Quando adotada uma medida cautelar, ao abrigo do disposto no artigo 37.º, da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, pode ser cumprido o contraditório quanto à mesma, bem como quanto aos teor dos meios de prova que a sustentam, após a sua prolação.
(Sumário da responsabilidade do Relator)
João Venade.
Ana Márcia Vieira.
Carlos Cunha Carvalho.
Em 25/07/2024, o M.º P.º veio requerer a abertura de processo judicial de promoção e proteção, ao abrigo do disposto nos artigos 11.º, n.º 1, c) e n.º 3 e 73.º, n.º 1, b), da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, relativamente à menor AA, nascida a ../../2016.
Alega que a mãe da menor é vítima de violência doméstica perpetrada por parte do pai da menor, gastando o mesmo progenitor todo o dinheiro do sustento da casa.
Por outro lado, a mãe da menor é consumidora de produto estupefaciente, esteve internada numa clínica de reabilitação em ... por duas semanas, entre 21/06/2024 e 02/07/2024, retornando após a saída da clínica à casa comum com o pai da menor, encontrando-se ainda em tratamento farmacológico e psicofarmacológico;
Durante o período de estadia da progenitora na clínica de reabilitação, a menor foi levada pelo pai para casa da madrinha, deixando-a aos cuidados desta.
. determina-se, ao abrigo do disposto nos artigos 35.º, n.º 1, alínea b), 37.º, 91.º e 92.º, todos da LPCJP, a aplicação provisória, cautelar e urgente, da medida de apoio junto de outro familiar, designadamente dos tios maternos BB e CC da criança AA, autorizando-se a que esta fixe a sua residência no Reino Unido, pelo período de 3 (três) meses.
Nessa decisão foram julgados provados os seguintes factos:
- A AA nasceu a ../../2016 e é filha de DD e EE;
- A AA mantém-se aos cuidados do pai, tendo alguns contactos com a mãe;
- A AA, em entrevista com a Sr.ª Técnica Gestora, “verbalizou que gostava de ir para Inglaterra e estar com a mãe e a tia BB, mas que tem conhecimento que o pai não quer.
Verbalizou apreço e afeto pela tia BB e pelas primas, comentando ainda que a tia BB “…ralhou com as primas, mas é porque elas não queriam comer a sopa… ; “Questionada sobre os seus atuais sonhos, respondeu por esta ordem: “…saber nadar, ir para Inglaterra com a mãe, ser inteligente e que os meus cães nunca morressem…embora sei que este último não é possível, pois um dia, isso vai acontecer…”. Questionada se fosse para Inglaterra, se não iria sentir saudades do pai, respondeu afirmativamente, reforçando de imediato “… mas posso ligar-lhe todos os dias…”;
- A criança frequenta, pela segunda vez, o 2.º ano de escolaridade;
- A criança não transitou para o 3.º ano de escolaridade dadas as suas dificuldades de aprendizagem associadas à falta de supervisão e apoio parentais;
- A criança tem sido assídua à escola;
- A avó materna da criança declarou a sua disponibilidade de apoiar a neta e a filha em Inglaterra. Informou que, durante a semana, cuida da filha mais nova de BB, dada a proximidade geográfica da escola, verbalizando disponibilidade para cuidar da AA, caso se mostre necessário;
- O progenitor encontra-se a ser acompanhado pelo CRI, apesar de verbalizar a desnecessidade de tal apoio;
- O progenitor integrou a empresa A..., Unipessoal, L.da a 27 de setembro de 2024;
- O progenitor revelou incoerência no discurso: por um lado, verbaliza que não trabalha a tempo inteiro para poder apoiar a mãe (doente renal com três sessões semanais de hemodiálise), por outro acredita que tem condições para cuidar da filha, com a ajuda dos pais;
- Aquando da visita domiciliária, a Sr.ª Técnica Gestora constatou que a habitação do progenitor reunia a devida organização, sendo notório um intenso odor a tabaco;
- A tia materna, BB e o seu companheiro CC mantêm a sua disponibilidade para cuidarem da
sobrinha;
- Os tios maternos residem em casa com condições de habitabilidade, organização e conforto. Trata-se de uma moradia térrea constituída por dois quartos, um do casal e outro das filhas (dormindo em beliches), uma cozinha, uma sala, uma casa de banho e um quintal, com uma casota para dois canídeos;
- Em termos profissionais, a tia materna exerce a atividade de motorista de transporte de crianças portadoras de deficiência e debilidade;
- O tio materno encontra-se reformado por invalidez;
- O casal tem duas filhas de 10 e 11 anos de idade, que frequentam a escola;
- Caso a AA lhes seja confiada, os tios maternos planeiam recorrer a serviços de apoio a crianças que não tenham inglês nativo;
- Os tios maternos manifestaram disponibilidade para manter contactos da AA com o progenitor.
