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CONTRATO DE ALUGUER DE VEÍCULO
PRESUNÇÃO DE BOM ESTADO
AVARIA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
INDEMNIZAÇÃO
Sumário
Sumário: [1]-[2]-[3]-[4] I. O não exercício pelo Tribunal a quo, do poder-dever de levar a cabo diligências oficiosas de prova (art. 411º do CPC), não configura nulidade processual (art. 195º, nº 1 do CPC); embora possa motivar a anulação do julgamento pelo Tribunal da Relação com fundamento na insuficiência da decisão probatória (art. 662º, nº 2, al. c), e nº 3, al. a) do CPC); II. O art. 1043º, nº 2 do CC consagra uma presunção elidível, mediante a qual, feita a prova do facto indiciante , no caso a “inexistência de documento onde as partes tenham descrito o estado dela ao tempo da entrega” se alcança da demonstração da realidade indiciada, a saber o “bom estado” da coisa locada no referido momento temporal. III. O funcionamento desta presunção rege-se pelo disposto no art. 350º do CC, embora revele duas particularidades: o facto indiciante é aparentemente um facto negativo, e a realidade indiciada corresponde a um conceito indeterminado. IV. Porém o facto indiciante só na sua aparência constitui um facto negativo, o que significa que se tem por demonstrado a menos que se apure a concreta existência do documento onde as partes tenham descrito o estado da coisa locada ao tempo da sua entrega ao locatário V. Cabe ao locatário alegar e provar a existência de concretos defeitos ou avarias da coisa locada que permitam concluir que, quando a recebeu, esta não estava em bom estado (art. 342º, nº 2 do CC). VI. Por outro lado, sendo a realidade indiciada não um facto ou conjunto de factos, mas um conceito indeterminado, a não elisão da presunção não pode conduzir à inclusão, no elenco de factos provados, de uma proposição que se traduza na afirmação genérica de que a coisa estava em bom estado quando foi entregue ao locatário. Nessas circunstâncias, o “bom estado” da coisa locada ao tempo da celebração do contrato é apenas considerado em sede de apreciação jurídica da causa. VII. Não obstante, se o locador alegar factos concretos que consubstanciem o alegado “bom estado da coisa” no momento da entrega da mesma ao locatário, pode vir a conseguir a sua demonstração, por efeito da referida presunção, bastando para tal que o locatário não logre fazer a prova do contrário (art. 350º, nº 2 do CC). VIII. O pedido de condenação da ré locatária no pagamento da quantia correspondente ao custo da reparação do veículo locado, formulado no contexto da aplicação do art. 1044º do CC tem como fundamento um dano futuro previsível. IX. Apurando-se que a autora, na pendência da causa, vendeu o veículo locado, forçoso será concluir que a mesma não sofrerá tal dano, razão pela qual a pretensão indemnizatória descrita em VII necessariamente improcede. X. Nas circunstâncias referidas em VII e VIII admite-se que a locadora poderá ter sofrido um dano correspondente à diferença entre o preço da venda e o valor que teria obtido se o veículo locado não tivesse sofrido os estragos que sofreu, mas a consideração de tal dano pressupunha a alteração simultânea do pedido e da causa de pedir, em articulado superveniente, mediante a alegação dos factos consubstanciadores deste dano (a saber, o preço pelo qual a venda foi efetuada e o valor comercial que o veículo teria se não tivesse sofrido os mencionados estragos). _______________________________________________________ [1] Da responsabilidade do relator - art.º 663º nº 7 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26-06. [2] Neste acórdão utilizar-se-á a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, no entanto, nas citações, a grafia do texto original. [3] Todos os acórdãos citados no presente aresto se acham publicados em http://www.dgsi.pt/ e/ou em https://jurisprudencia.csm.org.pt/. A versão eletrónica deste acórdão contém hiperligações para todos os arestos nele citados. [4] No presente aresto designaremos o Código Civil e o Código de Processo Civil pelas siglas “CC” e “CPC”, respetivamente.
Texto Integral
Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Relatório
A …[1] e B …[2] intentaram a presente ação declarativa com processo comum contra C …[3] e D …[4], deduzindo os seguintes pedidos:
“Ser declarada a resolução judicial do contrato celebrado entre as partes, com efeitos retroativos à data de 05/01/2021;
Devem os RR. ser condenados no pagamento aos AA. da quantia de € 27.300,26 (vinte e sete mil e trezentos euros e vinte e seis cêntimos) nos termos do preceituado nos artigos 798.º e 799.º do Código Civil.”
Para tanto alegaram, em síntese, que:
- Os autores são casados um com o outro, no regime da comunhão de adquiridos;
- A autora celebrou com os réus um contrato escrito nos termos do qual cedeu à ré o uso de determinado veículo automóvel, por tempo indeterminado e mediante contrapartida mensal em dinheiro, bem como outros encargos, como os decorrentes do seguro do mesmo veículo;
- O réu outorgou o mesmo contrato na qualidade de fiador da ré;
- A ré enviou ao autor uma mensagem de correio eletrónico, manifestando rescindir o contrato em apreço;
- Tal comunicação é ineficaz, porque o autor não é parte no mencionado contrato;
- Os autores sempre se opuseram à resolução do contrato pela ré;
- Quem incumpriu o contrato foi a ré porquanto:
o Incorreu repetidamente em mora no pagamento das mensalidades ajustadas;
o não pagou qualquer montante a título de indemnização por mora;
o não liquidou diversas prestações a título de prémio de seguro automóvel;
o não entregou o veículo para reparação num concessionário da marca, como resultava do contrato;
o não substituiu os pneus da viatura aquando da sua entrega aos autores;
o aquando da entrega do veículo aos autores o mesmo encontrava-se avariado, necessitando de reparação.
Da análise da petição inicial decorre que o valor global de € 27.300,26 corresponde à soma das seguintes quantias[5]:
i. € 14.657,28, correspondente ao custo previsível da reparação da viatura;
ii. € 1.845,00, referente à quantia despendida com o depósito da viatura em oficina;
iii. € 8.200,00, a título de alugueres e “reforços” vencidos nos meses de junho de 2020 a dezembro do mesmo ano;
iv. € 1.640,00 a título de
Citados os réus, apenas o réu contestou, defendendo-se por impugnação, e concluindo pela improcedência da ação e consequentemente, pela sua absolvição dos pedidos deduzidos pelos autores.
Seguidamente foi proferido despacho dispensando a realização da audiência prévia, procedendo ao saneamento tabelar da causa, identificando o objeto do litígio, enunciando os temas da prova, e admitindo os meios da prova requeridos pelas partes.
Subsequentemente teve lugar a audiência final, após a qual veio a ser proferida sentença julgando a ação totalmente improcedente, e absolvendo os réus do pedido.
Inconformados, os autores interpuseram o presente recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
1. No âmbito dos presentes autos está em causa o contrato celebrado entre a Autora, a 1.ª Ré e o 2.º Réu (fiador), a 19/11/2019 no qual a A. concedeu à 1.ª R. o gozo de um veículo Jaguar XE, do qual é proprietária, mediante o pagamento mensal de €600,00, vencida ao dia 20 de cada mês, para além de serem devidos reforços ao longo da execução do contrato
2. Ficou ainda acordado que a 1.ª Ré pagaria as prestações do seguro, no qual ficou identificada como condutora habitual da viatura.
3. Sucede que, além do incumprimento do pagamento pontual das prestações que se vinha verificando por parte da 1.ª Ré, esta, oito meses oito meses e mais de três mil quilómetros percorridos desde o início do contrato, veio, em Junho, comunicar uma suposta avaria da viatura aos Autores, tendo “largado” o veículo numa oficina desconhecida pelos primeiros – incumprindo o contratualmente acordado pelas partes de que o veículo seria colocado sempre numa oficina da marca Jaguar -, pretendendo fazer resolver retroactivamente o contrato, pese embora estivesse em mora.
