VALOR DA CAUSA
ACÇÃO DE DESPEJO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
VALIDADE
Sumário

Na falta de expressa previsão legal quanto ao método de determinação do valor da acção em que se discute a validade ou a existência do contrato de arrendamento, deve ser aplicado o critério relativo ao valor da causa nas acções de despejo, previsto no n.º 1 do artigo 298.º do CPC, considerada a analogia do resultado útil de ambos os tipos de processos, apesar das diferenças das respectivas causas de pedir.
(Sumário do Relator)

Texto Integral

Apelação 2096/23.8T8EVR-A.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Évora, Juízo Central Cível e Criminal de Évora – Juiz 4

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SUMÁRIO (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
(…)

Acordam os Juízes na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, sendo
Relator: Ricardo Miranda Peixoto;
1º Adjunto: Filipe César Osório; e
2ª Adjunto: Maria João Sousa e Faro.
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***
I. RELATÓRIO
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A.
Vieram (…) e (…), na acção declarativa principal com processo comum proposta contra (…) ​e (…), pedir a declaração da nulidade do contrato de arrendamento descrito na p.i. e a condenação dos Réus à entrega imediata do imóvel, livre de pessoas e bens aos Autores.
Alegaram para o efeito que são donos da Herdade da (…), comprada por escritura celebrada a 22.11.2023, no âmbito da insolvência da sociedade “(…) – Gestão e Exploração Imobiliária, S.A.”, declarada por sentença de 18.01.2013. Com data de 24.10.2011, foi celebrado entre a sociedade “(…) – Gestão e Exploração Imobiliária, S.A.” e os Réus, (…) e (…), contrato de arrendamento tendo por objecto a referida Herdade da (…), sendo o 1º Réu sobrinho da então administradora da sociedade, e o 2º Réu irmão da mesma. A renda prevista no contrato de arrendamento foi fixada em quase dez vezes menos o valor de mercado, o que é atentatório do escopo lucrativo da sociedade, sem previsão de prazo e de meio de pagamento, tendo o contrato visado apenas assegurar a manutenção do uso do imóvel pelos administradores da (…) em caso de insolvência desta, sem real intenção das partes celebrarem um arrendamento rural. O negócio é, assim, nulo por contrário à lei.
Atribuíram à acção o valor de € 62.400,00.
B.
Contestaram os Réus.
Excepcionaram o reconhecimento do contrato de arrendamento rural em apreço pelo Sr. Administrador da Insolvência da “(…)”.
Impugnaram as alegadas causas de nulidade do contrato celebrado.
Atribuíram à acção o valor de € 62.400,00.
C.
Dado o prévio contraditório às partes, foi elaborado despacho saneador, no qual, depois da apreciação tabelar dos pressupostos de regularidade da instância, foi proferido o seguinte despacho de fixação do valor da causa (reprodução sem negritos ou sublinhados da origem):
“Do valor da ação
A toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido, atendendo-se a este valor para determinar a competência do tribunal, a forma do processo de execução comum e a relação da causa com a alçado do tribunal (artigo 296.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Os critérios gerais para a fixação do valor constam enunciados no artigo 297.º do CPC:
“1 - Se pela ação se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, não sendo atendível impugnação nem acordo em contrário; se pela ação se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício.
2 - Cumulando-se na mesma ação vários pedidos, o valor é a quantia correspondente à soma dos valores de todos eles; mas quando, como acessório do pedido principal, se pedirem juros, rendas e rendimentos já vencidos e os que se vencerem durante a pendência da causa, na fixação do valor atende-se somente aos interesses já vencidos.
3 - No caso de pedidos alternativos, atende-se unicamente ao pedido de maior valor e, no caso de pedidos subsidiários, ao pedido formulado em primeiro lugar”.
Para além dos critérios gerais, a lei processual civil estabelece critérios especiais para a fixação do valor da causa, consoante a natureza de determinadas ações judiciais.
