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ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA
ÓNUS DA PROVA
ESCRITURA DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
REGISTO PREDIAL
AQUISIÇÃO DERIVADA
Sumário
I. Sendo de simples apreciação negativa, recai sobre o demandado na acção de impugnação de justificação notarial, o ónus da prova dos factos constitutivos do direito justificado por escritura. II. Não estando provados os actos de compra e venda e de doação verbais, nem a prática dos actos de posse descritos nas escrituras de justificação, estas são ineficazes. III. A procedência dos pedidos de reconhecimento da titularidade do direito de propriedade sobre imóvel e de restituição da posse ao proprietário, típicos da acção de reivindicação, pressupõem a demonstração da aquisição daquele direito real que tanto pode ser originária, através dos institutos da usucapião ou da acessão, como de forma derivada por acto jurídico apto a transmiti-lo. IV. Mas no caso da aquisição derivada, o reconhecimento da titularidade do direito está dependente do registo predial da aquisição a favor do reivindicante, já que este faz presumir na sua pessoa a titularidade do direito, e de tal presunção não ter sido ilidida pelo demandado, nomeadamente através da demonstração de que reúne os pressupostos da aquisição originária do mesmo direito. V. Improcede a reivindicação, se não se encontram provados os factos de que depende a aquisição, em qualquer das suas formas originária ou derivada, do direito de propriedade, nem o demandante figura como respectivo titular no registo. (Sumário do Relator)
Texto Integral
Apelação 1895/22.2T8TMR.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém, Juízo Local Cível de Tomar
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SUMÁRIO (artigo 663.º, n.º 7, do CPC):
(…)
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Acordam na 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora, sendo
Relator: Ricardo Miranda Peixoto;
1º Adjunto: Ana Pessoa;
2º Adjunto: Maria João Sousa e Faro.
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I. RELATÓRIO
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A.
Na presente acção declarativa sob a forma de processo comum proposta contra (…) e (…), vieram (…), (…), Herança de (…)representada por (…), na qualidade de cabeça-de-casal, e (…), pedir que seja “reconhecida e decretada a ineficácia das escrituras de justificação outorgadas pelos Réus, em 24 de agosto de 2005, no 1º Cartório Notarial de Santarém, e em 12 de outubro de 2007, no Cartório Notarial a cargo do Notário (…), (…), por não se ter verificado a usucapião” e, consequentemente, “serem, os Réus condenados a: 1. reconhecer que os Autores são também proprietários dos imóveis objeto das escrituras de usucapião impugnadas; 2. restituir a posse dos imóveis objeto das escrituras de justificação aos Autores; 3. abster-se de fazer uso dos indicados imóveis; 4. ser ordenado o cancelamento dos registos de aquisição exclusivamente a favor dos Réus”.
Alegaram, em suma, que os Réus celebraram duas escrituras de justificação notarial relativas a imóveis que são ineficazes por se terem fundado em falsas declarações. Contrariamente ao declarado, os Réus não os adquiriram por usucapião, sendo antes pertencentes à herança de (…), mãe do Autor (…) e da Autora (…), e cônjuge (…), de que são herdeiros os AA.. Através das aludidas escrituras, os Réus lograram registar os imóveis a seu favor e, em relação a um dos imóveis, a consequência do registo de outro, foi a de privar aquele da sua área de logradouro.
B.
Contestaram os Réus.
Impugnaram a factualidade alegada, afirmando que “o único imóvel que consta no inventário e nas escrituras de justificação é o prédio urbano, descrito na CRP de Tomar sob o n.º (...), inscrito na matriz sob o artigo (…), sito na freguesia de (…), concelho de Tomar” e que os restantes prédios “entraram na posse dos RR e encontram-se em nome próprio dos mesmos pelo menos desde o final dos anos 70, sem oposição de quem quer que seja, concretamente dos AA ou seus herdeiros, posse que exerceram sem interrupção com conhecimento de toda a gente da freguesia de (…), lugares e freguesias vizinhas (…) usufruindo do seu rendimento, cultivando e recolhendo os respetivos frutos, pagando os respetivos impostos e contribuições, agindo sempre como se fossem proprietários.”
C.
Em audiência prévia de 26.06.2023, foi proferido despacho saneador que descreveu o objecto do litígio, identificou os temas da prova e apreciou os requerimentos de prova juntos pelas partes.
D.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção procedente, decidindo:
“a) declarar a ineficácia das referidas escrituras de justificação notarial celebradas pelos réus em 24 de agosto de 2005 e em 12 de outubro de 2007;
b) condenar os RR a reconhecer que os Autores são também proprietários dos imóveis objeto das escrituras impugnadas;
c) condenar os RR a restituir a posse dos imóveis objeto das escrituras de justificação aos Autores;
d) condenar os RR a abster-se de fazer uso exclusivo dos indicados imóveis;
e) determinar o cancelamento dos registos de aquisição exclusivamente a favor dos Réus. (…)”.
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E.
Inconformados com o decidido, os Réus interpuseram o presente recurso de apelação.
Concluíram as suas alegações nos seguintes termos (transcrição parcial sem negritos e sublinhados da origem):
“(…)
j) (…) na opinião dos RR. (…) a sentença (…) enferma ausência de especificação dos fundamentos de facto e de direito sobre os quais o Tribunal alicerçou a sua convicção para assim decidir e igualmente enferma de ausência de prenuncia nos termos do disposto nas als. b) e d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
k) Porquanto tendo os RR. contestado a identificação dos prédios identificados nas escrituras de usucapião celebradas pelos RR em 2005 e 2007, por não terem na sua quase totalidade correspondência com os prédios descritos no acervo dos bens que constituem a herança aberta por óbito da sra. D. (…).
l) Que o Tribunal de primeira instância, veria antes do mais, deixar cristalizado na sentença, como é que veio concluir que o objeto do litígio era o mesmo que resulta descrito naqueles três documentos, qual foi o suporte da formulação da sua convicção.
m) ou seja, face a matéria de facto contradita, tornava-se absolutamente indispensável para a justa e correta avaliação da decisão condenatória ou absolutória imprescindível que o tribunal a quo previamente dirimisse sobre tal posição das partes quanto ao objeto do processo, para que posteriormente decidisse do mérito da causa.
n) Ao contrário, o Tribunal a quo veio apenas tomar como certo que o objeto do litígio, ou os objetos, os quatro prédios de cuja a propriedade os RR se arrogam em igualdade com os RR., são os mesmos que figuram no inventário de 1961 e nas escrituras, mesmo que ali os prédios todos estejam só identificados pela matriz.
o) Os inscritos nas escrituras tenham identificação predial, e que o único que mantém a identificação até à presente data seja um prédio, o (…), que não consta da justificação datada de 2005 ou de 2007.
p) sem que tenha especificado os fundamentos de facto e de direito que fundamentam, essa convicção, ou tão pouco ter especificado os fundamentos de facto e direito que provam diferentemente, no entendimento dos RR., sobre o entendimento do Tribunal.
q) do Inventário Orfanológico obrigatório, realizado em 1961, de onde consta o acervo dos bens que constituem a herança aberta por óbito da sra. D. (…) fazem parte o prédio inscrito na matriz sob o artigo (…), o prédio inscrito na matriz sob o artigo (…), o inscrito na matriz sob o artigo (…), o inscrito na matriz predial sob o artigo (…), o inscrito na matriz sob o artigo (…), o inscrito na matriz sob o artigo (…), o inscrito na matriz sob o artigo (…), o inscrito na matriz sob o artigo (…) e o prédio inscrito na matriz sob o artigo (…).
r) Da escritura de justificação celebrada em 2005 faz parte o prédio inscrito na matriz predial sob o artigo (…), secção (…) e o prédio inscrito na matriz sob o artigo (…), secção (…).
s) E na escritura de justificação celebrada em 2007, apenas o prédio inscrito na matriz predial sob os artigos (…) e (…), secção (…).
t) Da confrontação das descrições destes todos prédios resulta inequivocamente que o único prédio que tem correspondência inequívoca nos dois documentos relevantes e mandatários para a boa decisão sobre a identificação dos prédios objeto do pedido dos AA, é o prédio urbano matriz sob o artigo (…).
u) Contudo, como resulta igualmente claro, este prédio ainda que seja nomeado na PI e apareça descrito no Inventário Orfanológico não foi objeto de qualquer escritura de justificação realizada pelos RR.
v) O Tribunal de que se recorre deveria ter especificado os fundamentos de facto e de direito nos quais suportou a sua decisão, para entender e dar como provado que os prédios objeto do pedido são os que constam, em parte no inventario de 1961.
w) Devia ter especificado os fundamentos de facto e de direito que militaram para que tão pouco esta questão fosse colocada como questão prévia a ser dirimida, antes mesmo da avaliação da restante matéria de facto.
x) Apenas diz o Tribunal a quo sobre este facto em concreto que a prova de facto a que chegou decorre “do teor dos documentos juntos aos autos, designadamente cadernetas prediais, certidões do registo predial, escrituras de justificação, certidão de inventário orfanológico de (…) e (…), de 1961, informação do Serviço de Finanças de Tomar sobre as alterações à descrição dos imóveis (efetuadas desde o ano de inscrição na matriz) e as plantas de localização junto do Cadastro Geográfico”.
y) Sem que especifique quais os fundamentos em qual estribou a sua convicção, uma vez que “do teor dos documentos juntos aos autos, designadamente cadernetas prediais, certidões do registo predial, escrituras de justificação, certidão de inventário orfanológico de (…) e (…), de 1961” como já se disse não existe qualquer correspondência entre os prédios.
z) Mas também se estriba para ter dado como dado assente sem controvérsia, que estamos sempre a falar dos mesmos prédios, por via da “informação do Serviço de Finanças de Tomar sobre as alterações à descrição dos imóveis.
