NEGÓCIO FORMAL
INTERPRETAÇÃO
PRESTAÇÕES VINCENDAS
VALOR COMERCIAL
Sumário

I - Quando estejam em causa negócios formais, não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 238º, n.º 1, do Código Civil).
II - Todavia, esse sentido pode valer “se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade” (artigo 238º, n.º 2, do Código Civil).
III - Ora, um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário não poderia atribuir ao segmento “prestações vincendas”, aposto na cláusula 5ª, alínea b), o sentido atribuído pelo réu (capital e juros contratuais incluídos) por tal não corresponder ao equilíbrio negocial desejado.
IV- Atender à data da rutura para se encontrar o valor comercial do imóvel e não atender ao valor do mútuo igualmente nessa data conduziria com grande probabilidade a um desequilíbrio de prestações.
(Sumário elaborado pela Relatora)

Texto Integral

Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
AA veio instaurar a presente ação declarativa comum contra BB, requerendo a condenação do réu “no pagamento do valor correspondente a metade da diferença entre o valor de mercado da fração autónoma designada pela letra “D”, descrita na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º 4043 da freguesia de São Sebastião da Pedreira e inscrita na matriz predial urbana da freguesia de Campolide, concelho de Lisboa, sob o artigo 345º à data da cessação do Memorando de Entendimento celebrado entre as partes, de acordo com Avaliação por perito e aceite pelo Autor e o valor do capital mutuado em dívida, acrescido do pagamento da quantia de € 1.661,10 (mil seiscentos e sessenta e um euro e dez cêntimos), correspondente à diferença entre o valor que o autor pagou ao réu no período compreendido entre março e agosto de 2020 (2.029,80€) e o valor que deveria ter pago a este título de acordo com o estabelecido no Memorando de Entendimento (368,70€), ou caso assim não se entenda, ser o réu condenado a restituir ao autor a quantia de 30.691,57€ (trinta mil seiscentos e noventa e um euros e cinquenta e sete cêntimos) ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa”.
Alegou para o efeito, em síntese, que:
Em meados de maio de 2019, na perspectiva e expetactiva de uma vida em conjunto, autor e réu decidiram adquirir habitação própria permanente, para o que necessitavam de recorrer a financiamento bancário; o banco “Santander Totta, S. A.” não aprovou o mesmo devido à taxa de esforço do autor, mas aceitou conceder crédito ao réu no montante de € 183.430,00, desde que este interviesse sozinho no negócio; face às condições, autor e réu concordaram que apenas este constasse como outorgante do contrato de mútuo bancário e do correspondente contrato de compra e venda de imóvel, mas acordaram entre si que os encargos inerentes aos dois contratos seriam suportados por ambos, em partes iguais e que, findo o contrato de mútuo, regularizariam a propriedade do imóvel em termos registrais, através de escritura de doação de 50% do imóvel a favor do autor; com o propósito de acautelar a posição do autor em caso de rutura do casal, autor e réu assinaram o documento particular autenticado denominado “Memorando de Entendimento; neste pressuposto, o réu celebrou o contrato promessa de compra e venda em meados de julho de 2019 e o contrato de compra e venda com mútuo e hipoteca no final de agosto de 2019, tendo o autor procedido ao pagamento ao réu de 50% do valor do sinal contratado - € 12.500,00; € 10.000,00 referente a 50% do remanescente do preço do imóvel (€ 228.000,00) deduzido do sinal e da quantia e, ainda, de 50% das despesas com a celebração da escritura pública e impostos (€ 4.500,00); autor e réu mudaram-se para o imóvel em setembro de 2019, onde fixaram a residência permanente do casal e até agosto de 2020, o autor cumpriu pontualmente a sua obrigação de proceder ao pagamento ao réu de 50% das prestações mensais do contrato de mútuo celebrado entre o réu e o banco “Santander Totta, S. A.”, no valor de € 338,30;ou seja, até agosto de 2020, no cumprimento do referido “Memorando de Entendimento”, o autor pagou ao réu a quantia global de € 30.691,59.
Sucede que autor e réu findaram a sua relação em julho de 2020, tendo o autor saído do imóvel em 25/08/2020 e em 21/08/2020, o autor comunicou ao réu, igualmente em cumprimento do estabelecido no “Memorando de Entendimento”, que pretendia fazer cessar os efeitos deste e solicitava ao réu que informasse se pretendia manter a titularidade do imóvel ou proceder à sua venda; o réu informou o autor que pretendia manter a titularidade do imóvel e que não era devida qualquer quantia ao autor a título de comparticipação na aquisição do imóvel, justificando a sua posição com uma interpretação da cláusula 5ª, alínea b) do ponto III do “Memorando de Entendimento” que não corresponde à vontade real de ambos os declarantes; defende o autor que, com a dita cláusula, pretenderam as partes estabelecer que, em caso de cessação do “Memorando de Entendimento” o autor teria direito a 50% do valor de mercado do imóvel à data da cessação, deduzido o valor do capital mutuado por liquidar, ou seja, excluindo os juros contratuais vincendos; ao recusar compensar o autor nos termos da referida cláusula, ou devolver o montante recebido do autor até agosto de 2020 (€ 30.691,59), o réu não descura que adquire parcialmente um imóvel à sua custa, dessa forma enriquecendo ilegitimamente; acresce que, entre março e agosto de 2020, o réu beneficiou de moratória no pagamento do crédito à habitação, em virtude das medidas excepcionais de proteção dos créditos das famílias e empresas, por força dos impactos económicos e financeiros decorrentes da pandemia Covid 19, tendo pago ao banco “Santander Totta, S. A.” uma prestação mensal de apenas € 122,90. Assim, em lugar de ter pago ao réu a quantia de € 2.029,80 (6 x € 338,30), o autor deveria apenas ter pago a quantia de € 368,70 (€ 122,90: 2= € 61,45; € 6 x € 61,45 = € 368,70), pelo que o réu se locupletou da quantia de € 1.661,10 (€ 2.029,80 - €368,70 = € 1.661,10) à custa do autor, devendo ser condenado a restituir tal valor, sob pena de enriquecimento sem causa.