Um desses critérios especiais de fixação do valor encontra-se regulado no n.º 1 do artigo 298.º do CPC, preceito onde se dispõe que, “nas ações de despejo, o valor é o da renda de dois anos e meio, acrescido do valor das rendas em dívida ou do valor da indemnização requerida, consoante o que for superior”.
De acordo com o disposto no artigo 299.º, n.ºs. 1 a 3, do CPC, na determinação do valor da causa, deve atender-se ao momento em que a ação é proposta, exceto quando haja reconvenção ou intervenção principal, sendo que, o valor do pedido do réu só é somado ao valor do pedido do autor, quando os pedidos forem distintos, nos termos do n.º 3 do artigo 530.º do CPC, muito embora o aumento de valor só produza efeitos quanto aos atos e termos posteriores à reconvenção ou intervenção, passando o valor da soma (da ação e da reconvenção) “a ser esse o valor “único” da causa, não havendo que fazer destrinças entre “ação principal” e “reconvenção” (assim, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25-01-2018, Proc. n.º 349/17.3T8ORM-A.E1, relator Mata Ribeiro).
Por seu turno, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 301.º do CPC – preceito com a epígrafe “Valor da ação determinado pelo valor do ato jurídico – estatui-se o seguinte:
“1 - Quando a ação tiver por objeto a apreciação da existência, validade, cumprimento, modificação ou resolução de um ato jurídico, atende-se ao valor do ato determinado pelo preço ou estipulado pelas partes.
2 - Se não houver preço nem valor estipulado, o valor do ato determina-se em harmonia com as regras gerais”.
Finalmente, de acordo com os n.ºs 1 e 2 do artigo 306.º do CPC, “compete ao juiz fixar o valor da causa, sem prejuízo do dever de indicação que impende sobre as partes” e “o valor da causa é fixado no despacho saneador, salvo nos processos a que se refere o n.º 4 do artigo 299.º e naqueles em que não haja lugar a despacho saneador, sendo então fixado na sentença”.
Os Autores atribuíram à ação o valor de € 62.400,00, com o qual os RR concordaram indicando-o na respetiva contestação.
No entanto, foram notificados por despacho proferido em 09.07.2024 para esclarecerem o valor em causa na medida em que o valor não tinha reflexo nos factos alegados nem nos documentos juntos.
Os Autores vierem esclarecer que aquele valor diz respeito ao valor indicado pelos peritos independentes, em avaliação feita pelo Autor, como sendo o valor atual e real da renda do imóvel – € 62.396,00 – uma vez que o valor que consta do contrato é irreal.
Por outro lado, os Réus responderam propugnando pela aplicação da regra especial prevista no artigo 298.º do CPC.
No caso dos autos, os Autores pedem a declaração de nulidade do contrato de arrendamento e que os Réus sejam condenados a entregar o imóvel livre de pessoas e bens.
Ora, repristinando o que já foi dito no despacho suprarreferido “Afigura-se, que o valor da ação atribuído pelos AA não está de acordo com o verdadeiro desígnio da ação. Em primeiro lugar, a ação visa aferir a validade de um determinado negócio jurídico, sendo-lhe aplicável o disposto no artigo 301.º do CPC. Depois, procedendo tal pedido, pretendem os AA a devolução do prédio.
O contrato de arrendamento não contempla em si um valor para além da renda anual fixada, de € 3.750,00, e as partes não estipularam outro valor. Tratando-se de um contrato de cedência temporária do gozo do bem, consideramos destituído de fundamento apelar ao valor do imóvel, pois não se trata de negócio translativo da propriedade.
Cremos assim ter aplicação o disposto no artigo 297.º, n.º 1, segunda parte, ex vi do artigo 301.º, n.º 2, do CPC. O benefício pretendido com a ação centra-se na recuperação do gozo do imóvel pelo atual proprietário/senhorio. Desconhece o tribunal se os AA pretendem rentabilizar o prédio.