4. A 1.ª Ré, advogada de profissão e devidamente representada por defensor oficioso, não contestou, não esteve presente em nenhuma sessão de julgamento e não trouxe aos autos a sua versão dos factos, não tendo impugnado o alegado pelos Autores nem a prova documental por estes apresentada.
5. Os AA. foram a única parte a produzir prova - quer documental, quer testemunhal – sendo que as testemunhas ouvidas em julgamento, que observaram o veículo e até contactaram, algumas delas, com a 1.ª Ré, corroboraram o articulado na PI.
6. Porém, e fruto de uma incompreensível motivação, o Tribunal recorrido, contrariando toda a prova produzida e contrariando, inclusivamente, presunções legais, quase substituindo a parte revel, absolveu os RR. do pedido.
7. E pese embora o 2.º R tenha contestado, impugnou os factos 15.º, 17.º a 50.º por desconhecimento. Ora, ainda que a contestação aproveite à 1.ª R para efeitos do art. 568.º do CPC, essa concreta impugnação nunca poderia aproveitar à 1.ª R pois que são factos que ainda que possam ser desconhecidos pelo 2.º R, são de conhecimento directo e pessoal da 1.ª Ré, pelo que deverão considerar-se confessados - art. 567.º n.º1 e 574.º n.º3 CPC.
8. Ainda previamente, diga-se que o Tribunal recorrido abre um “parêntesis” na pág. 11 da sentença que concerne à legitimidade do Autor (marido da 1.ª Autora), cumprindo referir que tratando-se a viatura de um bem comum do casal apesar de registado em nome da 1.ª A (uma vez que os AA. estão casados em comunhão de adquiridos), qualquer prejuízo daí decorrente nomeadamente com o seu arranjo repercutir-se-ia sempre também na sua esfera patrimonial – quanto a esta questão os AA. referem no corpo do presente doutrina e jurisprudência a qual, salvo melhor entendimento, corrobora a sua posição.
9. Contudo e sempre por respeito ao Tribunal, somos a considerar que se o Tribunal considerasse, contudo, que na situação em causa o 2.ª A. não carecia de figurar como tal por não existir litisconsórcio necessário, sempre poderia/deveria ter conhecido da ilegitimidade por se tratar de excepção de conhecimento oficioso (artigos 576.º, 577.º alínea e) e 578.º do CPC)
10. Os AA impugnam ainda a factualidade não provada sob os n.ºs 26, 27, 28, 29, 30 e 31 – conjuntamente, quando o raciocínio assim o justificar
11. A prova documental que impõe decisão diversa da recorrida é: Doc. 1 da PI (factos não provados 29, 30 e 31), Doc. 3 da PI (factos não provados 29, 30 e 31), Doc. 6 da PI (quanto aos factos não provados 29, 30 e 31), Doc. 19 da PI [factos não provados 26 e 27 (1ª parte)], Doc. 20 da PI (factos não provados 27 (2ª parte) e 28), Doc. 21 da PI (factos não provados 29, 30 e 31), Doc. juntos pela Carclasse notificados aos AA., a 31.03.2022 com a ref. Citius … 19 (factos não provados 29, 30 e 31), Docs. juntos por requerimento dos AA. datado de 03.03.2022, com a ref. Citius … 84 (factos não provados 29, 30 e 31).
12. A prova testemunhal que impõe decisão diversa da recorrida, é: G …, gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, tendo ocorrido e ficado registado em acta do dia 13.09.2022 com duração entre as 14:37:27 e as 14:50:17 (áudio … 25_ … 65_ … 61) – minutos 00:02:14 a 00:03:15 e 00:07:31 a 00:08:11 impugnação dos factos não provados 29, 30 e 31; F …, gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, tendo ocorrido e ficado registado em acta do dia 13.09.2022 com duração entre as 14:22:24 e as 14:35:03 (áudio … 23_ … 65_ … 61) – minutos 00:02:22 a 00:03:04 impugnação do facto não provado 26, 00:02:33 a 00:04:51 impugnação do facto não provado 27 (1ª parte) e 00:06:25 e 00:06:56 impugnação dos factos não provados 29, 30 e 31 ; E … prestadas no dia 26/09/2022, cujo depoimento foi gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, tendo ocorrido e ficado registado entre as 09:43:12 e as 09:54:30 (áudio … 01_ … 65_ … 61) – minutos 00:03:49 a 00:04:48 impugnação do facto não provado 27 (1.ª parte); as declarações de parte do Autor B …, gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática do Tribunal, tendo ocorrido e ficado registado entre as 15:01:38 e as 15:27:27 (áudio … 36_ … 65_ … 61) – 00:02:20 a 00:02:35 e 00:02:36 a 00:04:06 impugnação do facto não provado 27 (1ª e 2ª parte) e 28, e 00:04:41 a 00:06:46 impugnação dos factos não provados 29, 30 e 31..
13. O facto não provado n.º 26 foi incorrectamente julgado, contrariando o Tribunal recorrido directamente a prova produzida nos autos, sem sequer fundamentar devidamente, referindo somente que os documentos foram impugnados, suscitaram dúvidas e verificou-se “ausência de prova sobre os mesmos”.
14. Não só a impugnação dos documentos levada a cabo pelo 2.º R. foi genérica (por desconhecimento), como os AA. juntaram o Doc 19 da PI que consubstancia o orçamento para reparação do veículo no valor aposto no facto que o Tribunal deu como não provado.
15. O referido orçamento foi emitido pelo Sr. F …, da Auto DCS que prestou declarações no julgamento enquanto testemunha, relatando o que observou no veículo aquando do reboque do mesmo para a sua oficina e descrevendo os procedimentos efectuados ao veículo na mesma - conforme declarações acima identificadas, em concreto nos minutos 00:02:22 e 00:03:04 transcritos no corpo do recurso.
16. Deste modo, as declarações prestadas pela referida testemunha tiveram por base as avarias que observou de forma directa e que resultaram no referido Doc. 19, e o Tribunal a quo atribuiu credibilidade a esta testemunha cfr. página 11 da sentença.
17. Assim, existe prova documental que atesta a existência de um orçamento, emitido por uma oficina de mecânica, cujo proprietário foi testemunha e observou as avarias e laborou o custo da sua reparação, a qual foi considerada credível. Não existe qualquer ausência de prova, existe sim uma errada apreciação da mesma!
18. Da leitura da sentença recorrida, parece que o Tribunal a quo se bastou com o seguinte: existiu um orçamento fixado no valor de €12.000,25, todavia, como foi impugnado, e como só existem dois meios probatórios sobre o mesmo, mais vale considerar como não provado! O que em nada se compatibiliza com o princípio da convicção prudente do julgador.
19. Assim, deveria o Tribunal de 1ª instância ter dado como provado o facto 26 pois assim o impõe a prova documental e testemunhal produzida nos autos e acima referenciada.