Já com a menor a viver em Inglaterra, em 13/01/2025 as pessoas que tinham a seu cargo a menor vieram informar os autos que suspeitavam que a menor podia ter sido vítima de abusos sexuais em Portugal.
Em 27/02/2025, as mesmas pessoas vieram informar de problemas de saúde da menor, alegando que necessitava de acompanhamento e ainda que «o visto de permanência da AA no Reino Unido termina a 15/04/2025, e que precisamos de fazer o pedido brevemente para poder ser aprovado com base de uma nova sentença, a autorização seja decretada. Se o pedido não for efetuado dentro de 4 semanas a AA poderá correr o risco de ser deportada visto o Reino Unido já não pertencer a comunidade europeia.».
A pedido do tribunal, solicitou-se à técnica gestora que averiguasse se era possível aplicar o regime de apadrinhamento civil.
Em 06/03/2025, é apresentada informação social (que não é ainda a resposta ao anterior despacho), com o seguinte parecer:
«Dada a informação recente dos tios e a sua posição quanto à AA já constantes nos autos, somos a propor alteração da medida de promoção e proteção.
Porém, a situação familiar da família de origem não revelou uma evolução positiva que implique a proposta de reunificação familiar.
Assim, consideramos que os pressupostos que levaram à aplicação de uma medida de promoção e proteção não foram ultrapassados, pelo que somos a propor a substituição da medida aplicada pela de “Acolhimento Familiar”.
Por outro lado, dada a posição dos pais quanto à necessidade de intervenção do sistema de promoção e proteção, somos a propor a alteração da medida de forma urgente e cautelar.».
. Em contacto com a equipa de gestão de vagas de acolhimento familiar foi possível apurar a existência de uma família de acolhimento para receber, de imediato, a menor;
. a única forma, neste momento, de garantir a sua segurança e o seu equilíbrio emocional, será a alteração da medida de “apoio junto de outro familiar” para a medida de Acolhimento Familiar, de forma cautelar e urgente;
. a situação descrita nos relatórios sociais juntos aos autos é, objetivamente de perigo sério, grave e eminente para a saúde, física e psíquica da menor, situação integradora da previsão do artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, alínea f) da LPCJP;
. a intervenção protetiva do Estado é urgente, havendo que aplicar medida cautelar que afaste os perigos em que a criança se encontra.
Promove assim que se aplique medida provisória e urgente alterando-se a medida de apoio junto de outro familiar para a medida de acolhimento Familiar, ao abrigo do disposto nos artigos 35.º, n.º 1, al. e), 37.º, 91.º e 92.º, todos da LPCJP.
Promove ainda que a Técnica Gestora do Processo diligencie pelo regresso imediato da menor a Portugal e integração com o máximo de brevidade na família de acolhimento.
Em 11/03/2025, é apresentada informação social (em resposta ao pedido de possibilidade de aplicação do regime de apadrinhamento civil), onde se menciona que:
«Dadas as preocupações dos tios quanto à estabilidade emocional e sucesso académico das filhas, e a posição dos mesmos quanto à manutenção da disponibilidade enquanto alternativa, consideramos que a aplicação do instituto jurídico do apadrinhamento civil a favor da AA não irá ao encontro do seu superior interesse.
Assim, mantemos o nosso parecer de alteração urgente da medida aplicada pela a de “Acolhimento Familiar”, assinalando a existência de vaga imediata para tal.».
Em 12/03/2025, é proferida a seguinte decisão, ora sob recurso:
«Por despacho de 12 de novembro de 2024, foi aplicada, a favor da criança AA, nascida a ../../2016, a medida cautelar urgente de apoio junto de outro familiar, designadamente dos tios maternos BB e CC, de harmonia com o disposto nos arts. 35.º, n.º 1, alínea b), 37.º, n.º 1 e 92.º, todos da LPCJP.
Vem, agora, a Digna Magistrada do Ministério Público requerer a alteração da medida aplicada para acolhimento familiar (ref. 137606794).
Cumpre apreciar e decidir.
Do teor do relatório com a ref. 17430837 e das mensagens de correio eletrónico remetidas aos autos pelos tios maternos, resulta existirem vários constrangimentos burocráticos à permanência da AA no Reino Unido. Por outro lado, atenta a perturbação que a presença da AA tem provocado no núcleo familiar dos tios, parece já não existir vontade destes em continuarem a acolher a jovem, sugerindo o seu regresso a Portugal e confiança ao avô paterno.