aa) Quando da informação que veio ao processo, por esta via se retira apenas que,
bb) O artigo (…), identificado pela PI como Prédio misto, descrito na CRP de Tomar com o n.º (…), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) e rústica sob o artigo (…), secção (…), sito na freguesia de (…), concelho de Tomar, localiza-se na Junta de Freguesia de (…), foi inscrito na matriz em 1972 (Omisso na matriz desde 1955/01/20), com uma superfície coberta de 400 m2, tendo sido harmonizado com o artigo (…), secção (…), da mesma freguesia em 2007/12/22 a que acresceu o logradouro de 120 m2 e tendo estes vindo à posse de (…), NIF (…), através de escritura de compra de 1975/08/27, exarada pelo 1.º cartório notarial de tomar e a totalidade através de escritura de permuta com (…), NIF (…), de 1976/07/16 exarada no mesmo cartório.
cc) O que ainda assim, vem contrariar a decisão do Tribunal a quo porquanto coloca um dos alegados prédios reivindicados na propriedade pelos AA, na posse dos R. (…) por escritura de compra de 1975/08/27 e por escritura de permuta de 1976/07/16, nem se referindo ao ato de 2005 e 2007, partindo-se do pressuposto, que não se concretiza, que um dos prédios objecto da ação já estava na indivisão por força do inventário.
dd) Ainda que de ambos os elementos probatórios, documentos juntos ao processo e declarações das testemunhas resultasse prova conclusiva, devia ter o Tribunal demonstrado, especificado como chegou à conclusão que os prédios identificados pelos AA., não podiam entrar na esfera jurídica do RR., em exclusividade, porque sobre eles não poderia incidir escritura de justificação, por serem prédios indivisos e por tal, insuscetíveis de aquisição de propriedade por meio da posse reiterada, pacifica, de boa-fé e pública.
ee) Como melhor se extrai do douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido no processo n.º 754/19.0T8VNG em 23/05/2024 (disponível em gdsi.pt): a nulidade da falta de fundamentação de facto e de direito, que impõe ao juiz o dever de discriminar os factos que considera provados e de indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.
ff) Razão pela qual deve ser atendida a nulidade que aqui se invoca e alterada em conformidade a Sentença de que se recorre.
gg) Mas o Tribunal incorre também em falta de pronuncia o que, por esta via torna a sentença nula.
hh) Como se extrai do douto acórdão, a omissão de pronúncia, “só ocorre quando o julgador deixe de resolver questões que tenham sido submetidas à sua apreciação pelas partes, a não ser que esse conhecimento fique prejudicado pela solução dada a outras questões antes apreciadas”.
ii) Do teor da Contestação apresentada pelos RR., foi impugnada, por não corresponderem entre si, os prédios que os AA, identificam como fazendo parte de um acervo hereditário, os que pretendem ver ser declarados propriedade sua e os que alegam estar identificados nas escrituras de justificação.
jj) Não tendo o Tribunal a quo tomado posição ou de decisão sobre a matéria específica da correspondência dos terrenos sobre os quais incide a matéria de facto a provar e a matéria de direito sobre a qual incide também obrigatória posição e solução do Tribunal.
kk) O que vale por dizer que o Tribunal não tomou posição nem decisão sobre matéria em que a lei impõe que o juiz tome posição expressa, violou aquele a obrigatoriedade prevista na alínea d) do artigo 668.º, o que ora se inova e cuja consequência se requer seja declarada em douto Acórdão.
ll) Os RR. consideram igualmente que a matéria de facto alegada pelos AA foi incorretamente dada como provada pelo Tribunal a quo, porquanto não está de acordo com a matéria de facto alcançada em sede de audiência e julgamento concretamente, não resulta do depoimento das testemunhas de defesa apresentadas pelos AA.
mm) O Tribunal a quo dá como provado o ponto 1º dos factos provados.
nn) “Os Autores e os Réus são donos dos seguintes bens imóveis: a) Prédio misto, descrito na CRP de Tomar com o n.º (…), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) e rústica sob o artigo (…), secção (…), sito na freguesia de (…), concelho de Tomar; b) Prédio urbano, descrito na CRP de Tomar sob o n.º (…), inscrito na matriz predial sob o artigo (…), sito na freguesia de (…), concelho de Tomar; c) Prédio rústico sito na freguesia de (…), concelho de Tomar, denominado (…), inscrito na matriz predial sob o artigo (…) – secção (…); d) Prédio rústico sito na freguesia de (…), concelho de Tomar, denominado (…), inscrito na matriz predial sob o artigo (…) – secção (…).
oo) O Tribunal diz ter formado a sua convicção, para chegara à prova dos factos em crise no processo de cuja sentença ora se recorre na ponderação crítica do … depoimentos das testemunhas (…) e (…), filhas dos autores.
pp) Uma vez que descreveram os imóveis e o modo como os mesmos eram utilizados, assim como explicaram como tiveram conhecimento de que os mesmos estavam registados em nome dos RR, acrescentando que os restantes herdeiros sempre permitiram que o Réu utilizasse e cultivasse os terrenos, nunca porém, em nome próprio ou como se proprietário fosse mas sempre com a ideia de manter os imoveis da herança cuidados.
qq) Não podem os RR estar em maior desacordo porquanto das declarações destas duas testemunhas não pode o tribunal retira tais conclusões para aí estribar a sua convicção sobre a resposta positiva ao ponto 1 da matéria de facto dado como provada, como decorre do teor do depoimento destas duas testemunhas que se encontram integralmente transcritos em sede de recurso que se sindica.
rr) Em qualquer parte do depoimento das testemunhas, se decifra, se retira ou mesmo se pode interpretar que ambas tivessem conhecimento de facto sobre se os prédios de que se faz menção na PI, correspondem aos prédios que se invoca permanecer indecisos por força do inventário realizado em 1961, por estes não acompanharem a inscrição da matriz, para o que releva das escrituras de justificação, até à data da apresentação da PI.
ss) Razão pela qual deve o ponto 1 da matéria de facto dada como provada ser alterada e em seu lugar dever constar que os Réus são donos dos seguintes bens imóveis: a) Prédio misto, descrito na CRP de Tomar com o n.º (…), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) e rústica sob o artigo (…), secção (…), sito na freguesia de (…), concelho de Tomar; b) Prédio rústico sito na freguesia de (…), concelho de Tomar, denominado (…), inscrito na matriz predial sob o artigo (…) – secção (…); c) Prédio rústico sito na freguesia de (…), concelho de Tomar, denominado (…), inscrito na matriz predial sob o artigo (…) – secção (…).
tt) E ser acrescentado que a A. (…) é dona do prédio urbano, descrito na CRP de Tomar sob o n.º (…), inscrito na matriz predial sob o artigo (…), sito na freguesia de (…), concelho de Tomar, com área que o acompanha desde do ano de 1961, mandou-se anular a harmonização de áreas que a mesma promoveu em 04/07/2022.
uu) Mas o Tribunal a quo também errou quando deu por provado na matéria de facto dada como provada o ponto 5. Os imóveis acima indicados (os referenciados no ponto 1, sem exceção) e que os Réus se arrogam pertencer-lhes, com exclusão de outrem, fazem parte integrante do acervo dos bens que constituem a herança aberta por óbito de (…), mãe do Autor (…) e da Autora (…) e cônjuge (…), a qual foi objeto de Inventário Orfanológico obrigatório, em 1961.
vv) Face a todos os factos até agora alegados, entendem os RR. de que resulta que o a resposta positiva ao número 5 dos factos provados foi indevidamente respondido positivamente.
ww) Assim entende que o ponto 5 da matéria de facto dada como provada deve ser alterado de deve passar a ficar como provado que os imóveis acima indicados e que os Réus se arrogam pertencer-lhes, com exclusão de outrem, não fazem parte integrante do acervo dos bens que constituem a herança aberta por óbito de (…), mãe do Autor (…) e da Autora (…) e cônjuge (…), a qual foi objeto de Inventário Orfanológico obrigatório, em 1961, porquanto apenas o prédio inscrito na matriz com o número (…) é ali referido mas não é objeto das escrituras de justificação realizadas pelos RR.
Assim se fazendo justiça! (…)”.
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F.
Os Recorridos contra-alegaram, concluindo as suas alegações nos seguintes termos (transcrição parcial, sem negrito e itálico da origem):
“(…)
B- Em causa estão duas escrituras de justificação por usucapião, celebradas pelos Réus, tendo por objeto imóveis que pertencem à herança de (…), mãe dos Autores (…) e (…), e cônjuge (…), que, devido às falsas declarações prestadas, são ineficazes. (…)
G- Os Réus não lograram provar a posse dos imóveis por usucapião como era sua pretensão, porquanto, da análise e apreciação de todos os depoimentos prestados, quer os produzidos pelas testemunhas arroladas pelos Autores, quer das testemunhas dos Réus, incluindo as declarações de parte da Ré (…), resultou precisamente o contrário: era convicção de todos que tais imóveis faziam parte integrante do acervo dos bens da herança dos pais dos Autores e dos Réus.
H- Imóveis que não foram adjudicados a nenhuma das partes e, por isso, se mantiveram indivisos.
I- Não tendo os Réus provado a verificação dos factos integradores da usucapião, nomeadamente que (…) e (…) lhe tenham vendido ou doado tais imóveis, em 1980, nem que a posse que alegam exercer o seja sem oposição dos Autores ou dos seus herdeiros, bem decidiu a Mmª Juiz da primeira instância.
J- Devendo, assim, improceder a apelação dos Réus por total falta de fundamento, pois não assiste razão aos Réus para questionar o “objeto do litígio”, pois o mesmo ficou devidamente esclarecido com os depoimentos das testemunhas dos Autores e dos Réus, não se verificando qualquer dúvida de que bens imóveis se tratava.