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Regularmente citado, o réu deduziu contestação, alegando em sua defesa, em resumo, que:
Foi o réu quem deu a conhecer ao autor a concessão da moratória pelo banco “Santander Totta, S. A.”, entre março e agosto de 2020, sendo que o autor fez questão de, não obstante, continuar a pagar ao réu a quantia mensal de € 338,30; foi o autor, através da sua Mandatária, e não o réu quem invocou que, à data de 26/08/2020, o imóvel tinha o valor comercial de € 240.000,00; o custo do total das obrigações contraídas pelo réu junto do banco “Santander Totta, S. A.” foi de € 250.124,55, muito superior ao valor comercial do imóvel indicado pelo autor; o “Memorando de Entendimento” deve ser cumprido, nos termos do artigo 406º, n.º 1, do Código Civil e nos exatos termos descritos na cláusula 5ª, alínea b), do ponto III, sendo que, à data da cessação dos efeitos do Memorando o valor correspondente à metade do valor comercial do imóvel era muito inferior ao valor correspondente à metade das prestações vincendas decorrentes do mútuo com hipoteca contraído pelo réu junto do banco “Santander Totta, S. A.”; o autor usou e fruiu o imóvel em discussão de forma onerosa e não gratuita.
Termina peticionando a improcedência da acção.
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Foi proferido um despacho em que se convidou o A., face ao disposto pelo artigo 297º, nº 3 do Código de Processo Civil a concretizar o valor do primeiro pedido por si formulado, em dez dias, devendo explicitar os seus cálculos.
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O A. veio responder esclarecendo que: O primeiro pedido do Autor corresponde à diferença entre o valor de mercado do bem à data da cessação do Memorando de Entendimento e o valor do capital mutuado ainda em divida nessa data, acrescido das quantias indevidamente recebidas; a dificuldade em concretizar o valor de tal pedido contende precisamente com o valor de mercado do bem à data da cessação do Memorando de entendimento, que ainda carece de ser avaliado por perito, e com o facto de o Autor não saber, com exatidão, qual o valor do capital em divida junto do Banco na referida data.
Ainda assim, para efeito de atribuir um valor ao pedido formulado em primeiro lugar no âmbito da presente acção, admite-se para estes efeitos que o valor comercial da fração correspondia, à data, pelo menos a 250.000,00 € (duzentos e cinquenta mil euros); sendo que, pelas contas do Autor – que não tem acesso aos registos bancários e, como tal, não pode garantir a exatidão de tal valor - que o capital mutuado ainda em divida, nessa data, era de 180.706,00 € (cento e oitenta mil, setecentos e seis euros) – Chega-se a este valor porquanto, entre setembro de 2019 e fevereiro de 2020 foi liquidado o montante mensal de capital de 454,00 € (454,00 € x 6 = 2.724,00 € | 183.430,00 € – 2.724,00 € = 180.706,00 €).
Assim e sem prejuízo de posterior e eventual necessidade do incidente de liquidação da sentença, o valor do primeiro pedido corresponde a 36.308,10 € (trinta e seis mil, trezentos e oito euros e dez cêntimos), que corresponde a metade da diferença entre o valor de mercado do bem e o valor do capital em divida à data da cessação do memorando de entendimento, acrescido do valor indevidamente recebido pelo Réu.
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Proferida Sentença na causa, foi o R. condenado no pagamento ao autor da quantia de € 29.406,69.
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Desta Sentença recorreu o R. formulando as seguintes Conclusões:
“A) É o presente recurso interposto da douta Sentença prolatada no âmbito dos autos supra à margem esquerda referenciados, datada de 15/11/2024 e pela qual se julgou a presente acção procedente, por provada, e, em consequência, condenou o R., ora Recorrente, no pagamento ao A., ora Recorrido, da quantia de 29.406,69 euros, bem como em custas (e unicamente!) a cargo daquele.
B) Tendo o valor judicialmente fixado para a presente acção se fundado e unicamente no peticionado pelo Recorrido sido de 36.308,10 euros e a condenação do Recorrente em 29.406,60 euros, a condenação e única deste em custas, traduz-se em violação da proporção a que se reporta o art.º 527º, nº. 2, do CPC, com inerente desigualdade de tratamento das partes.
C) O Recorrente, no âmbito da sua contestação e sob seus arts. 46 a 48, alegou e comprovou com documentos que até haviam sido juntos pelo Recorrido à sua p.i. como seus docs. 4 e 3 (tidos como “Memorando de Entendimento” e respectivo “Termo de Autenticação” e nos quais o Recorrido fundou a sua pretensão) que, entre Recorrente e Recorrido, se havia exarado, celebrado e feito autenticar tal “Memorando de Entendimento” no qual fizeram constar acordado entre si de que: “O custo total das obrigações mutuárias contraídas pelo R. junto do Santander Totta foi de 250.124,55 euros (v. ponto II, al. b), do Memorando de Entendimento)”.
D) Porventura, por manifesto lapso, na economia do tido por provado sob art. 14º da Sentença em impugnação, tal qual como aquele que se verifica quanto a atentar-se em d) em vez de e) quanto ao aí transcrito, não foi para o mesmo transcrito este acordado entre Recorrente e Recorrido e corroborado/autenticado perante entidade competente para o efeito.
E) Pelo que, roga o Recorrente por que seja levada para a matéria tida como provada esta mesma matéria e sob o mesmo art. 14º, passando este a ter o seguinte teor [e já com correcção de d) para e)]:
“I – Do entendimento (…)
e) Por considerarem os outorgantes que a aquisição do mencionado imóvel diz respeito a ambos, já que se trata da sua casa de habitação própria e permanente, estabelecem entre si o compromisso de procederem ao pagamento do preço na mesma proporção, ou seja 50% cada um, incluindo as despesas atinentes à aquisição da sobredita fracção, tudo de acordo com o estabelecido com contrato de Mútuo”
….
II – Do contrato de Mútuo

b) O montante total do crédito imputado ao outorgante BB (aqui, Recorrente) no contrato de Mútuo com Hipoteca celebrado com o Banco Santander, SA, correspondente à soma do montante total do crédito e do custo total do crédito, é de € 250.124,55 (duzentos e cinquenta mil cento e vinte e quatro euros e cinquenta e cinco cêntimos”
F) Tendo entre Recorrente e Recorrido sido acordado que a soma do montante total do crédito e do custo total do crédito daquele foi de 250.124,55 euros.
G) Ainda que se tenha em conta os montantes transferidos/entregues pelo Recorrido ao Recorrente na Sentença em impugnação e pelos quais este veio a ser condenado (em total de 29.406,69 euros).
