando-se, em consequência, o ponto 1 do elenco de factos não provados.
De igual modo, o ponto 8 deve reflectir a discrepância existente entre o que se documentava no registo predial – maxime, na informação predial simplificada anexa ao contrato-promessa e na certidão predial permanente que os próprios AA. juntaram com a sua petição inicial – e o que constava na caderneta predial, tanto mais que tal discrepância motivou o comportamento das partes, quer na outorga do contrato-promessa, convencidos que a inscrição do usufruto na caderneta resultava de um lapso, quer nos desenvolvimentos que se lhe seguiram.
Em consequência, o ponto 9 deve também ser alterado, na sua parte inicial, de modo a eliminar dúvidas interpretativas da expressão “Face a tal registo…”, pois a interpelação do A. (…) ao (…) dirigiu-se à inscrição de usufruto que apenas surgia na caderneta predial, e não no registo predial.
Destarte, concedendo provimento à impugnação deduzida, decide-se:
· alterar a redacção do ponto 8 dos factos provados, que passará a ser a seguinte: “Ao analisar a caderneta predial, em data anterior à celebração do contrato-promessa de compra e venda, os AA. verificaram que ali constava que (…) era titular dum usufruto vitalício, na proporção da metade – ao contrário do que se documentava no registo predial, onde estava registada, desde 09.07.2019, a aquisição da propriedade plena pelo R., por compra em processo de execução”;
· alterar a redacção do ponto 9 dos factos provados, que em vez de se iniciar pela expressão “Face a tal registo…”, passará a iniciar-se pela expressão “Face à inscrição de usufruto apenas constante da caderneta predial…”;
· alterar a redacção do ponto 12 dos factos provados, que passará a ser a seguinte: “Tendo conhecimento do facto referido no ponto 8 – inscrição apenas na caderneta de usufruto a favor de outra pessoa, na proporção de metade – os AA. decidiram na mesma outorgar o contrato-promessa, tendo formado a sua vontade negocial com esse conhecimento”;
· eliminar o ponto 1 do elenco de factos não provados.
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O artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil permite à Relação alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
Trata-se de uma evolução em relação ao artigo 712.º da anterior lei processual civil, consagrando uma efectiva autonomia decisória dos Tribunais da Relação na reapreciação da matéria de facto, competindo-lhes formar a sua própria convicção, podendo, ainda, renovar os meios de prova e mesmo produzir novos meios de prova, em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada em primeira instância.
Neste aspecto, há que atender à realidade fáctica constante dos dois documentos supra admitidos e não impugnados, nomeadamente a extinção da instância executiva pelo pagamento e o pedido de cancelamento da penhora registada sobre o imóvel, a que se refere o ponto 25 do elenco de factos provados, e a prolação da sentença na acção administrativa ordenando a rectificação da matriz e a supressão do registo de usufruto – neste caso, com a menção do seu trânsito em julgado, conforme informação prestada pelo TAF de Almada.
Há, igualmente, que atender a outro facto documentado na certidão predial apresentada pelos AA. com a sua petição inicial, complementando o que já constava do ponto 25, i.e., o valor da quantia exequenda, tanto mais que tal se mostra relevante para aferir do incumprimento definitivo imputado ao Recorrente.
Assim, altera-se o ponto 25 dos factos provados, que ficará com a seguinte redacção: “E, ao requererem certidão actualizada do registo predial da habitação, os AA. verificaram que em 26/08/2021 foi registada uma penhora sobre a fracção autónoma acima referida, sendo a quantia exequenda de € 8.740,62.” Adita-se a seguinte matéria ao elenco de factos provados:
“33. Por decisão da agente de execução proferida no Proc. n.º 5121/20.0T8STB, em 04.07.2023, foi determinada a extinção da instância executiva pelo pagamento e pedido o cancelamento da penhora registada sobre o imóvel, referida no ponto 25. 34. Por sentença já transitada em julgado, datada do dia 21.02.2025 e notificada por registo de 24.02.2025, proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada no Proc. n.º 28/22.0BEALM, foi julgada procedente a acção administrativa intentada pelo R. contra o despacho da Chefe do Serviço de Finanças de Palmela de 20.10.2021, decidindo essa sentença julgar procedente a acção e, em consequência, ordenar a rectificação do registo matricial do prédio identificado nos autos, no sentido de suprimir o registo de usufruto a favor de (…).”