K- Salientam-se os depoimentos das testemunhas (…) e de (…) que, perante a certidão do Inventário e as cadernetas e certidões prediais, não tiveram qualquer dúvida em proceder à identificação dos imóveis e a respetiva correspondência com os que figuram nas escrituras de justificação.
L- De igual modo, pese embora o exercício feito pelo I. Mandatário dos Réus no sentido de “confundir” o tribunal e as testemunhas, alegando desconformidade na identificação dos imóveis, em confronto com as atuais descrições matrizes, não restaram dúvidas acerca do objeto do litígio.
M- Pelo que, persistir nessa alegação é, no entender dos Autores, litigar de má-fé, pois, identificados os imóveis em causa, não provando os Réus os elementos integradores da usucapião em relação a tais imóveis, a douta decisão judicial não poderia ser diferente.
N- A douta sentença não se encontra ferida de nulidade, não enfermando de qualquer vício que a coloque em crise.
O- No que respeita à matéria de facto dada como provada, todas as testemunhas foram unânimes em afirmar o seu conhecimento acerca da identificação dos imóveis em causa, e todas igualmente afirmaram saber que se tratavam de bens que integram o acervo da herança dos pais dos Autores e Réus.
P- Não assiste, pois, razão aos Réus para alegarem que os imóveis identificados nas escrituras de usucapião não fazem parte integrante do acervo dos bens que constituem a herança aberta por óbito de (…) e de (…) como decorre da certidão do Inventário orfanológico.”
Pugnaram pela manutenção do decidido em 1ª instância.
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G.
Colheram-se os vistos dos Ex.mos Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
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H.
Questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente, sem prejuízo da possibilidade da sua ampliação a requerimento dos Recorridos (artigos 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas, salvo se forem do conhecimento oficioso (artigo 608.º, n.º 2, parte final, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, parte final, ambos do CPC).
Também está vedado o conhecimento de questões novas (que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de questões prévias judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente confirmação, anulação, alteração e/ou revogação.
No caso vertente, são as seguintes as questões suscitadas pelo recurso:
1. Se a sentença proferida é nula por falta de fundamentação e/ou por omissão de pronúncia;
2. Se, em caso de resposta negativa à questão precedente, deve ser alterada a matéria de facto provada e não provada, da sentença recorrida;
3. Se são válidas ou eficazes as escrituras de justificação de posse outorgadas pelos Recorrentes;
4. Se os Recorridos são contitulares do direito de propriedade sobre os prédios objecto das escrituras de justificação celebradas pelos Recorrentes;
5. Se, em caso de resposta afirmativa à questão precedente, assiste aos titulares do direito de propriedade a faculdade de serem restituídos da posse sobre os mesmos.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
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A. De facto
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Reprodução integral dos factos provados e não provados da decisão da matéria de facto como constam da sentença sob recurso (sem negrito e itálico da origem):
“(…)
Factos provados
1. Os Autores e os Réus são donos dos seguintes bens imóveis: a) Prédio misto, descrito na CRP de Tomar com o n.º (…), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) e rústica sob o artigo (…), secção (…), sito na freguesia de (…), concelho de Tomar; b) Prédio urbano, descrito na CRP de Tomar sob o n.º (…), inscrito na matriz predial sob o artigo (…), sito na freguesia de (…), concelho de Tomar; c) Prédio rústico sito na freguesia de (…), concelho de Tomar, denominado (…), inscrito na matriz predial sob o artigo (…) – secção (…); d) Prédio rústico sito na freguesia de (…), concelho de Tomar, denominado (…), inscrito na matriz predial sob o artigo (…) – secção (…).
2. No dia 24 de agosto de 2005, os Réus celebraram Escritura de Justificação no 1º Cartório Notarial de Santarém, tendo declarado que, “com exclusão de outrem, são donos e legítimos possuidores” dos prédios rústicos identificados em 1, no que foram corroborados por três testemunhas por si apresentadas.
3. No dia 12 de outubro de 2007, os Réus celebraram Escritura de Justificação no Cartório Notarial a cargo do Notário (…), sito na Rua (…), 29, em Tomar, tendo declarado que, “com exclusão de outrem, são donos e legítimos possuidores” do Prédio misto, descrito na CRP de Tomar com o n.º (…), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) e rústica sob o artigo (…), secção (…), sito na freguesia de (…), concelho de Tomar, no que foram corroborados por três testemunhas por si apresentadas.
4. Os imóveis acima indicados e que os Réus se arrogam pertencer-lhes, com exclusão de outrem, fazem parte integrante do acervo dos bens que constituem a herança aberta por óbito de (…), mãe do Autor (…) e da Autora (…) e cônjuge (,..), a qual foi objeto de Inventário Orfanológico obrigatório, em 1961.
5. No âmbito de tal Inventário, os referidos imóveis não foram adjudicados ao Réu, antes se mantendo na titularidade deste e dos Autores, pelo que quando os Réus declararam “terem adquirido por contrato verbal, em 1980, aos srs. … (pai) e … (mãe)” prestaram falsas declarações.
6. Os Réus lograram registar os imóveis a seu favor com base nas escrituras.
7. Em relação ao imóvel indicado em b), a consequência do registo do prédio misto indicado em a) foi a de privar aquele imóvel da sua área de logradouro, como resulta das divergências entre a caderneta predial e a descrição na Conservatória. (…)
8. Em relação ao artigo (…), localizado na Junta de Freguesia de (…), foi inscrito na matriz em 1972 (omisso na matriz desde 1955/01/20), com uma superfície coberta de 400 m2, tendo sido harmonizado com o artigo (…), secção (…), da mesma freguesia em 2007/12/22 a que acresceu o logradouro de 120 m2, tendo estes vindo à posse de (…), NIF (…), através de escritura de compra de 1975/08/27, exarada pelo 1º cartório notarial de Tomar e a totalidade através de escritura de permuta com (…), NIF (…), de 1976/07/16 exarada no mesmo cartório.
9. Em relação ao artigo (…), localizado na Junta de Freguesia de (…), foi inscrito na matriz em 1937, com uma área de 60 m2, com alteração de área em 2022/08/05, efetuada através da modelo 1 do IMI n.º (…), de 2022/07/04, tendo este vindo à posse de (…), NIF (…) e (…), NIF (…), através das escrituras de compra de 1975/08/27 e de escritura de permuta de 1976/07/16, exaradas pelo 1º cartório notarial de Tomar.
10. Em relação ao artigo (…), Secção (…), localizado na Junta de Freguesia de (…), foi inscrito na matriz em 1988, com uma área de 2.840 m2 em nome do atual proprietário.
11. Em relação ao artigo (…), Secção (…), localizado na Junta de Freguesia de (…), foi inscrito na matriz em 1988, com uma área de 1.680 m2, tendo vindo à posse de (…), NIF 135961874, através de escritura pública de justificação, exarada em 2005/08/04 pelo 2.º cartório notarial de Tomar Dr. (…), livro 122, folhas 123 verso.
FACTOS NÃO PROVADOS (…)
I. O Prédio rústico composto por oliveiras com área de 1280 m2 no sítio de (…), inscrito na matriz predial sob o artigo (…), secção (…); - Prédio rústico composto de horta, nespereiras e oliveiras com área de 1680 m2 no sítio de (…), inscrito na matriz sob o artigo (…), secção (…); - Prédio misto composto de casa de habitação e arrecadação com superfície coberta de 400 m2 e logradouro com área de 120 m2 e terra com oliveira com área de 400 m2 sito em (…), (…), inscrito na matriz predial sob os artigos (…) e (…), secção (…), respetivamente, entraram na posse dos RR, e encontram-se em nome próprio dos mesmos, pelo menos desde o final dos anos 70.
II. Sem oposição de qualquer forma de quem quer que seja concretamente dos AA, ou seus herdeiros, posse que sempre exerceram sem interrupção e ostensivamente com conhecimento de toda a gente da freguesia de (…) e lugares freguesias vizinhas.
III. Nomeadamente usufruindo do seu rendimento, cultivando e recolhendo os respetivos frutos, pagando os respetivos impostos e contribuições agindo sempre como se fossem proprietários (…)”.
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Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia
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Invoca o Réu / Recorrente a nulidade da sentença recorrida ao abrigo do disposto na alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, sustentando que, face à impugnação da correspondência entre os bens objecto do inventário no qual os Autores são interessados e os bens objecto das escrituras de justificação celebradas pelos Réus, deveria o tribunal de primeira instância deixar cristalizado na sentença como é que veio concluir, a partir dos documentos referentes ao Inventário Orfanológico e às escrituras de justificação celebradas em 2005 e 2007 que o objecto do litígio era o mesmo e qual foi o suporte da formulação da sua convicção.
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Prevê o n.º 1 do artigo 615.º do CPC que “é nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
As nulidades da sentença taxativamente previstas no artigo 615.º, n.º 1, alíneas a) a e), do CPC, são vícios formais e intrínsecos, designados como error in procedendo, respeitando apenas à estrutura ou aos limites da decisão.
Como refere José Lebre de Freitas, “os casos das alíneas b) a e) do n.º 1 constituem, rigorosamente, situações de anulabilidade da sentença, e não de verdadeira nulidade. Respeitam eles à estrutura ou aos limites da sentença. Respeitam à estrutura da sentença os fundamentos das alíneas b) (falta de fundamentação) e c) (oposição entre os fundamentos e a decisão). Respeitam aos seus limites os das alíneas d) (omissão ou excesso de pronúncia) e e) (pronúncia ultra petitum).” [1]
São vícios a apreciar em função do texto da sentença, do discurso lógico nele desenvolvido, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando – que são
erros quanto à decisão de mérito constante da sentença), decorrentes de errada consideração da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do Direito (error juris) à matéria de facto, levando a que o decidido não corresponda à realidade ôntica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos.