Ora, em face da indeterminação do benefício da ação, afigura-se ser de aplicar o critério previsto no artigo 298.º, n.º 1, do CPC por analogia. Com efeito, embora arbitrário, o período considerado pelo legislador no normativo indicado tem por referência a natureza permanente e de duração indeterminada da relação subjacente e o benefício a obter pelo Autor em função de determinado tempo de duração dessa relação. Depois, na realidade, o objetivo final da ação visa o despejo dos RR do imóvel (por falta de título para a ocupação). (no sentido da aplicação do critério do artigo 298.º, n.º 1, do CPC às ações em que discute a validade do contrato de arrendamento (Ac. do STJ de 30-06-64, José Meneses, BMJ, 138, pág. 320, apud Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 4.ª Ed., Out. 2018, Almedina, págs. 604-605)”.
Por outro lado, a priori, não se poderá considerar o eventual valor atual da renda ou o valor que seria, em princípio, o mais adequado por um lado porque o valor fixado para as rendas se encontra dentro do princípio da liberdade contratual, podendo as partes acordar o valor que entenderem e, por outro, nesta fase – onde ainda não existiu produção de prova – não se pode concluir que o valor fixado no aludido contrato não corresponde à realidade ou que teria outro fim (para efeito de fixação do valor da causa).
Assim, atendendo a que o valor anual da renda fixado no aludido contrato é de € 3.750,00, por aplicação do disposto no artigo 298.º do CPC o valor da ação será € 9.375,00 (nove mil, trezentos e setenta e cinco euros) (3.750,00 : 12 = 312,5 x 30) correspondente a 2 anos e meio de renda do locado.
No que diz respeito a competência deste Tribunal, dispõe o n.º 3 do artigo 310.º do CPC que “O tribunal mantém a sua competência quando seja oficiosamente fixado à causa um valor inferior ao indicado pelo autor” (…). Nestes termos, a competência deste Tribunal mantém-se.
Valor da ação: € 9.375,00 (nove mil e trezentos e setenta e cinco euros) (…)”.
D.
Inconformados com o teor do despacho, os Autores interpuseram recurso de apelação.
Concluíram as suas alegações nos seguintes termos (transcrição, sem negrito e sublinhado da origem):
“(…)
IV. Conclusões
A. Acção tem como pedido principal a declaração de nulidade de um suposto contrato de arrendamento, invalidade esta manifestada também pelo valor irrisório da renda fixada. O pedido de entrega do imóvel resulta como consequência dessa nulidade e a inexistência de qualquer outro título que justifique a posse do mesmo pelos Recorridos.
B. O artigo 301.º do CPC impõe que valor da acção que tenha por objecto a validade de um acto jurídico seja o do respectivo preço ou o estipulado pelas partes. Sendo alegado, e demonstrado através de relatório por especialistas certificados pela CMVM, a fraude ou simulação do valor da renda indicado no suposto contrato, não pode este valor ser considerado para efeitos de fixação do valor da acção, sob pena de violação do mencionado artigo 301.º do CPC e dos artigos 286.º e 289.º do Código Civil.
C. Não existe qualquer lacuna a ser colmatada pela aplicação analógica do artigo 298.º do CPC, para determinar o valor de uma acção cujo objecto é a declaração de nulidade de um contrato de arrendamento quando os proprietários e Recorrentes identificam o preço real desse arrendamento como o do benefício do qual ficaram privados.
D. É igualmente contra as regras processuais de fixação do valor da causa a prevalência do pedido secundário e consequente ao pedido principal.
E. Fixar o valor da causa com base no valor irreal e fictício da renda prevista num contrato de arrendamento fraudulento é reproduzir e perpetuar na ordem jurídica efeitos de uma aparência de acto, constituindo uma violação ao disposto no artigo 301.º do CPC e nos artigos 286.º e 289.º do Código Civil. (…)”.