Ainda, em consequência lógica desta decisão, no ponto 32 elimina-se a expressão “que actualmente corre termos”.
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Em resumo, a impugnação fáctica procede, pois:
· os pontos 8, 9, 12 e 25 dos factos provados passarão a ter a redacção supra exposta;
· o ponto 1 do elenco de factos não provados será eliminado;
· aditam-se dois novos pontos aos factos provados, numerados como 33 e 34, com a redacção supra exposta; e,
· no ponto 32, elimina-se a expressão “que actualmente corre termos”.
O elenco fáctico provado fica assim estabelecido:
1. Os AA. e o R. celebraram, no dia 24 de Fevereiro de 2021, um contrato-promessa de compra e venda da fracção autónoma designada pela letra “D” destinada a habitação, correspondente à Moradia D com entrada pelo n.º 48, que faz parte integrante do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Rua (…), n.ºs 42, 44, 46 e 48, (…), freguesia de (…), concelho de Palmela, inscrita na respectiva matriz predial urbana sob o artigo (…), da freguesia de (…) e descrita na Conservatória do Registo Predial de Palmela, sob o n.º (…), da freguesia de (…).
2. O valor acordado para a venda da fracção autónoma foi de € 307.500,00 (trezentos e sete mil e quinhentos euros).
3. Os promitentes-compradores, ora AA., entregaram ao promitente-vendedor, ora R., a título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de € 46.125,00 (quarenta e seis mil e cento e vinte e cinco euros).
4. O pagamento foi feito por transferência bancária da conta do A. (…), no Banco (…), com o n.º (…), para a conta do promitente-vendedor, ora R., (…), no Banco (…), com o n.º (…).
5. À data, os ora AA. eram acompanhados pela sociedade mediadora denominada Remax (…).
6. Na cláusula segunda do contrato-promessa, alínea A), está expresso:
“Pelo presente Contrato, o Promitente Vendedor promete vender, ao Promitente-Comprador a fracção autónoma identificada na Cláusula Primeira, livre de qualquer ónus, encargos ou responsabilidades e devoluto de pessoas, bens e animais, que o Promitente-Comprador por sua vez promete comprar àquele, no estado de conservação que ambas as partes declararam ser conhecedoras.”
7. A propriedade da referida fracção “D” está registada em nome do promitente-vendedor, ora R., que sempre se intitulou e comportou como proprietário da mesma, mostrando-a aos AA. – que verificaram encontrar-se a mesma vazia de pessoas, animais e bens – e negociando as condições do negócio, não havendo registos impeditivos da venda.
8. Ao analisar a caderneta predial, em data anterior à celebração do contrato-promessa de compra e venda, os AA. verificaram que ali constava que (…) era titular dum usufruto vitalício, na proporção da metade – ao contrário do que se documentava no registo predial, onde estava registada, desde 09.07.2019, a aquisição da propriedade plena pelo R., por compra em processo de execução.
9. Face à inscrição de usufruto apenas constante da caderneta predial, o ora A. (…) interpelou o representante da mediadora, o sr. (…), sobre o que fazer e se tal inscrição não seria impeditiva do negócio, já que pretendia adquirir a casa, no prazo acordado, para morar nela.
10. Em resposta, o sr. (…) informou que iria falar com o departamento jurídico da sociedade mediadora e que voltaria a ligar.
11. Passado pouco tempo, o sr. (…) informou o A. (…) de que estava tudo bem e que se tratava de um lapso, que seria sanado rapidamente.
12. Tendo conhecimento do facto referido no ponto 8 – inscrição apenas na caderneta de usufruto a favor de outra pessoa, na proporção de metade – os AA. decidiram na mesma outorgar o contrato-promessa, tendo formado a sua vontade negocial com esse conhecimento.
13. Convencidos da boa-fé de todos os intervenientes, os AA. assinaram o contrato-promessa e transferiram o dinheiro do sinal, conforme acima referido.
14. Os AA., que viviam num imóvel arrendado, pretendiam comprar casa e mudar-se rapidamente, pelo que acordaram com o ora R., ficando consignada na cláusula quarta do contrato, que a escritura seria celebrada até ao dia 26 de Abril de 2021.