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A respeito da nulidade prevista pela supracitada alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, a omissão de pronúncia ocorre perante a ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa.
A norma em apreço conjuga-se com o n.º 2 do artigo 608.º do CPC que impõe ao juiz o dever de “…resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; (…)”.
A omissão de pronúncia só se verifica quando o juiz deixa de se pronunciar sobre questões que lhe foram submetidas pelas partes e que, por isso, tem de abordar e resolver, ou de que deve conhecer oficiosamente, entendendo-se por questões os dissídios ou problemas concretos a decidir e não as razões, no sentido de simples argumentos, opiniões, motivos, ou doutrinas expendidos pelos interessados na apresentação das respectivas posições, na defesa das teses em presença.
O que se compreende porque, por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas.
Como ensina Alberto dos Reis, não enferma da nulidade em apreço, a decisão “…que não se ocupou de todas as considerações feitas pelas partes, por o tribunal as reputar desnecessárias para a decisão do pleito. (…) São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer do seu ponto de vista: o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão.” [2]
A este propósito, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.10.2022, relatado pelo Conselheiro Isaías Pádua no processo n.º 602/15.0T8AGH.L1-A.S1 [3], dá conta de que “constitui communis opinio, o conceito de “questões”, a que ali se refere o legislador, deve somente ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, ou seja, abrange tão somente as pretensões deduzidas em termos do pedido ou da causa de pedir ou as exceções aduzidas capazes de levar à improcedência desse pedido, delas sendo excluídos, como já acima deixámos referido, os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica esgrimidos/aduzidos pelas partes (…)”. No mesmo sentido, entre outros, v. os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 15.12.2011, relatado pelo Juiz Conselheiro Raúl Borges no processo n.º 17/09.0TELSB.L1.S1 e do Tribunal da Relação de Évora de 11.02.2021, relatado pela Juíza Desembargadora Emília Ramos Costa no processo n.º 487/20.5T8TMR.E1. [4]
Sobre a questão também Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Filipe Pires de Sousa referem ser “…pacífica a jurisprudência que o dever de decidir tem por referência as questões suscitadas e bem assim as questões de conhecimento oficioso, mas que não obriga a que se incida sobre todos os argumentos, pois que estes não se confundem com questões (STJ 23-1-19, 4568/13)”. [5]
Apreciando a argumentação recursiva, afigura-se claro que não tem cabimento na noção de “omissão de pronúncia” que dá corpo à nulidade em apreço.
Desde logo porque a matéria de impugnação da contestação destina-se, na sua essência, a contrariar os fundamentos do direito de propriedade arrogado pelos Autores e por não ser constitutiva de qualquer direito não carece de ser transposta para o elenco dos factos provados ou não provados da sentença.
Tendo em conta que a parte principal do pedido formulado pelos Autores da presente acção é a impugnação das escrituras de justificação de posse celebradas pelos Réus, a matéria que da contestação se impunha considerar, é referente ao exercício da posse em condições susceptíveis de proporcionar a aquisição originária do direito de propriedade pelos Réus.
Ora, tal matéria foi tida em devida conta na sentença recorrida, pese embora considerada não provada.
O hipotético vício apontado à sentença pelos Recorrentes, resultante de, alegadamente, não ter cristalizado “como” é que veio concluir que os prédios alegadamente pertencentes aos Autores coincidem com os prédios objecto das escrituras de justificação outorgadas pelos Réus, não constitui, por isso, a omissão de tomada de posição sobre as questões que se colocavam na presente acção, mas eventual insuficiência da fundamentação jurídica que haja levado o tribunal a ter considerado ocorrer tal coincidência.
Trata-se, por isso, não de um error in procedendo, respeitante à estrutura ou aos limites da decisão, mas sim de invocado erro de julgamento – error in judicando – respeitante ao mérito da decisão, na parte da aplicação do direito aos factos.
Deste modo, fenecem os argumentos esgrimidos pelos Réus / Recorrentes em abono da tese da nulidade, por omissão de pronúncia, da sentença recorrida que, assim, se julga improcedente.
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Da nulidade da sentença por falta de fundamentação
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Sustentam também os Recorrentes a nulidade da sentença por “…ausência de especificação dos fundamentos de facto e de direito sobre os quais o Tribunal alicerçou a sua convicção para assim decidir (…)”.
A falta de fundamentação, de facto ou de direito, constitui um vício determinante da nulidade da sentença, nos termos previstos pela alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
Trata-se de norma que “…a jurisprudência tem vindo a interpretar de forma uniforme, de modo a incluir apenas a absoluta falta de fundamentação e não a fundamentação alegadamente insuficiente e ainda menos o putativo desacerto da decisão (STJ 10-05-21, 3701/18, STJ 9.9.20, 1533.17, STJ 2011.19, 62/07, STJ 2.6-16, 781/11)”. [6]
A sentença recorrida apresenta o elenco dos factos provados e não provados, dedica oito parágrafos de texto à justificação das razões da sua convicção na decisão a matéria de facto controvertida e desenvolve, em quatro páginas, a subsunção dos factos provados ao direito que considera aplicável ao caso.
O que das alegações deflui é, para além da discordância relativamente ao entendimento que o tribunal formou a partir da prova produzida nos autos, a eventual insuficiência da motivação da convicção na decisão dos factos provados em apreço, o que, podendo dar azo à modificação da decisão da matéria de facto como resultado da reapreciação da prova em sede recursiva (cfr. artigo 662.º do CPC), não constitui a nulidade de falta de fundamentação prevista pela alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
Termos em que se julga improcedente a alegada falta de fundamentação da sentença, nos termos e para os efeitos previstos pela alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.
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Do recurso da decisão da matéria de facto
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Vem o presente recurso interposto também da matéria de facto da decisão de primeira instância, considerando os Recorrentes que foram incorrectamente julgados e apreciados factos dados como provados.
Concretamente, entendem que deve ser alterada a matéria dos factos provados:
i.
Número 1 e, em seu lugar, “…constar que os (…) Réus são donos dos seguintes bens imóveis: a) Prédio misto, descrito na CRP de Tomar com o n.º (…), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) e rústica sob o artigo (…), secção (…), sito na freguesia de (…), concelho de Tomar; b) Prédio rústico sito na freguesia de (…), concelho de Tomar, denominado (…), inscrito na matriz predial sob o artigo (…) – secção (…); c) Prédio rústico sito na freguesia de (…), concelho de Tomar, denominado (…), inscrito na matriz predial sob o artigo (…) – secção (…)” e “…ser acrescentado que a A. (…) é dona do Prédio urbano, descrito na CRP de Tomar sob o n.º (…), inscrito na matriz predial sob o artigo (…), sito na freguesia de (…), concelho de Tomar, com área que o acompanha desde do ano de 1961 (…)” (conclusões ss) e tt) das alegações de recurso); e
ii.
Número 4 (apesar de vir indicado como n.º 5 nas conclusões de recurso, trata-se de lapso manifesto, apreendendo-se a partir do conteúdo da conclusão “uu)” que é do facto provado n.º 4 da sentença que os Recorrentes discordam) que deverá passar a ter o sentido “…de que os imóveis acima indicados e que os Réus se arrogam pertencer-lhes, com exclusão de outrem, não fazem parte integrante do acervo dos bens que constituem a herança aberta por óbito de (…), mãe do Autor (…) e da Autora (…) e cônjuge (…), a qual foi objeto de Inventário Orfanológico obrigatório, em 1961, porquanto apenas o prédio inscrito na matriz com o n.º (…) é ali referido mas não é objeto das escrituras de justificação realizadas pelos RR” (cfr. conclusão ww) das alegações de recurso).
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Prevê o artigo 640.º do C.P.C.:
“1 – Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) – Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) – Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) – A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2 – No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) – Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) – Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”
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Os Recorrentes incidiram o seu recurso da matéria de facto, concretizando os factos provados que desejam ver modificados, indicando, para cada um deles, a redacção que deve, ou não, ser consagrada. Também indicam os meios de prova que, relativamente a ambos os factos impugnados, justificam, em sua opinião, a alteração da decisão de 1ª instância, fazendo-o, por transcrição quanto aos meios de prova pessoal registados em audiência de julgamento.
Mostram-se, assim, cumpridos os requisitos previstos nas alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil.
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Nos termos do disposto no artigo 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, cuja epígrafe é “modificabilidade da decisão de facto”, “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Neste particular, o tribunal de recurso, sem embargo da atendibilidade da prova plena que resulte dos autos, deve verter o que emergir da apreciação crítica e livre dos demais elementos probatórios e usar, se for o caso, as presunções judiciais que as circunstâncias justificarem, designadamente a partir dos factos instrumentais, como decorre do n.º 4 do artigo 607.º e da alínea a) do n.º 2 do artigo 5.º, ambos do C.P.C. ([7]), tanto mais que a anulação de uma sentença deve confinar-se aos casos em que, como previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 662.º do C.P.C., não constem “…do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto”.
Como se refere no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10.07.2024, relatado pelo Desembargador Jorge Martins Ribeiro no processo n.º 99/22.9T8GDM.P1 ([8]), para reapreciar a decisão de facto impugnada, o Tribunal da Relação “…tem de, por um lado, analisar os fundamentos da motivação que conduziu a primeira instância a julgar um facto como provado ou como não provado e, por outro, averiguar, em função da sua própria e autónoma convicção, formada através da análise crítica dos meios de prova disponíveis e à luz das mesmas regras de direito probatório, se na elaboração dessa decisão e na sua motivação ocorre, por exemplo, alguma contradição, uma desconsideração de qualquer um dos meios de prova ou uma violação das regras da experiência comum, da lógica ou da ciência – elaboração, diga-se, que deve ser feita à luz de um cidadão de normal formação e capacidade intelectual, de um cidadão comum na sociedade em questão – sem prejuízo de, independentemente do antes dito, poder chegar a uma decisão de facto diferente em função da valoração concretamente efetuada em sede de recurso.”