20. Também o facto 27 primeira parte foi dado como não provado em contradição com a prova documental e testemunhal produzida, impondo decisão diversa, as declarações da testemunha E … da “Fórmula F”, conforme minutos 03:49 a 04:48 transcritos no corpo do recurso e também, o depoimento da testemunha Sr. F … (a tal testemunha, para o Tribunal, credível), agora concretamente entre os minutos 00:02:23 e 00:04:51, que se transcreveram no corpo do recurso, na qual refere expressamente que não era suficiente uma intervenção apenas a nível do turbocompressor, motivo pelo qual não procedeu a qualquer reparação – conforme também se fez constar na página 11 da sentença recorrida:
21. Mais uma vez o Tribunal recorrido não fundamentou a sua decisão e decidiu contrariamente a uma testemunha cujo depoimento considerou credível - um mecânico especializado em turbocompressores – e ainda contra o Doc. 19 da PI que revela a necessidade de reparar o motor – pois uma intervenção apenas a nível do turbocompressor se revelava insuficiente.
22. Quanto ao facto não provado 27 segunda parte e facto não provado 28 incorrectamente julgados e impugnados conjuntamente por identidade probatória, sempre se dirá que em semelhança aos demais, o Tribunal recorrido contrariou a prova produzida.
23. Quanto à segunda parte do facto 27, conforme já se referiu, que o Sr. F … analisou o veículo e concluiu que a reparação do mesmo não se bastava pelo turbocompressor, sendo necessário reparar o próprio motor, tendo aconselhado os AA. a assim proceder, o que assim fizeram, tendo obtido um orçamento para esta reparação junto da oficina Land Rover – Auto Sueco – conforme Documento 20 junto na petição inicial.
24. Veja-se ainda que em declarações de parte acima identificadas e nos concretos minutos 00:02:20 e 00:02:35 os quais se transcreveram no corpo do recurso, o Autor atestou a existência deste orçamento.
25. Quer a segunda parte do facto 27, quer o facto 28 respeitam ao orçamento obtido pelos AA. na oficina Land Rover, orçamento que abrangia todas as intervenções mecânicas necessárias para que o veículo fosse reparado na sua totalidade.
26. Este orçamento, emitido em modelo de factura, contém todos os elementos que podem aferir da sua validade: tem a data da emissão do orçamento, o funcionário da oficina, o NIPC da oficina e todos os componentes do veículo a serem reparados/substituídos, logo, a prova documental que resulta dos autos é clara, foi emitido um orçamento pela oficina Land Rover e esse orçamento previa que todos os danos constantes no veículo teriam como custo de reparação o valor de €14.657,28 – doc. 20 PI.
27. Em semelhança ao orçamento emitido pela oficina Auto DCS, o Tribunal a quo declarou ter dúvidas, que curiosamente não demonstrou ter colocado em audiência de discussão e julgamento, que seria o momento próprio para o efeito, tendo as mesmas apenas surgido na prolação da sentença, por terem sido impugnados os documentos (mais uma vez, genericamente) e por existir ausência de prova… Novamente, não há qualquer ausência de prova porque existe prova documental que retrata a existência do orçamento, bem como todas as reparações necessárias e o valor da mesma.
28. Quanto a este orçamento explicou o Autor B … o seu âmbito e valores em declarações de parte acima identificadas nos concretos minutos 00:02:36 e 00:04:06, os quais se transcreveram no corpo do recurso, situando os valores entre os €11.000,00 e os €13.000,00 (sem IVA) o que corresponde aos serviços apostos no orçamento junto como Doc. 20 da PI – o que se retira da mera análise do mesmo.
29. Assim, deveria o Tribunal de 1ª instância ter dado como provada o facto 27 e o facto 28 tendo em conta a prova produzida nos autos.
30. Quanto aos factos não provados 29, 30 e 31 incorrectamente julgados, impugnados conjuntamente por facilidade de raciocínio que respeitam à revisão efectuada ao veículo a 19/08/2019, antes da entrega do mesmo à Ré, na marca – Carclasse Lisboa, diga-se que o Doc. 21 junto com a PI é elucidativo em conjunto com o facto provado 30 que descreve os elementos do veículo substituídos ou reparados nessa revisão, nomeadamente, a substituição do óleo e do filtro de óleo.
31. Quanto a estes factos, o Tribunal recorrido faz um conjunto de considerações de fundamentação, na página 11 da sentença, que causam desde logo, algum incómodo, pois tece considerações em matéria relacionada com mecânica à margem da prova produzida, aventando a possibilidade de a viatura ser sinistrada, quando no facto provado 6 dá por integralmente reproduzido o Doc. 3 que atesta que a viatura sofreu zero sinistros.
32. A factura da revisão em causa não só foi junta pelos Autores na PI como pela própria oficina Carclasse – marca especializada na Jaguar e na Land Rover –onde foi efectuada a revisão, conforme notificação aos AA supra identificada, tendo juntado ainda o orçamento emitido, bem como o comprovativo de pagamento desta revisão pelos Autores.
33. Desde já se esclarece, por forma a evitar dúvidas supervenientes, que o valor do orçamento e da factura juntos pela Carclasse em requerimento, divergem porque na factura final foram aplicados descontos pela oficina, o que permitiu a cobrança de um valor inferior ao aposto no orçamento – o que se retira da mera análise dos mesmos.
34. Ora, começa o Tribunal a quo por considerar que desta factura surgiram diversas dúvidas (que, em semelhança aos demais temas, o Tribunal recorrido não se preocupou em procurar esclarecer no momento da produção de prova), nomeadamente, que “até para um leigo, fácil é aferir que algo se passou inicialmente com o veículo”, insinuando que o mesmo foi eventualmente interveniente num acidente de viação, devido aos itens constantes na fatura.
35. O Tribunal a quo retira estas ilações dos itens constantes na primeira folha e aos dois primeiros da segunda folha, os quais se transcreveram no corpo do recurso, retirando um conjunto de ilações pecaminosas – pois não possuindo uma licenciatura em engenharia mecânica, à semelhança do Tribunal recorrido, não há uma efectiva aptidão para tecer considerações técnicas sobre o assunto.
36. Ora, o facto de um pára-choques ou um capô serem pintados, de terem sido substituído um sensor, ou ainda a reparação do A/C, em nada se traduzem além de normais manutenções que os veículos possam carecer.
37. Para além de todas as considerações que possam ser tecidas no âmbito dos conhecimentos da experiência comum e de um homem médio, há um elemento documental mais estrutural e coeso que todas estas, que se trata da apólice de seguro.
38. A apólice de seguro junta na PI como Doc. 3 atesta a A. como tomadora do seguro e a empresa Ocidental Seguros como seguradora, tendo como mediador o vulgarmente conhecido Millennium BCP, e ficando a Ré designada como condutora habitual.
39. Ora, desta apólice de seguro resulta algo muito claro: o veículo não esteve envolvido em nenhum sinistro e, não obstante, o Tribunal recorrido vem descredibilizar, através de raciocínio ilógico, esta apólice de seguro, só porque a Autora vem identificada como solteira, o que para aquele se traduz em mera falta de rigor declaratório.
40. Não faz qualquer sentido, e vai contra as mais comuns regras da experiência, considerar que embora exista uma apólice de seguro que atesta a inexistência de sinistros associados ao veículo, o mesmo esteve envolvido num acidente com base em suspeições.
41. Aliás, do ponto de vista financeiro e lucrativo das seguradoras, tal argumento decai ainda mais, porque como bem se sabe, quantos mais sinistros um veículo tiver registados, maior será o valor do seguro a cobrar.
42. Ademais, o bom estado da viatura quando foi entregue à 1.ª R. encontra-se alegado no artigo 39.º da PI, o qual foi somente impugnado pelo 2.º R. no artigo 2.º, por desconhecimento. Como acima referimos, este desconhecimento não pode aproveitar à 1.ª Ré revel, nos termos e para os efeitos dos artigos 567.º n.º 1 do CPC e 574.º n.º 3 do CPC, pelo que este facto deveria, inclusivamente, ser dado como provado por confissão da 1.ª Ré que não podia desconhecer o bom estado da viatura quando contratualiza a sua utilização.