Pugnaram pela revogação da decisão recorrida e sua substituição por outra que fixe como valor da acção o preço real do arrendamento, de € 62.400,00.
E.
Os Recorridos não responderam às alegações dos Recorrentes.
F.
Admitido o recurso, colheram-se os vistos dos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
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G.
Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações dos Recorrentes, sem prejuízo da sua ampliação a requerimento dos Recorridos (artigos 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (artigo 608.º, n.º 2, parte final, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, parte final, ambos do CPC).
Também está vedado o conhecimento de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, anulação, alteração e/ou revogação.
É apenas uma, a questão, exclusivamente jurídico-processual, em apreciação no presente recurso:
Qual o critério de fixação do valor processual da acção em que é pedida a declaração de nulidade de contrato de arrendamento celebrado em fraude à lei e a consequente devolução aos proprietários do imóvel objecto do contrato.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
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A. De facto
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O recurso é exclusivamente de direito e os elementos relevantes para a decisão constam do relatório antecedente.
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B. De direito
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Do critério a seguir na determinação do valor da causa
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Na presente acção com processo comum em que os Autores pedem a declaração da nulidade de contrato de arrendamento e a condenação dos Réus a entregar-lhes o imóvel livre de pessoas e bens, atribuindo à demanda o valor de € 62.400,00, o recurso em análise vem interposto do despacho proferido pela 1ª instância que fixou em € 9.375,00 o valor da causa, assente nos seguintes pressupostos:
a.
O valor atribuído pelos Autores não está de acordo com o verdadeiro desígnio da acção pois, visando esta aferir a validade de determinado negócio jurídico, é-lhe aplicável o disposto no artigo 301.º, n.º 2, do CPC.
b.
Versando a validade de um contrato de arrendamento que não contempla outro valor para além da renda anual de € 3.750,00 estipulada pelas partes, o critério para a determinação do benefício proporcionado pela acção deve resultar da aplicação do artigo 298.º, n.º 1, do CPC por analogia.
c.
Tratando-se de um contrato de cedência temporária do gozo do bem, é destituído de fundamento apelar ao valor do imóvel, pois não se trata de negócio translativo da propriedade.
d.
Não se poderá considerar o eventual valor actual da renda ou o valor que seria, em princípio, o mais adequado, por um lado porque o valor fixado para as rendas se encontra dentro do princípio da liberdade contratual e, por outro, nesta fase – onde ainda não existiu produção de prova – não se pode concluir que o valor fixado no aludido contrato não corresponde à realidade ou que teria outro fim (para efeito de fixação do valor da causa).
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Os Recorrentes discordam desta fundamentação, invocando, em síntese, que:
i.
A questionada validade do contrato de arrendamento funda-se, também, no valor irrisório da renda, fixada com o intuito fraudulento ou simulatório de manter o acesso ao imóvel pelos anteriores administradores da insolvente, pelo que é aplicável ao caso o n.º 3 do artigo 301.º do CPC que prevê como valor da acção de nulidade fundada na simulação do preço, o maior em discussão entre as partes.
ii.
Fixar o valor da causa com base no valor irreal e fictício da renda prevista num contrato de arrendamento fraudulento, é reproduzir e perpetuar na ordem jurídica efeitos de uma aparência de acto, constituindo uma violação ao disposto no artigo 301.º do CPC e nos artigos 286.º e 289.º do Código Civil.
iii.
Não existe lacuna a ser colmatada pela aplicação analógica do artigo 298.º do CPC porque os proprietários e Recorrentes identificam o preço real desse arrendamento como o do benefício do qual ficaram privados.
iv.
É contra as regras processuais de fixação do valor da causa a prevalência do pedido secundário e consequente ao pedido principal.