Por outro lado, a AA não pretende continuar no Reino Unido, ao cuidado dos tios, revelando dificuldades de adaptação ao país e ao novo agregado familiar. Considera, assim, a Sr.ª Técnica Gestora que a integração da AA no agregado familiar dos tios não se mostra positiva. Por outro lado, os pais continuam a não reunir condições para a receber, mantendo-se as fragilidades apontadas, o que inviabiliza a reunificação familiar.
Em contacto com a equipa de gestão de vagas de acolhimento familiar, a Sr.ª Técnica Gestora apurou a existência de uma família de acolhimento para receber, de imediato, a AA.
Ora, da factualidade “supra” expendida, conclui-se que a jovem AA se encontra numa situação de perigo, grave e iminente, a que apenas o acolhimento familiar poderá obviar.
Nestes termos, sufragando-se os fundamentos da promoção que antecede (ref. 137606794), determina-se, ao abrigo do disposto nos artigos 37.º, n.º 1 e 35.º, n.º 1, alínea e), 91.º e 92.º, todos da LPCJP, a aplicação provisória, cautelar e urgente da medida de acolhimento familiar da jovem AA, ficando aos cuidados da família indicada pela Segurança Social, pelo período de 3 (três) meses.
Solicita-se à Sr.ª Técnica Gestora que diligencie pelo regresso imediato da AA a Portugal e a sua integração, com a máxima brevidade, na família de acolhimento.
«1.ª) A decisão ora posta em crise, plasmada no douto despacho de fls. (ref.ª 137658087), datado de 12-03-2025, teve por base o teor do relatório (ref.ª 17430837) e as alegadas mensagens de correio eletrónico remetidas aos autos pelos tios maternos da menor, BB e CC, de onde resulta existirem vários constrangimentos burocráticos à permanência da menor no Reino Unido e por outro lado, a perturbação que a presença desta tem provocado no núcleo familiar dos tios, os quais já não têm vontade em continuar a acolher a sobrinha, sugerindo o seu regresso a Portugal e a confiança da mesma ao avô paterno;
2.ª) O Recorrente não foi notificado do teor do relatório (ref.ª 17430837) e bem assim, do conteúdo das alegadas mensagens de correio eletrónico remetidas aos autos pelos tios maternos da menor, BB e CC, únicos elementos em que se estriba o douto despacho posto em crise, com vista ao exercício do contraditório, antes da sua prolação;
3.ª) Dispõe o n.º 1, do art. 85.º da LPCJP, que os pais, o representante legal e as pessoas que tenham a guarda de facto da criança ou do jovem são obrigatoriamente ouvidos sobre a situação que originou a intervenção e relativamente à aplicação, revisão ou cessação de medidas de promoção e proteção, normativo que foi desconsiderado nos autos e na decisão proferida;
4.ª) Deste modo, foi coartado ao Recorrente, de forma flagrante, a possibilidade deste se pronunciar, querendo, quantos aos factos constantes do relatório (ref.ª 17430837) e quanto ao conteúdo das alegadas mensagens de correio eletrónico remetidas aos autos pelos tios maternos da menor, BB e CC;
5.ª) É entendimento unânime da jurisprudência que no âmbito dos processos de promoção e proteção de crianças e jovens em risco há a violação do princípio do contraditório, e concretamente do art. 85.º LPCJP, quando é tomada medida de promoção e proteção sem a audição prévia dos progenitores da criança (neste sentido, para além de outros, veja-se douto Ac. do TRE de 05-12-2013, proferido no processo n.º 3501/06.3TBPTM-L.E1);
6.ª) A ausência do cumprimento deste imperativo legal, só se justificaria se fosse alegada e fundamentada uma situação de urgência incompatível com a audição do Recorrente, situação que não se verifica, nem tal necessidade de preterição foi sequer fundamentada pelo Tribunal “a quo”;
7.ª) Neste sentido, veja-se o sumariado no douto Ac. do TRP, de 21-03-2024 (proc. n.º 999/13.7TMPRT-E.P1): “III- No processo de promoção e proteção, especificamente, sendo um processo de jurisdição voluntária, aplica-se igualmente o princípio do contraditório, expressamente previsto no art. 85.º da LPCJP, sendo uma das manifestações desse princípio, em processo de promoção e proteção, a audição obrigatória, impondo-se, assim, que antes de decidir, o juiz a quo tivesse ouvido a mãe dos menores e até os próprios menores. IV- Tendo a decisão recorrida sido proferida, a promoção do Ministério Público, sem ter sido dada qualquer possibilidade à apelante de se pronunciar, e não sendo mencionada qualquer impossibilidade ou dificuldade de audição prévia da progenitora, nem qualquer situação de urgência incompatível com tal prévia audição, foi omitido um ato que a lei prescreve, o qual se afigura suscetível de influir no exame e decisão da questão a decidir nos autos, pelo que se impõe declarar nula a decisão recorrida.”;