43. Imagine-se, no entanto, a título de mera hipótese académica, que o veículo tinha, de facto, estado envolvido nalgum tipo de acidente, ou batida, não registada no seguro – o que afirmamos que desde logo nos parece impossível. Ainda assim, nunca se poderia sustentar que o veículo foi entregue à Ré em más condições, (pois o Tribunal recorrido retira do facto não provado o facto inverso) porque o mesmo foi objecto de uma revisão/manutenção numa oficina de excelência, tendo um custo final para os AA., de €4.894,00.
44. De todo o modo, este Venerando Tribunal com certeza saberá que a Carclasse não é uma oficina - perdoe-se o vulgarismo - ali da esquina. Pelo que não se nos afigura possível conseguir acreditar que um veículo que entra numa oficina deste calibre, mesmo que se aceitasse a tese do Tribunal recorrido de que tinha estado envolvido num acidente e aí fosse entregue para reparação, após se pagar cerca de cinco mil euros pela revisão/manutenção efectuada ao mesmo, sairá dessa mesma oficina com avarias. Simplesmente não é possível concluir neste sentido sem auxílio de qualquer prova adicional por que contrário às regras da experiência comum!
45. Em seguida, o Tribunal recorrido vem colocar em causa os próprios procedimentos da revisão, considerando que para o carro estar sem óleo ou não colocaram óleo na revisão efectuada a 19.08.2019, ou então o veículo não estava em condições.
46. Ora, afirmar que não foi colocado óleo no veículo, quando existe prova documental – fatura emitida pela Carclasse – que comprova que o veículo levou óleo e também filtro de óleo (vide página 3 da fatura junta pela Carclasse em requerimento notificado aos Autores a 31.03.2022, com a ref. Citius … 19), é desprovido de sentido. É até, como já supra referido, chegar ao limite extremo de duvidar e desconsiderar uma marca de reconhecimento internacional e de referência no mundo automóvel. E é ainda duvidar da prova testemunhal produzida em julgamento, nomeadamente, as declarações prestada pela testemunha G … acima identificadas, concretamente nos minutos transcritos no corpo do recurso entre 00:02:14 e 00:03:15, em que a testemunha declarou não só a seriedade encetada pela Carclasse enquanto oficina bem como a veracidade da factura da revisão.
47. A testemunha, que exerceu funções de assessor de clientes durante largos anos na Carclasse, declarou que as intervenções apostas nas faturas traduzem-se, sem qualquer sombra para dúvidas, no que foi efectivamente realizado no veículo! E a testemunha afirmou e bem: “é por isso que o cliente vem à marca e não vai fora da marca”.
48. Ora, quando o veículo esteve nesta revisão, o contador marcava os 81.496 quilómetros, quando o veículo regressou à posse dos Autores, contava com 84.765 quilómetros. Assim, enquanto o veículo esteve na posse da Ré, percorreu cerca de 3.269 quilómetros. Este simples cálculo matemático permite desfazer, desde logo, a teoria de que o veículo não tinha óleo ou que o mesmo foi entregue à Ré em más condições, porque é impossível um veículo circular mais do que 20 minutos sem óleo, quanto mais percorrer 3000km!
49. E ainda que se equacionasse que o veículo não estaria em condições (sem sequer o Tribunal recorrido se interpelar ou tentar explicar o que isso quer exactamente dizer), necessitando de se considerar assim que haveria uma fuga de óleo que culminasse na ausência total de óleo no veículo, nunca um veículo com uma fuga de óleo percorreria três mil quilómetros!
50. Ademais, um veículo de 2016 – conforme resulta do Certificado de Matrícula junto como Doc. 1 da PI - equipado com componentes electrónicos, diversos sensores e tecnologia automóvel avançada, se padecesse de uma qualquer fuga ou avaria, como as relacionadas com o óleo, emitiria algum tipo de aviso no painel do veículo, circunstância que a Ré nunca deu a conhecer, existindo, ou sequer mencionou em conversações com os Autores.
51. Ora, todo este argumentário decorrente das regras da experiência comum, aliados à prova produzida, só permite concluir num sentido: a Ré circulou com o veículo, sem apresentar qualquer queixa aos Autores, durante oito meses - desde a data do contrato celebrado entre as partes em novembro de 2019, a junho de 2020 – e percorreu mais de três mil quilómetros com o mesmo, a causa da avaria do veículo só a ela pode ser imputada!
52. Não existem quaisquer elementos que permitam concluir em sentido diverso, porque tanto a prova documental como a prova testemunhal apontam no sentido de ter existido diligência no tratamento do veículo por parte dos AA.
53. A final, o Tribunal a quo erige ainda um outro argumento que, com a devida vénia, nos parece despropositado, e além do mais em colisão frontal com a prova carreada, quando afirma que os AA. tiveram falta de cuidado na manutenção do veículo porque a revisão realizada a 19.08.2019, “ocorreu mais de 13.000km do sugerido”.
54. O veículo em causa nos autos é um veículo importado, e conforme consta no Certificado de Matrícula – junto pelos AA., como Documento 1 da PI – obteve a primeira matrícula em Portugal a 07 de fevereiro de 2019.
55. Como é consabido, para que um veículo obtenha o certificado de matrícula portuguesa tem de ser observado um procedimento com essa finalidade, tendo o veículo de ser sujeito a Inspecção Técnica para obtenção da matrícula, como foi, a 22 de Janeiro de 2019, com 81.433km – conforme Doc. A junto pelos AA. por requerimento acima melhor identificado.
56. Portanto, se o veículo foi importado no ano de 2019, contando já com 81.433km, pedir aos AA., para cumprirem o sugerido pela marca e efectuarem a revisão aos 68.000km é impor sobre os mesmos uma obrigação impossível, porque estes não detinham nem a posse, nem a propriedade do veículo no momento em que o mesmo perfez os 68.000km! O veículo nem sequer estava em Portugal, nem sequer tinha matrícula portuguesa!
57. Por fim, o Tribunal a quo aborda a questão do turbo do veículo, considerando que os poucos quilómetros que o veículo percorreu na posse da Ré (relembrando, 3.269km), não coaduna com o facto de ter sido a condução efectuada por esta que levou a partir o turbo.
58. Nesta senda remetemos para toda a linha de argumentação já aposta que consideramos ser suficiente para sustentar a conclusão de que o veículo estava em excelentes condições, sem prejuízo de sempre se relembrar que a indicada prova documental e testemunhal contradiz as conclusões do Tribunal recorrido.
59. Foi junto aos autos a Inspecção Técnica efectuada ao veículo em janeiro de 2019, na qual o mesmo ficou aprovado sem anotações – em requerimento junto pelos AA. 03.03.2022, com a referência Citius … 84. Foi junta aos autos a factura da revisão efectuada ao veículo em agosto de 2019, revisão extensa e detalhada, realizada numa oficina de renome – conforme Documento 21 da PI. Foi ouvida perante o Tribunal testemunha que trabalhou na oficina na qual a revisão ao veículo foi realizada, tendo atestado que tudo o que consta na fatura foi realizado no veículo. E ainda assim, para o Tribunal a quo é mais fácil concluir que os AA. não entregaram o veículo em condições do que concluir que a Ré não procedeu a uma condução prudente do veículo tendo a mesma causado os danos.
60. Relembramos que só passados largos meses de o carro estar na posse da Ré, já se encontrando percorridos mais de 3000km é que o veículo sofreu de uma avaria. Relembramos que a Ré não comunicou qualquer avaria aos AA. durante esse tempo, o que apenas fez em Junho de 2020.
