1. O conhecimento do mérito da causa no saneador só deverá ocorrer se o processo possibilitar a decisão sem necessidade de mais prova, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes segundo as várias soluções plausíveis de direito e não apenas tendo em vista a partilhada pelo juiz da causa.
2. O garante hipotecário constitui terceiro com legítimo interesse na declaração de prescrição da obrigação em execução.
3. Nas relações imediatas tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta, ficando sujeita às excepções que nessas relações pessoais se fundamentem, pelo que a prescrição da obrigação causal determina, no domínio das relações imediatas, a necessária extinção da obrigação cartular.
4. A homologação de um plano de recuperação, com imposição de um período de carência, impede que o prazo de prescrição comece a correr, face ao disposto no artigo 306.º, n.º 1, do Código Civil.
5. Deste modo, a decisão da excepção de prescrição da relação subjacente à obrigação cambiária depende do conhecimento do plano de recuperação homologado, do período de carência imposto ao crédito em execução, da data de incumprimento, e da data e dos termos da interpelação efectuada nos termos do artigo 218.º, n.º 1, alínea a), do CIRE.
(Sumário do Relator)
b) A prescrição é, unanimemente, qualificada como uma excepção peremptória.
c) De acordo com o disposto nos artigos 571.º, n.º 2, e 576.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, estas excepções consistem na invocação de factos que impedem, modificam ou extinguem o efeito jurídico dos factos articulados pelo autor, neste caso, a embargante e, sempre que viável, devem ser conhecidas logo no despacho saneador, conforme dispõe o artigo 595.º, n.º 1, alínea b), do Código Processo Civil.
d) O despacho que (mesmo sem por termo ao processo) julga procedente ou improcedente alguma excepção peremptória, como a prescrição, conhece do mérito da causa e é susceptível de impugnação mediante a interposição de recurso de apelação, respeitados que sejam os demais pressupostos formais, sob pena de transitar em julgado.
e) A executada e ora recorrente pode, assim, interpor o presente recurso de apelação autónomo.
f) A execução a que estes embargos são apensos vem assente e instruída com um título executivo composto, designadamente uma livrança e dois contratos de empréstimo;
g) Na mesma execução a que estes autos são apensos, a qualidade de executada da embargante (…) – Sociedade Imobiliária, Unipessoal, Lda. é decorrente dos contratos de empréstimo de 05/02/2012 e de 08/11/2013, e bem assim da escritura pública de constituição de hipoteca outorgada pela ora recorrente em 05/02/2012, que ficou a fazer parte integrante do contrato de empréstimo celebrado na mesma data.
h) A embargante ora recorrente não consta das livranças dadas à execução, pelo que as mesmas não constituem título executivo relativamente a si, para cumprimento das regras da legitimidade passiva previstas no artigo 53.º do Código de Processo Civil, que dispõe que “A execução (…) deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição de devedor”.
i) Não é, assim, assacável à ora Recorrente qualquer responsabilidade decorrente da assinatura das livranças, de natureza cambiária, nem lhe sendo oponível qualquer excepção de cariz meramente cartular.
j) Resulta, pois, inultrapassável concluir que os fundamentos aduzidos pelo despacho recorrido não são de molde a afastar a verificação da prescrição da quantia exequenda, nos termos alegados pela embargante.
l) Havendo de proceder a prescrição por si invocada com base na fundamentação vertida em sede de embargos de executado.
m) Reitera-se que a ora Recorrente só intervém na presente acção executiva porque garantiu, com o seu imóvel, o pagamento dos valores financiados.
n) Enquanto garante, a ora executada é considerada terceiro com interesse legítimo para invocar a prescrição de obrigação alheia, nos termos do n.º 1 do artigo 305.º do Código Civil, conforme, alias, é unanimemente aceite na doutrina e jurisprudência (vide, entre outros, o Acórdão da Relação de Lisboa de 11-01-2022, Proc. n.º 443/21.6T8PDL-A.L1-7, in www.dgsi.pt) Nessa medida, está a ora executada legitimada a dizer o seguinte.
o) Conforme resulta dos embargos de executado, veio a executada e ora recorrente defender a prescrição de parte dos créditos titulados pelos contratos de mútuo dados à execução, pedindo a redução do valor da divida exequenda.
p) Alegou, para tanto que, tendo em conta que foi citada para a execução em 26/06/2024 e o entendimento assente pelo Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, de 22/09/2022, relativamente à norma prevista no artigo 310.º, alínea e), do Código Civil, as prestações de capital e juros referentes aos contratos de mútuo (financiamento) aqui em execução, que se venceram até 26/06/2019, encontram-se prescritos.