8.ª) Deverá assim ser declarada a nulidade da decisão proferida no douto despacho de fls. (ref.ª 137658087), datado de 12-03-2025, por violação do princípio do contraditório, princípio ínsito no art. 85.º LPCJP e por violação, ainda, do princípio do processo justo e equitativo, princípio ínsito no art. 20.º da CRP;
9.ª) O Tribunal “a quo” não tomou, salvo o devido respeito, que é muito, por outro entendimento, conhecimento, como se impunha, da globalidade dos factos que, crê-se, ao ter tomado, sustentariam uma decisão bem diferente daquela que foi proferida;
10.ª) E assim foi na decisão proferida em Novembro último e lamentavelmente voltou agora a suceder na decisão de que se recorre;
11.ª) Decisão que foi proferida sem que o Mmo. Juiz “a quo” se pronunciasse quanto à junção aos autos das cópias dos documentos que foram escritos, pela mão da progenitora, e dos quais resulta que uma boa parte dos factos em que se estribou a decisão quanto à medida de apoio provisória, cautelar e urgente, junto de outro familiar, da menor, proferida em Novembro último, não correspondem (ou sequer correspondiam) à realidade (conforme requerimento (ref.ª 50644318), junto aos autos em 02-12-2024);
12.ª) E bem assim, sem a produção da prova complementar requerida a fls. destes autos (audição de duas testemunhas) e sem a audição, de novo, da progenitora, que, no mínimo, se impunha;
13.ª) Na verdade, o Tribunal “a quo”, socorrendo-se, exclusivamente, da informação do relatório com a ref.ª 17430837, cujo teor, inclusive, se desconhece, pois, dele o Recorrente nunca foi notificado, e bem assim, do teor de alegadas mensagens de correio eletrónico remetidas aos autos pelos tios maternos da menor, BB e CC - precisamente os mesmos parentes da menor que há poucos meses atrás disseram e defenderam coisa diversa no processo, e acabam por, de certo modo, precipitar tudo o que lhe está agora a acontecer - profere decisão que desconsidera de novo a estabilidade emocional e o superior interesse da menor;
14.ª) E continua, inexplicavelmente, a desconsiderar a possibilidade de a menor poder ser confiada aos cuidados dos avós paternos, pessoas com quem a menor sempre conviveu e tem seguramente afeto, os quais se mostraram e mostram disponíveis para a receber, como sugerido pelo Recorrente, pela progenitora e agora até mesmo por aqueles tios maternos;
15.ª) Avós que sempre prestaram, e estão disponíveis para prestar, a sua atenção, o seu carinho e a sua educação à menor;
16.ª) E que sempre foram pessoas muito presentes na vida da neta (com convivência diária com a mesma), constituindo sempre um grande apoio nas rotinas e quotidiano desta;
17.ª) Pessoas detentoras de diverso património, mais que uma habitação, uma destas, inclusive, com um quarto individual e com todo o mobiliário adequado à faixa etária da menor;
18.ª) Pessoas estabilizadas financeiramente, sem quaisquer necessidades, seja de que natureza for e com toda a disponibilidade para prestarem a sua atenção e zelarem pela neta;
19.ª) Pessoas de referência para a menor, tendo uma excelente relação com a mesma e esta com aqueles;
20.ª) É certo que, a avó paterna padece de patologias, patologias essas que condicionam a mobilidade da mesma, contudo, não ao ponto de não conseguir tratar das lides domésticas da casa ou de poder dar o apoio que se mostre necessário à sua neta;
21.ª) Já o avô paterno felizmente não sofre de qualquer problema de saúde que condicione a mobilidade do mesmo, e, por conseguinte, que o impeça de auxiliar, de cuidar e de educar a menor ou de tratar e cuidar da mesma;
22.ª) Avós que, repete-se, se mostraram e se mostram totalmente disponíveis para, se assim o entendesse o Tribunal, acolher a menor;
23.ª) Mais, a menor, ao contrário do que agora acontece, encontrava-se bem integrada no seio familiar em que vivia;
24.ª) Estava, emocionalmente, estável;