Ainda sobre a intervenção da Relação na decisão da matéria de facto decidida em 1ª instância, será pertinente invocar a fundamentação clara do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 02.11.2017, relatado pela Desembargadora Maria João Matos no processo n.º 212/16.5T8MNC.G1 ([9]), “…quando os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas, a dita modificação da matéria de facto – que a ela conduza – constitui um dever do Tribunal de Recurso, e não uma faculdade do mesmo (o que, de algum modo, também já se retiraria do artigo 607.º, n.º 4, do CPC, aqui aplicável ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Estarão, nomeadamente, aqui em causa, situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material (regulado, grosso modo, no C.C.), onde se inserem as regras relativas ao ónus de prova, à admissibilidade dos meios de prova, e à força probatória de cada um deles, sendo que qualquer um destes aspetos não respeita apenas às provas a produzir em juízo.
Quando tais normas sejam ignoradas (deixadas de aplicar), ou violadas (mal aplicadas), pelo Tribunal a quo, deverá o Tribunal da Relação, em sede de recurso, sanar esse vício; e de forma oficiosa. Será, nomeadamente, o caso em que, para prova de determinado facto tenha sido apresentado documento autêntico - com força probatória plena – cuja falsidade não tenha sido suscitada (artigos 371.º, n.º 1 e 376.º, n.º 1, ambos do C.P.C.), ou quando exista acordo das partes (artigo 574.º, n.º 2, do C.P.C.), ou quando tenha ocorrido confissão relevante cuja força vinculada tenha sido desrespeitada (artigo 358.º do C.C., e artigos 484.º, n.º 1 e 463.º, ambos do C.P.C.), ou quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (v. g. presunção judicial ou depoimentos de testemunhas, nos termos dos artigos 351.º e 393.º, ambos do C.P.C.).
Ao fazê-lo, tanto poderá afirmar novos factos, como desconsiderar outros (que antes tinham sido afirmados).”
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Tendo presentes estes considerandos, analisemos cada um dos concretos pontos da matéria de facto que as Recorrentes pretendem ver alterados.
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i. Facto provado número 1.:
“Os Autores e os Réus são donos dos seguintes bens imóveis: a) Prédio misto, descrito na CRP de Tomar com o n.º (…), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) e rústica sob o artigo (…), secção (…), sito na freguesia de (…), concelho de Tomar; b) Prédio urbano, descrito na CRP de Tomar sob o n.º (…), inscrito na matriz predial sob o artigo (…), sito na freguesia de (…), concelho de Tomar; c) Prédio rústico sito na freguesia de (…), concelho de Tomar, denominado (…), inscrito na matriz predial sob o artigo (…) – secção (…); d) Prédio rústico sito na freguesia de (…), concelho de Tomar, denominado (…), inscrito na matriz predial sob o artigo (…) – secção (…).”
Sustentam os Recorrentes que, contrariamente ao que se refere na motivação a decisão de facto da sentença recorrida, dos testemunhos de (…) e (…), filhas dos Autores, não resulta qualquer informação, qualquer dado, qualquer facto ou qualquer conhecimento que possa ter permitido dar como provado o ponto 1 em apreço, nem os documentos juntos aos autos consentem semelhante conclusão.
Tomando posição sobre a redacção do facto provado número 1, afigura-se-nos que a contém uma conclusão jurídica sobre a titularidade do direito de propriedade, já que a afirmação “…são donos dos seguintes bens imóveis…” representa, em linguagem corrente, o domínio jurídico que se mostra impugnado pelos Réus na sua contestação (cfr. artigo 1º da contestação).
Tal conclusão jurídica só poderá advir, em fase da fundamentação de direito da decisão, da alegação e prova da aquisição daquele direito:
- por via originária, através da acessão industrial imobiliária ou do exercício da posse pelo tempo e com os caracteres necessários à usucapião; ou
- por via translativa decorrente de sucessão ou mediante a celebração de contrato de doação, compra e venda, permuta ou outro que produza esse efeito jurídico e, bem assim, do registo do direito de propriedade em nome das pessoas ali mencionadas que produz a presunção de titularidade do direito registado. Embora com eficácia meramente declarativa, não constitutiva, o registo predial da aquisição da titularidade do direito permite, de acordo com a presunção prevista no artigo 7.º do Código do Registo Predial, concluir que o titular inscrito no registo é também titular do direito de propriedade sobre o prédio registado, presunção que, mesmo quando não ilidida, não abrange características como a área constante do registo do prédio. ([10])
Assim, os factos que importa dar, ou não, como provados na decisão em que se repute relevante afirmar a propriedade, controversa, de alguém sobre determinados bens imóveis, são os concretos actos de aquisição originária ou de aquisição derivada acompanhada do respectivo registo.
Afirmar na matéria de facto provada que alguém é dono de imóvel constitui o produto da elaboração de um silogismo judiciário que tem de fundar-se na prática daqueles concretos actos.
Segundo Paulo Faria, se “o tema da instrução pode aqui ser identificado por referência a conceitos de direito ou conclusivos (…) já a decisão sobre a matéria de facto nunca se poderá bastar com tais formulações genéricas, de direito ou conclusivas, exigindo-se que o tribunal se pronuncie sobre os factos essenciais e instrumentais.” ([11])
Ou com Miguel Teixeira de Sousa, “… a selecção da matéria de facto não pode conter qualquer apreciação de direito, isto é, qualquer valoração segundo a interpretação ou a aplicação da lei ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídico (…)”. ([12])
Deste modo, se determinado ponto da matéria de facto integrar uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objecto da acção, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, deve ser eliminado ou modificado de forma a expurgá-lo das expressões que não constituam verdadeiramente factos.
A crítica feita à redacção do facto provado número 1, aplica-se, nos mesmíssimos termos, à redacção alternativa proposta pelos Recorrentes na sua impugnação da matéria de facto, pois estes pretendem que passe a constar que “os (…) Réus são donos (…)” dos mesmos bens imóveis.
É, por isso, claro que a redacção proposta pelos Recorrentes não pode ser acolhida e que se impõe a reformulação do conteúdo do facto provado n.º 1 para o seguinte, resultante do teor dos documentos autênticos juntos sob os n.os 1 a 6 da p.i. (indicados no artigo 1 da p.i.) aos autos:
“1.1. Encontram-se descritos na Conservatória do Registo Predial de Tomar: a) Sob o n.º (…), da freguesia de (…), o prédio misto, situado em (…), com área total de 920 m2, da qual 400 m2 coberta e 520 m2 descoberta, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) e na matriz predial rústica sob o artigo (…), mostrando-se, pela Ap. (…), de 2007/12/07, registada a respectiva aquisição por usucapião, a favor de (…) e mulher, … (cfr. certidão do registo predial junta como documento 2 da p.i.); b) Sob o n.º (…), da freguesia de (…), o prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), situado em (…), com área total de 60 m2, mostrando-se, pela Ap. (…), de 2004/08/26, registada a respectiva aquisição por partilha, compra e permuta, a favor de (…) e mulher, (…), na proporção de 15/36, (…) na proporção de 6/36 e de (…) na proporção de 15/36 (cfr. certidão do registo predial junta como documento 4 da p.i.).
1.2. Encontram-se inscritos no Serviço de Finanças de Tomar os prédios correspondentes aos artigos matriciais:
- rústico n.º (…), secção (…), da freguesia de (…), (…), com área de 0,184 ha, composto de figueiral / pomar de figueiras e olival, ano de inscrição na matriz (…) e titular do rendimento … (cfr. caderneta predial junta como documento 5 da p.i.);
- rústico n.º (…), secção (…), da freguesia de (…), (…), com área de 0,168 ha, composto de horta, nespereiras e oliveiras, ano de inscrição na matriz (…) e titular do rendimento … (cfr. caderneta predial junta como documento 6 da p.i.).”
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As razões da alteração do facto provado n.º 1, impõem também a harmonização da redacção do facto provado n.º 2, na remissão aí feita ao facto provado n.º 1.
Assim deverá o respectivo teor passar a ser:
“2. No dia 24 de agosto de 2005, os Réus celebraram Escritura de Justificação no 1º Cartório Notarial de Santarém, tendo declarado que, “com exclusão de outrem, são donos e legítimos possuidores” dos prédios rústicos identificados em 1.2, no que foram corroborados por três testemunhas por si apresentadas.”
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ii. Facto provado número 4.:
“4. Os imóveis acima indicados e que os Réus se arrogam pertencer-lhes, com exclusão de outrem, fazem parte integrante do acervo dos bens que constituem a herança aberta por óbito de (…), mãe do Autor (…) e da Autora (…) e cônjuge (…), a qual foi objeto de Inventário Orfanológico obrigatório, em 1961.”
Entendem os Recorrentes que a prova documental junta e a testemunhal produzida em julgamento, não consentem a afirmação de que os imóveis indicados nos factos provados números 1 a 3 fazem parte integrante do acervo dos bens pertencentes à herança aberta por óbito de (…).
Antes de nos debruçarmos sobre a suficiência, ou falta dela, da prova produzida em julgamento em abono do facto em apreço, devemos ter presente que os Recorrentes não só discordam do conteúdo do facto provado n.º 4 como propõem uma redacção alternativa, no sentido de que os mencionados imóveis “…não fazem parte integrante do acervo dos bens que constituem a herança aberta por óbito de (…) …”.
Propõem, assim, a inclusão de uma formulação negativa do facto que os Autores alegaram, o que não pode ser acolhido por não consistir num facto que aos Réus incumba provar na presente acção.