q) O Douto Despacho Saneador veio decidir pela improcedência dos embargos, na parte que respeita à prescrição invocada pela executada ora recorrente, com fundamento de não ter decorrido o prazo prescricional previsto no artigo 70.º da Lei Uniforme das Letras e Livranças, aplicável às livranças por força do artigo 77.º do mesmo diploma legal.
r) O Tribunal a quo decidiu mal, porquanto a prescrição verificada e invocada incide sobre os contratos de mútuo dados à execução e não sobre a livrança, na qual a ora Recorrente tão pouco, é interveniente.
s) As livranças dadas à execução não foram subscritas pela ora executada pelo que as mesmas não constituem título executivo relativamente a si.
t) A responsabilidade da recorrente na presente execução ser-lhe ia assacável tão só no âmbito da sua intervenção na celebração de dois “financiamentos”, que configuram contratos de mútuo (artigo 1142.º do Código Civil).
u) Dos documentos n.º 2, 7 e 9 juntos com o requerimento executivo parece resultar que a dívida exequenda se reporta ao credito bancário concedido pelo Banco (…) à ora executada, o qual foi identificado como “Financiamento n.º (…)”, no montante máximo global de € 900.000,00, datado de 05/07/2012, que teve como destino apoio à tesouraria e liquidação de responsabilidades, pelo prazo de 84 meses, com carência de capital pelo prazo de 12 meses, mas sem carência de juros, devendo o ser reembolsado em prestações mensais (de capital e juros), ou seja, o reembolso, no que respeita ao capital, deveria ser processado em prestações mensais com inicio em Agosto de 2013 e termino em Julho de 2019 e, no que respeita a juros, com inicio em Agosto de 2012 e termino em Julho de 2019.
v) De igual modo, dos documentos n.º 5, 8 e 10 juntos com o requerimento executivo, parece resultar que a dívida se reporta também ao crédito bancário concedido pelo Banco (…) à ora executada, o qual foi identificado como “Financiamento n.º (…)”, no montante máximo global de € 340.000,00, datado de 08/11/2013, que teve como destino liquidação de responsabilidades e apoio à tesouraria, pelo prazo de 72 meses, com carência de capital pelo prazo de 6 meses, mas sem carência de juros, devendo o mesmo ser reembolsado em prestações mensais (de capital e juros), isto é, o reembolso, no que respeita ao capital, deveria ser processado em prestações mensais com inicio em Junho de 2014 e termino em Outubro de 2019 e, no que respeita a juros, com inicio em Dezembro de 2013 e termino em Outubro de 2019.
x) Como é entendimento assente (vide Acórdão Uniformizador de Jurisprudência de 22/09/2022), prescrevem, no prazo de 5 anos, nos termos da alínea e) do artigo 310.º do Código Civil, as obrigações consubstanciadas em quotas de amortização do capital mutuado ao devedor, pagável com juros, em relação ao vencimento de cada prestação.
z) A ora executada foi citada para a presente execução no dia 26/06/2024.
aa) As prestações de capital e juros referentes aos supra mencionados empréstimos que se venceram até 26/06/2019 encontram-se prescritos.
bb) A prescrição da obrigação atribui ao seu beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito, o que acarreta, neste caso, a extinção da dívida executada.
cc) Assim, encontrando-se parcialmente prescrita a divida exequenda relativamente à Recorrente, devendo ser reduzida na mesma medida.
dd) Não se verifica, relativamente à ora Recorrente qualquer causa de suspensão ou interrupção da prescrição.
ee) Ao decidir da forma que decidiu, a Exma. sra. Juiz recorrida violou o correcto entendimento do disposto no alínea e) do artigo 310.º do Código Civil.
A exequente respondeu, propondo a manutenção do decidido.
Cumpre-nos decidir.
Os factos relevantes para a decisão são os constantes do relatório.
Aplicando o Direito.
Do conhecimento da excepção no saneador
De acordo com o artigo 595.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, o juiz pode conhecer do mérito da causa no saneador, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidades de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória.
Deste modo, o conhecimento do mérito da causa no saneador só deverá ocorrer se o processo possibilitar a decisão sem necessidade de realização de mais diligências de prova, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes “segundo as várias soluções plausíveis de direito e não apenas tendo em vista a partilhada pelo juiz da causa.”[1]
A primeira instância considerou que poderia conhecer da excepção de prescrição logo no saneador, baseando-se apenas na data de vencimento das duas livranças em execução, das quais a subscritora é a outra executada, (…), SGPS, S.A., mutuária nos empréstimos concedidos.