15. Não obstante as inúmeras interpelações do A. (…) ao R. (…) para que fosse entregue a documentação necessária à escritura, nomeadamente a caderneta predial, sem o registo do usufruto, tal nunca ocorreu.
16. Em 18 de Março de 2021, foi endereçada à (…) – Mediação Imobiliária, Lda., na qualidade de representante do promitente-vendedor, uma carta interpelando o mesmo para a sanação de dois problemas: a questão da inscrição do usufruto sobre a fracção autónoma; e a divergência, entretanto detectada, em relação à área da garagem.
17. Mais se referindo na mencionada carta que, não se verificando a sanação daquelas irregularidades, os AA. perderiam o interesse na manutenção do negócio.
18. Na sequência de contactos entre as partes e na tentativa de ainda adquirir o imóvel, os AA., a solicitação do R. (…), aceitaram prorrogar o prazo da marcação da escritura por parte deste para dia 1 de Junho seguinte.
19. Data que o R. (…), a cargo de quem ficou a marcação da escritura, declarou que já teria sanado o problema do registo do usufruto e que, em consonância, poderia marcar a escritura.
20. Passado que foi o dia 1 de Junho de 2021, o R. (…) continuou sem marcar a data para a escritura.
21. Não obstante as múltiplas insistências dos AA. para que a marcação fosse feita.
22. O R. (…) não procedeu a tal marcação alegando que ainda não tinha sido obtida a alteração do registo de usufruto que constava da certidão matricial.
23. E também não entregou aos AA. a documentação necessária para o efeito, continuando a constar da caderneta predial a inscrição de um usufruto vitalício.
24. Veio depois o A. (…) a constatar que actualmente a casa está habitada por terceiros.
25. E, ao requererem certidão actualizada do registo predial da habitação, os AA. verificaram que em 26/08/2021 foi registada uma penhora sobre a fracção autónoma acima referida, sendo a quantia exequenda de € 8.740,62.
26. Os ora AA. pretendiam adquirir o imóvel para fazer deste a sua casa de morada de família.
27. Na sequência da celebração do contrato-promessa e convictos de que o contrato prometido seria celebrado nos termos acordados, os AA. denunciaram o contrato de arrendamento referente à casa onde residiam e, face à não celebração da escritura de compra e venda da fracção prometida vender pelo R., tiveram de passar, provisoriamente, a viver na casa dos pais do A. (…).
28. Na sequência do que e em face do tempo já decorrido sem que se mostre resolvida a questão da inscrição do usufruto sobre a fracção autónoma e o que acima consta em 24 e 25, os AA. já perderam o interesse na celebração da escritura de compra e venda desta casa.
29. Após a assinatura do contrato-promessa acima referido, o R., através do seu mandatário, enviou email para o Serviço de Finanças de Palmela, em 16 de Abril de 2021, requerendo a imediata correcção da inscrição do usufruto constante da caderneta predial do imóvel.
30. Deste facto foi dado conhecimento aos ora AA., na pessoa do seu mandatário, por carta registada datada de 03 de Maio de 2021, da qual se extrai a seguinte passagem:
“(…) Partilhamos da opinião que efectivamente existe uma discrepância entre a informação do registo predial e da caderneta predial, dado que resulta desta última um usufruto vitalício a favor de (…), quando tal é impossível, uma vez que o n/cliente adquiriu a propriedade plena do imóvel a essa mesma pessoa, ao que acresce que, se a referida pessoa era proprietária do imóvel não poderia ser, simultaneamente, usufrutuária vitalícia. E porque a informação que resulta da caderneta predial não está correcta, conforme resulta da informação do registo predial, já encetamos diligências, com carácter de urgência, quer junto do Serviços de Finanças de Palmela, quer da Direcção de Finanças de Setúbal, com vista à promoção da correcção da informação na caderneta predial por aquele serviço, pela eliminação do ónus que, neste momento, encontra-se averbado sobre o imóvel em questão e em consonância com a informação do registo predial, acreditando que o prazo que medeia até à data da celebração da escritura afigura-se-nos razoável para as finanças procederem à competente correcção”.