61. A avaria padecida pelo veículo, a ausência de óleo no mesmo, os danos causados ao turbo, são fruto, inequivocamente, da má utilização do veículo por parte da Ré.
62. Ora, o princípio da livre apreciação da prova nunca atribui ao juiz o poder arbitrário de julgar os factos sem prova ou contra as provas, ou seja, a livre apreciação da prova não pode confundir-se com uma qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios.
63. O Tribunal a quo pronuncia-se e aprecia livremente – segundo consigna, tendo por base regras de experiência comum, embora não se descortine quais sejam, pois não se divisa uma lógica que permita esclarecê-las, mais parecendo tratar-se de um simples acervo de lugares comuns muito dubitativos –, tecendo comentários sobre revisões/manutenção automóvel, propriedades de óleo de motor ou estado de turbocompressor, retira ainda conclusões sobre o estado do veículo a partir de alegados elementos que presume terem sido substituídos ou reparados (mas que nem sabe se o foram), conclui sobre o estado da viatura presumindo-o a partir de periodicidades de revisão, enfim, pronuncia-se sobre um conjunto de matéria que exige um mínimo de conhecimentos técnicos e especializados que bem se percebe que o Tribunal recorrido não detém, não só atenta a referida matéria em discussão, mas sobretudo pelas conclusões abstrusas a que o Tribunal chega bem se percebe que se move em temas que não domina de todo.
64. Se é certo que para a apreciação da prova, que tem lugar na fase da sentença, só são admitidos os meios de prova propostos pelas partes e que relevem de acordo com as diversas soluções plausíveis da questão de direito, impõe o princípio do inquisitório que o julgador, em face da dúvida ou de questões técnicas que não domine, como é o caso, determine quaisquer diligências probatórias que não hajam sido solicitadas pelas partes para, precisamente, esclarecer essas dúvidas ou munir-se de prova que lhe permita compreender o que, dada a especial tecnicidade, impõe conhecimentos especializados.
65. Tal princípio, consagrado no art. 411º, do CPC, é um poder vinculado que impõe ao juiz, que determine, oficiosamente, diligências probatórias complementares, necessárias à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.
66. A prova pericial - com regulação de direito probatório material (objeto, admissibilidade e força probatória) nos arts 388º e seg, do CC, e de direito probatório formal (a regular o procedimento da prova pericial) nos arts 467º a 489º, do CPC –, modalidade de prova pessoal e indirecta, na medida em que a demonstração do facto é feita através de uma pessoa, o perito, que se interpõe entre o tribunal e o objeto da perícia, consiste na perceção ou apreciação de factos, pelo que o perito ou peritos são convocados a percepcionar os factos e/ou a valorá-los à luz dos seus conhecimentos técnicos, sendo que aquela operação envolve captação (com os sentidos) dos factos e a sua compreensão.
67. A prova pericial pode visar a percepção indiciária de factos, a apreciação, de acordo com a regra da causalidade, dos indícios a extrair das fontes de prova (para, nomeadamente, estabelecer um nexo de causalidade).
68. Com efeito, considerando o Tribunal recorrido, como parece considerar, insuficiente ou até duvidosa a prova produzida, entendem os Recorrentes que, salvo melhor entendimento, ainda que tais alegadas falhas probatórias existissem – o que como se vem demonstrando inexistem, porém, por mera hipótese académica se concebe –, tal situação não legitima o Tribunal a quo a, sem mais retirar conclusões sobre matérias que exigiriam especiais conhecimentos que de todo não domina.
69. Pelo que, não lançando mão de produção de prova suplementar, o Tribunal a quo violou o princípio do inquisitório – por não ter a juíza do tribunal recorrido ordenado a realização de outros meios de prova, designadamente prova pericial ou até mais e melhores esclarecimentos aos técnicos que elaboraram os documentos juntos – o que integra uma nulidade processual dos artigos 186º e segs. do CPC.
70. Se é verdade que a realização oficiosa de diligências probatórias para o esclarecimento da verdade não se deverá traduzir numa gratuita substituição das partes, também é verdade que o Tribunal recorrido não pode sem mais apreciar prova resultante da indicada pelas partes sem especiais conhecimentos técnicos, quando podia e devia, atenta a manifesta pertinência e necessidade dessa prova suplementar, para a auxiliar a Mma. Juíza a quo nas conclusões técnicas que pretende retirar.
71. Assim, a acrescer ao errado julgamento por o Tribunal recorrido decidir contra a prova apresentada, verifica-se ainda uma nulidade processual por omissão do Princípio do Inquisitório, nos termos melhor expendidos.
72. Assim, deveria o Tribunal de 1ª instância ter dado como provados os factos 29 e 30 tendo em conta a prova documental e testemunhal produzida nos autos.
73. Quanto ao facto 31 dado como não provado, dá-lo como não provado é contrariar a presunção legal versada no artigo 1043.º, número 2 do CC.
74. Inverte, também, o instituto da prova dos factos, quando se percebe na fundamentação que o Tribunal a quo não só dá como não provado que o veículo não foi entregue em boas condições (facto não provado 31) como se agasta em defender o facto contrário.
75. Conforme melhor de descreverá infra, o Tribunal a quo considerou que o contrato celebrado entre as partes se caracteriza como contrato de locação, ao qual se aplicam as normas dos artigos 1022.º do CC, nomeadamente o já referido artigo 1043.º do CC.
76. A presunção deste artigo funciona a favor do locador – neste caso dos AA. – referindo o artigo que se presume que a coisa foi entregue ao locatário em bom estado quando não exista documento onde as partes tenham descrito o estado dela ao tempo da entrega.
77. Relembrando conceito básicos de direito, estipula o artigo 350.º do CC que quem tem a seu favor presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz.
78. Contrariamente ao que o Tribunal recorrido considerou, os AA. não tinham de provar que o veículo foi entregue em perfeitas condições. Quanto muito, o ónus de ilidir essa presunção competia aos Réus, violando assim a decisão o artigo 1043.º do CC.
79. E nos que aos RR concerne, como se observou, não produziram qualquer prova contrária à presunção: o 2.º R. não provou que o veículo não se encontrava em boas condições – aliás, nunca o poderia fazer porque o mesmo não teve qualquer contacto com veículo, sendo mero fiador -, e como bem se viu, a 1.ª Ré nunca contestou este facto, nem nenhum outro.
80. Toda a factualidade permite concluir no sentido da falta de diligência da Ré, não podendo ser imputada aos Autores a obrigação de atestar as boas condições do veículo aquando na entrega, não se podendo ignorar, todavia, que a prova documental as comprova.
81. Nestes termos, o Tribunal a quo deveria ter dado como provado o facto 31, tendo em conta a prova documental produzida nos autos bem como a presunção legal aplicável.
82. Nestes termos e nos melhores de Direito, devem os factos não provados acima identificados ser considerados incorrectamente julgados por assim o impor a prova concretamente identificada, passando a constar da factualidade provada com as necessárias consequências de procedência do pedido formulado pelos AA. na PI.
83. Quanto à matéria de Direito, após uma breve pesquisa jurisprudencial ocorrida na pendência da elaboração do recurso, os Recorrentes depararam-se com um acórdão deste Venerando TRL, datado de 06.12.2007, proferido no âmbito do processo n.º 10592/2006-6, no qual foi Relatora a Mmª Juiz Fernanda Isabel Pereira, cuja matéria discutida concerne a contratos de aluguer de equipamentos, em que os mesmos apresentaram, na pendência desse contrato, inúmeros defeitos, culminando na resolução do contrato pela Ré.