H) Traduz-se isto em valor negativo contra o Recorrente de – 5.401,76 euros, tendo presente o valor comercial ou de mercado da fracção que veio a ser aferido em perícia oficiosamente determinada para o efeito e tido como provado, de 236.000,00 euros.
I) A Sentença em impugnação incorreu em erro de julgamento quanto à matéria de facto que aí teve como provada, bem como em erro de julgamento quanto à matéria de direito, aqui no tocante à menos adequada interpretação e aplicação dos normativos legais na mesma mencionados, bem como do disposto sob cláusula 5ª, als. a) e b), do “Memorando de Entendimento”, exarado, celebrado e confirmado notarialmente, violando-os.
J) E bem ainda de violação do disposto sob art. 406º, nº. 1, do Cód. Civil (“Pacta sunt servanda”).
K) Pelo que deve vir a ser substituída/revogada por decisão/deliberação deste alto Tribunal de Relação.
Colendos Juízes Desembargadores,
Vossas Excelências em provimento do presente recurso e substituição/revogação da decisão contida na Sentença em impugnação por decisão/deliberação deste alto Tribunal de Relação que venha a absolver e totalmente o Recorrente do peticionado nos presentes autos, farão, como habitualmente, devida aplicação da Lei e realizarão Justiça.”
*
Contra-alegou o A. Concluindo:
“a) O presente Recurso veio interposto da douta sentença que considerou totalmente procedente, por provada, a ação intentada pelo Recorrido, tendo condenado o Recorrente no pedido e em custas, com o que este último não se conforma.
I - Da condenação em custas:
b) Ao contrário do que o Recorrente alega, é incontroverso que a responsabilidade pelo pagamento dos encargos e das custas de parte assenta no critério do vencimento ou decaimento na causa, pois de acordo com o n.° 1 do art. 527° do CPC, apenas não havendo vencimento é que funciona o critério subsidiário do proveito;
c) E isto independentemente do valor processual que foi atribuído à ação, que não tem de corresponder necessariamente ao valor do pedido formulado.
d) Na verdade, o Recorrido venceu totalmente a causa (o pedido foi totalmente procedente), pelo que a responsabilidade pelas custas recai exclusivamente sobre o Recorrente.
e) Pelo que a pretensão do Recorrente em não pagar a totalidade das custas é infundada e infundamentada, uma vez que foi a parte com decaimento total na causa.
II – Da condenação no pedido:
f) Olvidando os factos que foram dados como provados sob os n.ºs 33º e 34º e, bem assim, toda a fundamentação da decisão, o Recorrente coloca em crise a douta sentença proferida tão só com base no teor da alínea b) da cláusula 5ª do Memorando de Entendimento celebrado entre as Partes;
g) Contudo, ficou assente e provado que tal disposição contratual não traduz o que foi a real vontade das Partes ao firmar tal declaração, sendo de rejeitar a interpretação literal pretendida pelo Recorrente.
h) Conforme entendeu o tribunal a quo, e de acordo com o art. 236.º do CC, a interpretação dos contratos deve ser feita com base no que um declaratário normal entenderia, ou seja, de forma razoável e de acordo com a vontade real das partes, que sempre prevalece sobre a redação utilizada.”
Termina entendendo que deve ser negado provimento ao presente recurso.
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Colhidos os vistos cumpre decidir.
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II. Questões a decidir:
Como resulta do disposto pelos artigos 5º; 635º, n.º 3 e 639º n.º 1 e n.º 3, todos do Código de Processo Civil (e é jurisprudência consolidada nos Tribunais Superiores) para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente.
Deste modo no caso concreto as questões a apreciar consistem em:
- Da reapreciação da matéria de facto;
- Da interpretação do memorando de entendimento;
- Da condenação em custas.
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III. Fundamentação de Facto.
Há que considerar a seguinte decisão sobre a Matéria de Facto proferida na 1ª Instância:
Factos provados:
1º No mês de novembro de 2016, Autor e Réu iniciaram um relacionamento amoroso,
2º Tendo começado a viver em condições análogas às dos cônjuges, ou seja, em comunhão de leito, de mesa e de teto, em maio de 2017, concretamente no ..., em Campolide, Lisboa, previamente arrendado pelo Autor.
3º Na perspetiva e expectativa de uma vida em conjunto, em meados de maio de 2019, Autor e Réu decidiram adquirir um imóvel para aí instalar definitivamente a habitação própria e permanente do casal.
4º Neste contexto, em conjunto e sempre no pressuposto da comunhão de esforços, Autor e Réu decidiram adquirir, para o mencionado efeito, a fração autónoma designada pela letra “D”, descrita na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o nº 4043 da freguesia de São Sebastião da Pedreira e inscrita na matriz predial urbana da freguesia de Campolide, Concelho de Lisboa, sob o artigo 345, pelo preço de 228.000,00 € (duzentos e vinte oito mil euros).
5º Para tanto, Autor e Réu necessitaram de financiamento bancário.
6º O Autor diligenciou junto do seu banco, “Caixa Geral de Depósitos, S. A.”, pela concessão de financiamento bancário, sem sucesso, em virtude dos encargos que tinha anteriormente assumido e que ainda se encontravam pendentes.
7º Também o Réu diligenciou junto do seu banco, “Santander Totta, S. A.”, pela concessão de financiamento bancário, desta feita com sucesso.
8º Na sequência e por força dos factos descritos em 6º e 7º, Autor e Réu concordaram que a solução para procederem à aquisição da fração autónoma identificada em 4º seria:
8.1. apenas o Réu constar como titular da escritura de compra e venda da fração autónoma;
8.2. apenas o Réu constar como titular do contrato de mútuo a celebrar com o banco “Santander Totta, S. A.”;
8.3. Autor e Réu suportarem, em partes iguais, todos os encargos inerentes à sobredita compra e venda e ao contrato de mútuo bancário;
8.4. Autor e Réu outorgarem escritura de doação ao autor de 50% da fração autónoma em discussão, assim que findasse o contrato de mútuo bancário;
8.5. Autor e Réu elaborarem um “Memorando de Entendimento” para acautelar a posição do Autor em caso de rutura do casal.
9º No dia 07/08/2019, o Réu formalizou o acordo escrito de promessa de compra e venda da fração autónoma identificada em 4º, tendo ficado convencionado o pagamento da quantia de 25.000,00€ (vinte e cinco mil euros) nessa mesma data a título de sinal e princípio de pagamento, e o pagamento do preço remanescente, no montante de 203.000,00€ (duzentos e três mil euros), no ato de outorga da escritura pública de compra e venda da fração autónoma.