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Numa primeira avaliação aos fundamentos do despacho recorrido, dir-se-á que o aludido em c. supra (no sentido de que é destituído de fundamento apelar ao valor do imóvel), não tem o condão de influenciar a decisão do presente recurso, na medida em que o valor de € 62.400,00, atribuído à acção na p.i., não é o do imóvel, mas o do alegado rendimento anual actual deste bem, conforme avaliação reproduzida no documento 14 junto com a p.i. (artigos 30º a 32º do articulado).
Assim, não está em causa, na atribuição do valor à acção, a utilização do critério valor do bem.
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Analisemos agora os argumentos apresentados pelos Recorrentes.
i.
Relativamente à invocada aplicabilidade, ao caso, da regra de fixação do valor prevista para a simulação do preço no n.º 3 do artigo 301.º do CPC, devemos ter presente que, contrariamente ao que parece ser o entendimento dos Recorrentes, ainda que se admitisse que a causa de pedir da nulidade do contrato de arrendamento celebrado inclui um acordo simulatório, a consequência não seria a pretendida atribuição do valor de € 62.400,00 à acção.
Vejamos porquê.
A simulação pode assumir duas modalidades: a simulação absoluta; e a simulação relativa.
Na primeira, as partes fingem celebrar um negócio jurídico e na realidade não querem negócio algum. Há apenas um negócio simulado e, por detrás dele, nada mais existe. A lei comina esta divergência entre o querido e o declarado com a nulidade no artigo 240.º, n.º 2, do Código Civil (C.C.).
No que diz respeito à simulação relativa, a solução dada pelo legislador é diversa, uma vez que as partes celebram um certo negócio jurídico, mas efectivamente querem um outro negócio de tipo ou conteúdo diferente. Ao contrário da simulação absoluta, por detrás da qual nada existe, na simulação relativa, ocultado pela capa do negócio simulado ou aparente, esconde-se um negócio dissimulado ou real. Neste caso, se o negócio simulado está ferido de nulidade, já o negócio dissimulado é objecto do tratamento que lhe caberia se tivesse sido concluído sem dissimulação, nos termos do artigo 241.º e apenas com as limitações decorrentes da imposição de forma legal do n.º 2 do mesmo artigo.
Uma vez que, na simulação absoluta, os outorgantes do contrato não pretendem celebrar contrato algum, é incontroverso que o valor da acção que a tenha por causa de pedir resulta do declarado pelas partes no contrato objecto de impugnação, em obediência ao critério legal do n.º 1 do artigo 301.º do CPC.
Só no caso da simulação relativa e tendo esta por objecto o preço, é que, de acordo com n.º 3 do artigo 301.º do CPC, o valor da causa é dado pelo maior dos dois valores em discussão entre as partes: o valor declarado no negócio; e o valor do negócio dissimulado, realmente pretendido.
Sucede que, no caso vertente, de acordo com a factualidade alegada pelos Autores para fundar a sua pretensão, não há qualquer outro valor real de renda fixado pelas partes outorgantes, distinto do que consta do contrato impugnado.
O que os Autores invocam é que a renda anual de € 3.750,00 prevista no contrato, é propositadamente baixa relativamente ao valor de mercado de arrendamento do prédio, o que foi feito com o intuito deliberado de prejudicar a sociedade insolvente e beneficiar os arrendatários.
Sem embargo de podermos estar perante um negócio fraudulento, prejudicial para a sociedade e respectivos credores, a situação descrita pelos Autores não se enquadra numa simulação relativa do preço ou, no caso, da renda, pois não há nenhuma outra dissimulada pela declarada.
Assim, não lhe é aplicável o critério de fixação do valor previsto para a simulação do preço pelo n.º 3 do artigo 301.º do CPC.
ii.
Atentemos agora na alegação de que o valor da causa fixado no despacho recorrido é irreal e fictício por resultar de contrato de arrendamento fraudulento.
Com o devido respeito, não nos parece que assim seja.
