RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA DO LESADO
PRIVAÇÃO DO USO DE VEÍCULO
Sumário

Sumário: (da responsabilidade da relatora - art. 663º/7 CPC):
I. O tribunal só pode socorrer-se do normativo contido no art. 570º/1 do Código Civil, quando o acto do lesado tiver sido uma das causas do dano, de acordo com o princípio da causalidade adequada.
II. Não fornecendo os autos elementos concretos para a quantificação dos danos (v.g. patrimoniais), deverá relegar-se essa quantificação para liquidação em execução de sentença, nos termos dos arts 358º/2 e 609º/2 do Código de Processo Civil.
III. Não tendo a autora logrado fazer prova de que o veículo era habitualmente usado por si e que ficou privada do seu uso para se deslocar, designadamente, para o seu local de trabalho, durante o período em que a viatura esteve na oficina, não se pode falar in casu de um dano de privação de uso digno de protecção e reparação.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
A … intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra COMPANHIA DE SEGUROS TRANQUILIDADE, com a actual denominação GENERALI SEGUROS, S.A., peticionando a condenação da ré no pagamento à autora de:
i) a quantia de € 8.395,64, a título de indemnização pelos danos sofridos no veículo da autora;
ii) a quantia de € 4.050,00, a título de indemnização pela privação do uso do veículo (€ 30,00 x 151 dias);
iii) € 3.000,00, a título de danos não patrimoniais; e
iv) juros sobre as quantias peticionadas.
Para tanto alegou, em síntese, que em 15 de Outubro de 2022 ocorreu um acidente de viação que envolveu o veículo de matrícula …-CX-…, o veículo da autora com a matrícula …-QF-… e o veículo seguro na ré, de matrícula …-TC-…, tendo a viatura da A. sido violentamente embatida, na sua traseira, por este último veículo, por força do que o veículo da A. foi projectado para a frente, indo embater no …-CX-… O …-QF-… sofreu danos na sua traseira e dianteira, cuja reparação já efectuada pela A., é da responsabilidade da ré, dado que o sinistro foi causado exclusivamente pelo veículo por ela segurado. A A. sofreu danos não patrimoniais e ficou privado do uso do veículo.

Citada, a ré apresentou contestação, sustentando, em suma, que houve dois sinistros diferentes e que o primeiro embate foi causado pela autora. Por outro lado, o veículo foi considerado em situação de perda total, motivo pelo qual propôs à autora uma indemnização de €5.000,00, ao invés da sua reparação. Ademais, não há prova de que a autora tenha, efectivamente, sofrido um dano pela privação do veículo e, quando muito, só poderá ser atendido, na indemnização a arbitrar, o período entre a data do acidente e o dia 28-11-2022 (data em que a indemnização foi colocada à disposição da autora), à razão diária de €10,00. Por fim, os factos alegados não justificam qualquer dano não patrimonial merecedor de tutela jurídica.

Foi proferido despacho saneador e de identificação do objecto do litígio e dos temas da prova.
Foi realizada audiência de julgamento.

Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Pelo acima expendido, julga-se a presente acção parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência, decide-se:
a) Condenar a ré GENERALI SEGUROS, S.A. a entregar à autora A … a quantia de € 3.358,26 (três mil trezentos e cinquenta e oito euros e vinte e seis cêntimos), a título de indemnização civil pelos danos causados ao veículo de matrícula …-QF-… no acidente de viação ocorrido no dia 15 de Outubro de 2022, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4 % (quatro pontos percentuais) aplicável aos juros civis, contados desde a data da citação, em 19 de Abril de 2023, que à presente data ascendem a € 171,87 (cento e setenta e um euros e oitenta e sete cêntimos), e dos vincendos até efectivo e integral pagamento.
b) Absolver a ré quanto ao mais peticionado.
As custas ficam a cargo da autora, na proporção de 78 % (setenta e oito pontos percentuais), e da ré, na proporção de 22 % (vinte e dois pontos percentuais).
Registe e notifique.”