Na verdade, contendo a petição inicial dois distintos núcleos de pedidos – um referente à impugnação das escrituras públicas de justificação de posse a favor dos Réus e o outro visando o reconhecimento da titularidade do direito de propriedade dos Autores sobre os prédios nelas visados – o ónus que impende sobre os Réus é referente ao primeiro núcleo dos pedidos e consiste na alegação e prova dos negócios verbais e da posse que servem de fundamento às escrituras de justificação impugnadas.
Quanto ao segundo núcleo de pedidos – de reconhecimento da titularidade do direito de propriedade dos Autores aos prédios – apenas sobre estes impende o ónus de alegarem os factos constitutivos do direito arrogado que, como vimos, constituam forma legítima de aquisição originária ou derivada, neste caso acompanhada do registo. Mesmo a defesa por excepção dos Réus contra esta pretensão dos Autores consiste na posse em que se fundam os títulos de aquisição que outorgaram: as referidas escrituras de justificação.
Assim, sobre os Réus impende o ónus de alegarem e provarem a posse que estará na origem da aquisição originária, por usucapião, do direito de propriedade sobre os referidos prédios.
Resulta claro que a formulação do facto n.º 4 proposta pelos Réus – “…não fazem parte integrante do acervo dos bens que constituem a herança aberta por óbito de (…) …” – não contém, explícita ou implicitamente, qualquer acto material de posse exercido pelos Réus sobre os imóveis em disputa.
Por isso, fica definitivamente afastado o acolhimento da redacção proposta pelos Réus para o facto provado número 4, remanescendo para a subsequente análise, a questão da suficiência dos meios de prova para poder afirmar que os imóveis são parte integrante do acervo dos bens que constituem a herança aberta por óbito de (…).
Sobre a prova subjacente aos factos provados, entre os quais se encontra o n.º 4 impugnado, refere-se na motivação da decisão da matéria de facto da sentença recorrida, que:
“…a prova dos factos provados decorre do teor dos documentos juntos aos autos, designadamente cadernetas prediais, certidões do registo predial, escrituras de justificação, certidão de inventário orfanológico de (…) e (…), de 1961, informação do Serviço de Finanças de Tomar sobre as alterações à descrição dos imóveis (efetuadas desde o ano de inscrição na matriz) e as plantas de localização junto do Cadastro Geográfico.
Mais se analisaram os depoimentos das testemunhas (…) e (…), filhas dos autores, que descreveram os imóveis e o modo como os mesmos eram utilizados, assim como explicaram como tiveram conhecimento de que os mesmos estavam registados em nome dos RR, acrescentando que os restantes herdeiros sempre permitiram que o R utilizasse e cultivasse os terrenos, nunca porém, em nome próprio ou como se proprietário fosse mas sempre com a ideia de manter os imóveis da herança cuidados. Estas testemunhas depuseram de forma séria, objetiva e sincera, declarando aquilo de que tinham conhecimento, merecendo credibilidade, pois também consentâneas com os documentos supra expostos.”
A motivação assim apresentada, em bloco para o conjunto dos factos provados, remete para os documentos juntos e para as declarações das testemunhas.
No caso do facto provado n.º 4 que faz expressa menção ao objecto do Inventário Orfanológico obrigatório que correu termos em 1961 para partilha da herança aberta por óbito de (…), o documento / certidão extraído do mesmo processo, junto como documento 9 da p.i., constitui o elemento probatório central.
Da descrição dos bens da herança feita no dia 13.12.1961 no referido processo, consta, sob a verba n.º 8, o prédio inscrito sob o artigo matricial urbano (…), sito na (…), a que respeita a alínea b) do facto provado n.º 1 da presente acção.
Quanto aos outros três prédios, mencionados nas alíneas a), c) e d) do mesmo facto provado, viram os seus artigos matriciais criados todos em data posterior a 1961, razão pela qual os respectivos números não podem figurar na relação de bens daquele inventário.
Na verdade, consta das cadernetas prediais juntas como documentos 1, 5 e 6 da p.i., bem como da informação prestada pela Autoridade Tributária, a pedido do tribunal, no dia 13.03.2024, que:
- o artigo urbano (…), sito na (…), foi criado no ano de 1972;
- o artigo rústico (…) foi criado no ano de 1989; e
- o artigo rústico (…) foi criado no ano de 1988.
Deste modo, a falta de correspondência dos números dos artigos dos prédios referidos nas alíneas a), c) e d) do facto provado n.º 1 com as verbas 4, 5 e 7 do inventário facultativo, não constitui argumento relevante contra a versão dos Autores, na medida em que aqueles foram artigos declarados posteriormente às Finanças.
Ouvida a prova indicada pelos Recorrentes nas alegações de recurso constatou-se que:
- a testemunha (…) narrou a sua memória de infância que também remonta aos anos 80, de que os terrenos rústicos no (…), as casas pequena e grande e o terreno adjacente em disputa eram do seu avô e, por morte deste, ficaram para o pai e os tios dela, nunca tendo sido objecto de partilha. Deu conta de que o logradouro da casa pequena com 120 m2 (= 180 m2 – 60 m2 de área de implantação da casa) é contíguo ao terreno junto à casa grande. Afirmou os terrenos situados no (…) como correspondentes às verbas n.os 4 e 5 da descrição de bens do inventário facultativo e o terreno onde foi construída a casa grande como a verba n.º 7 do processo de inventário. Disse que era o Réu quem, autorizado pelos irmãos, cuidava dos terrenos da herança e morava na casa grande, ocupando o respectivo logradouro. Há alguns anos que o Réu vem sustentando que estes prédios lhe pertencem, apesar de nunca terem sido feitas partilhas;
- a testemunha (…) disse que conhecia o local, desde que se lembra sempre aí existiram uma casa pequena, uma maior e o terreno contíguo. Quando o avô lá ia ficava sempre instalado na casa grande, sendo que a casa pequena não tinha, na ocasião, boas condições para ser habitada. A casa pequena é a mais antiga e era onde viviam os seus bisavós (avós do pai), antes de ser construída a casa grande, e tinha acesso ao terreno do logradouro ali existente. Quando a avó (mãe do pai) se casou foi construída a casa grande onde esta passou a morar com o marido, ao lado da casa pequena que era a dos bisavós. A verba 7 do inventário é o terreno rústico originário onde foi construída a casa grande. Havia também uma horta que se chamava “fonte de qualquer coisa que já não recorda”. Nunca houve partilhas entre os irmãos, mas o Réu comporta-se agora como se fosse o dono daquilo tudo.
Ouviu também este tribunal a gravação do testemunho de (…), indicada pelos Réus, que evidenciou conhecimento do local onde se situam os prédios por ser vizinho dos mesmos e afilhado do Réu, tendo vivido nas imediações até aos seus 19 anos de idade, durante as décadas de 80 e 90. A instâncias da ilustre mandatária dos Autores, a testemunha disse supor que as casas e o terreno em disputa provinham da herança deixada pelo pai dos Autores e que o padrinho (Réu) lhe disse que agora era pertença sua porque tinha comprado a parte pertencente à irmã (…). Porém, nunca viu qualquer documento público ou particular, referente ao negócio aludido pelo padrinho. No mais, disse que era o (…) quem cultivava o terreno, morava na casa grande, onde fez obras no decurso dos anos 80 e 90;
A precedente exposição da prova produzida no julgamento, tem o seguinte reflexo na redacção do facto provado n.º 4:
- não há dúvida de que o artigo matricial … (cfr. alínea b) do facto provado n.º 1) fez parte do Inventário Orfanológico (verba 8) por morte da mãe dos Autores (…) e (…) e do Réu;
- quanto ao artigo matricial … (cfr. alínea a) do facto provado n.º 1), diz respeito à casa que foi construída pelos pais dos mesmos Autores e Réu no terreno aludido na verba 7 do Inventário Orfanológico corrido por morte de (…). Mas não se encontra descrito naquele inventário como prédio urbano com uma casa edificada, razão pela qual não é rigoroso afirmar que foi objecto do mesmo inventário. Assim, deverá a redacção do facto provado n.º 4 ser alterada de modo a reflectir a realidade apurada em julgamento relativamente ao prédio da alínea a) do facto provado n.º 1;
- no que tange aos artigos matriciais rústicos descritos nas alíneas c) e d) do mesmo facto provado, bem como nos factos provados n.os 2 e 3, foram criados em data posterior ao referido Inventário Orfanológico, razão pela qual se não afigura correcto afirmar que foram objecto do mesmo. O acervo hereditário daquele Inventário é constituído pelos bens da respectiva descrição, da qual figuram outros artigos que não os das alíneas c) e d), criados ulteriormente. A circunstância de, por via da justificação de posse, o Réu ter inscrito em seu nome dois artigos matriciais inexistentes à data daquele inventário e do falecimento dos seus pais, ainda que com o fito de se arrogar dono de áreas correspondentes a prédios que pertenciam à herança, não tem o condão de alterar os bens objecto da herança, sendo as suas implicações restringidas à arrogada titularidade, pelo Réu, dos prédios das alíneas c) e d) e da própria razão de ser da existência destes. Deste modo, impõe-se também corrigir a afirmação produzida no facto provado em apreço.
Termos em que deve a redacção do facto provado n.º 4 ser alterada nos seguintes termos:
“4. O imóvel indicado na alínea b) do facto provado n.º 1 fez parte integrante do acervo dos bens que constituíram a herança aberta por óbito de (…), mãe do Autor (…) e da Autora (…) e cônjuge (…), a qual foi objecto de Inventário Orfanológico obrigatório, em 1961.”
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As razões da alteração do facto provado n.º 4, impõem também a harmonização da redacção do facto provado n.º 5 que reporta ao objecto do Inventário Orfanológico, em termos compatíveis com o documento 9 da p.i.. O prédio inscrito na matriz sob o artigo (…), objecto daquele inventário, não consta das escrituras de justificação de posse outorgadas pelos Réus nos dias 24.08.2005 e 12.10.2007 (reproduzidas nos documentos 7 e 8 da p.i.).