25.ª) Estava bem inserida no meio escolar que frequentava, tinha o seu grupo de amigos (sendo que a escola que frequentava é uma das melhores escolas do Agrupamento de Escolas ...);
26.ª) A menor apresentava-se como uma criança feliz e bem-disposta;
27.ª) A forma como decorreu a aplicação da anterior medida de “Apoio junto de outro Familiar”, neste caso a favor da tia BB, foi uma decisão claramente precipitada, como agora é por demais evidente, tendo a menor sido “arrancada” do seu meio familiar no qual estava perfeitamente integrada e da escola que frequentava e onde tinha o seu grupo de amigos, com base num parecer técnico que, como se veio a demonstrar, assentou em factos inexatos e desconsiderou a estabilidade emocional e o superior interesse da menor;
28.ª) Durante tal período, em que a menor ficou aos cuidados dos tios maternos, a mesma perdeu o contacto com familiares (pai e avós paternos), colegas de escola e professora, que eram, seguramente, já referências para a estabilidade emocional da mesma;
29.ª) Isto com todos os traumas e problemas psicológicos que, seguramente, poderão advir para a menor;
30.ª) Permitir que a mesma seja agora entregue a uma família de acolhimento, é mais do mesmo, é não assegurar a sua estabilidade emocional e o superior interesse da mesma;
31.ª) A Constituição da República Portuguesa protege a família e consagra o direito da criança poder desenvolver-se dentro desta, sendo uma das obrigações fundamentais do Estado e da sociedade em geral (ut art. 68.º da CRP);
32.ª) Tal direito é, também, um dos direitos internacionais da Criança;
33.ª) Como se refere no douto Ac. do TRL, de 23-04-2009 (processo n.º 11162.03.5TMSNT.A.L1-1): “o interesse da criança ou jovem, deve ser realizado na medida do possível no seio do seu grupo familiar. A aplicação de medidas que provoquem o afastamento da criança ou do jovem da família e, consequente institucionalização, deve ser o último recurso a aplicar-se, notoriamente, pelo seu impacto e repercussão no desenvolvimento são dos menores.”;
34.ª) Ora, não estando evidenciados nos autos, como não estão, factos que demonstrem a incapacidade dos avós paternos e particularmente do avô paterno em garantir o bem-estar da menor, nem que este a exponha ao perigo, à insegurança, afete a sua saúde, contribua para uma distorção na sua formação moral e escolar, deve a medida de promoção e proteção posta em crise ser alterada no sentido de a menor ser confiada aos cuidados do avô paterno;
35.ª) A decisão ora posta em crise, plasmada no douto despacho de fls. (ref.ª 137658087), datado de 12-03-2025, viola o disposto nos art.s 85.º da LPCJP, e 20.º e 68.º da CRP.».
«1. Não se conformando com a aplicação provisória, cautelar e urgente da medida de acolhimento familiar da jovem AA, ficando aos cuidados da família indicada pela Segurança Social, pelo período de 3 (três) meses, veio o progenitor/recorrente dela interpor recurso.
2. Das doutas motivações do recurso apresentado, facilmente se conclui que as questões que fundamentam a discordância do progenitor/recorrente relativamente à decisão recorrida, se prendem com alegada violação do principio do contraditório e erro de julgamento na aplicação da medida, por violação do principio do superior interesse da criança.
3. Entendemos que a decisão recorrida não merece cesura.
4. Antes de mais, importa relembrar que, no dia 12.11.2024, foi aplicada a medida cautelar de Apoio junto de outro familiar – designadamente dos tios maternos BB e CC – cfr. referência 135646004.
1. Tal decisão, concretamente os factos e respetivos fundamentos, não mereceu qualquer cesura/recurso, por parte dos progenitores
2. Não obstante a aplicação de tal medida, a mesma foi agora alterada, também de forma urgente e cautelar – para acolhimento familiar - e é desta decisão, que o progenitor recorre.
3. Tal alteração, atenta a natureza urgente, não se compadece com a audição dos progenitores.
4. O artigo 37º da LPCJP prevê a tomada de decisão cautelar, sem prévio cumprimento do contraditório, designadamente do disposto no artigo 85º da mesma lei.
5. O princípio do contraditório e o cumprimento do artigo 85º, pode deixar de ser observado perante a urgência da necessidade de adoção/tomada de uma medida cautelar, o que se impunha no caso concreto.