84. Imagine-se o espanto, quando se procedeu à leitura da fundamentação de direito desse acórdão e se deparou com a total identidade entre esta fundamentação e a fundamentação da sentença recorrida. A sentença recorrida utilizou, rigorosamente, 80% da fundamentação desse acórdão, e quando nos referimos a rigorosamente, é porque foram mudadas simplesmente as datas e os pequenos elementos que referenciam o caso concreto.
85. E que se deixe esclarecido que não se rejeita a possibilidade de aproveitamento de doutas considerações doutrinárias e jurisprudências tecidas em acórdãos de um tribunal de 2.ª instância pelo Tribunal a quo. O que se rejeita é o Tribunal a quo utilize a fundamentação de direito de um acórdão, cole na fundamentação de direito da sentença que vai proferir e alterar pequenos elementos, desconsiderando que as matérias discutidas são factualmente diferentes, oferecendo uma fundamentação que não coaduna com o caso dos autos.
86. Basta uma mera leitura perfunctória do Acórdão desse Alto Tribunal para perceber que embora se tenha discutido - como no caso dos presentes autos - matéria eventualmente subsumível ao contrato de locação, naquele caso o defeito dos equipamentos era imputável ao Autor, e a Ré comunicou inúmeras vezes esses defeitos ao Autor e a sua resolução contratual fundou-se no facto de o Autor ter faltado culposamente ao cumprimento do contrato por não ter feito face às deficiências apontadas pela Ré.
87. O caso que aqui se discute é essencialmente diferente, quer por não haver qualquer incumprimento por parte dos AA., quer por não ter existido qualquer comunicação da suposta avaria, aos AA. por parte da Ré.
88. Apesar de os temas da prova fixados por despacho de 17/02/2022 serem os factos conclusivos alvo da prova, foi na sentença que o Tribunal recorrido começou com uma conclusão. É que se numa fase anterior o Tribunal recorrido declarou que se deveria determinar se o contrato “deve ser resolvido”, na subsunção jurídica da sentença propõe-se a analisar a resolução da Ré que a 1.ª A. referiu, à cabeça, não poder operar, por ademais se ter oposto à mesma.
89. Mais, escreve ainda na página 12 da sentença que importava apurar se a declaração resolutiva feita pela Ré a 12 de junho de 2020 produziu efeitos.
90. O Tribunal a quo nem questiona que a viatura tenha ficado imobilizada a partir de Março, veja-se na página 11, assumindo, pois, que a viatura apenas somou km até Março!
91. Repare-se que, mesmo que não seja procedente a impugnação da matéria de facto, não existe nenhum facto provado de onde resulte que a viatura ficou imobilizada a 28.03.2020!
92. O único sinal que existe nos autos nesse sentido é que a Ré enviou um e-mail onde DIZ que a viatura está avariada desde essa data, conforme facto provado 10. Mas coisa diferente é que tenha sido dado como provado que desde 28 de Março de 2020 o carro estava avariado, e menos ainda que nesse momento essa avaria tenha sido comunicada aos AA.!
93. Da prova testemunhal produzida, e plasmada na sentença resulta que a Ré apenas comunicou a avaria aos Autores no mês de Junho, e em data próxima ligou à testemunha F … a comunicar o mesmo e se o podia mandar rebocar até à oficina.
94. Ora, esta questão não é de somenos: a pessoa que poderia afirmar se o carro estava ou não avariado desde Março, não apareceu em julgamento e nem apresentou a sua versão dos factos; a prova acerca dessa avaria está incorrectamente indicada na decisão, quando o próprio Tribunal diz que resulta que em Junho a Ré COMUNICOU A AVARIA!
95. Ou seja, os AA. apenas têm conhecimento da avaria no mesmo momento que a 1.ª Ré tenta resolver o contrato, impedindo activamente o apuramento da responsabilidade sobre a alegada avaria!
96. Com o devido respeito, na página 13 da sentença evidencia-se uma grande confusão, pois que foi ouvido em julgamento o mecânico para onde a viatura foi levada pela 1.ª Ré, e com o devido respeito, o que a testemunha diz não é o que aí se sumaria..
97. Nas declarações de F … prestadas no dia 26/09/2022, conforme acta desse dia, cujo depoimento foi gravado no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no Tribunal, tendo ocorrido e ficado registado entre as 09:43:12 e as 09:54:30 (áudio … 01_ … 65_ … 61), transcrevendo-se no corpo do recurso entre os minutos 00:01:38 e 00:02:30, a testemunha declarou que apenas foi contactada pela 1.ª Ré no mês de maio de 2021.
98. Ou seja, ressalvado o lapso do ano (2020), a viatura foi levada para a oficina em Maio, como resultava também do Doc. 17 junto com a PI, e não em Março como dá a entender o Tribunal, dizendo que o diagnóstico tardou atendendo ao confinamento obrigatório.
99. Verdadeiramente a referida testemunha diz que demorou 2 meses para o diagnóstico, mas dois meses contados desde que enviou o orçamento à 1.ª Ré após a recepção da viatura, em Maio, não se referindo ao confinamento ou ao intervalo de meses entre Março e Maio (!), aqui nos minutos 00:03:33 e 00:03:59 e 00:04:49 e 00:05:40 das declarações acima identificadas.
100. Em Novembro os AA. recebem um e-mail provindo desse senhor, solicitando o levantamento da viatura, conforme Doc. 13 junto com a PI.
101. Mas honestamente, mesmo que a viatura estivesse imobilizada desde Março, - e talvez até pior para a Ré nesse caso - apenas seria imputável à Ré não garantir assistência à mesma, ou não solicitar aos AA. que o fizessem, deixando-a a deteriorar-se com um problema desconhecido até 19 de Maio de 2020 (reboque) conforme facto provado, dando apenas conta aos AA. dos problemas da viatura em Junho de 2020 (facto provado 10).
102. Ademais, o Tribunal recorrido escreveu mesmo que “Aliás, nem resulta dos autos que tenham procedido a quaisquer diligencias no sentido de salvaguardar o uso e gozo quer deste veículo quer de outro à Ré. Limitaram-se a peticionar – conforme cartas remetidas – o incumprimento imputado contratualmente à Ré, olvidando o seu.”
103. Primeiro, resulta do facto provado 6 que a viatura cedida encontra-se coberta pelo seguro n.º … 57, no qual a 1.ª Ré foi inscrita como condutora habitual, dando o Tribunal nesse facto o Doc. 3 junto com a PI integralmente reproduzido. Ou seja, a viatura estava segurada com garantia de veículo de substituição, sendo que a Ré nunca procurou accionar o seguro, estando mais preocupada em descartar-se da viatura antes de permitir que se apurasse o que realmente aconteceu e quais os custos associados, tentando desvincular-se do contrato antes de dar oportunidade aos AA. de solucionarem o problema que se viesse a apurar.
104. Pois que, já para evitar este tipo de situações, constava do contrato outorgado entre a 1.ª Autora e a 1.ª Ré que b) Todas as revisões e/ou manutenções de acordo com o programa da marca num concessionário Jaguar;, conforme facto provado 4.
105. Ademais, ignora-se olimpicamente o 1.º e-mail remetido pela Ré que anuncia a sua intenção, ao escrever, a 4 de Junho, conforme facto provado 12, que atravessa dificuldades económicas.
106. Mas perguntamos a esse Alto Tribunal: de que forma poderiam os AA. aceitar a rescisão de um contrato que tem por objecto um Jaguar que se diz estar imobilizado, não anda, com um problema que se desconhece, desconhecendo-se igualmente a responsabilidade da última pessoa que com ele circulou relativamente a essa avaria, com a singela informação que o orçamento recebido de uma oficina que não se conhece é “no valor de 2.546,006 sendo que foi o turbo que se estragou, foi-me dito que teria também de ser visto se há danos provocados no motor”?