No entanto, sendo a aqui embargante mera garante hipotecária (pois não é obrigada cambiária nas livranças em execução, que não subscreveu nem avalizou), constitui terceiro com legítimo interesse na declaração da prescrição, ainda que o devedor a ela tenha renunciado, nos termos do artigo 305.º, n.º 1, do Código Civil.
De acordo com o artigo 17.º da LULL, no domínio das relações imediatas podem, em regra, ser invocadas as excepções inerentes à relação fundamental ou subjacente.
Estando subjacente à emissão das duas livranças a concessão de dois contratos de mútuo bancário, onde se convencionou o pagamento em prestações mensais que incluíam juros remuneratórios e amortização do capital, há a notar que face ao AUJ n.º 6/2022, de 30.06.2022, prescrevem, no prazo de 5 anos, nos termos da alínea e) do artigo 310.º do Código Civil, as obrigações consubstanciadas em quotas de amortização do capital mutuado ao devedor, pagável com juros, em relação ao vencimento de cada prestação.
Visto que nas relações imediatas tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta, ficando sujeita às excepções que nessas relações pessoais se fundamentem, a prescrição da obrigação causal determina, no domínio das relações imediatas, a necessária extinção da obrigação cartular – neste sentido, vide o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.10.2024, proferido no Processo n.º 466/22.8T8ELV-C.E1.S1 e publicado na página da DGSI.
Sucede que os autos, com a prova até ao momento recolhida, não permitem ajuizar da prescrição da obrigação causal.
Com efeito, está alegado que a mutuária foi sujeita a um plano de recuperação, homologado por sentença transitada em julgado, o qual previa um período de carência, e que findo tal período a mutuária não cumpriu o plano, motivo pelo qual a interpelou, nos termos do artigo 218.º, n.º 1, alínea a), do CIRE, e depois exigiu o pagamento integral da dívida e procedeu ao preenchimento das duas livranças.
Mas, pelo menos até ao momento, nos autos não está documentado o plano de recuperação homologado, qual o período de carência, e qual a interpelação efectuada nos termos do artigo 218.º, n.º 1, alínea a), do CIRE.
Junto com o requerimento executivo e com a contestação de embargos, está apenas cópia de uma carta enviada à mutuária, com data de 10.01.2023 (aparentemente, o ano é, na realidade, de 2024, pois essa é a data que consta do registo postal), comunicando o vencimento antecipado de todas as obrigações, exigindo o pagamento integral da dívida e informando que as livranças iriam ser preenchidas.
Os demais elementos documentais supra referidos, esses, não foram ainda juntos.
Sucede que a homologação de um plano de recuperação, com imposição de um período de carência, impede que o prazo de prescrição comece a correr, face ao disposto no artigo 306.º, n.º 1, do Código Civil – “o prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido…”.
Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 03.02.2022, proferido no Proc. 96/21.1T8SRE-D.S1 e publicado na DGSI, “a homologação do plano de recuperação (…) não permite que se inicie de imediato novo prazo porque a existência do Plano, nos seus termos e condições, constitui pela sua própria natureza um obstáculo à exigência do crédito que nele foi incorporado e beneficia do regime de condescendência concordatária de cumprimento que (no plano) tenha sido fixado.”
Desconhecendo-se, pois, dados essenciais à decisão da excepção – o plano de recuperação homologado, com explicitação do período de carência imposto ao crédito em execução, a data de incumprimento, a data e os termos da interpelação efectuada nos termos do artigo 218.º, n.º 1, alínea a), do CIRE – não podia o saneador decidir, ainda, a questão, o que impõe a revogação, com o regular prosseguimento dos autos para a fase de instrução e julgamento.
Decisão.
Destarte, concedendo provimento ao recurso, revoga-se a decisão recorrida na parte que julgou improcedente a excepção de prescrição, e determina-se o regular prosseguimento dos autos para a fase de instrução e julgamento.
Custas do recurso pela embargada.
Évora, 5 de Junho de 2025
Mário Branco Coelho (relator)
Maria Domingas Simões
Mário João Canelas Brás
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[1] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 3.ª ed., pág. 659, em anotação ao referido artigo 595.º.
Na jurisprudência, seguindo a mesma orientação, vide o Acórdão da Relação de Lisboa de 03.12.2020 (Proc. 4711/18.6T8LRS-A.L1-2), publicado em www.dgsi.pt.