Inconformada com a sentença, veio a autora dela interpor o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
«I. O presente recurso vem interposto da Sentença proferida pelo Juiz … do Juízo Local Cível de … do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – datada a 29 de julho 2024 e notificada às partes a 09 de setembro de 2024 – que julgou a acção interposta pela autora ora recorrente parcialmente improcedente e, em consequência, condenou a ré ora recorrida no pagamento da quantia de € 3.358,26 (três mil trezentos e cinquenta e oito euros e vinte e seis cêntimos), acrescida de juros legalmente devidos, absolvendo-a do demais peticionado; porquanto a ora apelante não se conforma com a decisão proferida pelo Tribunal a quo, por, no seu entendimento, o Tribunal a quo ter incorrido em erro na apreciação da prova com consequente erro de julgamento da matéria de facto – o que levou a uma incorrecta decisão de direito proferida; bem como em manifestos e graves erros de interpretação e aplicação das normas legais aplicáveis ao caso concreto.
II. A autora não aceita o julgamento de facto proferido pelo Tribunal a quo, designadamente, os factos provados 12), 14) e 16) e os factos não provados a), c), d), e), f) g), h); não aceitando igualmente a decisão proferida pelo Tribunal a quo quanto à dinâmica do acidente, nem quanto à repartição de responsabilidades pela ocorrência do mesmo (mesmo se concluindo que o acidente ocorreu conforme descrito pela ré); não aceitando igualmente a condenação da ré ora recorrida no pagamento de apenas € 3.358,26 (três mil trezentos e cinquenta e oito euros e vinte e seis cêntimos), a título de indemnização pelo valor despendido pela autora com a reparação do veículo sua propriedade; nem tão pouco a absolvição da mesma no pagamento das indemnizações peticionadas a título de dano de privação de uso e danos não patrimoniais sofridos pela autora. Vejamos:
III. O veículo automóvel …-CX-… não sofreu qualquer dano na sua dianteira, decorrendo tal facto da conjugação da prova documental com a prova testemunhal produzida nos presentes autos; basta, contudo, atentar às fotografias a fls. 20 verso e 22 verso que se dão integralmente por reproduzidas, para se impor, nos termos do disposto no artigo 662.º do Código de Processo Civil, a modificação do facto provado 16), passando o mesmo a ter a seguinte redacção: «Em consequência do acidente descrito em 12) a 14), o veículo …-CX-… sofreu estragos na sua traseira, melhor descritos nas fotografias a fls. 20 verso e 22 verso (que se dão integralmente por reproduzidas)».
IV. Por seu turno, pugna a apelante que seja incluído no elenco dos factos provados o facto não provado a) e, simultaneamente, que seja dele excluído o facto provado 12), consequentemente se modificando o facto provado 14), porquanto: a) o depoimento da testemunha B … é absolutamente incompatível com a realidade dos factos, designadamente, com os danos provocados no seu veículo em consequência de ter embatido no veículo que seguia à sua frente; e, b) não é claro e inequívoca a versão relatada pela testemunha C … quanto à dinâmica do acidente, ao contrário da conclusão esgrimida pelo Tribunal a quo.
V. Com o muito e devido respeito, não é possível crer na descrição do acidente levada a cabo pela testemunha B …, condutora do veículo …-TC-…, designadamente, que a mesma estivesse no pára-arranca – versão que posteriormente, mas erradamente, contribuiu para a tomada de decisão por parte do Tribunal a quo quanto à dinâmica do acidente. E para tanto, basta olhar aos estragos que o veículo …-TC-… sofreu na sua dianteira, reproduzidos nas fotografias a fls. 20 verso, 23 e 24, cuja dimensão torna pouco credível que o mesmo circulasse em registo pára-arranca; por seu turno, a dimensão dos danos verificados na dianteira do veículo …-TC-… evidenciam, pelas regras da lógica e da experiência, que o veículo era conduzido em desrespeito pelas normas estradais a cumprir.
VI. Por seu turno, e novamente ao contrário do afirmado pelo Tribunal a quo, não é claro que a testemunha C … tenha corroborado a versão trazida a lume pela ré ora recorrida, designadamente, que o veículo da autora embateu, por duas vezes, na viatura …-CX-…, conduzida por aquela primeira, uma vez que, do depoimento da testemunha identificada (prestado a 05 de junho de 2024 e que se encontra gravado no respetivo sistema de gravação da aplicação informática do H@bilus com início no marcador 02:13:21 e fim no marcador 02:39:07) resulta que a mesma afirma que sofreu um embate no seu veículo, designadamente aos minutos 02:15:37 a 02:15:53 e minutos 02:17:00 a 02:26:32.
VII. Do depoimento da testemunha C … resulta: 1. que a única certeza que a testemunha tem é que houve um embate no veículo que a mesma conduzia e que esse embate foi violento; 2. que não sabe se sofreu dois embates ou se sofreu um embate e ouviu depois um barulho; mas que sabe que o primeiro embate que sofreu foi violento; 3. que não sentiu qualquer “toquezinho”, mas sim um forte impacto; d. que foi desse embate que resultou a compressão pelo cinto de segurança; 4. que do embate resultaram os danos elencados no facto provado 16) (danos na traseira) conforme registos fotográficos reproduzidos; 5) que nada mais sabe ou viu quanto ao acidente ocorrido.
VIII. Sem prejuízo de ser certo que, mais tarde no seu depoimento, a testemunha C … corrobora a versão apresentada pela ré ora recorrida, a verdade é que se impõe uma análise cuidada do mesmo, designadamente, no momento em que a mesma é confrontada com as declarações por si prestadas a 27 de outubro de 2022 (decorridos mais de dez dias após o acidente) no processo de averiguação do sinistro conduzido pela ré (cf. fls. 70). E isto porque, a testemunha C … – designadamente aos minutos 02:32:48 a 02:38:10 – por um lado: 1. contesta a conclusão que consta das suas próprias declarações prestadas no âmbito do processo de averiguação do sinistro conduzido pela ré, designadamente, a conclusão em que afirma que «o veículo B embateu no veículo A e de seguida o C no B»; e que, por outro lado, 2. esclareceu que o senhor perito averiguador lhe havia solicitado que elaborasse uma descrição e croqui ilustrativo do acidente, correspondente àquela que era a sua percepção do acidente, e não daquilo que era o seu conhecimento efectivo do acidente; sendo de considerar ainda que a testemunha 3. afirmou que, de facto, não sabia exactamente o que tinha acontecido ou motivado o acidente; e que 4. esclareceu ainda que havia preenchido as declarações em causa com aquilo que “deve ter sido” e não com “aquilo que efectivamente sabe que foi”.
IX. Mas mais ainda! Resulta igualmente do depoimento da testemunha C …, designadamente aos minutos 02:26:30 a 02:27:30, que não foi a própria a preencher as declarações que constam do relatório de processo de averiguação do sinistro conduzido pela ré, mas sim o seu filho, ainda que por si ditadas. E releva esta questão na medida em que, como também resulta do depoimento da mesma – aos minutos mencionados – a mesma esclarece que, não sabendo a forma como havia ocorrido o acidente em que esteve envolvida, havia sido informada da alegada dinâmica do mesmo pelo seu filho (que preencheu as declarações mencionadas) e que o mesmo lhe havia transmitido que existiriam incongruências na dinâmica do acidente, porquanto, segundo aquele – que nem estivera presente no acidente – não se conseguia apurar quem embatera primeiro em quem e que, nesse sentido, preencheu as declarações referentes ao acidente com «aquilo que achava que tinha sido» a dinâmica do mesmo.
X. Também não é de acolher como boa a lógica trilhada pelo Tribunal a quo na decisão quanto à matéria de facto descrita, uma vez analisado o depoimento da D … (prestado a 14 de junho de 2024 e que se encontra gravado no respetivo sistema de gravação da aplicação informática do H@bilus com início no marcador 00:55:58 e fim no marcador 01:31:46), uma vez que, do depoimento da testemunha identificada, quando confrontada com o registo fotográfico que acompanha o relatório elaborado pelo perito da ré e designadamente aos minutos 01:04:22 a 01:12:45 e minutos 01:17:10 a 01:21:28, resulta: 1. que o embate da frente do veículo …-TC-… e a traseira do veículo …-QF-… não pode ter ocorrido em contexto de pára-arranca, ou seja, que aquele primeiro circularia a uma velocidade superior àquela que caracteriza uma situação de pára-arranca; 2. que o alegado primeiro embate entre a frente do veículo …-QF-… e a traseira do veículo …-CX-… foi um embate suave e ligeiro, do qual resultaram apenas pequenos danos, designadamente uns raspões e pequenas marcas no para-choques do veículo …-CX-…, resultado do contacto, com o mesmo, das grelhas da dianteira do veículo …-QF-…; 3. que a testemunha tem a convicção que ocorreram dois acidentes, designadamente, dois embates, nomeadamente, um primeiro entre a frente do veículo …-QF-… e a traseira do veículo …-CX-… e, posteriormente, um segundo, em resultado do qual o veículo …-CX-… foi novamente embatido pela frente do veículo …-QF-…, por força da projecção resultante do embate da frente do veículo …-TC-… na traseira daquele; 4. Que o segundo embate terá sido um embate violento e portanto, mais forte que o primeiro.
XI. Ora, confrontado o depoimento da testemunha D … com o depoimento da testemunha C …, a questão que se impõem é: se a testemunha C … tem a certeza absoluta que o primeiro embate que sofreu foi um embate violento, como podem, então, ter existido dois embates conforme alegado pela ré e atestado pelo perito desta?
É que, defendendo a teoria da ocorrência de dois embates, resultou que, o alegado primeiro embate da frente do veículo …-QF-… na traseira do veículo …-CX-…, terá sido um pequeno embate, ligeiro, suave, do qual resultaram apenas raspões e pequenas marcas no para-choques. Sucede que, como disto,
a testemunha C … afirmou, categoricamente, que a única certeza que tinha era a ocorrência de um primeiro embate violento.
XII. E neste sentido, importa atender também ao depoimento da testemunha F … (prestado a 14 de junho de 2024 e que se encontra gravado no respetivo sistema de gravação da aplicação informática do H@bilus com início no marcador 00:01:00 e fim no marcador 00:32:08), na medida em que, não obstante a testemunha ter afirmado que se havia tratado de um «choque em cadeira», a verdade é que a conclusão da testemunha foi pela ocorrência de um primeiro embate, do veículo automóvel matrícula …-TC-… no veículo matrícula …-QF-…, com consequente projecção do mesmo para a frente, o que acabou por resultar no embate da dianteira deste na traseira do veículo matrícula …-CX-… – é o que resulta do depoimento da testemunha identificada, designadamente, aos minutos 00:24:58 a 00:26:40.
XIII. Compreende-se, pois assim, que não se poderá manter a conclusão do Tribunal a quo pela dinâmica do acidente, uma vez que a mesma não é compatível com a prova produzida nos presentes autos; pelo contrário, da mesma resulta a corroboração da versão da dinâmica do acidente trazida a lume pela autora ora apelante: o veículo matrícula …-QF-… foi embatido na sua traseira pela frente do veículo …-TC-…, e, nessa sequência, projectado para a frente, acabando por embater com a sua dianteira na traseira do veículo …-CX-… – é o que resulta da conjugação da prova careada para os autos, produzida em sede de Audiência de Julgamento e, ainda e também, das declarações de parte da autora e E ….
XIV. Das declarações de parte da autora, prestadas a 05 de junho de 2024 e que se encontram gravado no respetivo sistema de gravação da aplicação informática do H@bilus com início no marcador 00:16:01 e fim no marcador 01:34:26, designadamente aos minutos 00:19:26 a 00:22:06, resultou, entre o demais, que: 1. que o veículo matrícula …-TC-… na traseira do veículo automóvel …- QF-…; 2. que por força do embate descrito, o veículo matrícula …-QF-… foi projectado para a frente, tendo embatido, com a sua dianteira, na traseira do veículo automóvel …-CX-…; 3. que o embate do veículo …-TC-… no veículo …-QF-… foi um embate violento.
XV. Por seu turno, corroborando tudo quanto exposto, há que atender ao depoimento da testemunha E … prestado a 05 de junho de 2024 e que se encontra gravado no respetivo sistema de gravação da aplicação informática do H@bilus com início no marcador 01:34:27 e fim no marcador 02:13:20, do qual resultou, designadamente aos minutos 01:37:34 a 01:44:17, minutos 01:47:36 a 01:48:12, minutos 01:52:15 a 01:53:05 e minutos 01:54:46 a 01:55:32, que: 1. o veículo matrícula …-TC-… na traseira do veículo automóvel …-QF-…; 2. que por força do embate descrito, o veículo matrícula …-QF-… foi projectado para a frente, tendo embatido, com a sua dianteira, na traseira do veículo automóvel …-CX-…; 3. que o embate do veículo …-TC-… no veículo …-QF-… foi um embate inesperado e fortíssimo; 4.que no momento imediatamente anterior ao embate descrito, o veículo …-QF-… se encontrava parado atrás do veículo …-CX-…, guardando deste, i.e., da sua traseira, a distância de segurança; 5. que não existiu, antes do embate do veículo …-TC-… no veículo …-QF-…, qualquer contacto entre o veículo …-QF-… e o veículo …-CX-…; 6. que o embate entre a frente do veículo …-QF-… e a traseira do veículo …-CX-… se deu, única e exclusivamente, por força da projecção do veículo …-QF-… resultante do embate provocado pelo …-TC-….
XVI. Ora, em face de tudo quanto exposto, é inequívoco que o Tribunal a quo errou no julgamento da matéria de facto, termos em que se impõem, nos termos do disposto no artigo 662.º do Código de Processo Civil: 1. eliminar do elenco dos factos provados o facto julgado provado 12); 2. modificar o facto provado 14), passando o mesmo a ter a seguinte redacção: «O veículo …-TC-… embateu, com a sua frente, na traseira do veículo …-QF-…»; 3. julgar provado o facto julgado como não provado a), passando o mesmo a constar do elenco dos factos provados com a seguinte redacção: [facto provado 30)] «o embate entre a dianteira do veículo …-QF-… e a traseira do veículo …-CX-…, deu-se por motivo de o veículo …-QF-… ter sido embatido na sua traseira pelo veículo …-TC-… e, em consequência, projectado para a frente».
XVII. Mais ainda. O Tribunal a quo, conforme expressamente vertido na decisão ora objecto de recurso, considerou as declarações de parte da autora e o depoimento do seu marido, quanto à dinâmica do acidente convincentes; contudo, acabou – sem mais! – por desvalorizar as mesmas, em virtude da divergência das dinâmicas do acidente relatadas pelas partes, julgando, por isso, não provados os factos c), d), g), h) e f), o que a ora apelante não concebe nem aceita, por, por um lado, não se admitir a lógica trilhada pelo Tribunal a quo; e, por outro, por existirem nos presentes autos demais prova da sua comprovação.
XVIII. O Tribunal a quo, não apontou (nem fundamentou!) qualquer motivo para questionar a credibilidade das declarações de parte da autora e do depoimento da testemunha E … – afirmando, inclusive, que as mesmas eram convincentes – recuando na sua valoração, única e exclusivamente, em virtude de, no seu entendimento, aqueles não terem logrado provar a sua versão dos factos, quanto à dinâmica do acidente.
XIX. Sucede que, não é verdade, uma vez que as declarações da autora e o depoimento da testemunha identificada, não só não colide com a demais prova produzida nos presentes autos, como encontra suporte na mesma; Além do mais, no modesto entendimento da apelante, é absolutamente inadmissível que se afaste ou questione a credibilidade das declarações ou depoimentos – sobretudo para efeitos de valoração da demais factualidade invocada – por força da diferentes versões que se contam de um facto, uma vez que, não fossem existir diferentes versões sobre um determinado evento, não estariam então as partes em litígio nos presentes autos.
XX. Como esmiuçado, ao contrário da conclusão alcançada pelo Tribunal a quo, a versão do acidente descrita pela autora e pela testemunha E …, é absolutamente coincidente com a demais prova produzida, quando seja esta devidamente analisada; não se admitindo, como invoca o Tribunal a quo, a sua desvalorização em prol da valorização dos restantes.
XXI. O Tribunal a quo andou mal – muito mal, aliás! – ao julgar como bom, para o apuramento da dinâmica do acidente, que a testemunha B … conduzia o veículo …-TC-… no pára-arranca há cerca de cinco minutos, avançando e retomando a marcha de acordo com os movimentos do veículo da autora, porquanto ser por demais evidente, por razões lógicas, de ciência e de experiência, a impossibilidade de tal facto – bastando, para tal, olhar aos registos fotográficos juntos aos autos, designadamente as fotografias a fls. 20 verso e 22 verso que se dão integralmente por reproduzidas.
XXII. Também mal andou – muito mal, aliás! – o Tribunal a quo ao preferir a dinâmica do acidente nos termos invocados pela ré ora recorrida, sustentando as suas conclusões na versão da testemunha C …, por, segundo aquele, ser a versão merecedora de maior credibilidade, por ser consistente com a versão narrada pela mesma à GNR que lavrou participação de acidente de viação, e com a versão narrada pela mesma em sede de processo de averiguação do sinistro conduzido pela ré. Ora, usando o mesmo peso e a mesma medida, não se poderá então olvidar que, também a autora e a testemunha E …, relataram de forma sempre igual a sua versão do acidente, quer desde o momento imediatamente após a sua ocorrência, quer em sede de participação de acidente de viação elaborada pela GNR, quer em sede de processo de averiguação do sinistro conduzido pela ré e, por fim, quer nas declarações e depoimento prestado em sede da Audiência de Julgamento realizada nos presentes autos.
XXIII. Em suma: o Tribunal a quo muito mal andou no julgamento da matéria de facto, uma vez que não apontou qualquer outro motivo razoável e atendível para desvalorizar a prova produzida pelo depoimento da testemunha E … e pelas declarações de parte da autora, que não fosse a existência de duas versões diferentes quanto ao acidente a que reportam os presentes autos – o que não se concebe, uma vez que é exactamente pela discordâncias das partes que é o litígio submetido à apreciação do julgador; além de mais, o Tribunal a quo parece ter olvidado que a existência de duas percepções sobre um evento e, por isso, duas versões sobre um só facto, não significa que alguém esteja a mentir, nem tão pouco cria fundamentos para se descredibilizar e desmerecer as correspondentes declarações ou depoimentos – e muito menos, que se descredibilize e desmereça tudo o demais alegado quanto aos demais factos.
XXIV. Além do mais, muito embora (mal!) julgados como não provados, os factos elencados como c), d), e), f), g) e h), encontram demonstração e comprovação nos diversos elementos de prova careados para os presentes autos, bem como na demais prova produzida em sede de Audiência de Julgamento.
XXV. A matéria de facto descrita no facto não provado c) e facto não provado d), encontra demonstração inequívoca aos minutos 00:22:27 a 00:30:36 das declarações de parte da autora, bem como aos minutos 01:46:39 a 01:52:14 do depoimento da testemunha E …, motivo pelo qual, nos termos do disposto no artigo 662.º do Código de Processo Civil, se impõe a sua inclusão no elenco dos factos provados, designadamente, nos seguintes termos: [facto provado 31] «em consequência do descrito em 12) e 14), a mãe da autora: i. ficou desorientada e sofreu alteração da tensão arterial; ii. ficou com um ferimento no nariz, por força do embate dos óculos que usava; iii. embateu com a cabeça e nariz nas costas do banco da frente, o que lhe causou um hematoma na cabeça; iv. sofreu dores na zona do peito, por força do accionamento do cinto de segurança, dores essa que persistiram durante dois meses; v. recorreu a assistência médica, devido à dor persistente no peito, tosse e alguma falta de ar, tendo sido submetido a exame médico RX ao tóraz após 5 dias do sucedido; vi. teve pesadelos e insónias durante os meses que se seguiram»; [facto provado 32] «em consequência do descrito em 12) a 14), a autora: i. sofreu dores na zona do peito, por força do accionamento do cinto de segurança, dores essa que persistiram durante dois meses; ii. ficou com uma escoriação num dos joelhos, que embateu no tablier do veículo; iii. sentiu pânico e medo; iv. Sentiu preocupação e angústia em face do estado da sua mãe, descrito em 16); v. teve pesadelos e insónias durante os meses seguintes ao sucedido; vi. Começou a sentir insegurança ao conduzir ou a ser transportada em veículos automóveis, o que persiste à presente data; vii. manteve preocupação e angústia relativamente ao estado da mãe durante os meses que se seguiram».
XXVI. Por seu turno, e também ao contrário do sentenciado pelo Tribunal a quo, a factualidade descrita no facto não provado g) e facto não provado h), encontra demonstração e correspondente prova nas declarações de parte da autora (designadamente, aos minutos 00:50:05 a 00:50:15 e minutos 00:53:39 a 01:00:22) e no depoimento da testemunha E … (designadamente, ao minuto 01:55:38 e aos minutos 01:58:38 a 01:58:52); uma vez que: das declarações de parte e depoimento mencionados, resulta que:
- a autora adquiriu o veículo automóvel matrícula …-QF-… para, entre o demais, o usar diariamente nas suas deslocações casa – trabalho;
- a autora usava o veículo automóvel sua propriedade todos os dias;
- a autora usava o veículo automóvel sua propriedade para as suas deslocações diárias de casa para o seu local de trabalho; - a autora utilizava o veículo identificado aos fins de semana; - a autora usava o veículo automóvel sua propriedade para as suas deslocações pessoais, como fossem deslocações para fazer compras, realizar passeios, visitar os seus pais; - a autora, por força da imobilização e impossibilidade de utilizar o veículo sua propriedade, sofreu incómodos, necessitando de boleias dos seus colegas de trabalho, necessitando de recorrer a transportes públicos e deixando de visitar os seus pais com a regularidade que fazia antes do acidente.
XXVII. Por seu turno, o facto não provado f), designadamente, que a autora reside na Rua …, número …, ….º direito, …, 2775-…, Parede e trabalha em Lisboa, encontra demonstração e prova inequívoca: 1. Das declarações de parte da autora ora recorrente, designadamente aos minutos 00:16:43 a minuto 00:17:21, novamente aos minutos 00:31:57 a minuto 00:32:03 e novamente aos minutos 00:54:29 a minuto 00:54:36; 2. Do depoimento da testemunha E …, designadamente e entre o demais, ao minuto 01:55:38 e seguintes; 3. Dos documentos juntos aos autos, e dos quais resulta a morada da autora ora recorrente, designadamente: - do documento 1 junto pela autora com a sua petição inicial, designadamente, do DUA, onde consta a morada da autora; - do documento 2 junto pela autora com a sua petição inicial, designadamente, do Auto de Participação de Acidente de Viação, onde consta a morada da autora; - do documento 5, documento 6 e documento 7, juntos pela autora com a sua petição inicial, designadamente, cartas remetidas pela ré à autora, e das quais consta a sua morada; - do documento 9 e documento 14, juntos pela autora com a sua petição inicial, designadamente, facturas emitidas à autora e das quais consta a morada desta; - do documento 17 e junto pela autora com a sua petição inicial, designadamente, carta verde, da qual consta a morada daquela;
- do relatório de averiguação da ré, junto aos autos pela ré em sede de audiência de julgamento, do qual constam as declarações da autora, sua identificação e sua morada.
XXVIII. Termos em que se impõem, nos termos do disposto no artigo 662.º do Código de Processo Civil, a modificação do elenco dos factos provados, designadamente, fazendo dele constar os factos que, pelo Tribunal a quo, foram erradamente julgados como não provados; passando assim a constar do elenco dos factos provados: [facto provado 35)] «A autora utilizava o veículo …-QF-… para as deslocações diárias para o trabalho e para deslocações de lazer aos fins-de-semana», [facto provado 36)] «Durante o período referido na alínea e) supra, a autora recorreu a boleias de colegas e a transportes públicos para se deslocar para o seu local de trabalho»; [facto provado 34)] «A autora reside na Parede e trabalha em Lisboa».
XXIX. A autora ora recorrente não aceita igualmente a decisão proferida quanto ao facto não provado e), pugnando pela sua inclusão no elenco dos factos provados, uma vez que é absolutamente inquestionável que, devido aos estragos sofridos, o veículo …-QF-… deixou de poder circular, ficando imobilizado desde o dia 15 de outubro de 2022 até à sua reparação e entrega, em 27 de fevereiro de 2023.
XXX. A demonstração e prova do facto mencionado é inequívoca quando considerado o facto provado 17), que expressamente contempla que, em consequência do acidente a que reportam os presentes autos, o veículo …-QF-…, propriedade da autora ora recorrente, sofreu estragos na sua traseira e dianteira, melhor descritos nas fotografias a fls. 20 verso, 21 verso, 22 verso e 23 (que se dão integralmente por reproduzidas). Ora, olhadas as fotografias mencionadas, e os estragos provocados no veículo propriedade da autora, a conclusão não pode ser outra que não a sua absoluta impossibilidade de circular.
XXXI. É que, vejamos: - o veículo propriedade da autora ficou absolutamente danificado na sua traseira; - os faróis traseiros apresentam danos, que impossibilitam o funcionamento/uso de luzes de presença traseiras, as luzes de travagem, as luzes de marcha-atrás e as luzes de matrícula; - o farol traseiro direito ficou absolutamente destruído; - o para-choques traseiro apresenta graves danos que consubstanciam a sua absoluta instabilidade e segurança; - a mala apresenta graves danos que impossibilitam a sua utilização; - a matrícula apresenta graves danos que impossibilitam a identificação do veículo através da mesma.
XXXII. Com o devido respeito, é de censurar a lógica do Tribunal a quo segundo a qual o veículo propriedade da autora poderia circular porque o seu motor não se encontrava afectado, uma vez que é inequívoca a dimensão dos danos resultantes do acidente a que reportam os presentes autos é inequívoca, sendo igualmente inequívoca a impossibilidade de o mesmo circular com os danos que apresentava após a ocorrência do acidente, uma vez que não só as condições de segurança do veículo se encontravam absolutamente comprometidas, como é absolutamente inquestionável a proibição de o mesmo circular nas condições em que se encontrava.
XXXIII. É manifesto que o Tribunal a quo errou no julgamento da matéria de facto, pelo que, nos termos do disposto no artigo 662.º do Código de Processo Civil, pugna a ora apelante pela modificação do elenco dos factos provados, designadamente, pela inclusão no elenco dos factos provados do [facto provado 33)] «Devido aos estragos sofridos, o veículo …-QF-… deixou de poder circular, ficando imobilizado desde o dia 15 de outubro de 2022 até à sua reparação e entrega, em 27 de Fevereiro de 2023».
XXXIV. Por tudo quanto exposto, a autora não aceita a decisão proferida pelo Tribunal a quo quanto à dinâmica do acidente, não aceitando igualmente a consequente repartição de responsabilidades, insurgindo-se, por isso, contra a condenação da ré no pagamento de, apenas, 40% do valor despendido com a reparação do veículo sua propriedade.
XXXV. Procedendo a modificação da matéria de facto quanto à dinâmica do acidente – como se crê que virá a suceder – é inequívoco que a responsabilidade pela ocorrência do acidente é de imputar, única e integralmente, à ré ora recorrida, considerando a única e exclusiva responsabilidade do veículo …-TC-… na produção do acidente, porquanto, à data do sinistro, a responsabilidade civil decorrente da circulação daquele se encontrava transferida à ré ora recorrida.
XXXVI. Ora, estando reunidos os pressupostos de que depende o regime da responsabilidade extracontratual emergente de facto ilícito (artigos 483.º e seguintes do Código Civil), e estando demonstrado (pelo facto provado 24) que o veículo da autora sofreu estragos na dianteira e traseira cuja reparação importou para aquela uma despesa no valor de € 8.395,64 (oito mil trezentos e noventa e cinco euros e sessenta e quatro cêntimos), pugna a apelante que seja a decisão de direito proferida pelo Tribunal a quo substituída por outra que condene a ré a pagar à autora a quantia de € 8.395,64 (oito mil trezentos e noventa e cinco euros e sessenta e quatro cêntimos) a título de indemnização pelos danos provocados pelo veículo …-TC-… no veículo matrícula …-QF-….
XXXVII. Sem prescindir, mesmo entendendo este Douto Tribunal pela improcedência das alegações de recurso da apelante quanto à dinâmica do acidente e, por isso, se mantendo a decisão de facto proferida pelo Tribunal a quo, sempre haverá a modificar a decisão de direito proferida quanto à repartição de responsabilidades, designadamente, quanto à ocorrência do acidente e consequentemente, quanto à responsabilidade pelo pagamento dos danos resultantes do mesmo.
XXXVIII. Isto porque, mesmo se mantendo a decisão de facto inalterada, sempre há a ocorrência de dois sinistros distintos entre si: primeiro o embate do veículo …-QF-… no veículo …-CX-…; e, posteriormente, o embate do veículo …-TC-… no veículo …-QF-…, com projecção deste último para a frente e que implicou novo embate do veículo …-QF-… no veículo …-CX-….
XXXIX. Ora, não é aceitável – nem sequer concebível – que seja atribuído ao veículo propriedade da autora ora recorrente, a responsabilidade de 60% pela ocorrência do acidente nos termos descritos, uma vez que o veículo propriedade da autora ora recorrente foi embatido na sua traseira pelo veículo …-TC-…, em virtude (apenas!) do facto da sua condutora não ter travado em tempo útil a evitar o mesmo – tal como decorre do facto provado 13. Ou seja, o veículo propriedade da autora não contribuiu, de forma alguma, para a ocorrência do descrito embate, sendo o mesmo, única e exclusivamente, da responsabilidade da ora ré, seguradora do veículo causador do mesmo.
XL. Assim, e mesmo se atendendo â matéria de facto inalterada – caso não venham a proceder as alegações de recurso da ora apelante – há que modificar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, designadamente, quanto às responsabilidades pelos sinistros ocorrido; modificando-se a mesma, no respeitante à responsabilidade por cada um dos sinistros nos seguintes termos: 1. Pelo primeiro sinistro que consistiu no embate da dianteira do veículo …-QF-… na traseira do veículo …-CX-…, a responsabilidade será integralmente do condutor do veículo …-QF-… por violação, entre o demais, do artigo 24.º do Código da Estrada; 2. Pelo segundo sinistro, que consistiu no embate que  consistiu no embate da dianteira do veículo …-TC-… na traseira do veículo …- QF-… com consequente embate (por força da projecção para a frente) da frente do veículo …-QF-… na traseira do veículo …-CX-…, a responsabilidade é única, exclusiva e inteiramente da condutora do veículo …-TC-…, também por violação, entre o demais, do artigo 24.º do Código da Estrada.
XLI. Ora, se: 1. do primeiro sinistro, resultaram danos: a) na frente do veículo …- QF-…; e, b) na traseira do veículo …-CX-… – todos melhor descritos nas fotografias a fls. 20 verso e 22 verso que se dão integralmente por reproduzidas; e 2. do segundo sinistro, resultaram danos: a) na frente do veículo …-TC-…; b) na traseira do veículo …-QF-…; c) na traseira do veículo …-QF-…; e, d) na traseira do veículo …-CX-… – todos melhor descritos nas fotografias a fls. 20 verso e 22 verso que se dão integralmente por reproduzidas; 3. haverá que, com recurso ao artigo 506.º do Código Civil que expressamente se invoca, fixar diferente responsabilidade pela reparação dos danos provocados pelos sinistros, em virtude das diferentes responsabilidades pela produção dos mesmos.
XLII. Assim, salvo melhor entendimento, haverá a fixar a responsabilidade pela reparação dos danos resultantes dos sinistros mencionados, nos seguintes termos: 1. do primeiro sinistro, resultaram: 50% dos danos verificados, à final, na frente do veículo …-QF-…; e 50% dos danos verificados, à final, na traseira do veículo …-CX-…; 2. do segundo sinistro, resultaram: 50% dos danos verificados, à final, na frente do veículo …-QF-…; e 100% dos danos verificados, à final, na traseira do veículo …-QF-….
XLIII. Assim fixadas as responsabilidades, haverá então que apurar a dimensão dos danos a liquidar pela ré ora recorrida, seguradora do veículo …-TC-…, designadamente, nos seguintes danos: 1. 50% dos danos verificados, à final, na frente do veículo …-QF-…; 2. 100% dos danos verificados, à final, na traseira do veículo …-QF-….
XLIV. Resulta do facto provado 24) que a autora, com a reparação dos estragos sofridos no veículo …-QF-…, despendeu a quantia total de € 8.395,64 (oito mil trezentos e noventa e cinco euros e sessenta e quatro cêntimos); sendo que serviram à prova do facto descrito as facturas que compõem os documentos 13 e 14 juntos com a petição inicial – documentos estes que não foram impugnados pela ré – sendo que, do documento 13 junto com a petição inicial resulta o valor de € 738,10 (setecentos e trinta e oito euros e dez cêntimos) afecto à reparação dos danos na traseira do veículo …-QF-…; sendo que, do documento 14 junto com a petição inicial resulta o valor de € 2.268,32 (dois mil duzentos e sessenta e oito euros e trinta e dois cêntimos) afecto à reparação dos danos na traseira do veículo …-QF-… e o valor de € 3.530,10 (três mil quinhentos e trinta euros e dez cêntimos) afectos à reparação global dos danos do mesmo.
XLV. Ora, em face de tudo quanto exposto, é manifesto que o Tribunal a quo andou mal, muito mal!, ao decidir nos seguintes termos: «tendo em consideração a repartição de culpas acima fixada, a importância a indemnizar pela ré corresponderá apenas a 40 % do valor despendido pela autora com a reparação do veículo, o que totaliza a quantia de € 3.358,26 (três mil trezentos e
cinquenta e oito euros e vinte e seis cêntimos)».
XLVI. No modesto entendimento da autora ora recorrente, a mesma não deverá ser ressarcida em 40% da reparação total, mas sim em 100% da despesa em que incorreu com a reparação da traseira e em 50% da despesa em que incorreu com a reparação da dianteira do seu veículo, no valor de € 5.701,03 (cinco mil setecentos e um euro e três cêntimos) assim apurado: 1. 50% da responsabilidade da ré pela reparação dos danos verificados, à final, na dianteira do veículo …-QF-…: € 1.859,12 x 50% = € 929,56; 2. 100% da responsabilidade da ré pela reparação dos danos verificados, à final, na traseira do veículo …-QF-…: € 2.268,32 + € 738,10 x 100% = € 3.006,42; 3. 50% da responsabilidade da ré pela reparação dos danos verificados quando consideradas as quantias despendidas com reparação globalmente considerada, como sejam a pintura ou a mão de obra: € 3.530,10 x 50% = € 1.765,05.
XLVII. Posto isto, e em suma, mesmo que se entenda – e assim se venha a confirmar por este Douto Tribunal de Recurso – que o acidente em causa é, na verdade, um choque em cadeia resultante de dois acidentes distintos, requer a ora apelante que seja a ré ora recorrida condenada no pagamento, àquela, da quantia de € 5.701,03 (cinco mil setecentos e um euro e três cêntimos), por correspondência aos danos provocados, pelo veículo …-TC-… na traseira e dianteira do veículo propriedade da autora e matrícula …-QF-….
XLVIII. A autora ora recorrida não se conforma também com a absolvição da ré ora recorrida no pagamento de indemnização pelo dano de privação de uso, insurgindo-se contra a conclusão do Tribunal a quo, nomeadamente, que não foi possível concluir pela existência de um dano na esfera da autora, nem pelo integral preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil, em virtude de, no seu entendimento, não ter ficado demonstrada qual a utilização  dada habitualmente ao veículo sinistrado pela autora, nem a utilização que lhe pretendia dar no período coincidente com a privação do uso – motivo pelo qual,
no entendimento do Tribunal a quo, nenhuma justificação ser encontrada para o arbitramento de qualquer indemnização.
XLIX. O exposto não é de admitir, uma vez que resulta do elenco dos factos provados que: - a autora é proprietária do veículo de marca BMW com a matrícula …-QF-…; - o veículo matrícula …-QF-…, propriedade da autora, sofreu danos na sua traseira; - que os danos sofridos são os que resultam das fotografias a fls. 20 verso e 22 verso; - que os danos que o veículo matrícula …-QF-… impedem a sua circulação – conforme já supra alegado, demonstrado e comprovado; Mas mais! Crendo-se pela procedência das alegações de recurso da ora apelante quanto à modificação da matéria de facto, dos factos provados resulta ainda adicionalmente que: - a autora se viu privada de usar o veículo automóvel sua propriedade desde a data do acidente a e a data da sua reparação e entrega, designadamente, entre dia 15 de outubro de 2022 e 27 de fevereiro de 2023, respectivamente; - a autora utilizava o veículo sua propriedade para as deslocações diárias para o trabalho e para deslocações de lazer aos fins-de-semana; - que durante o período durante o qual a autora se viu privada de usar o veículo automóvel sua propriedade, a autora recorreu a boleias de colegas e a transportes públicos para se deslocar para o seu local de trabalho.
L. A corrente doutrinal e jurisprudencial actualmente maioritária – e à qual se crê aderir este Douto Tribunal de Recurso, atentas as tão vastas decisões de tribunais superiores neste sentido – sustenta que a privação do uso de um veículo sinistrado constitui um dano patrimonial indemnizável por se tratar de uma ofensa ao direito de propriedade e caber ao seu proprietário optar livremente utilizá-lo ou não (artigo 1305.º do Código Civil), uma vez que esse direito de dispor e de usar do veículo é inerente ao direito de propriedade detido pelo proprietário sobre a viatura sinistrada e, inclusivamente, é-lhe assegurado e reconhecido pelo artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa, devendo a privação desse uso ser economicamente valorizável, se necessário, com recurso à equidade. Ou seja, a simples privação do uso é causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património, pelo que o simples uso do veículo constitui uma vantagem suscetível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano, sendo este imediatamente ressarcível por corresponder, precisamente, à indisponibilidade do bem, independentemente de qualquer que fosse a atividade a que o veículo estava afeto.
LI. No caso sub judice, ficou claramente demonstrado que a autora ficou privada do uso do veículo automóvel sua propriedade, atenta a dimensão dos danos sofridos – e que determinam a inquestionável impossibilidade de o mesmo ser utilizado e conduzido – desde a data da ocorrência do acidente, 15 de outubro de 2022, e até à data da sua reparação, concluída em 27 de fevereiro de 2023; tendo ficado igualmente e claramente demonstradas as utilidades que a autora ora apelante retirava do veículo automóvel sua propriedade – era utilizado diariamente pela autora para as deslocações entre a sua habitação e o seu local de trabalho, bem como utilizado pela autora na sua vida pessoal, para ir às compras, para visitar os seus pais, para passear aos fins-de-semana, entre o demais.
LII. Sem prejuízo, como se disse supra, mesmo que assim não se entendesse, i.e., que não se atendesse à matéria de facto a adicionar ao elenco dos factos provados na sequência das alegações de recurso da autora, a verdade é que a autora sempre teria – e tem! – direito a ser ressarcida pela privação de uso do veículo sua propriedade, em consequência, única e exclusivamente, da impossibilidade de uso do mesmo.
LIII. A apelante demonstrou os custos de aluguer praticado pelas empresas de aluguer de veículos automóveis para uma viatura da mesma classe da acidentada, através de prova documental junta com a sua petição inicial, designadamente, pelo documento 15, tendo peticionado o valor diário de € 30,00 (trinta euros) por ser o mesmo razoável e justo, quer por estar em concordância com o entendimento jurisprudencial dominante, quer por corresponder a um valor inferior ao preço de aluguer praticado pelas empresas de aluguer de veículos automóveis para uma viatura da mesma classe da acidentada, dado que nesse preço/dia de aluguer estão necessariamente contempladas as despesas de exploração da empresa de aluguer e o lucro do empresário e que, naturalmente, não são atendíveis para efeitos de fixação do valor indemnizatório a atribuir.
LIV. Termos em que, requer a autora ora apelante a procedência das presentes alegações de recurso quanto à questão ora enunciada, e, em consequência, que seja revogada a Sentença ora recorrida na parte em que absolveu a ré ora recorrida do pagamento à autora de indemnização a título de paralisação do veículo por 135 (cento e trinta e cinco) dias, condenando-se a ré a pagar à autora a quantia de € 4.050,00 (quatro mil e cinquenta euros) pelo dano de privação de uso do veículo, acrescida de juros de mora legalmente devidos.
LV. Por fim, a autora ora apelante não aceita ainda a decisão proferida pelo Tribunal a quo quanto à absolvição da ré ora recorrida no pagamento de indemnização pelos danos não patrimoniais, porquanto, dando-se provimento ao recurso da decisão de facto, como se crê virá a dar, nomeadamente no que à modificação dos factos diz respeito há a considerar a factualidade decorrente do (novo) facto provado 31) e (novo) facto provado 32).
LVI. Ora, a pretensão da autora funda-se no instituto da responsabilidade civil extracontratual, conforme expressamente prevista no número 1 do artigo 483.º e artigo 562.º, ambos do Código Civil., verificando-se o preenchimento dos pressupostos do instituto mencionado, na medida em que se verifica, 1. por um lado, por parte da ré, a obrigação de indemnizar por força da ocorrência de um facto voluntário, ilícito e culposo; e, 2. por outro lado, a existência de um dano de natureza não patrimonial sofrido pela autora ora recorrente, cujo nexo de causalidade com o facto que o provocou se encontra verificado, verificando-se igualmente a gravidade do dano, que justifica a correspondente tutela pelo direito aplicável.
LVII. O valor peticionado é justo, razoável e adequado ao ressarcimento dos danos sofridos pela autora ora recorrente, termos em que, se dando provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão proferida e modificando-se a mesma no sentido de julgar a acção parcialmente procedente, condenando a ré ora recorrida, no pagamento, à autora ora recorrente, do montante de € 3.000,00 (três mil euros), a título de danos não patrimoniais resultantes do acidente de que foi vítima e a que reportam os presentes autos.
LVIII. Termos em que, por tudo quanto exposto, requer a autora ora apelante a procedência das presentes alegações de recurso quanto à questão ora enunciada, e, em consequência, que seja revogada a Sentença ora recorrida, substituindo-se a mesma por outra que condene a ré ora recorrida nos seguintes termos: I) no pagamento, à autora, da quantia de € 8.395,64 (oito mil trezentos e noventa e cinco euros e sessenta e quatro cêntimos) a título de indemnização pelos prejuízos sofridos pela autora com a reparação dos estragos na dianteira e traseira do veículo sua propriedade e resultantes do acidente a que reportam os presentes autos; ou, não se entendendo pela única e exclusiva responsabilidade do veículo seguro pela ré na produção dos danos verificados, no pagamento, à autora, da quantia de € 5.701,03 (cinco mil setecentos e um euro e três cêntimos), correspondente à proporção de responsabilidade do veículo seguro pela ré na produção dos danos verificados; II) no pagamento, à autora, da quantia de € 4.050,00 (quatro mil e cinquenta euros) a título de indemnização pela privação de uso do veículo sua propriedade; III) no pagamento, à autora, da quantia de € 3.000,00 (três mil euros) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos em consequência do acidente a que reportam os presentes autos.»
Conclui a recorrente que deve o recurso ser julgado procedente.