107. Salvo melhor opinião, isto ultrapassa todos os limiares mínimos da razoabilidade contratual!
108. Primeiro, no dia 4 de Junho a Ré testa os AA. para resolver o contrato por o carro estar com problemas, sem cuidar de querer apurar o problema efectivo ou permitir a continuidade desse contrato; após, logo a 12 de Junho, uma semana depois, faz retroagir os efeitos da rescisão a Março de 2020 (!).
109. Isto quando está em mora com duas prestações, como decorre do facto provado 7, pontos d. e e.. Mas sobre isto passa o Tribunal a quo dizendo que pese embora, não cumprindo pontualmente as datas de pagamento das prestações mensais, as mesmas foram pagas até 05/2020, quando em bom rigor o foram fora de prazo e após a tentativa de rescisão contratual!
110. O Tribunal recorrido escreve que: “O facto de o veículo se encontrar imobilizado é, claramente, revelador que o mesmo deixou de cumprir cabalmente o fim a que se destinava.”.
111. O Tribunal vai inclusivamente mais longe ao escrever na página 14 que os Autores faltaram culposamente ao cumprimento do contrato quando: a Ré incumpriu os pagamentos do contrato desde o início (factos provados 24, 8 e 9); a Ré apenas avisou os AA que a viatura estava avariada em Junho de 2020, em semanas sequenciais, logo com intenção de rescindir (factos provados 10 e 12); a Ré, aquando da avaria, não endereçou a viatura à Jaguar (factos provados 4 b) e 15) ;
112. A viatura: não tinha bateria (facto provado 18), não tinha óleo (facto provado 19), o turbo estava partido (facto provado 20), após retirar o turbo da viatura e carregada a bateria, o motor fazia um grande barulho (facto provado 21).
113. Não se percebe, sequer, o que quer o Tribunal dizer com a incapacidade dos Autores em solucionar eventuais problemas com a viatura, sem que se encontre uma única vez na decisão qualquer tentativa, sequer, de reconstrução do nexo com o responsável pela reparação da viatura – durante a qual sempre beneficiaria a Ré de viatura de substituição.
114. Ademais, e como vimos, os AA. ficaram “com o menino nos braços”, a partir do momento em que na leitura do Tribunal recorrido, a resolução da 1.ª Ré foi válida e os AA. ficaram com um carro com um arranjo de € 14.000 que, já agora, não pagaram – como se diz na sentença – por não ter esse capital disponível. Mas diga-se mais, à data em que se apura o valor do arranjo, e de acordo com o Tribunal, já não havia a possibilidade de os AA. o fazerem de forma a assegurar o uso da coisa pela 1.ª Ré porque ao que parece o contrato estava resolvido.
115. Pelos vistos andou bem a Ré em “largar” a viatura numa oficina que os AA. desconhecem, nem cumprindo a básica entrega da “coisa” – artigo 1038.º alínea i) do CC.
116. Mais longe ainda vai o Tribunal num ataque aos AA. que se confessa não compreender, escrevendo “Repare-se que, incumbia à Autora demonstrar que o veículo se encontrava em condições aquando da sua entrega à Ré. Não o fez. Aliás, duvidas serias surgiram quanto à integridade do veículo, conforme supra explanado.”
117. A A. juntou aos autos documento comprovativo da revisão da viatura e a testemunha G …, assessor da Carclasse que explicou a revisão efectuada. O que o tribunal não pode, e mesmo na hipótese de dar o facto 31 como não provado, é dar o seu contrário como provado para efeitos de raciocínio – isto é, que a viatura não foi entregue à Ré em condições. Pois que se não fosse, também sempre se deveria o Tribunal questionar como circulou a viatura de 11/2019 até 05/2020 ou, mesmo no convencimento do Tribunal recorrido de que a viatura ficou imobilizada em 03/2020, durante 4 meses sem óleo?
118. O Tribunal recorrido de forma tão imotivada decidiu contra os AA. que nem sequer o pedido de condenação no pagamento da prestação dos seguros teve procedência, ainda que se tenha dado como provado que os RR não pagaram nenhum, com excepção da 1.ª prestação – factos provados 8 e 24.
119. Ademais, na sentença recorrida veio o Tribunal recorrido considerar que o contrato celebrado entre as partes se caracteriza como contrato de locação, estando assim sujeito às normas dos artigos 1022.º e seguintes do Código Civil.
120. Logo se dirá que quanto à alegação de que incumbia à Autora demonstrar que o veículo se encontrava em condições aquando da sua entrega à 1.ª Ré, embora já se tenha introduzido a questão na impugnação de facto supra exposta, não é demais referir que existe presunção legal que funciona a favor do locador, neste caso da Autora plasmada no artigo 1043 do CC e, conforme se retira da leitura do contrato, as partes não descreveram o estado do veículo aquando da entrega, nem existe documento avulso sobre esta questão, o que faz operar a favor dos Autores a presunção do n.º2. C.C.
121. O artigo 1044.º do CC, na sequência da presunção do artigo anterior, refere que “O locatário responde pela perda ou deteriorações da coisa, não excetuadas no artigo anterior, salvo se resultarem de causa que lhe não seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização dela.”, ensinando a doutrina a este respeito que o locatário é responsável pela perda ou pelas deteriorações, e, portanto, para que o não seja necessita de provar que as causas lhe não são imputáveis, nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização da coisa, “o que se traduz numa espécie de responsabilidade objectiva, que tem alguma justificação, quer por ser o locatário quem utiliza a coisa no seu próprio interesse, quer como estímulo legal a uma utilização prudente da coisa que lhe não pertence.”.
122. A lei indica no sentido de que em casos como o autos, o ónus da prova recai sobre o locatário (Ré) e não sobre o locador (A) pelo que a sentença recorrida é contra legem.
123. Ademais, o Tribunal a quo caracteriza a Ré como “contraente não faltoso” ignorando, de forma óbvia, toda a factualidade dos autos, numa tentativa de justificar a “resolução” do contrato por parte da Ré.
124. Ora resulta do art. 805.º/2 do CC que o devedor fica constituído em mora, independentemente de interpelação, se a obrigação tiver prazo certo, como é o caso. E ainda que se equacionasse ser de aplicar ao caso o prazo de tolerância legal de 8 dias contados da data do vencimento, para que o locatário deixasse de estar em mora, ainda assim a Ré sempre estaria em mora no momento em que declara que pretende resolver o contrato.
125. Na sentença recorrida vem também o Tribunal a quo sustentar a validade da resolução da Ré por considerar que não se verifica nos autos qualquer dos casos de irresponsabilidade do locador, previstos no artigo 1033.º do CC, indo contra a prova produzida e os factos.
126. E aqui é fácil compreender: ainda que não seja dado como provado o facto actualmente não provado 31 inexiste, seguramente, qualquer facto provado em sentido contrário ou prova que suporte a extracção pelo Tribunal a quo do facto inverso.
127. O artigo 1032.º do CC, atribui responsabilidade ao locador, considerando que o mesmo não cumpriu o contrato de locação, quando a coisa apresentar vício que lhe não permita realizar cabalmente o fim a que é destinada. Todavia, o artigo 1033.º vem eximir o locador da responsabilidade pelos vícios da coisa quando o defeito for da responsabilidade do locatário ou quando o locatário não tenha avisado o locador do defeito, como lhe cumpria.