31. Em 24 de Maio de 2021, não tendo ainda o Serviço de Finanças proferido decisão sobre o pedido de correcção da inscrição de usufruto, o mandatário do R. enviou um email ao mandatário dos AA. informando que, “de acordo com a indicação por parte da direcção do Serviço de Finanças de Setúbal”, a situação estaria resolvida até 01 de Junho de 2021.
32. Perante o despacho da Chefe de Finanças de Palmela, proferido em 20.10.2021, que indeferiu o pedido de correcção do averbamento matricial de usufruto, o R. intentou acção de impugnação de acto administrativo junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada.
33. Por decisão da agente de execução proferida no Proc. n.º 5121/20.0T8STB, em 04.07.2023, foi determinada a extinção da instância executiva pelo pagamento e pedido o cancelamento da penhora registada sobre o imóvel, referida no ponto 25.
34. Por sentença já transitada em julgado, datada do dia 21.02.2025 e notificada por registo de 24.02.2025, proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Almada no Proc. 28/22.0BEALM, foi julgada procedente a acção administrativa intentada pelo R. contra o despacho da Chefe do Serviço de Finanças de Palmela de 20.10.2021, decidindo essa sentença julgar procedente a acção e, em consequência, ordenar a rectificação do registo matricial do prédio identificado nos autos, no sentido de suprimir o registo de usufruto a favor de (…).
Aplicando o Direito. Da mora e do incumprimento definitivo
A sentença recorrida considerou que havia incumprimento definitivo por parte do R., justificando a perda de interesse dos AA. na celebração do contrato prometido, motivo pelo qual julgou a acção procedente e determinou a devolução do sinal em dobro, ao abrigo do disposto no artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil.
Vejamos.
Partilha-se a jurisprudência dominante segundo a qual a mora do devedor não permite, excepto se existir convenção em contrário, a imediata resolução do contrato, a menos que se transforme em incumprimento definitivo, o que pode acontecer se sobrevier a impossibilidade da prestação, se o credor perder o interesse na mesma – que se afere em função da utilidade que a prestação para ele teria, embora atendendo a elementos susceptíveis de valoração pela generalidade das pessoas, justificada por um critério de razoabilidade própria do comum das pessoas – e ainda em consequência da inobservância do prazo suplementar e peremptório que o credor fixe, razoavelmente, ao devedor relapso.
Como se decidiu no Acórdão desta Relação de Évora de 28.05.2015, «só o incumprimento definitivo (do promitente-vendedor), e não só a simples mora, habilita o promitente-comprador a resolver o contrato promessa e a exigir a entrega do sinal em dobro, (…) sabendo-se que a mora do promitente-vendedor só se converte em incumprimento definitivo se a prestação não for por ele realizada dentro do prazo que razoavelmente lhe for fixado pelo promitente-comprador ou, em alternativa, se este perder o interesse que tinha na prestação, perda esta que deve ser apreciada objectivamente (artigo 808.º, n.ºs 1 e 2, Código Civil). A mora é, em sentido amplo, o mero retardamento da prestação: esta não foi executada no momento próprio, mas ainda é possível, por continuar a ter interesse para o credor. Não podendo o credor resolver o contrato promessa em razão da mora do devedor, deve, em face do disposto no artigo 808.º, n.º 1, do Código Civil, transformar tal mora em incumprimento definitivo, podendo tal conversão suceder pela perda de interesse na prestação por parte do credor, ou pela não realização da prestação no prazo que for, razoavelmente, fixado pelo credor, sob a cominação estabelecida no preceito legal (interpelação admonitória), sendo que, neste caso, o contraente não faltoso fixa ao outro um prazo para o cumprimento da obrigação, findo o qual a obrigação se tem por definitivamente não cumprida. (…) A perda de interesse na prestação é apreciada objectivamente em conformidade com o disposto no artigo 808.º, n.º 2, do Código Civil, o que significa que não basta que o credor diga que a prestação já não lhe interessa; há que ver, em face das circunstâncias, se a perda de interesse corresponde à realidade dos factos – ou seja, a perda do interesse deve ser justificada segundo um critério de razoabilidade entendido pela generalidade das pessoas.»[3]
No caso, o prazo previsto na cláusula 4ª do contrato, até 26.04.2021, não era absolutamente essencial. A cláusula 4ª, no introito e na alínea A), conferia aos promitentes-compradores, em primeira linha, a faculdade de marcarem a escritura, devendo o promitente-vendedor fornecer toda a documentação necessária à efectivação da mesma, e apenas em caso de não marcação da escritura nesse prazo pelos promitentes-compradores era conferido ao promitente-vendedor a faculdade de ser ele a marcar a escritura, sendo que o incumprimento definitivo apenas ocorreria se os promitentes-compradores não comparecessem na data assim designada – alíneas B) e C) da referida cláusula 4ª. Ademais, na cláusula 6ª admitia-se a prorrogação do prazo por 30 dias, face à situação pandémica então existente.