A recorrida contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
                                                           *
II. QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados nos artigos 635º/4 e 639º/1 do Código de Processo Civil, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso e daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, importa, no caso, apreciar e decidir das seguintes questões:
- Impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
- Verificação dos pressupostos da responsabilidade civil (extra-contratual) conducentes à responsabilização da ré/apelada pelo pagamento da indemnização peticionada pela autora/apelante, incluindo danos patrimoniais (reparação do veículo), não patrimoniais e privação de uso do veículo pela A..
*
III. FUNDAMENTAÇÃO
III.1. Factos
Factos provados
O tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos [transcrição]:
1) No dia 15 de Outubro de 2022, pelas 17:50 horas, em Setúbal, no IC20, ao quilómetro 2, sentido Costa de Caparica/Almada, na via de trânsito central, os seguintes veículos automóveis colidiram:
a) o veículo de marca Mercedes com a matrícula …-CX-…;
b) o veículo de marca BMW com a matrícula …-QF-…;
c) o veículo automóvel marca BMW com a matrícula …-TC-….
2) A propriedade do veículo de matrícula …-QF-… encontra-se registada em nome da autora.
3) Nessa data, a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo …-TC-… encontrava-se transferida para a ré, por contrato de seguro titulado pela apólice n.º … 02.
4) O local caracterizava-se por uma via rápida com perfil de auto-estrada, de dois sentidos, divididos por um separador central, cuja faixa de rodagem era composta por 3 vias de trânsito em cada um dos sentidos.
5) O local era uma recta, com boa visibilidade.
6) Estava bom tempo e o piso encontrava-se seco e limpo.
7) O trânsito era intenso.
8) Os três veículos seguiam no sentido Costa de Caparica-Almada, na via de trânsito central.
9) No interior do veículo …-QF-…, o marido da autora seguia no lugar da autora, a autora no lugar do pendura e a sua mãe de 88 anos no banco de trás.
10) O veículo …-CX-… seguia imediatamente à frente do veículo …-QF-….
11) O veículo …-TC-… seguia imediatamente atrás do veículo …-QF-….
12) Ao quilómetro 2, veículo …-QF-… embateu, com a sua frente, na traseira do veículo …-CX-….
13) A condutora do veículo …-TC-… não accionou os mecanismos de travagem.
14) Momentos depois, a veículo …-TC-… embateu, com a sua frente, na traseira do veículo …-QF-….
15) Neste seguimento, o veículo …-QF-… foi projectado para a frente, embatendo com a dianteira na traseira do veículo …-CX-….
16) Em consequência do descrito em 12) a 14), o veículo …-CX-… sofreu estragos na sua dianteira, melhor descritos nas fotografias a fls. 20 verso e 22 verso (que se dão integralmente por reproduzidas).
17) Em consequência do descrito em 12) a 14), o veículo …-QF-… sofreu estragos na sua traseira e dianteira, melhor descritos nas fotografias a fls. 20 verso, 21 verso, 22 verso e 23 (que se dão integralmente por reproduzidas).
18) Em consequência do descrito em 12) a 14), o veículo …-TC-… sofreu estragos na sua dianteira, melhor descritos nas fotografias a fls 20 verso, 23, e 24 (que se dão integralmente por reproduzidas).
19) O veículo …-QF-… esteve na oficina da BMW Caetano Baviera, Parque das Nações, para peritagem e avaliação, pela ré, dos estragos sofridos, durante cerca de três semanas.
20) A ré orçou a reparação dos estragos sofridos no veículo …-QF-…, em oficina da marca BMW, no valor estimado de € 16.100,14.
21) Por carta datada de 28 de Novembro de 2022, sob o assunto “Comunicação de Responsabilidade”, remetida pela ré à autora, que a recebeu, a ré informou a autora de que o veículo …-TC-… era «responsável pela totalidade dos danos que se verificam na traseira da viatura com a matrícula em epígrafe e apenas de 25 % dos danos que se verificaram na frente da mesma viatura, uma vez que se concluiu, em sede de averiguação que o condutor do veículo de V. Exa., já teria embatido na traseira do veículo …-CX-… quando foi embatida na sua traseiro pelo veículo …-TC-… verificando-se projecção para o veículo que a precedia».
22) Por carta datada do mesmo dia, sob o assunto “Proposta Condicional de Perda Total”, remetida pela ré à autora, que a recebeu, a ré informou a autora de que «[n]a situação em concreto, considerando o valor estimado para a reparação 16.100,14€ na oficina Caetano Baviera Comercio De Automóveis Sa, a melhor proposta de aquisição da sua viatura com danos (salvado) 10.200,00€, bem como o seu valor de marcado antes do acidente 15.200,00€ (…), colocamos ao vosso dispor o valor de 5.000,00€».
23) A autora não aceitou a proposta da ré, motivo pelo qual a ré não entregou à autora a referida quantia de € 5.000,00.
24) A autora despendeu a quantia total de € 8.395,64 com a reparação dos estragos sofridos no veículo …-QF-…, na oficina Auto Eléctrica da Galiza, Lda.
25) O veículo …-QF-… é um BMW série 1, 116D, Efficient Dynamics.
26) É movido a gasóleo.
27) Tem primeira matrícula datada de 2015.
28) À data dos factos, tinha 111.244,00 quilómetros percorridos.
29) A ré foi citada para a presente acção no dia 19 de Abril de 2023.