Desde logo porque, mesmo na versão apresentada pelos Autores, a renda anual de € 3.750,00 foi realmente fixada pelas partes outorgantes no contrato, sendo elemento da formação do valor daquele acto jurídico impugnado, ainda que venha a ser declarado nulo. Em conformidade com este entendimento, a regra do n.º 1 do artigo 301.º do CPC, é clara ao erigir em critério de fixação do valor da acção que tenha por objecto a existência ou validade de um acto jurídico, o “…valor do ato determinado pelo preço ou estipulado pelas partes”.
“Irreal”, na versão dos Autores, é a correspondência do valor da renda fixada no contrato com o valor de mercado de arrendamento do imóvel.
Este desfasamento traduzir-se-á num prejuízo, constituído pela diferença entre o valor real e o valor efectivamente recebido por mor do contrato fraudulento, critério válido de fixação do valor em eventual acção de indemnização a propor (cfr. artigos 562.º e 566.º do Código Civil e n.º 1 do artigo 297.º do CPC).
O que não deve é usar-se tal prejuízo, cujo ressarcimento não vem peticionado na presente demanda, como factor de atribuição do valor do acto jurídico impugnado pelos Autores.
Deste modo, não há qualquer violação do disposto no artigo 301.º do CPC pelo despacho recorrido, antes pelo contrário.
E no que concerne também ao invocado desrespeito pelo regime jurídico da nulidade do negócio jurídico, previsto pelos artigos 286.º e 289.º do Código Civil, acrescentaremos, ainda, que a destruição retroactiva dos seus efeitos só se produz depois de judicialmente declarada, o que não ocorre no momento da propositura da acção.
iii.
A propósito da inexistência de lacuna a ser colmatada pela aplicação analógica do artigo 298.º do CPC porque os proprietários e Recorrentes identificam o preço real desse arrendamento como o do benefício do qual ficaram privados, as considerações vindas de tecer permitem antecipar que tampouco constitui argumento relevante para pôr em crise o despacho recorrido.
Desde logo, os Autores confundem o preço real do arrendamento celebrado com o valor de mercado do arrendamento do imóvel.
O preço real do arrendamento celebrado é, como se viu, de € 3.750,00 na versão carreada aos autos pelos próprios Réus. Distinto, é o valor de mercado do arrendamento, alegadamente mais de 10 vezes superior àquele.
Sucede que não é o valor de mercado que define o valor do contrato, sendo aquele relevante apenas para o cômputo do prejuízo sofrido pela proprietária / locadora em resultado da estipulação de uma renda inferior à que seria possível obter sem interferência da intenção defraudatória.
Quanto à inaplicabilidade ao caso, por não haver lacuna susceptível de integração, do critério previsto no artigo 298.º do CPC para as acções de despejo, também não é de acompanhar a posição dos Recorrentes.
É que, sendo o valor da causa aferido pelo do contrato de arrendamento impugnado (cfr. n.º 1 do artigo 301.º do CPC) e não tendo as partes previsto outro para além da renda anual convencionada, o único critério legal, objectivo, geral e abstracto de atribuição de valor processual à acção de declaração da nulidade daquele contrato, é o que resulta do artigo 298.º, n.º 1, do CPC para a acção de despejo com a qual o pedido formulado na presente acção partilha grande parte do respectivo efeito útil. A saber: a extinção do vínculo contratual; e a restituição do bem locado ao proprietário.
Note-se que a alternativa propugnada pelos Recorrentes, consiste num montante que é também, alegadamente, o de um ano de arrendamento a valores actuais de mercado, sem que se vislumbre qualquer justificação, legal ou contratual, relativamente à duração de um ano por eles considerada no valor que propõem para a acção.