Acresce que as partes conheciam a discrepância existente entre a caderneta predial e o registo predial, e foi com esse conhecimento que os AA. decidiram outorgar o contrato-promessa, tendo formado a sua vontade negocial com esse conhecimento.
É notório que as partes estavam convencidas que a inscrição do usufruto a favor de terceira pessoa, na proporção de metade, que apenas constava da caderneta, resultava de um lapso do Serviço de Finanças, que seria sanado rapidamente – não esperando, pois, que aquele Serviço viesse a concluir, meses mais tarde, que afinal esse usufruto subsistia, pois teria sido transmitido, mortis causa, à herdeira do primeiro usufrutuário falecido, realizando, pois, uma interpretação absolutamente contra legem das regras contidas nos artigos 1443.º e 1476.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil que, de forma bastante impressiva, determinam a extinção do usufruto por óbito do usufrutuário.
Os autos também documentam que o R. iniciou diligências para resolver a questão – nomeadamente, através do email dirigido ao Serviço de Finanças de Palmela em 16.04.2021, requerendo a correcção da inscrição do usufruto – e que disso foi dando conhecimento aos AA., através das comunicações de 03.05.2021 e de 24.05.2021, mencionadas nos pontos 30 e 31 do elenco fáctico provado.
No entanto, apenas em 20.10.2021 aquele Serviço respondeu, indeferindo o pedido de correcção, obrigando o R. a propor uma acção de impugnação desse acto junto do TAF de Almada, que apenas veio a ser decidida por sentença de 21.02.2025, já transitada em julgado, determinando a supressão na matriz do registo de usufruto.
Deste modo, ao contrário do que afirmou a sentença recorrida, os autos não revelam, quanto à questão da correcção da inscrição de usufruto na caderneta predial, que o R. tenha adoptado um comportamento culposo, que justifique a sua condenação na devolução do sinal em dobro, ao abrigo do artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil, tanto mais que esta norma exige a demonstração de uma causa imputável a uma das partes, que neste caso não aconteceu.
Quanto à questão da penhora, a mesma seria relevante se as circunstâncias da mesma demonstrassem a impossibilidade de cumprimento da prestação por parte do promitente-vendedor, maxime, face ao valor da quantia exequenda e aos créditos eventualmente reclamados.
Neste sentido, já se decidiu nesta Relação de Évora, em Acórdão de 21.12.2017 (Proc. 3542/14.7T8STB.E1, Relatora: Albertina Pedroso, publicado na página da DGSI), o seguinte:
“VIII – Considerando que o valor da quantia exequenda é superior ao valor do imóvel penhorado, naturalmente não pode deixar de concluir-se que a existência da indicada penhora anterior ao registo da presente acção, constitui facto impeditivo à procedência do pedido principal, com vista à execução específica do contrato, formulado pelo autor na presente acção. IX – Encontrando-se o imóvel prometido vender onerado com várias penhoras, especialmente com a penhora de valor elevado cujo pagamento a Ré não satisfez, tal é no caso vertente, e por si só, revelador de uma impossibilidade objectiva de cumprimento, exclusivamente imputável à promitente-vendedora que obsta ao cumprimento do negócio prometido.”
Porém, no caso dos autos, o valor da quantia exequenda no processo onde foi ordenada a penhora, de € 8.740,62, é claramente inferior ao valor restante do preço que os promitentes-compradores teriam a pagar na data de celebração da escritura, de € 261.375,00, e nada mais está alegado quanto a eventuais créditos reclamados, ou à ocorrência de outras circunstâncias impeditivas do levantamento da penhora até à data de escritura.