10º Na sequência e por força do facto descrito em 9º, o Autor transferiu para conta bancária titular pelo Réu a quantia global de € 12.500,00 (€ 10.000,00 no dia 07/08/2019 e € 2.500,00 no dia 08/08/2019), correspondente a 50% do valor do sinal e princípio de pagamento referido em 9º.
11º No dia 20 de agosto de 2019, Autor e Réu outorgaram o acordo escrito junto como documento 3 da petição inicial (fls. 19 a 24 do processo físico), denominado “Memorando de Entendimento”, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
12º O “Memorando de Entendimento” foi redigido com a colaboração dos então advogados do Autor e do Réu, tendo sido autenticado por Advogada no dia 20/08/2019.
13º Com a outorga do referido “Memorando de Entendimento”, Autor e Réu pretenderam regular os efeitos, entre ambos, da aquisição da fração autónoma identificada em 4º, bem como do contrato de mútuo bancário celebrado pelo Réu e pelo banco “Santander Totta, S.A.” com vista ao financiamento bancário necessário àquela aquisição.
14º Autor e Réu fizeram constar do “Memorando de Entendimento” a seguinte cláusula:
“I – Do entendimento
(…)
d) Por considerarem os outorgantes que a aquisição do mencionado imóvel diz respeito a ambos, já que se trata da sua casa de habitação própria e permanente, estabelecem entre si o compromisso de procederem ao pagamento do preço na mesma proporção, ou seja 50% cada um, incluindo as despesas atinentes à aquisição da sobredita fração, tudo de acordo com o estabelecido com contrato de Mútuo”.
15º Autor e Réu fizeram constar do “Memorando de Entendimento” a seguinte cláusula:
“III – Cláusulas contratuais
1ª cláusula – a) os outorgantes estabelecem entre si a obrigatoriedade do pagamento do preço de aquisição do imóvel em questão “(…) na proporção de metade para cada um, englobando esta obrigatoriedade o sinal e o principio de pagamento no valor de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros) cabendo a cada um o pagamento de € 12.500,00 (doze mil e quinhentos euros), que nesta data já realizaram.
b) Os outorgantes estabelecem ainda entre si a obrigatoriedade de procederem ao pagamento do remanescente do preço a pagar no ato da escritura de compra e venda, bem como do Imposto Municipal sobre a Transmissão Onerosa de Imóveis (IMT), do valor da escritura e do Imposto de Selo da aquisição do imóvel (…) na proporção de metade para cada um.
2ª cláusula – durante o prazo de duração do contrato de mútuo celebrado ao abrigo proposta de empréstimo 0030.... com o Banco Santander Totta S.A. e conforme ali convencionado, ambos os outorgantes procederão ao pagamento mensal da quantia correspondente à prestação ali contratada, na proporção de metade, até liquidação integral do capital mutuado.”.
(…)
4ª cláusula – no caso de qualquer um dos outorgantes pretender fazer cessar, por qualquer causa, o presente entendimento, notificará o outro outorgante da sua vontade, mediante carta registada com aviso de recepção para qualquer morada que saibam ser rececionada a missiva, produzindo tal cessação efeitos 2 meses após a recepção da missiva.
5ª cláusula – após ser dado conhecimento da vontade de fazer cessar o presente contrato por parte do outro outorgante, consignam desde já, e por esta ordem, que:
a) Manifestando o outorgante BB vontade negocial em permanecer na titularidade da propriedade e assumir a responsabilidade do remanescente do mutuo, o que deverá ocorrer no prazo de 2 meses após o prazo previsto na cláusula anterior, o que o outorgante AA desde já se obriga a aceitar;
b) No caso previsto na alínea anterior o contraente BB reembolsará o contraente AA, no prazo máximo de 12 meses, após decorrer o prazo previsto na cláusula 4ª, do montante correspondente a metade do valor comercial do imóvel a data em que manifestar a sua intenção, deduzida a metade do valor das prestações vincendas decorrentes do contrato de mútuo com hipoteca, calculado na mesma data.
c) Caso o outorgante BB não pretenda permanecer na propriedade da fração autónoma, obrigam-se os outorgantes a promover no mais curto espaço de tempo possível, a venda a terceiros do mesmo e, até à concretização da mesma, continua ambos obrigados ao pagamento em partes iguais, da prestação mensal conforme acordado.
d) Caso algum dos outorgantes pratique atos que obstem à concretização da venda, o outro outorgante fica no direito de cessar imediatamente o pagamento das prestações do contrato de mútuo com hipoteca, que passa a ser da exclusiva responsabilidade do outorgante que praticou tais actos.
e) Ocorrendo o incumprimento de algum dos outorgantes no pagamento das referidas prestações mensais, o valor em falta será deduzido do produto da venda do imóvel, após a liquidação total do valor em dívida relativamente ao contrato de mútuo com hipoteca e entregue ao outorgante que liquidou ao Banco as prestações em falta.”.
16º No dia 28/08/2019, o Réu outorgou a escritura pública de compra e venda da fração autónoma identificada em 4º, pelo preço de € 228.000,00 (duzentos e vinte e oito mil euros).
17º Na mesma data de 28/08/2019, o Réu celebrou com o banco “Santander Totta, S. A.” o acordo escrito intitulado “contrato de mútuo com hipoteca”, junto aos autos com o requerimento de 13/02/2023 (fls. 60 verso a 70 verso do processo físico), cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
18º Para aquisição da fração autónoma identificada em 4º, e no âmbito do acordo referido em 17º, o banco “Santander Totta S. A.” emprestou ao Réu a quantia de € 183.430,00 (cento e oitenta e três mil, quatrocentos e trinta euros), tendo sido acordado que, sobre este montante, se venceriam juros nos termos da cláusula 4ª do referido acordo.
19º O custo total do crédito concedido pelo banco “Santander Totta, S. A.” ao réu foi de € 247.259,39, que o réu se comprometeu a reembolsar em prestações mensais e sucessivas, no valor de € 618,63, no prazo de 336 meses.