6. Por outro lado, a presente decisão cautelar assenta nos factos e fundamentos da anterior decisão, proferida a 12.11.2024, acrescidos dos novos elementos, designadamente: da vontade da criança em regressar a território nacional, dos constrangimentos burocráticos à sua permanência no Reino Unido e, por outro lado, da perturbação que a presença da AA tem provocado no agregado familiar dos tios, parecendo inexistir, por parte destes, vontade de manter a jovem aos seus cuidados.
7. Acresce que os tios concordaram com a alteração da medida, concretamente para acolhimento familiar.
8. Tendo em conta os factos e os fundamentos que determinaram a alteração e a consequente aplicação de medida cautelar, outra não pode ser a conclusão que o tribunal teve sempre presente, na escolha da medida aplicada, os direitos e interesses da AA.
9. O Tribunal aplicou a medida que se mostrou, in casu, capaz de remover a situação de perigo em que a AA se encontrava e que, por isso, salvaguardava o seu Superior Interesse.
10. Na verdade, inexiste, por parte dos progenitores, até à data, qualquer compromisso de mudança relativamente aos consumos de estupefacientes e comportamentos de violência, não se mostrando os avós paternos, alternativa para a AA.
11. Refira-se, por um lado, as questões de saúde, a proximidade com os pais/perigos que levaram ao seu afastamento – factos evidenciados pelos próprios tios.
12. Trata-se de uma medida cautelar, impondo-se que os progenitores alterem comportamentos, concretamente aceitem o acompanhamento do CRI e a intervenção da Técnica Gestora do Processo, de forma a que a AA possa integrar, em segurança, o agregado familiar.
13. Não se mostram assim, no nosso modesto entendimento, violados quaisquer princípios, concretamente os apontados: principio do contraditório ou o superior interesse da criança.».
. nulidade da decisão por violação de contraditório prévio à sua prolação;
. possibilidade de análise de prova que determine a entrega da criança aos avós paternos.
2.1) De facto.
Dá-se por reproduzido o teor do relatório que antecede.
1). Violação do contraditório.
O progenitor da menor AA veio recorrer da decisão de 12/03/2025 que determinou à mesma a aplicação provisória, cautelar e urgente da medida de acolhimento familiar, ficando aos cuidados da família indicada pela Segurança Social, pelo período de três meses.
Como literalmente consta da decisão, está em causa a aplicação de uma medida cautelar, conforme previsto no artigo 37.º, n.º 1, da Lei n.º 147/99, de 01/09 (Lei de proteção de crianças e jovens em perigo – L. P. C. J. P. -) que dispõe que:
A título cautelar, o tribunal pode aplicar as medidas previstas nas alíneas a) a f) do n.º 1 do artigo 35.º, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 92.º, ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente.
O tribunal, entendendo que se estava ao abrigo de uma situação de urgência, aplicou a medida prevista no artigo 35.º, n.º 1, e), da mesma Lei (à qual nos referiremos sempre que não se fizer menção de diploma legal), a saber, acolhimento familiar.
E, efetivamente, por força do disposto nos artigos 91.º e 92.º, estando em causa uma situação de urgência, pode o tribunal, quando exista perigo atual ou iminente para a vida ou de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou jovem, a requerimento do Ministério Público, quando lhe sejam comunicadas tais situações, profere decisão provisória, que pode ser uma medida cautelar, como o prevê o citado artigo 37.º. Neste artigo prevê-se ainda, como já transcrito, a possibilidade de se aplicar uma medida cautelar enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente.
É certo que o cumprimento do contraditório nestes processos está expressamente vertido no artigo 4.º, alíneas i) e j), respetivamente:
. - Obrigatoriedade da informação - a criança e o jovem, os pais, o representante legal ou a pessoa que tenha a sua guarda de facto têm direito a ser informados dos seus direitos, dos motivos que determinaram a intervenção e da forma como esta se processa;
. - Audição obrigatória e participação - a criança e o jovem, em separado ou na companhia dos pais ou de pessoa por si escolhida, bem como os pais, representante legal ou pessoa que tenha a sua guarda de facto, têm direito a ser ouvidos e a participar nos atos e na definição da medida de promoção dos direitos e de proteção.
Mas também é certo que o artigo 85.º, n.º 2, prevê a possibilidade de não ocorrer a prévia audição dos representantes legais, nos seguintes termos:
1 - Os pais, o representante legal e as pessoas que tenham a guarda de facto da criança ou do jovem são obrigatoriamente ouvidos sobre a situação que originou a intervenção e relativamente à aplicação, revisão ou cessação de medidas de promoção e proteção.