Quanto ao facto de o imóvel estar actualmente habitado por terceiros, há a dizer que, face à cláusula 2ª, alínea A), do contrato-promessa, a obrigação do promitente-vendedor era a de vender o imóvel livre e devoluto de pessoas, bens e animais, à data de escritura de compra e venda. A mera alegação de actualmente estar o imóvel habitado por terceiros – algo que o contrato-promessa não proibia até à data de celebração da escritura – não revela, pois, um comportamento incumpridor do R. que objectivamente impossibilitasse o cumprimento das obrigações que assumiu no contrato.
Está, porém, demonstrado que os RR. não estavam interessados no constante adiamento da escritura.
Logo na carta de 18.03.2021, mencionaram que a não sanação da questão do usufruto na caderneta levaria à perda do seu interesse na manutenção do negócio. Também está demonstrado que pretendiam mudar-se rapidamente, e que denunciaram o contrato de arrendamento da casa onde residiam, tendo passado a viver provisoriamente na casa dos pais do A. (…).
Por esse motivo, foram interpelando o R. para que fosse entregue a documentação necessária à marcação da escritura, nomeadamente a caderneta predial sem o registo do usufruto, tendo aceite prorrogar o prazo até 1 de Junho de 2021.
Por motivos que ao R. não são imputáveis, e que os autos bem documentam, a entrega da caderneta sem essa inscrição de usufruo não foi possível no prazo que os AA. concederam, pelo que estes perderam o interesse na celebração da escritura de compra e venda, como está provado no ponto 28.
Admite-se que os factos provados justificam, objectivamente, a perda de interesse dos AA. na celebração da escritura, fundada face aos termos do artigo 808.º, n.º 2, Código Civil – a questão do usufruto cujo conhecimento o Serviço de Finanças adiou e depois decidiu não corrigir, obrigando à interposição de uma acção de impugnação administrativa, de demorada tramitação, tornando mais penosa a situação dos AA., que esperavam mudar-se rapidamente e se viram na contingência de viver na casa dos pais do A. (…), só por si justifica a sua perda de interesse no negócio.
Afinal, o que pretendiam era comprar uma casa para viverem, não esperando um demorado litígio judicial e verem-se obrigados a viver numa casa que não era a sua.
Em termos razoáveis, a perda de interesse dos AA. está assim justificada.
Agora, o que não se detecta nos autos é que a causa dessa perda objectiva de interesse seja imputável ao R. – este tudo fez para cumprir o contrato prometido, e até avançou para uma acção de impugnação administrativa, suportando as despesas, em custas e em honorários, que tal acção comporta.
Mais não se lhe podia exigir, pelo que não há causa imputável ao R. que, face aos termos do artigo 442.º, n.º 2, do Código Civil, o constitua na obrigação de restituição do sinal em dobro.
Visto que a restituição do sinal em singelo é consequência da resolução do contrato, comunicada pelos AA. através da propositura da acção, e que tal acto tem eficácia retroactiva, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado – artigos 289.º, n.º 1, 433.º e 434.º, n.º 1, do Código Civil – e ponderando, também, que a condenação na restituição do sinal em singelo é um minus em relação ao pedido de restituição em dobro (este compreende aquele)[4], a causa procede apenas nessa medida.
Decisão.
Destarte, concede-se parcial provimento ao recurso, condenando-se o R. a pagar aos AA., apenas, a quantia de € 46.125,00, gozando este crédito de hipoteca judicial, nos exactos termos que já constam da sentença.
Custas, da acção e do recurso, em partes iguais.
Évora, 5 de Junho de 2025
Mário Branco Coelho (relator)
Isabel de Matos Peixoto Imaginário
Cristina Dá Mesquita
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[1] Neste sentido, vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.04.2019 (Processo n.º 22946/11.0T2SNT-A.L1.S2), disponível em www.dgsi.pt.
[2] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.04.2019, identificado na nota anterior.
[3] O Acórdão da Relação de Évora de 28.05.2015 (Processo n.º 1600/11.9TBEVR.E1), está publicado em www.dgsi.pt.
[4] Assim se decidiu no Acórdão da Relação de Coimbra de 13.09.2022 (Processo n.º 1486/19.5T8VIS.C1), publicado em www.dgsi.pt.