20º No dia 27/08/2019, o Autor transferiu para conta bancária titulada pelo réu a quantia de € 10.000,00, correspondente a 50% do preço de aquisição ainda em falta (€ 25.000,00 entregues na celebração do acordo de promessa de compra e venda; € 183.430,00 entregues no dia da outorga da escritura pública de compra e venda; € 183.430,00 + € 25.000,00 = € 208.430,00; € 228.000,00 - € 208.430,00 = € 19.570,00; € 19.570,00 : 2 = € 9.785,00).
21º No dia 28/08/2019, o Autor transferiu para conta bancária titulada pelo Réu, a quantia de € 4.500,00 (quatro mil e quinhentos euros), correspondente a 50% dos encargos e despesas de outorga da escritura de compra e venda e impostos devidos pela aquisição da fração autónoma identificada em 4º.
22º No final de setembro de 2019, Autor e Réu mudaram-se para a fração autónoma identificada em 4º, onde fixaram a sua residência permanente.
23º A fração autónoma identificada em 4º encontra-se registada a favor do Réu desde 28/08/2019.
24º Entre setembro de 2019 e agosto de 2020, o Autor transferiu para conta bancária titulada pelo Réu a quantia global de € 3.691,59 (€ 308,59 no mês de setembro de 2019 e € 338,30 nos restantes meses), correspondente a 50% das prestações mensais que o Réu se tinha comprometido a pagar ao banco “Santander Totta, S.A.”, melhor referidas em 18º.
25º Autor e réu findaram a sua relação em 30 de julho de 2020,
26º tendo o Autor saído da fração autónoma identificada em 4º em 25/08/2020.
27º Em data não concretamente apurada, o Réu deu a conhecer ao Autor que, em virtude das medidas excecionais de proteção dos créditos das famílias e empresas, por força dos impactos económicos e financeiros decorrentes da pandemia da doença Covid-19, beneficiara do acesso à moratória para os créditos à habitação desde o mês de março de 2020, inclusive, tendo pago entre março e agosto de 2020 a quantia mensal de € 122,90.
28º No dia 21/08/2020, o Autor enviou ao Réu a carta junta aos autos como documento 18 da petição inicial (fls. 32 do processo físico), cujo teor se dá por integramente reproduzido para todos os efeitos legais, comunicando-lhe a intenção de fazer cessar o “Memorando de Entendimento”.
29º No dia 26/08/2020, o Réu recebeu a carta referida em 28º.
30º O Réu não respondeu à carta referida em 28º.
31º No dia 03/09/2020, o Autor enviou ao Réu a carta junta aos autos como documento 19 da petição inicial (fls. 34 do processo físico), cujo teor se dá por integramente reproduzido para todos os efeitos legais.
32º O Réu recebeu a carta referida em 31º e comunicou ao Autor a intenção de manter a titularidade da fração autónoma em discussão, bem como a intenção de não ressarcir o Autor pela sua comparticipação na aquisição daquela.
33º Ao redigirem a cláusula 5ª, alínea c) do “Memorando de Entendimento”, pretenderam Autor e Réu acordar que, no caso de rutura da vida do casal e na hipótese de o Réu não pretender permanecer titular da fração autónoma identificada em 4º, esta seria vendida, repartindo-se entre ambos, em partes iguais, o produto da venda, deduzidos os encargos inerentes.
34º Ao redigirem a cláusula 5ª, alínea b) do “Memorando de Entendimento”, pretenderam Autor e Réu acordar que, no caso de rutura da vida do casal e na hipótese de o Réu pretender permanecer titular da fração autónoma identificada em 4º, o Autor teria direito a 50% do valor de mercado da fração deduzido do valor do capital mutuado ainda em dívida ao banco “Santander Totta, S. A.”.
35º No dia 25/02/2020, o Autor enviou ao Réu a carta junta aos autos como documento 20 da petição inicial (fls. 35 verso e 36 frente do processo físico), cujo teor se dá por integramente reproduzido para todos os efeitos legais.
36º O Réu não respondeu à carta referida em 35º.
37º À data de 26/08/2020, o valor comercial da fração autónoma identificada em 4º era de € 236.000,00.
38º À data de 26/08/2020, o capital mutuado em dívida pelo réu ao banco “Santander Totta, S. A.” era de € 180.508,82.
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Factos Não Provados
a) Autor e Réu diligenciaram em conjunto, junto do banco “Santander Totta, S.A.”, pela concessão de financiamento bancário para aquisição de habitação própria permanente, tendo o banco negado essa concessão ao Autor em virtude dos encargos que este já tinha previamente assumido.
b) O “Memorando de Entendimento” a que se alude no facto 11º foi elaborado na sequência e por força de Autor e Réu não terem logrado obter, em conjunto, o financiamento bancário do “Santander Totta” necessário à aquisição da fração autónoma em discussão.
c) O réu não deu a conhecer ao Autor que, em virtude das medidas excecionais de proteção dos créditos das famílias e empresas, por força dos impactos económicos e financeiros decorrentes da pandemia da doença Covid-19, beneficiara do acesso à moratória para os créditos à habitação desde o mês de março de 2020, inclusive, tendo pago desde então a quantia mensal de € 122,90.
d) Apesar de ter tomado conhecimento do facto provado descrito em 27º, o Autor fez questão de continuar a transferir para a conta titulada pelo Réu a quantia mensal de € 338,30.
e) Na sequência das cartas enviadas pelo Autor, melhor referidas em 28º e 31º, o Réu informou aquele que o valor comercial da fração autónoma identificada em 4º era de € 240.000,00 (duzentos e quarenta mil euros).
f) Ao redigirem a cláusula 5ª, alínea b) do “Memorando de Entendimento”, pretenderam Autor e Réu acordar que, no caso de rutura da vida do casal e na hipótese de o Réu pretender permanecer titular da fração autónoma identificada em 4º, o Autor teria direito a 50% do valor de mercado da fração deduzido do valor do mútuo (juros contratuais vincendos incluídos) ainda em dívida ao banco “Santander Totta, S. A.”.
g) O custo total das obrigações mutuárias contraídas pelo Réu junto do banco “Santander Totta, S. A.” para aquisição da fração autónoma identificada em 4º foi de € 250.124,55.
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IV. Da Reapreciação da Matéria de Facto.