2 - Ressalvam-se do disposto no número anterior as situações de ausência, mesmo que de facto, por impossibilidade de contacto devida a desconhecimento do paradeiro, ou a outra causa de impossibilidade, e os de inibição do exercício das responsabilidades parentais.
Neste artigo não está expressamente prevista a situação de se estar perante um circunstancialismo urgente que possa fazer com que se não se cumpra o contraditório prévio à adoção de uma medida, no caso cautelar.
Mas, quando se aplica uma medida cautelar, está subjacente à mesma uma situação de urgência, o que faz com que possam ser, ainda que momentaneamente, não cumpridos alguns formalismos de modo a que não se agrave a situação de risco em que a criança se encontra. Nesses casos cautelares, a primazia da atuação do tribunal é direcionada à proteção rápida dos interesses da criança, pelo que faz sentido que não se cumpra algum formalismo de imediato de modo a salvaguardar a integridade da mesma criança.
No caso concreto, a decisão sustenta-se numa situação de emergência, a qual, pelo que resulta do contexto global da situação, efetivamente aparentava existir pois:
. a criança encontrava-se colocada num país estrangeiro;
. é dada notícia pelos familiares (tios) com quem a criança residia que existe relacionamento difícil com filhas do casal e que está a prejudicar o desenvolvimento das mesmas, que os pais consideram exemplar e de acordo com as regras de educação inglesa;
. a criança manifesta que pretende regressar porque não quer ser castigada, sendo que os tios mencionam que é muito impossível ensinar uma criança que não tem interesse em aprender uma boa educação, esta criança tem 8 anos de vida e já traz todos os maus hábitos, já tentamos de tudo, castigos de ficar sem brincar, sem passeios, sem tablet e nada, não aprende nada e na nossa modesta opinião só nos está a fazer muito mal à nossa família;
. foi referido pelos mencionados tios que existiam problemas legais de manutenção da menor em Inglaterra por exigência de visto.
Ou seja, temos uma criança fora do seu país, a viver junto de familiares que manifestam desagrado com a sua convivência, em especial com as suas filhas.
Manifestam que a imposição de castigos nada resolvem e colocam ainda a possibilidade de poder ocorrer permanência ilegal nesse país, não tanto numa visão de procura de solução mas antes de culpabilização do tribunal por essa possibilidade. E, por fim, demonstrativo de que a convivência já não é, no mínimo, desejada pelos tios da criança, é a de que não manifestaram qualquer reserva ao seu regresso a Portugal.
Trata-se de uma situação que teria de ser solucionada de modo rápido não só para evitar a maior degradação da relação entre criança e tios, como também para evitar problemas legais com a sua permanência na Inglaterra.
Por isso se recorreu à medida cautelar e, por força da urgência, permite-se que não se cumpra, previamente à atuação do tribunal, o contraditório relativamente aos progenitores (representantes legais), sendo diferido para momento posterior à adoção da medida.
Não faria sentido que a situação fosse urgente mas que se tivesse de aguardar que os progenitores se pronunciassem sobre a medida cautelar a ser aplicada; com essa dilação, poderia agravar-se a situação da criança (por exemplo, algum desentendimento mais sério com as filhas dos tios, ocorrência de algum tipo de comunicação visando uma suposta permanência ilegal).
Foi este o sentido da decisão que o recorrente cita no seu recurso – Ac. da R. P. de 21/03/2024, processo n.º 999/13.7MPRT.-E.P1, desta mesma secção - Contudo, tal como no processo civil existem casos, como alguns procedimentos cautelares, em que se dispensa a pronúncia prévia da parte, a qual pode sempre reagir após tomada a decisão, vem-se entendendo que também no processo de promoção e proteção pode, em determinados casos, ser tomada uma decisão sem que seja previamente ouvido o progenitor, representante ou quem tenha a guarda da criança ou jovem, nomeadamente no caso das medidas cautelares e de procedimentos judiciais urgentes, previstos nos arts. 37.º e 92.º da LPCJP. Neste sentido, decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 09-02-2010, proferido no processo nº 2609/09.8TBVFX-A.L1-1, citado pelo Ministério Público na sua resposta, e disponível no site da dgsi, onde se diz que “numa situação de emergência, o decretamento de uma medida provisória de promoção e proteção, não depende da prévia observância do contraditório, o qual, à semelhança do que por vezes ocorre com os procedimentos cautelares previstos no CPC, é assegurado à posteriori, ou seja, após a notificação da decisão tomada, por via de recurso ou formulação de requerimento de revisão/cessação da medida provisória tomada (…)”.».[1]
Nos autos, foi assim devidamente cumprido o contraditório posteriormente à prolação da decisão – em 12/03/2025 -, notificada no dia seguinte ao mandatário dos progenitores -.