Assim, deverá o facto provado número 5 assumir a seguinte redacção:
“5. No âmbito de tal Inventário Orfanológico, o imóvel mencionado no facto provado anterior foi adjudicado ao cabeça-de-casal (…) e à interessada (…), respectivamente viúvo e mãe da Inventariada.”
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Matéria de facto provada:
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Em consequência das supra determinadas alterações, a matéria de facto provada a considerar é a seguinte: [13]
1.1. Encontram-se descritos na Conservatória do Registo Predial de Tomar: a) Sob o n.º (…), da freguesia de (…), o prédio misto, situado em (…), com área total de 920 m2, da qual 400 m2 coberta e 520 m2 descoberta, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) e na matriz predial rústica sob o artigo (…), mostrando-se, pela Ap. (…), de 2007/12/07, registada a respectiva aquisição por usucapião, a favor de (…) e mulher, … (cfr. certidão do registo predial junta como documento 2 da p.i.); b) Sob o n.º (…), da freguesia de (…), o prédio inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…), situado em (…) com área total de 60 m2, mostrando-se, pela Ap. (…), de 2004/08/26, registada a respectiva aquisição por partilha, compra e permuta, a favor de (…) e mulher, (…), na proporção de 15/36, (…) na proporção de 6/36 e de (…) na proporção de 15/36 (cfr. certidão do registo predial junta como documento 4 da p.i.).
1.2. Encontram-se inscritos no Serviço de Finanças de Tomar os prédios correspondentes aos artigos matriciais:
- rústico n.º (…), secção (…), da freguesia de (…), (…), com área de 0,184 ha, composto de figueiral / pomar de figueiras e olival, ano de inscrição na matriz (…) e titular do rendimento … (cfr. caderneta predial junta como documento 5 da p.i.);
- rústico n.º (…), secção (…), da freguesia de (…), (…), com área de 0,168 ha, composto de horta, nespereiras e oliveiras, ano de inscrição na matriz (…) e titular do rendimento … (cfr. caderneta predial junta como documento 6 da p.i.).”
2. No dia 24 de agosto de 2005, os Réus celebraram Escritura de Justificação no 1º Cartório Notarial de Santarém, tendo declarado que, “com exclusão de outrem, são donos e legítimos possuidores” dos prédios rústicos identificados em 1.2, no que foram corroborados por três testemunhas por si apresentadas.
3. No dia 12 de outubro de 2007, os Réus celebraram Escritura de Justificação no Cartório Notarial a cargo do Notário (…), sito na Rua (…), 29, Tomar, tendo declarado que, “com exclusão de outrem, são donos e legítimos possuidores” do Prédio misto, descrito na CRP de Tomar com o n.º (…), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo (…) e rústica sob o artigo (…), secção (…), sito na freguesia de (…), concelho de Tomar, no que foram corroborados por três testemunhas por si apresentadas.
4. O imóvel indicado na alínea b) do facto provado n.º 1.1 fez parte integrante do acervo dos bens que constituíram a herança aberta por óbito de (…), mãe do Autor (…) e da Autora (…) e cônjuge (…), a qual foi objecto de Inventário Orfanológico obrigatório, em 1961.
5. No âmbito de tal Inventário Orfanológico, o imóvel mencionado no facto provado anterior foi adjudicado ao cabeça-de-casal (…) e à interessada (…), respectivamente viúvo e mãe da Inventariada.
6. Os Réus lograram registar os imóveis a seu favor com base nas escrituras.
7. Em relação ao imóvel indicado em b), a consequência do registo do prédio misto indicado em a) foi a de privar aquele imóvel da sua área de logradouro, como resulta das divergências entre a caderneta predial e a descrição na Conservatória. (…)
8. Em relação ao artigo (…), localizado na Junta de Freguesia de (…), foi inscrito na matriz em 1972 (omisso na matriz desde 1955/01/20), com uma superfície coberta de 400 m2, tendo sido harmonizado com o artigo (…), secção (…), da mesma freguesia em 2007/12/22 a que acresceu o logradouro de 120 m2, tendo estes vindo à posse de (…), NIF (…), através de escritura de compra de 1975/08/27, exarada pelo 1.º cartório notarial de Tomar e a totalidade através de escritura de permuta com (…), NIF (…), de 1976/07/16 exarada no mesmo cartório.
9. Em relação ao artigo (…), localizado na Junta de Freguesia de (…), foi inscrito na matriz em 1937, com uma área de 60 m2, com alteração de área em 2022/08/05, efetuada através da modelo 1 do IMI n.º (…), de 2022/07/04, tendo este vindo à posse de (…), NIF (…) e (…), NIF (…), através das escrituras de compra de 1975/08/27 e de escritura de permuta de 1976/07/16, exaradas pelo 1.º cartório notarial de Tomar.
10. Em relação ao artigo (…), Secção (…), localizado na Junta de Freguesia de (…), foi inscrito na matriz em 1988, com uma área de 2.840 m2 em nome do atual proprietário.
11. Em relação ao artigo (…), Secção (…), localizado na Junta de Freguesia de (…), foi inscrito na matriz em 1988, com uma área de 1.680 m2, tendo vindo à posse de (…), NIF (…), através de escritura pública de justificação, exarada em 2005/08/04 pelo 2.º cartório notarial de Tomar Dr. (…), livro …, folhas 123 verso.
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B. De direito
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Analisadas que estão as invocadas nulidades da sentença, bem como a impugnação da matéria de facto provada, vejamos, agora, se a factualidade resultante consente a manutenção da decisão jurídica proferida em 1ª instância.
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Da ineficácia das escrituras de justificação
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Analisemos primeiramente o pedido de declaração de ineficácia das escrituras e da nulidade dos respectivos registos de aquisição promovidos pelos Réus.
A escritura de justificação notarial é um instrumento jurídico associado à dinâmica do registo predial – artigo 116.º, n.º 1, do Código do Registo Predial –, destinado a proporcionar um título para o registo do direito de propriedade.
Quando um interessado pretende promover o registo do direito está obrigado a providenciar um título escrito (artigo 43.º, n.º 1, do Código do Registo Predial) que pode faltar se tiver ocorrido extravio ou destruição, ou quando se pretenda realizar a inscrição de com base na aquisição originária da propriedade, por usucapião ou por acessão.
Em tais casos, dispõe o interessado, na ordem jurídica portuguesa, de uma de três possibilidades:
- recorre a juízo para obter a declaração judicial do facto a registar;
- promove a celebração de uma escritura pública de justificação notarial; ou
- instaura processo de justificação registal, nos termos do Código do Registo Predial (artigos 116.º e ss.) (acompanha-se aqui José Alberto Vieira, em anotação ao Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (AUJ) n.º 1/2008, de 04.12.2007, publicado no Diário da República, 1ª Série, n.º 63, de 31.03.2008, páginas 1871 e ss.).
Mediante a outorga da escritura pública de justificação, documento autêntico que faz prova plena das declarações produzidas perante o oficial público (artigos 363.º, n.º 2 e 371.º, n.º 1, ambos do Código Civil), o interessado obtém o título necessário à realização do registo.
A prova plena das declarações prestadas perante o oficial público não significa, porém, prova de que o seu conteúdo corresponda à verdade e exprima uma realidade autêntica, mas apenas que na celebração daquele acto jurídico foram produzidas as declarações com o sentido expresso no texto – artigos 371.º, n.º 1 e 372.º, n.º 1, ambos do Código Civil.
A escritura de justificação notarial é susceptível de impugnação judicial em acção de simples apreciação negativa (artigo 10.º, nºs 2 e 3, alínea a), do CPC), a que se aplica a regra probatória prevista pelo n.º 1 do artigo 343.º do Código Civil, segundo a qual, nas acções de simples apreciação ou declaração negativa, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga.
Neste contexto, o aludido acórdão uniformizador de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2008, seguido pela jurisprudência do nosso mais alto tribunal [14], decidiu que:
“Na acção de impugnação de escritura de justificação notarial prevista nos artigos 116.º, n.º 1, do CRP e 89.º e 101.º do CNot, tendo sido os réus que nela afirmaram a aquisição, por usucapião, do direito de propriedade sobre um imóvel, inscrito definitivamente no registo, a seu favor, com base nessa escritura, incumbe-lhes a prova dos factos constitutivos do seu direito, sem poderem beneficiar da presunção do registo decorrente do artigo 7.º do CRP”.
Deste modo, o titular inscrito com base em facto aquisitivo titulado por escritura de justificação notarial tem o ónus da prova da aquisição e validade do seu direito, sem beneficiar da presunção de titularidade do direito emergente do registo, prevista pelo artigo 7.º do Código do Registo Predial.
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Impende sobre os Réus o ónus de provar as características da posse imprescindíveis à verificação da usucapião – cfr. artigo 1287.º do Código Civil –, enquanto poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real, resultante da prática reiterada, com publicidade, dos actos materiais correspondentes ao exercício do direito, ou da tradição material ou simbólica da coisa efectuada pelo anterior possuidor, ou por constituto possessório, ou ainda por inversão do título de posse – cfr. artigo 1263.º do Código Civil –, podendo ser titulada, de boa ou de má-fé, pacífica ou violenta, pública ou oculta – cfr. artigos 1258.º e ss. do Código Civil.
Tendo estes ensinamentos presentes, importa atentar que na situação em apreciação os Réus não lograram provar os factos relevantes, narrados nas escrituras de justificação notarial que outorgaram a 24 de Agosto de 2005, no 1º Cartório Notarial de Santarém e a 12 de Outubro de 2007, no Cartório Notarial a cargo do Notário (…), em Tomar.