O actual Código de Processo Civil introduziu um duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, sujeitando a sua admissão aos requisitos previstos pelo art.º 640º do Código de Processo Civil.
Para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada convicção, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.
Porém, e apesar da apreciação em primeira instância construída com recurso à imediação e oralidade, “(…) tal não impede a Relação de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1ª instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida(…) Dito de outra forma, impõe-se à Relação que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, de modo a apreciar a sua convicção autónoma, que deve ser devidamente fundamentada” (Luís Filipe Sousa, Prova Testemunhal, Alm. 2013, pág. 389).
Na análise do recurso de facto importa, por um lado, atender a que a regra do nosso sistema de recurso é o da reponderação e não de reexame e que, por outro, vigora entre nós o princípio da livre convicção do julgador, mas essa aquisição de convicção tem que ser ponderada e fundamentada, como decorre do art.º 607º do Código de Processo Civil.
O julgador tem liberdade para formar a sua convicção sobre os factos, mas o que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique “os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através da fundamentação, o juiz passa de convencido a convincente” - Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2.ª ed., pág.348.
O que ao tribunal de segunda jurisdição compete é, então, apurar da razoabilidade da convicção probatória do primeiro grau dessa mesma jurisdição, face aos elementos que agora lhe são apresentados nos autos, gozando dos poderes conferidos pelo art.º 662º do Código de Processo Civil, que dispõe no seu n.º 1: “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”; ou seja, não basta que da prova produzida seja possível extrair outra convicção (o que acontecerá bastas vezes) antes decorre que a alteração só poderá ocorrer se houver elementos que “imponham” outra resposta, ou seja, se se denotar um erro na resposta dada.
Ao recorrente incumbe assim não só indicar os meios probatórios que impõem uma decisão diferente, mas também lhe incumbirá apontar as razões pelas quais os meios que o juiz indicou, como tendo estado na base da sua convicção e que fundamentam a resposta, devem ceder perante os elementos que o recorrente indica no recurso.
Mas para além destes requisitos e pressupostos, é necessário ainda que qualquer alteração se revista de relevância para o mérito da demanda.
A impugnação de factos que tenham sido considerados provados ou não provados e que não sejam importantes para a decisão da causa, não deve ser apreciada, na medida em que alteração pretendida não é susceptível de interferir na mesma, atenta a inutilidade de tal acto, sendo certo que de acordo com o princípio da limitação dos actos, previsto no art.º 130.º do Código de Processo Civil não é sequer lícita a prática de actos inúteis no processo.
Veja-se a este propósito o que se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/05/2017, Proc. n.º 4111/13.4TBBRG.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt: “O princípio da limitação de actos, consagrado no artigo 130º do Código de Processo Civil para os actos processuais em geral, proíbe a sua prática no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – desde que não se revelem úteis para este alcançar o seu termo.
Trata-se de uma das manifestações do princípio da economia processual, também aflorado, entre outros, no artigo 611º, que consagra a atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes, e no artigo 608º n.º 2, quando prescreve que, embora deva resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, o juiz não apreciará aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Nada impede que também no âmbito do conhecimento da impugnação da decisão fáctica seja observado tal princípio, se a análise da situação concreta em apreciação evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual, cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir. Com efeito, aos tribunais cabe dar resposta às questão que tenham, directa ou indirectamente, repercussão na decisão que aprecia a providência judiciária requerida pela(s) parte(s) e não a outras que, no contexto, se apresentem como irrelevantes e, nessa medida, inúteis.”.
No caso do presente recurso, observadas as Conclusões do mesmo e que assim delimitam a matéria a apreciar (sendo exigível que o recorrente identifique nas Conclusões de recurso os concretos pontos de facto a apreciar, sem o que a sua pretensão não pode ser atendida – neste sentido o acórdão de 11/2/2016, proferido no Proc. n.º 157/12.8 TUGMR.G1.S1 (Revista) – 4.ª Secção, ou os acórdãos de 18/02/2016, proferido no processo n.º 558/12.1TTCBR.C1.S1, de 03/03/2016, proferido no processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1, de 12/05/2016, proferido no processo n.º 324/10.9 TTALM.L1.S1 e de 13/10/2016, proferido no processo n.º 98/12.9TTGMR.G1.S1, todos da 4.ª Secção), pretende o Recorrente que o Facto Assente 14:
14º Autor e Réu fizeram constar do “Memorando de Entendimento” a seguinte cláusula:
“I – Do entendimento
(…)
d) Por considerarem os outorgantes que a aquisição do mencionado imóvel diz respeito a ambos, já que se trata da sua casa de habitação própria e permanente, estabelecem entre si o compromisso de procederem ao pagamento do preço na mesma proporção, ou seja 50% cada um, incluindo as despesas atinentes à aquisição da sobredita fração, tudo de acordo com o estabelecido com contrato de Mútuo”.
Passe a ter a seguinte redacção:
“I – Do entendimento
(…)
e) Por considerarem os outorgantes que a aquisição do mencionado imóvel diz respeito a ambos, já que se trata da sua casa de habitação própria e permanente, estabelecem entre si o compromisso de procederem ao pagamento do preço na mesma proporção, ou seja 50% cada um, incluindo as despesas atinentes à aquisição da sobredita fracção, tudo de acordo com o estabelecido com contrato de Mútuo”
….
II – Do contrato de Mútuo

b) O montante total do crédito imputado ao outorgante BB (aqui, Recorrente) no contrato de Mútuo com Hipoteca celebrado com o Banco Santander, SA, correspondente à soma do montante total do crédito e do custo total do crédito, é de € 250.124,55 (duzentos e cinquenta mil cento e vinte e quatro euros e cinquenta e cinco cêntimos”;
Traduzindo-se a requerida alteração na correcção de um lapso [a alínea d) do Ponto I constante do Facto Provado 14 na verdade é a alínea e) do Ponto I do Memorando de Entendimento] e na inclusão nesse Facto Provado 14 do teor do Ponto II, b) do Memorando de Entendimento.
Pretende o Recorrente com esta alteração sustentar o Recurso, no sentido daquela que é por si defendida interpretação da vontade das partes e que se traduz, resumidamente em que no valor do mútuo bancário as partes pretenderam incluir não só o capital mas também os juros contratuais vincendos.