Ora, a não notificação dos meios probatórios que foram juntos aos autos antes da decisão recorrida ser proferida e que o recorrente alega como o sustento da nulidade daquela decisão acaba assim por não ter potencialidade para a invalidar.
Na verdade, se não se tivesse decidido no âmbito de uma medida cautelar, a argumentação do recorrente poderia ser procedente pois, nem teria sido ouvido antes de ser proferida a decisão nem tinha tido oportunidade de se pronunciar sobre a matéria factual que a poderia sustentar.
Sendo proferida uma decisão cautelar, tendo sido entendido que, quando é emitida, o tinha de ser de modo bastante célere, o que sucede é que a decisão e o que a sustenta tem de ser analisada primeiro pelo tribunal e, depois de tomada, é que as pessoas interessadas se poderão debruçar sobre o decidido, incluindo os seus fundamentos e, naturalmente, a prova que sustenta a mesma decisão.
De outro modo, como dissemos, poderia fazer-se perigar a situação da criança, o que sucederia não só se o recorrente fosse previamente notificado para se pronunciar sobre a eventual medida que se teria de aplicar, como também poderia ocorrer se tivesse de ser notificado previamente sobre a prova que existia nos autos e que fundava essa possibilidade de decisão – o tempo para uma decisão útil iria igualmente diminuir, porventura esgotando-se -.
Deste modo, não houve violação do princípio do contraditório ao ter sido cumprido após a prolação da decisão, não sendo assim esta nula, no caso, por excesso de pronúncia (teria sido proferida com a parte a ser surpreendida com a mesma – artigo 615.º, n.º 1, d), parte final, do C. P. C. -.
O recorrente tece doutas considerações sobre a diferente medida que o tribunal deveria ter adotado, como seja a de não ter atentado que a menor deveria ter sido confiada aos avós paternos. Menciona, a favor dessa conclusão, as condições pessoais dos mesmos, a excelente relação que tinham com a neta e a inteira disponibilidade dos mesmos para a acolherem.
Sucede que, por um lado, neste recurso, inexistem factos que permitam concluir que afinal a menor deveria ter sido encaminhada para os cuidados dos avós paternos pois nem o despacho contém factos ou até argumentação em relação a essa questão nem os recorrentes suscitam qualquer tipo de alteração fáctica do decidido.
Por outro lado, essa carência de factos encontra explicação na circunstância de estar em causa uma decisão urgente, em que o era imperioso decidir era a retirada da menor dos cuidados dos tios e da permanência num país estrangeiro. Ora, já tendo sido decidido em 12/11/2024 (decisão provisória) que os avós paternos não era a melhor solução para a criança (atento o estado de saúde débil da avó), numa situação de emergência, não havia que estar a analisar factualidade que já tinha sido anteriormente ponderada e que já tinha sido objeto de avaliação negativa.
Daí que, proferida a decisão provisória sob recurso, efetuado o contraditório, estabilizada a situação da criança, poderão agora analisar-se os argumentos do recorrente pois os autos têm de prosseguir e, se for caso disso, com realização de debate judicial e posterior decisão – artigos 114.º e 121.º -, com natural prévia ponderação dos factos que tenham sido carreados para o processo, mormente a eventual capacidade dos avós paternos em cuidarem da neta (o que, na decisão de 12/11/2024, já foi entendido que não existia, ainda que a título provisório).
Será pela instrução dos autos que se poderá vir a concluir pelo deferimento ou não da pretensão do recorrente, a título definitivo ou pela alteração de medida provisória, atendendo por exemplo às consequências (positivas ou negativas) que teve na menor a vivência com os tios e em Inglaterra e a atual adaptação à nova realidade; neste momento, não é possível concluir como pretende o progenitor neste recurso pois a decisão e os seus pressupostos não contêm informação minimamente suficiente para se alterar aquela medida, confiando desde já a criança aos avós paternos.
Conclui-se assim pela improcedência do recurso.
Pelo exposto, julga-se totalmente improcedente o presente recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
Sem custas – artigo 4.º, n.º 2, f), do R. C. P. -.
Registe e notifique.
Porto, 2025/06/26.
João Venade.
Ana Márcia Vieira.
Carlos Cunha Carvalho.
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[1] Também Ac. R. E. de 12/09/2024, processo n.º 1958/23.7T8EVR-D.E1, www.dgsi.pt.