Por isso, estamos em crer que há realmente uma lacuna legal relativamente ao método de determinação do valor do contrato / acto jurídico de arrendamento impugnado para efeitos do n.º 1 do artigo 301.º do CPC, cuja integração não pode deixar de ter em conta a previsão legal que vigora para as acções de despejo, quando há uma evidente proximidade do resultado útil de ambos os tipos de processos, apesar das diferenças das respectivas causas de pedir.
No sentido de que o critério relativo ao valor da causa nas acções de despejo, é aplicável àquelas em que se discuta a existência ou a validade de um contrato de arrendamento, vejam-se, entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.03.2009, relatado pela Desembargadora Márcia Portela no processo n.º 8145/2008-6 [1] e do Supremo Tribunal de Justiça de 30.06.1964 [2].
Na mesma linha, Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, defendem que “o critério seguido para a fixação do valor da acção de despejo deve ser seguido (…) quando se discuta a existência ou validade dum contrato de arrendamento (ac. do STJ de 30.6.64, BMJ, 138, pág. 320).” [3]
Assim, acompanha-se a fundamentação da decisão recorrida na parte em que considerou haver, no caso, uma lacuna à qual se aplica, por analogia, o critério de fixação do valor da causa previsto pelo n.º 1 do artigo 298.º do CPC.
iv.
Por último, a alegação de que a prevalência dada na decisão recorrida ao pedido “secundário” contraria as regras processuais de fixação do valor da causa, também se mostra inconsistente.
Isto porque não há, na presente acção, um pedido “principal” e outro “secundário”.
Para efeito da fixação do valor da causa, a lei processual contempla a figura do pedido “acessório” do principal quando estão em causa juros, rendas ou rendimentos (cfr. n.º 2 do artigo 297.º do CPC) que se não confundem com a entrega de imóvel ao proprietário como consequência da invalidade do contrato em que se funda o gozo de terceiro.
Também não estamos perante pedidos “alternativos”, em que a satisfação de qualquer um deles exclui a do outro, ou “subsidiários”, formulados apenas para a hipótese de não proceder o pedido “principal” (cfr. artigos 553.º e 554.º do CPC).
Deste modo, ao considerar a totalidade do pedido formulado pelos Autores a título principal – nas componentes de declaração da nulidade e da condenação no cumprimento dos respectivos efeitos jurídicos (a restituição do imóvel ao proprietário) – a despacho recorrido não dá primazia a qualquer pedido secundário em detrimento do principal.
Acresce que, como ficou já expresso, o argumento da aplicação analógica da norma do n.º 1 do artigo 298.º do CPC, não depende sequer da existência de um pedido de condenação na obrigação de restituição do bem, bastando-se com o pedido de declaração de nulidade do contrato, pois a aplicação analógica justifica-se perante a mera discussão sobre “…a existência ou a validade dum contrato de arrendamento.”
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Deste modo, não são atendíveis as razões invocadas no recurso interposto, devendo manter-se o despacho recorrido.
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Custas
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Não havendo norma que preveja isenção (artigo 4.º, n.º 2, do RCP), o presente recurso está sujeito a custas (artigo 607.º, n.º 6, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC).
No critério definido pelos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2 e 607.º, n.º 6, ambos do CPC, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no vencimento ou decaimento na causa ou, não havendo vencimento, no proveito.
No caso vertente, os Recorrentes foram vencidos pelo que deverão suportar as custas do recurso.
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III. DECISÃO
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Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, em:
Julgar improcedente a presente apelação, confirmando o despacho recorrido.
Condenar os Recorrentes no pagamento das custas do presente recurso.
Notifique.
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Évora, 05 de Junho de 2025
Ricardo Miranda Peixoto (Relator)
Filipe César Osório (1º Adjunto)
Maria João Sousa e Faro (2ª Adjunta)


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[1] Disponível na ligação:
https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/0/0c9f2ca8f87405258025758d0058031a
[2] In Boletim do Ministério da Justiça n.º 138, pág. 320.
[3] In “Código de Processo Civil Anotado”, Coimbra Editora, 1999, pág. 546.