Ora, esta reapreciação é manifestamente inútil perante o que se assentou nos Factos 19; 33; 34 e 37, que não foram impugnados pelo Recorrente.
Desta forma e com os fundamentos supra referidos, rejeita-se a reapreciação da matéria de facto.
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V. Do Direito.
A questão que se coloca no presente Recurso é essencialmente a mesma que se colocava na primeira instância e assim sintetizada na sentença em recurso:
“Importa decidir nos presentes autos, no essencial, qual foi a vontade das partes ao redigirem a cláusula 5ª do “memorando de entendimento” (…)
Concretamente, se foi vontade das partes, em caso de rutura da vida conjugal, em conferir ao autor o direito a 50% do valor de mercado do imóvel sito na ..., freguesia de Campolide, Lisboa (artigo matricial 345º e descrição predial sob o n.º 4043), avaliado à data da rutura, deduzido do valor da liquidação do mútuo bancário (capital e juros contratuais vincendos incluídos),
Ou
se foi vontade das partes, em caso de rutura da vida conjugal, em conferir ao autor o direito a 50% do valor de mercado do imóvel sito na ..., freguesia de Campolide, Lisboa (artigo matricial 345º e descrição predial sob o n.º 4043), avaliado à data da rutura, deduzido do valor do capital mutuado ainda em dívida (juros contratuais vincendos excluídos).”
Rejeitada a reapreciação da matéria de facto pretendida pelo Recorrente, não se verificam fundamentos para alterar o que ficou decidido pela primeira instância, para cuja fundamentação se remete e aqui se transcreve nas partes mais relevantes;
“Estabelece o artigo 236º do Código Civil, sob a epígrafe “Sentido normal da declaração”, que: “1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.”.
Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.” (artigo 236º, n.º 2, do Código Civil).
O artigo 236º, n.º 1, do Código Civil acolhe a teoria da impressão do destinatário, de cariz objetivista, segundo a qual a declaração vale com o sentido que um declaratário normal, medianamente instruído, sagaz e diligente, colocado na posição do concreto declaratário, a entenderia. De acordo com essa norma, o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, perante o comportamento do declarante. Ressalvam-se apenas os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido (n.º 1), ou o de o declaratário conhecer a vontade real do declarante (n.º 2). Pretende-se proteger o declaratário, conferindo à declaração o sentido que seria razoável presumir atendendo ao comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efetivamente atribuir. Está em causa o princípio da tutela da confiança. A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante. O declaratário normal deve ser uma pessoa dotada de razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, considerando as circunstâncias que ela teria conhecido e o modo como teria raciocinado a partir delas, mas colocando-a na posição do destinatário real, isto é, acrescentando as circunstâncias (em particular os termos do negócio, os interesses em jogo e a finalidade prosseguida pelo declarante - neste sentido, a título de exemplo, veja-se o acórdão do STJ de 23-02-2010 proferido na Revista n.º 1872/03.2TMAI.P1.S2, sumário disponível em www.stj.pt) que este conheceu concretamente e o modo como aquele concreto declaratário poderia a partir delas ter depreendido um sentido declarativo.
Assim, a interpretação das declarações negociais não se dirige, salvo no caso do artigo 236º, n.º 2, a fixar um facto simples – o sentido que o declarante quis imprimir à sua declaração –, mas antes o sentido normativo da declaração.
Por sua vez, quando estejam em causa negócios formais, independentemente de a forma observada ser voluntária ou legal, não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 238º, n.º 1, do Código Civil).
Todavia, esse sentido pode valer “se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se não opuserem a essa validade” (artigo 238º, n.º 2, do Código Civil). (…)
Ora, um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário não poderia atribuir ao segmento “prestações vincendas”, aposto na cláusula 5ª, alínea b), o sentido atribuído pelo réu (capital e juros contratuais incluídos), por tal não corresponder ao equilíbrio negocial desejado. Com efeito, um declaratário normal, dotado de razoabilidade, sagacidade, conhecimento e diligência medianos, consideraria que, em caso de rutura da vida conjugal, a dedução a efetuar ao valor de mercado do imóvel seria apenas do montante de capital mutuado ainda em dívida ao banco e não também dos juros contratuais vincendos, pois que estes seriam devidos posteriormente à rutura da vida conjugal dos declarantes, não podiam ser corretamente contabilizados à data da rutura por serem calculados mensalmente (sobre o montante de capital em dívida em cada mês) e estavam sujeitos a variação futura decorrente da variação da própria taxa Euribor associada ao crédito à habitação. Além do mais, um declaratário normal, consideraria que, com a rutura da vida conjugal, os encargos bancários futuros deveriam ser suportados pelo proprietário do imóvel, aqui réu.
Nessa medida, é a interpretação conferida pelo autor que melhor se coaduna à declaração negocial atribuída pelas partes, devendo entender-se que, ao redigirem a cláusula 5ª, alínea b) do “memorando de entendimento”, pretenderam as partes efetivamente fazer deduzir, à metade do valor do imóvel em discussão, metade do capital mutuado em dívida à data da rutura conjugal, excluídos os juros contratuais vincendos.
Assim sendo, tendo resultado provado nos autos que, à data da rutura da vida conjugal do autor e réu (26/08/2020), o imóvel em discussão tinha o valor de mercado de € 236.000,00 e que o capital mutuado em dívida nessa data era de € 180.508,82, conclui-se que é devido ao autor o pagamento da quantia de € 27.745,59 (€ 236.000,00 - € 180.508,82 = € 55.491,18; € 55.491,18 : 2 = € 27.745,59), o que se decide.”
Em abono ainda desta interpretação acrescenta-se que não faria sentido atender ao valor de mercado do imóvel à data da rutura entre o casal mas atender ao valor do mútuo bancário acrescido de juros vincendos, valor este projectado para o final do mútuo; ora para essa data não só não é possível considerar que o valor do mútuo, considerados os juros, seja aquele previsto na data da rutura, uma vez que há flutuações de taxas podendo ainda ocorrer outras vicissitudes até ao final do contrato (como quaisquer outras moratórias, ou incumprimentos ou renegociações, …) como o valor de mercado do imóvel pode sofrer alterações, seja para mais, como tem sucedido nos últimos anos e é de conhecimento geral, seja para menos, se acaso surgir uma crise no mercado imobiliário semelhante à ocorrida em 2008, como também é de conhecimento geral. Atender à data da rutura para se encontrar o valor comercial do imóvel e não atender ao valor do mútuo igualmente nessa data conduziria com grande probabilidade a um desequilíbrio de prestações.