Factos não provados
O tribunal de 1ª instância julgou não provado que:
a) O embate descrito em 12) deu-se por motivo de o veículo …-QF-… ter sido embatido na sua traseira pelo veículo …-TC-… e, em consequência, projectado para a frente.
b) Em face do embate descrito em 12), o condutor do veículo …-TC-… accionou os órgãos de travagem.
c) Em consequência do descrito em 12) e 14), a mãe da autora:
i. ficou desorientada e sofreu alteração da tensão arterial;
ii. ficou com um ferimento no nariz, por força do embate dos óculos que
usava;
iii. embateu com a cabeça e nariz nas costas do banco da frente, o que lhe causou um hematoma na cabeça;
iv. sofreu dores na zona do peito, por força do accionamento do cinto de segurança, dores essa que persistiram durante dois meses;
v. recorreu a assistência médica, devido à dor persistente no peito, tosse e alguma falta de ar, tendo sido submetido a exame médico RX ao tóraz após 5 dias do sucedido.
vi. teve pesadelos e insónias durante os meses que se seguiram.
d) Em consequência do descrito em 12) a 14), a autora:
i. sofreu dores na zona do peito, por força do accionamento do cinto de segurança, dores essa que persistiram durante dois meses;
ii. ficou com uma escoriação num dos joelhos, que embateu no tablier do veículo;
iii. sentiu pânico e medo;
iv. sentiu preocupação e angústia em face do estado da sua mãe, descrito em 16);
v. teve pesadelos e insónias durante os meses seguintes ao sucedido;
vi. começou a sentir insegurança ao conduzir ou a ser transportada em veículos automóveis, o que persiste à presente data;
vii. manteve preocupação e angústia relativamente ao estado da mãe durante os meses que se seguiram.
e) Devido aos estragos sofridos, o veículo …-QF-… deixou de poder circular, ficando imobilizado desde o dia 15 de Outubro de 2022 até à sua reparação e entrega, em 27 de Fevereiro de 2023.
f) A autora reside na Parede e trabalha em Lisboa.
g) A autora utilizava o veículo …-QF-… para as deslocações diárias para o trabalho e para deslocações de lazer aos fins-de-semana.
h) Durante o período referido na alínea e) supra, a autora recorreu a boleias de colegas e a transportes públicos para se deslocar para o seu local de trabalho.
i) À data dos factos, o valor de mercado do veículo …-QF-… ascendia aos €15.200,00.
j) Após os estragos sofridos, o valor estimado do veículo …-QF-… ascendia a €10.200,00.
*
O tribunal de 1ª instância consignou ainda que:
“Inexistem outros factos provados ou não provados com relevância para a decisão da causa.
O Tribunal não se pronuncia quanto à demais matéria alegada pelas partes por se tratar de matéria repetida, conclusiva ou de cariz normativo.”
*
III.2. Mérito do recurso
III.2.1. Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Pretende a apelante que sejam alterados os factos julgados provados nos pontos 12, 14 e 16 do acervo factual apurado na sentença recorrida e que seja dada como provada a factualidade julgada não provada em c), d), g), h) e f).
Nos termos do disposto no art. 662º/1 do Cód. Proc. Civil, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Dispõe, por sua vez, o art. 640º/1 do Cód. Proc. Civil que: “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
“a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
Resultando do corpo das alegações de recurso e respectivas conclusões que a recorrente deu cumprimento aos ónus impostos pelo art. 640º do CPC, importa apreciar este segmento do recurso, analisando os factos impugnados conjuntamente, atenta a sua interligação.