Concretamente que, no seguimento de:
- compra verbal feita no ano de 1975 a (…) e mulher (…), tendo por objecto os artigos matriciais rústicos n.ºs (…) e (…), ambos da secção (…); e
- doação verbal feita no ano de 1980 por seus pais e sogros, (…) e mulher (…), tendo por objecto o prédio misto composto de casa de habitação e arrecadação, inscrito na matriz sob os artigos (…), urbano e (…), secção (…), rústico;
os Réus (…) e (…), receberam e passaram a exercer posse sobre os mesmos, desde as datas de 1975 / 1980 até às datas da celebração das aludidas escrituras respectivamente, com os caracteres susceptíveis de proporcionar a sua aquisição originária, por usucapião.
Assim, não tendo os Réus logrado fazer prova da posse que lhes competia, procederá a impugnação deduzida pelos Autores, geradora da ineficácia das escrituras em apreço, enquanto títulos aquisitivos do direito de propriedade pelos Réus.
Deve, por isso, manter-se a decisão recorrida na parte referente aos pontos a) e d) do dispositivo.
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Do reconhecimento / reivindicação da propriedade
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Vimos já que um segundo núcleo dos pedidos formulados na presente acção consiste na condenação dos Réus a reconhecer que “…os Autores são também proprietários dos imóveis objeto das escrituras de usucapião impugnadas…” e a restituir a respectiva posse aos Autores, abstendo-se de fazer uso dos mesmos.
Estes pedidos são característicos da acção de reivindicação prevista no artigo 1311.º Código Civil, facultada ao proprietário como meio de defesa da sua propriedade.
O direito de propriedade, regulado nos artigos 1302.º e seguintes, do Código Civil (C.C.), confere ao seu titular o gozo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição do seu objecto dentro dos limites da lei e com a observância das restrições por ela impostas – cfr. artigo 1305.º do C.C.. É um direito real pleno, porque acima dele não existe qualquer outro poder e, exclusivo, na medida em que o proprietário pode exigir que qualquer terceiro se abstenha de invadir a sua esfera jurídica.
Entre os meios de reacção do proprietário contra violações do seu direito, encontra-se a reivindicação prevista no aludido artigo 1311.º do CC..
Para tanto, impõe-se ao demandante o ónus de provar a condição de proprietário através de um dos modos legítimos de aquisição previstos por lei, assim como a abusiva ocupação, pelo demandado, do objecto do seu direito.
Sobre a demonstração da condição de proprietário, o modo como o direito de propriedade entra na esfera jurídica do sujeito, é regulado nos artigos 1316.º ss. do CC, relativos à aquisição da propriedade.
Na “aquisição derivada” “...o direito adquirido funda-se ou filia-se na existência de um direito na titularidade de outra pessoa” (Carlos A. da Mota Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª Edição, Coimbra Editora, 1990, pág. 360). A sua extinção ou limitação é que geram a aquisição do direito pelo novo titular, constituindo deste modo, a sua causa.
Por seu turno, na “aquisição originária”, “...o direito adquirido não depende da existência ou extensão de um direito anterior, que poderá até não existir;” (C. A. da Mota Pinto, in Op. Cit., pág. 360). Nas situações em que exista, o direito adquirido não é por ele causado, constituindo-se apesar daquele direito.
A causa de pedir nas ações reais é, de acordo com a teoria da substanciação, o ato ou facto jurídico de que deriva o direito de propriedade. Tem sido seguido na nossa doutrina e na jurisprudência, o entendimento de que, quem invoca em juízo o direito de propriedade sobre uma coisa, deverá efetuar a prova da sua aquisição originária.
Assim, nomeadamente nas ações de reivindicação, não bastará ao autor a prova resultante do título constitutivo da aquisição derivada da propriedade, de que é exemplo a escritura pública de contrato de compra e venda de imóvel, para que possa ver reconhecido o seu direito contra o possuidor ou detentor ilegítimo.
Atento o princípio nemo plus juris ad alium trasferre potest quam ipse habet, os direitos cuja pré-existência na esfera jurídica do seu transmitente não seja líquida, apenas serão considerados na esfera jurídica do adquirente se este efetuar prova da sua aquisição originária – “O modo derivado prova somente a transmissão, de um direito, se acaso ele existir, donde só por si ser insuficiente para demonstrar o direito do reivindicante”, Manuel Salvador, in “Suplemento aos Elementos da Reivindicação”, pág. 49.
Neste sentido se pronunciam também Antunes Varela, no seu comentário ao artigo 1311.º do C.C. (in “Código Civil Anotado”, vol. III, 2ª edição, Coimbra Editora, 1987, pág. 102), ou Manuel Salvador (in Op. Cit., pág. 66), bem como os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 04.07.72 e de 16.06.83, in RLJ, n.os 3507º, págs. 281 e ss. e 3760º, páginas 208 e ss., respectivamente).
Semelhante entendimento, no rigor dos termos descritos, parece no entanto, merecer reparos emergentes de reflexão mais aturada.
A prova da aquisição originária pelo proprietário reivindicante resulta por vezes difícil pois implica a alegação e prova de factos demonstrativos dos institutos da ocupação, usucapião ou acessão (artigos 1318.º e segs., 1287.º e segs. e 1325.º e segs., do C.C.), enquanto causas daquela originariedade. Esta falta de prova não gera a completa ausência da causa de pedir, uma vez que ela contém o ato translativo da propriedade.
Neste particular, há quem defenda “...que a prova exigida à parte, não é a prova absoluta (entenda-se originária) do direito de propriedade, mas a prova puramente relativa dum direito melhor e mais provável do que o do adversário” (Carbonnier, citado por Manuel Salvador, in Op. Cit., pág. 60). Numa concepção que limita às partes em litígio a prova de um direito que se sobreponha ao da outra, não há qualquer vantagem em recusar a propriedade do autor, comprovada por título de aquisição derivada, se o réu não vier alegar e provar que aquele direito lhe pertence por aquisição originária.
Assim, vem sendo pacificamente aceite pela nossa jurisprudência que a presunção legal resultante do registo do título aquisitivo do autor (cfr. artigo 7.º do Código de Registo Predial) é suficiente para que seja reconhecida, em acção de reivindicação, a titularidade pelo autor, beneficiário do registo, do correspondente direito de propriedade. Mesmo quando o réu seja possuidor da coisa reivindicada e, consequentemente, goze da presunção legal de propriedade decorrente da posse nos termos previstos pelo artigo 1268.º, n.º 1, do C.C., esta é vencida pela presunção legal resultante do registo do título aquisitivo do autor prevista pelo artigo 7.º do Código de Registo Predial.
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Compulsada a matéria de facto provada da presente acção, constatamos que nenhuma respeita ao exercício da posse sobre os prédios reivindicados pelos Autores, constituídos, nos termos do pedido que formularam, pelos objectos das escrituras de justificação notarial celebradas nos dias 24 de Agosto de 2005, no 1º Cartório Notarial de Santarém, e 12 de Outubro de 2007, no Cartório Notarial a cargo do Notário (…), em Tomar.
A saber:
- os artigos matriciais rústicos n.ºs (…) e (…), ambos da secção (…); e
- o prédio misto composto de casa de habitação e arrecadação, inscrito na matriz sob os artigos (…), urbano e (…), secção (…), rústico.
Dependente que está do exercício da posse continuada, em nome próprio, não foi demonstrada a aquisição originária por usucapião, do direito de propriedade sobre estes prédios, seja pelos Réus, seja pelos Autores.
Por outro lado, tampouco existe título de aquisição derivada eficaz, a favor de qualquer das partes da acção, relativamente aos mesmos prédios.
É que se as escrituras de justificação de posse outorgadas pelos Réus são, pelas razões já apresentadas, ineficazes, os Autores, por seu turno, não apresentaram nos autos qualquer título válido de aquisição dos artigos matriciais objecto das mesmas escrituras.
Acresce que nem os Autores, nem os Réus, beneficiam da presunção de titularidade do direito decorrente do registo.
Neste particular, é incontornável ter presente que, tal como pelos Autores vem formulado, o pedido incide sobre prédios que só ganharam descrição predial autónoma por via das escrituras de justificação de posse ineficazes promovidas pelos Réus.
Isto significa que, se por um lado o registo de aquisição da propriedade realizado a favor dos Réus é inválido, por outro, não há outros titulares do mesmo direito registados anteriormente sobre tais prédios.
Deste modo, a matéria de facto provada da presente acção não permite a conclusão jurídica de que os Autores e/ou outras pessoas, sejam proprietárias dos prédios objecto do pedido de reivindicação formulado na presente acção.
Consequentemente, carecem de fundamentação factual e jurídica os demais pedidos formulados pelos Autores, impondo-se a revogação parcial da sentença recorrida.
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Custas
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Não havendo norma que preveja isenção (artigo 4.º, n.º 2, do RCP), o presente recurso está sujeito a custas (artigo 607.º, n.º 6, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, ambos do CPC).
No critério definido pelos artigos 527.º, n.ºs 1 e 2 e 607.º, n.º 6, ambos do CPC, a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no critério do vencimento ou decaimento na causa, ou, não havendo vencimento, no critério do proveito.
No caso, os Recorrentes obtiveram parcial vencimento no recurso, pelo que devem as respectivas custas ser suportadas em 1/3 pelos Recorridos e em 2/3 pelos Recorrentes.
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III. DECISÃO
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Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora em:
1. Julgar parcialmente improcedente a apelação e, em consequência, confirmar os pontos a) e e) do dispositivo da sentença recorrida.
2. Julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, revogar a condenação dos Réus contida nos pontos b) a d) do dispositivo da sentença recorrida.
3. Condenar em custas os Recorrentes e os Recorridos, na proporção de 2/3 e 1/3 respectivamente.
Notifique.