Não pode deixar ainda de se frisar, como também considerado na sentença, que após a rutura entre o casal o imóvel passa a ser unicamente usufruído pelo R., sendo lógico que a partir daí passe o R., afinal o seu único proprietário, a suportar os custos futuros com a aquisição do imóvel.
Assim, a interpretação considerada na Sentença é efectivamente aquela que mais se aproxima de uma solução justa e equilibrada entre as partes e que tem cabimento à luz do art.º 236º, n.º 1 do Código Civil.
Desta forma, improcede o recurso, mantendo-se a sentença proferida.
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Das custas da acção.
No seu recurso o R. vem ainda recorrer da condenação em custas argumentando que tendo o A. atribuído à acção o valor de 36.308,10 € e tendo sido a condenação do Recorrente em 29.406,60 €, a condenação única deste em custas traduz-se em violação da proporção a que se reporta o art.º 527º, nº. 2, do Código de Processo Civil, com inerente desigualdade de tratamento das partes.
Na Sentença, foi a seguinte a fundamentação para a condenação em custas: “O réu, porque decaiu na ação, deve ser condenado na totalidade das custas judiciais, nos termos do artigo 527º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.”
Dispõe o art.º 296.º do Código de Processo Civil que:
“1 - A toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido.
2 - Atende-se a este valor para determinar a competência do tribunal, a forma do processo de execução comum e a relação da causa com a alçada do tribunal.
3 - Para efeito de custas judiciais, o valor da causa é fixado segundo as regras previstas no presente diploma e no Regulamento das Custas Processuais.”
Decorre desta norma que é ao pedido formulado na acção que se há-de atender para encontrar o valor a atribuir à acção, fixando o art.º 297º do Código de Processo Civil os critérios gerais para a fixação do valor:
“1 - Se pela ação se pretende obter qualquer quantia certa em dinheiro, é esse o valor da causa, não sendo atendível impugnação nem acordo em contrário; se pela ação se pretende obter um benefício diverso, o valor da causa é a quantia em dinheiro equivalente a esse benefício.
2 - Cumulando-se na mesma ação vários pedidos, o valor é a quantia correspondente à soma dos valores de todos eles; mas quando, como acessório do pedido principal, se pedirem juros, rendas e rendimentos já vencidos e os que se vencerem durante a pendência da causa, na fixação do valor atende-se somente aos interesses já vencidos.
3 - No caso de pedidos alternativos, atende-se unicamente ao pedido de maior valor e, no caso de pedidos subsidiários, ao pedido formulado em primeiro lugar.”
De acordo com o n.º 1 da norma citada, estando em causa uma quantia em dinheiro é este valor que se considera como valor da causa.
No entanto, existem situações, como as dos autos, em que no momento da propositura da acção não é possível ao A. fixar exactamente a quantia em causa. De facto, o pedido formulado pelo A. a título principal era a condenação do R. “a pagar ao Autor o valor correspondente a metade da diferença entre o valor de mercado da fração autónoma (…), de acordo com Avaliação por perito e aceite pelo Autor, e o valor mutuado em divida, acrescido do pagamento da quantia de 1.661,10 € (mil, seiscentos e sessenta e um euros e dez cêntimos), correspondente à diferença entre o valor que o Autor pagou ao Réu no período compreendido entre março e agosto de 2020 (2.029,80€) e o valor que deveria ter pago a este título de acordo com o estabelecido no Memorando de Entendimento (368,70€)”.
Tendo sido proferido nos autos um despacho a convidar o A. a concretizar este valor, com explicitação dos cálculos inerentes ao mesmo, veio o A. referir que o seu primeiro pedido correspondia à diferença entre o valor de mercado do bem à data da cessação do Memorando de Entendimento e o valor do capital mutuado ainda em divida nessa data, acrescido das quantias indevidamente recebidas pelo Recorrente e esclarecendo que a dificuldade em concretizar o valor de tal pedido contendia precisamente com a necessidade de apurar o valor de mercado do bem à data da cessação do Memorando de Entendimento, que ainda carecia à data de ser avaliado por perito e com o facto de o Recorrido não saber, com exatidão, qual o valor do capital em divida junto do Banco. Ainda assim, nessa ocasião, admitindo um valor de mercado do imóvel de 250.000,00 € (duzentos e cinquenta mil euros) e estimando-se o valor do capital mutuado ainda em divida ascendia a 180.706,00 € (cento e oitenta mil, setecentos e seis euros), atribuiu à presente lide o valor processual de 36.308,10 € (trinta e seis mil, trezentos e oito euros e dez cêntimos).
Ora, estes valores vieram a ser concretizados nos termos que contam dos Factos Provados 37 e 38, tendo desta forma o R. sido efectivamente condenado na totalidade do pedido formulado pelo A. na p.i., pelo que a justificação para a sua condenação em custas está de acordo com o que dispõe o art.º 527º do Código de Processo Civil.
O que se impõe é dar ainda cumprimento ao disposto pelo art.º 299º, n.º 4 do Código de Processo Civil: “Nos processos de liquidação ou noutros em que, analogamente, a utilidade económica do pedido só se define na sequência da ação, o valor inicialmente aceite é corrigido logo que o processo forneça os elementos necessários” ou seja; o valor da acção é aquele em que o R. foi efectivamente condenado, assim se corrigindo.
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VI. Das Custas do Recurso.
Vencida no Recurso, é o apelante responsável pelo pagamento das custas devidas, nos termos do art.º 527, n.º 1 do Código de Processo Civil, levando-se porém em consideração a correcção do valor dos autos efectuada, fixando-se o mesmo em 29.406,60 € (vinte e nove mil, quatrocentos e seis euros e sessenta cêntimos).
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DECISÃO:
Por todo o exposto, julga-se o recurso improcedente, mantendo-se a decisão proferida pela 1ª Instância.
Fixa-se o valor da acção em 29.406,60 € (vinte e nove mil, quatrocentos e seis euros e sessenta cêntimos).
Custas do Recurso pelo Recorrente.
Registe e notifique.

Lisboa, 5/6/2025
Vera Antunes
Eduardo Petersen Silva
Gabriela de Fátima Marques