Factos provados nºs 12, 14 e 16
12) Ao quilómetro 2, veículo …-QF-… embateu, com a sua frente, na traseira do veículo …-CX-….
14) Momentos depois, o veículo …-TC-… embateu, com a sua frente, na traseira do veículo …-QF-….
16) Em consequência do descrito em 12) a 14), o veículo …-CX-… sofreu estragos na sua dianteira, melhor descritos nas fotografias a fls. 20 verso e 22 verso (que se dão integralmente por reproduzidas).

Facto não provado a)
O embate descrito em 12) deu-se por motivo de o veículo …-QF-… ter sido embatido na sua traseira pelo veículo …-TC-… e, em consequência, projectado para a frente.

O tribunal recorrido apresentou a seguinte motivação quanto aos mencionados factos:
«Relativamente aos factos 12), 14), e 15) da inquirição dos intervenientes no acidente dos autos resultou duas versões contraditórias sobre a dinâmica dos factos:
− De um lado, corroborando a versão da petição inicial, a autora e o seu marido E … afirmaram que o veículo da autora se encontrava imobilizado quando foram abalroados na traseira pelo veículo …-TC-…, que seguia a “alta velocidade”, o que fez com o seu veículo fosse projectado para a frente, embatendo com a dianteira na traseira do veículo …-CX-…;
− De outro lado, corroborando a versão da contestação, a testemunha B …, que conduzia o veículo …-TC-…, atestou que estava no pára-arranca há cerca de cinco minutos, avançando e retomando a marcha de acordo com os movimentos do veículo da autora, quando este travou repentinamente e, sem ter tempo de travar, embateu contra veículo da autora; e a testemunha C …, que conduzia o veículo …-CX-…, atestou, de forma firme, que sentiu um primeiro choque “muito forte” na traseira da sua viatura, não tendo, contudo, certeza se o segundo choque de que se recorda também foi sentido ou apenas ouvido, atento o tempo já decorrido. Contudo, quando confrontada com as declarações prestadas à ré nos dias seguintes ao do acidente, a fls.70, afirmou que o que ficou escrito terá sido que aconteceu, pois não haveria razão para ter feito consignar algo diverso da realidade.
Ora, apesar de as declarações da autora e do seu marido parecerem, num primeiro momento, convincentes, atenta a forma como depuseram em julgamento, da conjugação de toda a demais prova carreada para os autos resultou que a sua versão não tem amparo na dinâmica real do acidente
Em primeiro lugar, conforme referido pelo marido da autora, o trânsito estava pardo, pelo menos, dois minutos, pelo que não se percebe como é o que veículo …-TC-… teria espaço livre para atingir “alta velocidade”, considerando que estava imediatamente atrás do seu veículo (a não ser que o trânsito terminasse no veículo …-TC-…, o que o marido da autor não foi capaz de atestar, nem se mostra compatível com a configuração do local do acidente).
Em segundo lugar, e de forma determinante, o alegado na petição inicial mostra-se incompatível com a versão absolutamente isenta de C …, de quem não pode ser assacada qualquer responsabilidade pelo acidente, que foi consistentemente prestada na participação lavrada pela GNR imediatamente após o acidente (cf. fls. 18 verso) e no processo de averiguação do sinistro conduzido pela ré (cf. fls. 70).
De forma determinante, a tese dos dois embates encontra, ainda, suporte nas marcas que o veículo da testemunha apresentava, porquanto o mesmo exibia estragos na traseira com duas alturas distintas, conforme resulta das fotografias juntas aos autos a fls. 87 e 88 e foi explicado pela testemunha D …, perito da ré que avaliou o sinistro e elaborou o relatório de averiguação a fls. 77 verso a 79 (cf. em especial, fls. 79), que sustentou a decisão da ré quanto à distribuição das responsabilidades pelo sinistro.
Assim, inexistindo quaisquer motivos de suspeição da versão apresentada pela testemunha C … quer na data dos factos, quer em julgamento, sempre fazendo menção a dois “choques” (embates), conjugada com o registo fotográfico que acompanha o relatório elaborado pelo perito da ré, o Tribunal não tem qualquer dúvida de que o veículo da autora embateu, por duas vezes, na viatura …-CX-….
Em consequência, cai por terra a tese sustentada pela autora pelo seu marido.
Efectivamente, conforme decorreu do importante contributo da testemunha F …, orçamentista do ramo automóvel há 15 anos, que examinou o veículo da autora quando elaborou o orçamento de reparação apresentado pela ré, os estragos que o veículo apresentava só podiam ter uma de duas explicações: ou o veículo foi atingido por trás e, em consequência, projectado para a frente, embatendo na viatura à sua frente; ou embateu na viatura da frente e, só após, foi atingido na sua traseira pelo veículo de trás.
Ora, somente esta última hipótese avançada se mostra compatível com a forma como a viatura da testemunha de C … foi atingida, porquanto esta viatura não sofreu qualquer colisão na sua dianteira, mas apenas na sua traseira (cf. fotografias fls. 87 e 88).
Assim os dois impactos sentidos pela testemunha foram-no, necessariamente, na traseira da viatura e, nessa medida, provocados por dois embates do veículo da autora: o primeiro só pode ter sido resultado do embate directo do veículo da autora; e o segundo da projecção para a frente do veículo da autora, causado pelo embate do veículo …-TC-….
Note-se que a tese sustentada pela autora e pelo seu marido não permite contextualizar o segundo embate sofrido pela viatura …-CX-…, que fica, assim, sem qualquer explicação, motivo pelo qual não pode colher junto deste Tribunal.
Nessa medida, o acidente só pode ter apresentado a dinâmica descrita na contestação:
1.º) o veículo da autora embateu na traseira da viatura …-CX-…; 2.º) a viatura a …-TC-… embateu na traseira do veículo da autora; 3.º) o veículo da autora foi projectado para a frente, embatendo novamente na traseira da viatura …-CX-….
Em face do acima exposto, por se tratarem de factos integradores da matéria de excepção invocada pela ré, a factualidade acima consignada foi dada como provada – art. 342.º, n.º 2 do Cód. Civil.
(…)
No que concerne à factualidade dada como não provada, a decisão do Tribunal quanto ao facto a) assentou na circunstância de a dinâmica apresentada pela autora na P.I se encontrar em contradição com os factos provados 12) a 14.»
Quanto ao facto 16, foi um dos factos que o tribunal considerou assente por acordo, atenta a ausência de impugnação especificada pela ré.

Pretende a recorrente que seja:
- eliminado o facto provado 12;
- considerado provado o facto a), julgado não provado;
- alterada a redacção dos factos provados 14 e 16 nos seguintes termos:
“14. «O veículo …-TC-… embateu, com a sua frente, na traseira do veículo …-QF-…».
16. «Em consequência do acidente descrito em 12) a 14), o veículo …-CX-… sofreu estragos na sua traseira, melhor descritos nas fotografias a fls. 20 verso e 22 verso (que se dão integralmente por reproduzidas)».
Para tanto, sustenta, no essencial que:
- O tribunal a quo andou mal ao julgar como bom o depoimento da testemunha B …, que é incompatível com a realidade dos factos, designadamente com os danos provocados no seu veículo em consequência de ter embatido no veículo que seguia à sua frente;
- não é clara e inequívoca a versão relatada pela testemunha C … quanto à dinâmica do acidente;
- confrontando o depoimento da testemunha D … com o depoimento da testemunha C …, não pode ser acolhida a tese da ré, segundo a qual houve dois embates, devendo atender-se também ao depoimento da testemunha F …, que concluiu pela ocorrência de um primeiro embate do veículo automóvel de matrícula …-TC-… no veículo matrícula …-QF-…, com consequente projecção do mesmo para a frente, o que acabou por resultar no embate da dianteira deste na traseira do veículo matrícula …-CX-….
- o tribunal desvalorizou as declarações de parte da autora e o depoimento do marido desta (testemunha E …), sem indicar qualquer motivo para questionar a sua credibilidade.

Ouvida toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, gravada na plataforma citius, cumpre apreciar.
Como assinalou, quer o tribunal recorrido na motivação da decisão de facto, quer a apelante no seu recurso, a questão central a decidir prende-se com a dinâmica do acidente, suscitando-se a dúvida sobre se o veículo da A. (de matrícula …-QF-…) embateu primeiro no veículo que seguia à sua frente (de matrícula …-CX-…) e posteriormente foi embatido pelo veículo que seguia atrás de si (de matrícula …-TC-…) ou se o primeiro embate foi provocado por este veículo (…-TC-…), que ao embater no veículo da A. levou à sua projecção e à subsequente colisão no veículo de matrícula …-CX-….
O Tribunal a quo deu como provada a primeira hipótese, apoiando-se, decisivamente, no depoimento da testemunha C …, condutora do veículo …-CX-…, que seguia à frente da viatura da A. (…-QF-…), segundo a qual seguia numa fila de trânsito lento quando sentiu uma pancada muito forte no seu carro e “logo a seguir outro impacto”, depoimento idêntico ao prestado à GNR na data do acidente, conforme exarado na participação do acidente de viação (documento 2 junto com a petição inicial), coincidente com aquele que veio a prestar dias depois no processo de averiguação de sinistro conduzido pela ré, tal como assegurou a testemunha D ….
Não obstante a testemunha C … não ter sido capaz de precisar, em sede de julgamento, se apenas ouviu o segundo impacto ou se o sentiu no seu carro (circunstância que atribuiu ao lapso de tempo decorrido desde o acidente - cerca de dois anos - e ao trauma que o evento representou para si), tal não pôs em causa a isenção, clareza e coerência do seu testemunho.
E não se diga, como faz a apelante, que do confronto entre aquele depoimento e o da testemunha D … não pode resultar a versão da existência de dois embates. Na verdade, esta última testemunha, na qualidade de avaliador de veículos automóveis há mais de quinze anos, veio reforçar a ideia de que houve, de facto, dois embates, atendendo aos danos apresentados pelos veículos envolvidos no acidente. Relativamente ao veículo …-TC-…, que seguia atrás da viatura da A., a mesma testemunha considerou que, considerando os (avultados) danos na dianteira desse veículo, não podia a mesma vir no “pára arranca”, tinha de circular a maior velocidade.
Entende a apelante que o tribunal deveria ter valorado positivamente as suas declarações, assim como o depoimento do seu marido (testemunha E …). Porém, a versão trazida pela autora – de que o seu veículo da A. (…-QF-…) embateu no …-CX-… por força de ter sido antes embatido pelo …-TC-… – foi infirmada pelas mencionadas testemunhas, designadamente pela testemunha C …, mostrando-se este depoimento plausível em termos de regras de lógica e experiência comum.
Importa sublinhar que não pomos em causa, em abstracto, a força probatória das declarações de parte, tendo-se presente que, nos termos do art. 466º, nº 3 do Cód. Proc. Civil: “O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão”.
Tem vindo a ser amplamente discutido na doutrina e na jurisprudência o modo como esta apreciação deve ser efectuada, podendo dizer-se, tal como no acórdão do TRL de 26/4/2018 acessível in www.dgsi.pt, relatado por Luís Filipe Pires de Sousa (ora 1º Adjunto, que abordou a mesma temática no recente acórdão proferido em 26/5/25, P. 20361/23.2T8LSB.L1), que as várias posições relativas à função e valoração das declarações de parte são reconduzíveis a três teses essenciais: i) a tese do carácter supletivo e vinculado à esfera restrita de conhecimento dos factos; ii) a tese do princípio de prova; iii) a tese da auto-suficiência/valor probatório autónomo das declarações de parte.
Perfilhamos esta terceira tese, no seguimento de Luís Filipe Pires de Sousa, in “As Declarações de Parte. Uma síntese”, em www.trl.mj.pt, 2017; e de Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, in “Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Parte Geral e Processo de Declaração”, Almedina, 2ª ed., p. 552/553, entendendo, na esteira destes autores, que as declarações de parte estão ao mesmo nível que os demais meios de prova, sendo valoradas de forma autónoma e integrada, sem que se estabeleça qualquer hierarquia entre os vários elementos probatórios. A credibilidade das declarações de parte tem de ser aferida em concreto e não em observância de máximas abstractas pré-constituídas, sob pena de se esvaziar a utilidade e potencialidade deste meio de prova.
Volvendo ao caso dos autos e como já vimos, as declarações prestadas pela A. foram claramente infirmadas pela prova testemunhal supra indicada, razão pela qual não foram valoradas positivamente pelo tribunal a quo, juízo que não nos merece qualquer censura.
Em face dos princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados (v. acórdãos do TRP: de 25/3/19, P. 2/15.2T8MAI.P1; de 19/9/2000, CJ XXV, 4, 186; de 12 de dezembro de 2002, Proc. 0230722, www.dgsi.pt.).
Por conseguinte, a Relação só deve lançar mão dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto quando seja possível, com a necessária segurança, concluir pela existência de erro de apreciação relativamente a concretos pontos de facto impugnados – cfr. Acórdãos do TRG de 10/01/2019, relatora Maria João Matos; e de 21/11/2019, relator Jorge Teixeira, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
Flui do que vimos expondo que no caso sub judice inexiste fundamento para alterar ou eliminar o ponto 12 [Ao quilómetro 2, veículo …-QF-… embateu, com a sua frente, na traseira do veículo …-CX-…] e o ponto 14 do acervo factual provado [Momentos depois, o veículo …-TC-… embateu, com a sua frente, na traseira do veículo …-QF-…].
No que tange ao facto provado 16, resulta quer dos demais factos apurados, quer da sua motivação, que aquele ponto contem um lapso manifesto, que importa corrigir, de modo a que, onde se refere que o veículo …-CX-… sofreu danos na parte dianteira, passe a constar que o veículo …-CX-… sofreu danos na parte traseira, por tal resultar evidente da dinâmica do acidente e dos danos registados no CX, matéria que não resulta controvertida.
Face à manutenção dos factos 12 e 14, é forçoso concluir pela manutenção como não provada da factualidade vertida no facto a) julgado não provado, que está em oposição com aquela factualidade.

Factos não provados c), d), f), g) e h)
c) Em consequência do descrito em 12) e 14), a mãe da autora:
i. ficou desorientada e sofreu alteração da tensão arterial;
ii. ficou com um ferimento no nariz, por força do embate dos óculos que
usava;
iii. embateu com a cabeça e nariz nas costas do banco da frente, o que lhe causou um hematoma na cabeça;
iv. sofreu dores na zona do peito, por força do accionamento do cinto de segurança, dores essa que persistiram durante dois meses;
v. recorreu a assistência médica, devido à dor persistente no peito, tosse e alguma falta de ar, tendo sido submetido a exame médico RX ao tórax após 5 dias do sucedido.
vi. teve pesadelos e insónias durante os meses que se seguiram.
d) Em consequência do descrito em 12) a 14), a autora:
i. sofreu dores na zona do peito, por força do accionamento do cinto de segurança, dores essa que persistiram durante dois meses;
ii. ficou com uma escoriação num dos joelhos, que embateu no tablier do veículo;
iii. sentiu pânico e medo;
iv. sentiu preocupação e angústia em face do estado da sua mãe, descrito em 16);
v. teve pesadelos e insónias durante os meses seguintes ao sucedido;
vi. começou a sentir insegurança ao conduzir ou a ser transportada em veículos automóveis, o que persiste à presente data;
vii. manteve preocupação e angústia relativamente ao estado da mãe durante os meses que se seguiram.
f) A autora reside na Parede e trabalha em Lisboa.
g) A autora utilizava o veículo …-QF-… para as deslocações diárias para o trabalho e para deslocações de lazer aos fins-de-semana.
h) Durante o período referido na alínea e) supra, a autora recorreu a boleias de colegas e a transportes públicos para se deslocar para o seu local de trabalho.
Pretende a apelante que tais factos transitem para o acervo provado, estribando-se nas declarações de parte da A. e depoimento do marido desta, E ….

O tribunal de 1ª instância apresentou a seguinte motivação quanto a esta matéria:
«Já no que concerne aos factos c) a i), inexiste qualquer prova documental do alegado e não foi ouvida uma qualquer testemunha que depusesse com isenção sobre tal factualidade, já que toda a prova produzida assentou nas declarações da autora e do seu marido, cuja credibilidade ficou irremediavelmente comprometida em face da posição assumida quanto à dinâmica do acidente.
Efectivamente, as divergências entre a versão declarada pela autora e pelo seu marido e a versão provada nos autos não se reportam a aspectos de menor importância: todo o seu depoimento assenta numa versão que colide frontalmente com a realidade dos factos.
Ora, a credibilidade da prova testemunhal e por declarações de parte não pode ser avaliada de forma fragmentada, consoante os temas da prova, mas sim de forma global e integrada, tendo em conta todo o acervo factual aportado para os autos.
Nessa medida, o absoluto descrédito a atribuir ao relato do acidente contamina, necessariamente, todo o seu depoimento, motivo pelo qual se extrai do mesmo um reduzido (ou, mesmo, inexpressivo) valor probatório quanto aos demais temas da prova.
Sem prejuízo, e como se tal não se bastasse, mesmo relativamente à factualidade ora em análise as declarações da autora e do marido mostraram-se contraditórias, inconsistentes ou insuficientes para a prova do alegado.
No que respeita aos factos c) e h), as declarações prestadas pela autora foram claramente exacerbadas quando comparadas com o testemunho do seu marido, mas, sobretudo, quando confrontadas com a reduzida gravidade e magnitude do acidente, tanto assim é que o airbag do veículo da autora nem se quer disparou (conforme referido pela própria). Por outro lado, inexiste qualquer prova documental das lesões e sequelas alegadas, nomeadamente um registo de entrada no hospital, fotografias dos ferimentos ou relatório médico-psiquiátrico nos quais o Tribunal se possa ancorar.
Relativamente ao facto e), a autora e o seu marido referiram que o motor do veículo não ficou afectado, tanto assim que a testemunha conduziu a viatura desde o local do acidente (Caparica) até à residência do casal na Parede, percorrendo cerca de 30 km’s, donde resulta que o veículo estava capaz de circular. Apenas se tem por certo que a autora ficou privada do veículo durante os dias em que o mesmo esteve na oficina da BMW, persistindo dúvidas sobre o uso que a autora deu, ou não, ao veículo em momento posterior, em virtude dos estragos que apresentava.
Quanto aos factos f), não foi apresentado qualquer documento que atestasse o alegado (v.g. recibo ou declaração de entidade patronal), não se valorando as declarações da autora e do seu marido, por não merecerem qualquer credibilidade.
Por fim, relativamente ao facto g), quem conduzia o veículo no momento do acidente não era a autora, mas sim o seu marido, que tinha uma viatura própria, suscitando-se dúvidas legítimas sobre quem utilizava a viatura no quotidiano (se a autora, se o seu marido).
Em face do acima exposto, por se tratarem de factos integradores do direito invocado pela autora, a quem competia o respectivo ónus de prova, foi a factualidade acima consignada dada como não provada – art. 342.º, n.º 2 do Cód. Civil.
(…)
Em face do acima exposto, por integrar a matéria de excepção invocada pela ré, a quem competia o respectivo ónus de prova, a factualidade acima consignada foi dada como não provada – cf. art. 342.º, n.º 2 do Cód. Civil.»

Em causa estão os alegados prejuízos sofridos pela autora, em consequência do acidente, designadamente lesões (ferida no joelho – art 44º petição inicial), dores (v.g. na zona do peito, devido à pressão do cinto de segurança – art.  40º da petição inicial) e preocupação e angústia pelo seu estado de saúde e de sua mãe (cf. art.s 45º e 157º da petição inicial).
Ora, das declarações da A. resulta apenas que a mesma teve dores no peito devido ao “esticão do cinto de segurança” (tal como a sua mãe) e uma escoriação no joelho, que referiu só ter notado no dia seguinte, referindo que, no momento do acidente, deve ter batido com o joelho no tablier, para além de relatar a sua preocupação e angústia pelo acidente e consequências do mesmo na saúde dela e de sua mãe. Tais declarações não foram confirmadas por outros elementos de prova, designadamente documental (v.g. registo hospitalar, relatório médico, fotografia) ou testemunhal (para além do marido da autora) e, por outro lado, como referiu o tribunal a quo, a circunstância de as declarações da autora não terem sido valoradas de modo relevante e positivo em sede da dinâmica do acidente, não pode deixar de afectar a sua credibilidade em termos globais.  Donde, não nos merece censura o juízo do tribunal que levou a julgar não provada a factualidade vertida em c) e d).
O mesmo se diga relativamente aos invocados prejuízos decorrentes da alegada impossibilidade de circulação do veículo da A. e sua imobilização desde o dia do acidente até à reparação do mesmo [factos não provados e), f), g) e h)]. O veículo da A. não teve danos ao nível mecânico, mas apenas estragos na carroçaria, que não impossibilitaram a sua circulação, tanto que, após o acidente, o carro foi levado pelo marido da A. para sua casa, onde ficou até ser levado para a BMW para a respectiva peritagem (como relatado pela própria autora em sede de audiência). Também não foi produzida prova bastante da utilização diária do veículo pela A. (não sendo, aliás, ela quem conduzia no dia do acidente e nada afastando a hipótese de o veículo ser usado pelo marido), nem sequer do seu local de trabalho. O que nos leva a considerar que bem andou o tribunal ao julgar os apontados factos como não provados.
Pelo exposto, improcede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com excepção do segmento do facto nº 16, nos termos em se rectificou (passando a constar “estragos na sua traseira”, onde se escreveu “estragos na sua dianteira”).
*
III.2.2. Apreciação jurídica
A ora apelante/autora A … insurge-se contra a decisão recorrida quanto à dinâmica do acidente, repartição de responsabilidades e consequente condenação da ré no pagamento de, apenas, 40% do valor despendido com a reparação do veículo da A..
Resulta quer do corpo das alegações, quer das conclusões do recurso que a apelante faz depender a pretendida revogação da sentença da procedência da alteração da decisão da matéria de facto, concluindo que: “Procedendo a modificação da matéria de facto quanto à dinâmica do acidente (…), é inequívoco que a responsabilidade pela ocorrência do acidente é de imputar, única e integralmente, à ré ora recorrida, considerando a única e exclusiva responsabilidade do veículo …-TC-… na produção do acidente, porquanto, à data do sinistro, a responsabilidade civil decorrente da circulação daquele se encontrava transferida à ré ora recorrida.” – cf. conclusão XXXV.
Sem prescindir, sustenta a recorrente que, ainda que se mantenha a decisão de facto proferida pelo tribunal recorrido, deve ser modificada a decisão de direito quanto à repartição de responsabilidades pelos danos resultantes do acidente de viação em causa nos autos.
Para tanto, alega que:
- mantendo-se a decisão de facto inalterada, sempre há a ocorrência de dois sinistros distintos entre si: primeiro, o embate do veículo …-QF-… no veículo …-CX-…; e, posteriormente, o embate do veículo …-TC-… no veículo …-QF-…, com projecção deste último para a frente e que implicou novo embate do veículo …-QF-… no veículo …-CX-….
- não é aceitável que seja atribuído ao veículo propriedade da autora a responsabilidade de 60% pela ocorrência do acidente, uma vez que o veículo propriedade da autora foi embatido na sua traseira pelo veículo …-TC-…, em virtude (apenas!) do facto da sua condutora não ter travado em tempo útil a evitar o mesmo – tal como decorre do facto provado 13.

Vejamos.
Tendo-se julgado improcedente a impugnação dos factos, importa analisar se o veículo da ora A. contribuiu e em que medida para a produção do acidente.
O tribunal recorrido enquadrou, correctamente, o caso no regime da responsabilidade extra-contratual por facto ilícito previsto no art. 483º do Código Civil, cuja prova dos respectivos pressupostos (facto, ilicitude, culpa, dano e nexo de causalidade) incumbia à autora (art. 342º/1 do Código Civil), sendo que  nos termos do art. 487º do mesmo diploma, é ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa.
Relembremos aqui os factos apurados quanto à dinâmica do acidente:
1) No dia 15 de Outubro de 2022, pelas 17:50 horas, em Setúbal, no IC20, ao quilómetro 2, sentido Costa de Caparica/Almada, na via de trânsito central, os seguintes veículos automóveis colidiram:
a) o veículo de marca Mercedes com a matrícula …-CX-…;
b) o veículo de marca BMW com a matrícula …-QF-…;
c) o veículo automóvel marca BMW com a matrícula …-TC-….
2) A propriedade do veículo de matrícula …-QF-… encontra-se registada em nome da autora.
3) Nessa data, a responsabilidade civil emergente da circulação do veículo …-TC-… encontrava-se transferida para a ré, por contrato de seguro titulado pela apólice n.º … 02.
4) O local caracterizava-se por uma via rápida com perfil de auto-estrada, de dois sentidos, divididos por um separador central, cuja faixa de rodagem era composta por 3 vias de trânsito em cada um dos sentidos.
5) O local era uma recta, com boa visibilidade.
6) Estava bom tempo e o piso encontrava-se seco e limpo.
7) O trânsito era intenso.
8) Os três veículos seguiam no sentido Costa de Caparica-Almada, na via de trânsito central.
9) No interior do veículo …-QF-…, o marido da autora seguia no lugar da autora, a autora no lugar do pendura e a sua mãe de 88 anos no banco de trás.
10) O veículo …-CX-… seguia imediatamente à frente do veículo …-QF-….
11) O veículo …-TC-… seguia imediatamente atrás do veículo …-QF-….
12) Ao quilómetro 2, veículo …-QF-… embateu, com a sua frente, na traseira do veículo …-CX-….
13) A condutora do veículo …-TC-… não accionou os mecanismos de travagem.
14) Momentos depois, a veículo …-TC-… embateu, com a sua frente, na traseira do veículo …-QF-….
15) Neste seguimento, o veículo …-QF-… foi projectado para a frente, embatendo com a dianteira na traseira do veículo …-CX-….
16) Em consequência do descrito em 12) a 14), o veículo …-CX-… sofreu estragos na sua dianteira, melhor descritos nas fotografias a fls. 20 verso e 22 verso (que se dão integralmente por reproduzidas).
17) Em consequência do descrito em 12) a 14), o veículo …-QF-… sofreu estragos na sua traseira e dianteira, melhor descritos nas fotografias a fls. 20 verso, 21 verso, 22 verso e 23 (que se dão integralmente por reproduzidas).
18) Em consequência do descrito em 12) a 14), o veículo …-TC-… sofreu estragos na sua dianteira, melhor descritos nas fotografias a fls 20 verso, 23, e 24 (que se dão integralmente por reproduzidas).

Em primeiro lugar, entendeu o tribunal que a condutora do veículo de matrícula …-TC-…, segura na ré/apelada, agiu ilícita e culposamente, por  não ter assegurado a distância de segurança adequada do veículo da autora de modo a evitar o embate, não ter observado os deveres gerais de cuidado e prudência e não ter adoptado uma velocidade adequada tendo em conta a intensidade do trânsito, dessa forma violando as regras previstas nos arts 18º/1, 24º/1 e 25º/1 m) todos do Código da Estrada.
Em segundo lugar, considerou que também o condutor do veículo da autora violou aquelas mesmas normas rodoviárias (v.g. inobservando o dever de adoptar uma distância de segurança da viatura da frente adequada à intensidade do trânsito e atender ao trânsito que o precedia), concluindo que existiu um prévio embate do veículo da autora na traseira do veículo …-CX-… que seguia à sua frente, na sequência do que o veículo da autora foi atingido na sua traseira pela viatura segura na ré (matrícula …-TC-…), tratando-se de uma colisão ou choque em cadeia.
Concluindo o tribunal, ao abrigo do art 570º do Código Civil, que o condutor do veículo da autora teve um grau de culpa maior na produção do acidente, analisado globalmente, fixando a responsabilidade de cada um dos condutores nos seguintes termos: responsabilidade de 60% do condutor do veículo da autora; e responsabilidade de 40% da condutora da viatura segura na ré.

A apelante insurge-se contra o decidido, argumentando que, se no caso do primeiro sinistro que consistiu no embate da dianteira do veículo (da A.) …-QF-… na traseira do …-CX-…, a responsabilidade é integralmente do condutor do …- QF- …, já quanto ao segundo sinistro, que consistiu no embate da dianteira do veículo  …-TC-… na traseira do …-QF-… com o consequente embate (por força da projecção para a frente) da frente do veículo …-QF-… na traseira do …-CX-…, a responsabilidade é única e exclusivamente da condutora do …-TC-…, designadamente por violação do art. 24º do CE.
Como resulta da facticidade apurada, houve dois embates, o primeiro provocado pelo veículo da A. e um segundo directamente causado pelo veículo …-TC-…, que a precedia.
Concordamos com a decisão sob recurso quando afirma que, quer o condutor do veículo da A., quer a condutora do veículo …-TC-…, violaram as apontadas regras estradais (v.g. dever de assegurar a distância de segurança entre veículos em marcha e dever de regular e moderar a velocidade de acordo com a intensidade do trânsito).
Porém, já não podemos acompanhar o tribunal recorrido ao concluir que “o condutor do veículo da A. teve um grau de culpa maior na produção do acidente, analisado globalmente (…)”.
Afigura-se-nos que a análise da matéria de facto provada não permite retirar tal conclusão. O segundo embate (facto 14), que não se confunde com o primeiro (facto 12), nem se pode dizer que foi directamente causado pelo este, deu-se momentos depois do primeiro embate, não tendo a condutora do …-TC-… accionado os mecanismos de travagem (facto provado 13).
Note-se que o local do acidente é uma via rápida com perfil de auto-estrada, de dois sentidos, divididos por um separador central, cuja faixa de rodagem era composta por três vias de trânsito em cada um dos sentidos (facto provado 4), tratando-se de uma recta, com boa visibilidade (facto provado 5). O tempo estava bom e o piso estava seco e limpo (facto provado 6) e o trânsito era intenso (facto 7), sendo que os três veículos seguiam no sentido Costa da Caparica- Almada, na via de trânsito central (facto provado 8).
Ora, era exigível à condutora do veículo …-TC-… que adequasse a sua velocidade às condições da via e do trânsito (intenso) e accionasse os mecanismos de travagem ao aperceber-se da travagem do veículo da A..
Na versão apresentada pela ré em sede de contestação, a condutora do …-TC-… travou, mas não conseguiu evitar o embate. Porém, provou-se o contrário, ou seja, que a condutora do …-TC-… não accionou os mecanismos de travagem (facto provado 13).
Repare-se que atendendo às condições da via e do tráfego (intenso), estar o veículo …-QF-… parado ou em circulação lenta (no pára-arranca), pouca diferença faria em termos do comportamento exigido ao condutor do veículo segurado na ré. Seguindo este numa fila de trânsito intenso, deveria circular a velocidade reduzida e manter uma distância de segurança da viatura da A. (…-QF-…) que seguia à sua frente. Tal não ocorreu e por isso, ocorreu a colisão no veículo …-QF-…, sendo, aliás, os danos causados na dianteira do …-TC-… demonstrativos da excessiva velocidade (embora não concretamente apurada) a que este veículo circulava.
Donde, o comportamento negligente imputado na sentença ao condutor do veículo da A. não concorreu para a produção do 2º embate, ou seja, não existe nexo de causalidade entre o facto  - conduta do condutor do veículo da A., …-QF-… - e o embate do …-TC-… na traseira daquele veículo, apenas existindo nexo causal entre o comportamento do condutor do veículo …-QF-… e o embate deste na viatura …-CX-…, que seguia à sua frente.
O tribunal a quo não podia, como fez, analisar o acidente globalmente, dado que estamos perante dois sinistros distintos. Nem podia aplicar ao caso o regime previsto no art. 570º/1 do Código Civil, o qual pressupõe a culpa de, pelo menos, dois intervenientes no acidente.
Em anotação ao citado art. 570º, afirmam Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, 4ª edição, Coimbra  Ed., vol I, pág. 587/588: “Para que o tribunal goze da faculdade prevista no nº 1 do citado art. 570º, é necessário que o acto do lesado tenha sido uma das causas do dano, consoante os mesmos princípios de causalidade aplicáveis ao agente (cf. art. 563º). Deve, além disso, o lesado ter contribuído com a sua culpa para o dano (cf. nº 2 do art. 487º e vide Vaz Serra, Conculpabilidade do prejudicado, nº 2; Bol, nº 86).”
Neste conspecto, escreveu-se no ponto I do sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1/2/2000, revista 10/00, 6ª secção, relator Silva Paixão (in“ A culpa nos acidentes de viacção na jurisprudência das Secções Cíveis  do Supremo Tribunal de Justiça, www.stj.pt): “O juiz só pode socorrer-se do normativo contido no art. 570º nº 1 do Código Civil, quando o acto do lesado tiver sido uma das causas do dano, de acordo com o princípio da causalidade adequada.”
Flui do que vimos expondo que a culpa do 2º embate é exclusivamente imputável à condutora do veículo …-TC-…, segurado na ré. Pelo que merece  censura o juízo formulado na sentença, que ao abrigo do art. 570º do Código Civil, procedeu à repartição da responsabilidade pelo acidente, com base na premissa de que o condutor do veículo da autora teve um grau de culpa maior na produção do acidente, considerado globalmente.

Aqui chegados e apurada a responsabilidade – da condutora do veículo …-TC-…, segurado na ré – pelo embate sofrido pelo veículo da A. (…-QF-…), importa analisar a questão dos danos, atendendo à pretensão indemnizatória deduzida na presente acção.
Peticionou a A. a condenação da ré no pagamento das seguintes quantias:
i) € 8.395,64, a título de indemnização pelos danos sofridos no seu veículo;
ii) a quantia de € 4.050,00, a título de indemnização pela privação do uso do veículo (€ 30,00 x 151 dias);
iii) € 3.000,00, a título de danos não patrimoniais; e
iv) juros sobre as quantias peticionadas.

O tribunal de 1ª instância fixou a indemnização a pagar pela R. à A. pelos danos causados no seu veículo no montante de €3 358,26, correspondente a 40% do valor da respectiva reparação, acrescido de juros de mora desde a data da citação. No mais, quanto ao invocado dano de privação de uso do veículo e aos danos não patrimoniais, foi a ré absolvida de tais pedidos.
Contra o decidido, sustenta a apelante (cf. conclusão XLVI do recurso) que não deverá ser ressarcida em 40% da reparação, mas sim em 100% da despesa em que incorreu com a reparação da traseira e em 50% da despesa em que incorreu com a reparação da dianteira do seu veículo, no valor de €5 701,03, assim apurado: 50% da responsabilidade da ré pela reparação dos danos verificados, a final, na dianteira do veículo …-QF-…: € 1.859,12 x 50% = € 929,56; 100% da responsabilidade da ré pela reparação dos danos verificados, a final, na traseira do veículo …-QF-…: € 2.268,32 + € 738,10 x 100% = € 3.006,42; 50% da responsabilidade da ré pela reparação dos danos verificados quando consideradas as quantias despendidas com reparação globalmente considerada, como sejam a pintura ou a mão de obra: € 3.530,10 x 50% = € 1.765,05.
A medida da indemnização deverá ter em conta os danos indemnizáveis de acordo com a responsabilidade assacada à ré, nos termos acima explicitados.
Assim, a ré apenas deve ser responsabilizada pelos danos causados na traseira do veículo da A. em consequência do embate causado pelo veículo …-TC-…, segurado na ré, assim como pelos danos sofridos na dianteira, desde que causados pelo 2º embate (e não pelos danos causados na dianteira do …-QF-… resultantes do 1º embate do veículo da A. na viatura …-CX-…).
A este respeito, foi demonstrado que:
- Em consequência do descrito em 12) a 14), o veículo …-QF-… sofreu estragos na sua traseira e dianteira, melhor descritos nas fotografias a fls. 20 verso, 21 verso, 22 verso e 23 (que se dão integralmente por reproduzidas) – facto provado 17.
- Com a reparação do QF a autora despendeu a quantia global de € 8.395,64 (facto provado 24), conforme documentos 13 e 14 juntos com a petição inicial (facturas não impugnadas pela ré), correspondentes a (como referido no art. 130º da petição inicial):
a. € 738,10 - referentes a peças e componentes necessários à reparação
do QF (cf. documento 13); e
b. € 7.657,54, referente a demais peças e componentes necessários à reparação, bem como referente a mão de obra necessária à reparação do …-QF-…; (cf. documento 14).
Porém, não resulta da matéria de facto provada na sentença a especificação dos concretos danos (e respectivos valores) sofridos na dianteira e traseira do veículo da A., causados pelo segundo embate (provocado pelo …-TC-…).
Com efeito, o tribunal limitou-se, no facto provado 24, a remeter para o teor dos documentos. Ora, analisadas as facturas (documento 13 e 14), é seguro que a factura que constitui o documento 13 se refere a danos na traseira do …-QF-…, enquanto que a factura que constitui o documento 14 respeita aos demais danos sofridos pelo veículo, quer na traseira, quer na dianteira (como a própria apelante sustenta na conclusão XLIV), não se podendo extrair dos diversos produtos/valores discriminados no documento 14 se se reportam aos danos na traseira ou na dianteira do veículo, que ascendem no total a €7 657,54 (cf. documento 14).
Prescreve o art. 609º/2 do Código de Processo Civil que “Se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida.”
Em face do exposto, não fornecendo os autos dados concretos para a quantificação dos referidos danos patrimoniais, deverá relegar-se essa quantificação para liquidação em execução de sentença, nos termos dos arts 358º/2 e 609º/2 do Código de Processo Civil.

Insurge-se ainda a A. contra a decisão de absolvição da ré relativamente, quer aos danos não patrimoniais, quer quanto à privação de uso do veículo.
Diz-se na sentença que: “Relativamente aos danos não patrimoniais, apesar de, em abstracto, terem enquadramento legal no art. 496.º do Cód. Civil, não ficou demonstrado que a autora sofreu efectivamente os danos alegados na petição inicial, pelo que, nesta parte, não se mostram verificados os pressupostos da responsabilidade civil.”
Concordamos inteiramente, já que ficaram por demonstrar os danos não patrimoniais invocados - cf. factos não provados c) e d) - tendo sido julgada improcedente a impugnação desta factualidade.
Termos em que deverá o recurso improceder neste segmento.
 
No que tange ao dano de privação de uso do veículo, o tribunal recorrido pronunciou-se da seguinte forma:
“Por fim, quanto à indemnização pela privação do uso do veículo, da factualidade provada nos autos apenas resultou que a autora ficou sem acesso ao veículo durante o período em que o mesmo esteve nas instalações da BMW, para avaliação dos danos sofridos – isto é, durante três semanas.
Já quanto ao período remanescente, não tendo resultado provado que o veículo ficou impedido de circular, não assistirá à autora qualquer outra pretensão indemnizatória neste domínio, além do referido período de três semanas.
Nesta sede, importa mencionar que se divisam posições na doutrina e jurisprudência quanto ao ressarcimento daquele dano.
De um lado, a tese que faz depender o surgimento de uma obrigação de indemnizar na alegação e prova de factos reveladores de um dano concreto específico – neste sentido, Paulo Mota Pinto, “O dano da privação do uso”, in Estudos de Direito do Consumidor, págs. 229- 273. Na jurisprudência, veja-se o acórdão do TRC de 06-03-2012, p. 86/10.0T2SVV.C1, disponível em dgsi.pt.
De outro lado, a posição que autonomiza o dano da privação do uso sempre que o titular de um direito de propriedade, uso ou fruição se vê impossibilitado de usufruir de todas as potencialidades que integram a esfera de utilidades do direito subjectivo, ainda que não se tenha provado que utilidade ou vantagem teria sido retirado do bem durante o período de privação – veja-se o acórdão do STJ de 08/05/2013, p. 3036/04.9TBVLG.P1.S1, disponível em dgsi.pt.
Mais recentemente, tem-se vindo a formar uma tese intermédia, que não exige a verificação de um dano concreto na esfera do demandante, mas a alegação e prova da utilização habitualmente dada ao veículo sinistrado e/ou da que lhe tencionava dar se não fosse o facto que causou a impossibilidade de uso, presumindo-se a partir desses factos os danos causados pela privação do veículo – neste sentido, cf. o acórdão do STJ de 04-07-2023, p. 1290/20.8T8AVR.P1.S1. Na mesma linha argumentativa, cf. os acórdãos do TRL de 26-05-2022, p. Processo: 2907/23.8T8ALM, 12883/21.6T8SNT.L1-2 e de 11-12-2019, p. 1100/18.6T8STB.L1-2, todos disponíveis em dgsi.pt
Perfilha-se esta segunda corrente jurisprudencial.
Efectivamente, ainda nos encontramos no âmbito da responsabilidade civil, que tem como finalidade última a ressarcibilidade de um dano – cf. art. 483.º, n.º 1 do Cód. Civil.
Ora, só se pode falar de um dano digno de tutela jurídica se a indisponibilidade do veículo gerou no titular do direito de propriedade (ou do direito uso ou fruição) a impossibilidade de beneficiar de utilidades que o veículo lhe proporcionava.
Para tal, essencial se torna que fique demonstrado que o veículo era habitualmente utilizado por quem se arroga de uma pretensão indemnizatória que se funda, necessariamente, no prejuízo causado pela indisponibilidade de uso do veículo, pois caso contrário a privação do uso não comportará qualquer afectação ou limitação da sua esfera jurídica que seja digna da tutela do Direito.
Volvendo aos autos, não fico demonstrada qual a utilização dada habitualmente ao veículo sinistrado pela autora, nem a utilização que lhe pretendia dar no período coincidente com a privação do uso. Aliás, nem se quer ficou demonstrado que a autora, embora titular do direito de propriedade, era quem beneficiava diariamente das utilidades do veículo em questão.
Assim, não é possível concluir pela existência de um dano na esfera da autora, nem pelo integral preenchimento dos pressupostos da responsabilidade civil, de modo a justificar o arbitramento de qualquer indemnização.”

Como sumariado no acórdão de 21 de Janeiro de 2025, P. 3078/22.2T8SNT.L1 (em cujo texto se remete para o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28/1/2021, P. 14232/17.9T8LSB.L1.S1, 2ª secção, relatora Rosa Tching; e acórdão proferido neste TRL em 4/7/23, P. 5834/20.7T8LRS.L1, relator Luís Filipe Pires de Sousa, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.), relatado pela ora relatora, “Quanto à problemática do direito à indemnização pela privação do uso do bem, formaram-se na doutrina e jurisprudência três posições: uma, segundo a qual o lesado deve alegar e provar uma concreta utilização relevante do bem; outra, segundo a qual basta a alegação e prova da simples privação do uso para se reconhecer o direito a indemnização; e uma terceira, segundo a qual o lesado deve demonstrar que pretende usar a coisa, ou seja, que dela pretende retirar as utilidades (ou alguma delas) que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela actuação ilícita do lesante.”
No caso sub judice, apenas resultou demonstrado que “o veículo …-QF-… esteve na oficina da BMW Caetano Baviera, Parque das Nações, para peritagem e avaliação, pela ré, dos estragos sofridos, durante cerca de três semanas” (facto provado 19), tendo sido julgada não provada a seguinte factualidade alegada pela A. [factos não provados e) a h)]:
e) Devido aos estragos sofridos, o veículo …-QF-… deixou de poder circular, ficando imobilizado desde o dia 15 de Outubro de 2022 até à sua reparação e entrega, em 27 de Fevereiro de 2023.
f) A autora reside na Parede e trabalha em Lisboa.
g) A autora utilizava o veículo …-QF-… para as deslocações diárias para o trabalho e para deslocações de lazer aos fins-de-semana.
h) Durante o período referido na alínea e) supra, a autora recorreu a boleias de colegas e a transportes públicos para se deslocar para o seu local de trabalho.
Na esteira do tribunal de 1ª instância, e independentemente da posição que se adopte quanto à problemática do direito à indemnização pela privação do uso, entendemos que, não tendo a A. logrado fazer prova de que o veículo era habitualmente usado por si (nem sequer era ela quem o conduzia à data do acidente) e que ficou privada do seu uso para se deslocar, designadamente para o seu local de trabalho, durante o período em que a viatura esteve na oficina, não se pode falar in casu de um dano de privação de uso digno de protecção e reparação.
Improcede, pois, o recurso também nesta parte.

Em síntese conclusiva, o recurso procede parcialmente, alterando-se a alínea a) do dispositivo da sentença recorrida, devendo a acção ser julgada parcialmente procedente quanto à indemnização pelos danos na traseira e na dianteira do veículo da A. (de matrícula …-QF-…) causados em consequência do embate pelo veículo segurado na ré (de matrícula …-TC-…), relegando-se a fixação do quantum indemnizatório para liquidação em execução de sentença, e mantendo-se a sentença na parte em que julgou improcedente a acção relativamente aos danos não patrimoniais e dano de privação do uso do veículo.
*
IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam em julgar a apelação parcialmente procedente e, consequentemente:
a) Alterar a alínea a) do dispositivo da sentença recorrida, passando a constar: «Condenar a ré GENERALI SEGUROS, S.A. a pagar à autora A … uma indemnização pelos danos na traseira e na dianteira do veículo de matrícula …-QF-…, causados em consequência do embate pelo veículo segurado na ré, de matrícula …-TC-…, em montante global a fixar em sede de incidente de liquidação de sentença, nos termos dos arts 358º/2 e 609º/2 do Código de Processo Civil, montante a que deverão acrescer os respectivos juros de mora, à taxa legal de 4 %, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.
b) No mais, confirmar a sentença recorrida.
Custas pela apelante e pelo apelado, na proporção do respectivo decaimento (artigo 527º do CPC).
Registe e notifique.
*
Lisboa, 17 de Junho de 2025
Ana Mónica Mendonça Pavão
Luís Filipe Pires de Sousa
Rute Sabino Lopes