128. Ora, parece-nos claro pelo supra exposto que as avarias causadas ao veículo – defeito do mesmo – ao que tudo indicia são da responsabilidade da Ré, pelo que não existiria qualquer direito a resolução por parte da mesma. Todavia, ainda que assim não se entendesse, sempre se aplicaria ao caso a alínea d) do 1033.º, que afasta a responsabilidade da Autora pelos defeitos, dado que a Ré não comunicou estes defeitos – na verdade avaria causada pela Ré - aquando da sua ocorrência.
129. A doutrina entende que o aviso do defeito ao locador deve ser imediato, não lhe sendo aplicável o prazo fixado no artigo 916.º/2 do C.C, e que este é obrigação do locatário conforme alínea h) do artigo 1038.º do CC - a que se somam outras que a Ré incumpriu, como as alíneas a) ou d), pelo menos. Assim, para ser imputável aos Autores a responsabilidade pela avaria do veículo – o que se concebe por mera cautela de patrocínio – a Ré teria de ter comunicado esta avaria no momento que esta aconteceu o que, na óptica do Tribunal foi em Março.
130. Ora, não foi isso que sucedeu nos autos, muito pelo contrário, conforme factos provados 10 e 12, a Ré apenas entrou em contacto com os Autores no mês de Junho de 2020, reportando uma alegada avaria desde Março de 2020. Deste modo, para se poder afirmar que recaia sobre os Autores a responsabilidade da avaria, a mesma teria de ter sido comunicada na data da sua ocorrência, o que não sucedeu. É até venire contra factum proprium deixar um bem avariado deteriorar-se e, perante essa avaria que não deu conhecimento ao proprietário dando oportunidade de a corrigir, resolver o contrato.
131. A fundamentação do Tribunal a quo revela-se ainda mais confusa quando procura subsumir a resolução perpetrada pela Ré a um preceito legal, dando a entender, em primeiro lugar, que estamos perante resolução contratual ao abrigo do artigo 1050.º - o que é fruto do, perdoe-se a franqueza, “copy paste” efectuado do acórdão deste Venerando Tribunal – e aplicando, em segundo lugar, a retroactividade do artigo 432.º.
132. No que concerne à aplicação do artigo 1050.º, parece-nos cristalino que, embora discutível, apenas estaria em causa a aplicação da alínea a), embora o Tribunal a quo não se importe de distinguir qual a alínea aplicável, mas considera-se que assim seja feita as referências à impossibilidade de uso e gozo do veículo na sentença recorrida. Ora, para que haja direito a resolução à luz deste artigo é necessário que por motivo estranho à pessoa do locatário ou à dos seus familiares, este fique privado do gozo da coisa, ainda que só temporariamente.
133. Prontamente se dirá que, aqui chegados, é obvio que o motivo pelo qual a Ré ficou privada do gozo da coisa se deve à sua conduta, conforme já supra demonstrado, razão suficiente para se afastar o seu direito à resolução.
134. Não obstante, ainda que se considerasse que o motivo não lhe era imputável, a verdade é que a mesma nunca ficou privada do gozo da coisa, ou melhor, ficou privada do gozo da coisa porque assim o quis – privação que os AA. desconheciam.
135. Bem sabendo que o veículo estava coberto por apólice de seguro, conforme já supra referido, apólice essa que dava direito a um veículo de substituição, equacionando-se a hipótese de o veículo se avariar, sempre estaria assegurado o gozo da coisa e, assim, a finalidade do contrato, porque durante o período de arranjo da viatura seria concedido à Ré veículo de substituição, de categoria igual ao superior ao veículo objecto do contrato e coberto pela apólice, razão adicional pela qual se afasta a aplicação do artigo 1050.º CC – já que não foi dada oportunidade aos AA. de serem eles a suprir essa falta de gozo do bem.
136. Surgem exemplos na jurisprudência, referidos no corpo do recurso, no qual a situação dos autos equipara-se à deste: o facto de a Ré ter direito a um carro de substituição, implica que a mesma não fique privada, de modo total, nem sequer temporário, do gozo da coisa.
137. Ademais, nunca poderia operar a retroatividade do artigo 432.º do CC nos presentes autos, porque a Ré, como bem sabia, estava em mora no momento em que manifestou a vontade de resolver o contrato.
138. Deste modo, a parte que se encontra a incumprir o contrato, como era o caso da Ré que se encontrava em mora desde o dia 20 de abril de 2020, não pode pretender fazer retroagir os efeitos da resolução, porque assim estaria a eximir-se ao pagamento de valores que bem sabe serem devidos. Na verdade, estão em crer os Autores que a alegação da avaria como sendo anterior à sua comunicação pode precisamente pretender acomodar uma tentativa de retroactividade da resolução à data do incumprimento dos pagamentos… precisamente o que a proibição da retroactividade naqueles termos visa acautelar!
139. A toda a linha de argumentação supra exposta acresce o seguinte facto: no dia 15 de Junho de 2022, após tentativa de resolução do contrato por parte da Ré, os AA. interpelaram a mesma para pagamento, sob pena de resolução do contrato – conforme Documento 10 da PI.
140. Sucede que, no dia 17/06/2022, após a declaração de resolução e após a interpelação para pagamento, vêm a ser liquidadas as prestações correspondentes aos meses abril e maio de 2020, bem como o reforço vencido no dia 01/06/2020 - conforme Documento 8 da PI.
141. Tais pagamentos e ausência de contactos criaram a convicção de que o contrato se mantém e que a Ré ficou ciente de que a resolução não operara.
142. Qual não é a surpresa dos AA. quando recebem em Novembro um e-mail da “Fórmula F” dando conta de um valor absurdamente elevado de parque Doc. 13 da PI.
143. Os AA. sofreram elevadíssimos prejuízos e requerem, a V. Exas. a sindicância e correcção da sentença ora recorrida, que padece de erros grosseiros ao nível factual, da apreciação da prova, e de aplicação do Direito.
Remataram as suas conclusões da seguinte forma:
“Nestes termos e nos melhores de direito, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência:
a) Ser alterada a matéria de facto incorrectamente julgada nos termos acima expostos;
b) Declarando-se a nulidade por violação do princípio do inquisitório nos termos dos artºs 186º e segs. do CPC., sendo em qualquer caso
c) alterada a decisão de direito nos termos supra requeridos,
Sempre com as demais consequências legais que se impõem, sendo a final procedente o pedido de condenação formulado pelos AA.”
O réu apresentou contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.
Admitido o recurso e remetidos os autos a este Tribunal, foi proferido acórdão determinando “(…) que o Tribunal a quo proceda à ampliação da motivação da decisão sobre matéria de facto, a fim de motivar adequadamente a sua convicção no tocante a cada um dos pontos de facto não provados, nos exatos termos expostos na fundamentação do presente aresto.
Voltando os autos ao Tribunal a quo, e proferido despacho complementando a motivação da decisão sobre matéria de facto, e remetidos aqueles, de novo, a este Tribunal, o relator proferiu despacho convidando as partes a pronunciar-se sobre um facto superveniente apurado em audiência e suscetível de relevar na apreciação do mérito da causa e do recurso, a saber, a venda do veículo dos autos na pendência da causa.
Exercido o contraditório, foram colhidos os vistos.
2. Objeto do recurso
Conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do CPC, é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, seja quanto à pretensão dos recorrentes, seja quanto às questões de facto e de Direito que colocam[6]. Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal da Relação não se verifica em sede de qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cfr. art. 5º n.º 3 do CPC).
Não obstante, excetuadas as questões de conhecimento oficioso, não pode este Tribunal conhecer de questões que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas[7].
Assim, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
a. A nulidade decorrente da violação do princípio inquisitório – Conclusões 62 a 71;
b. A impugnação da decisão sobre matéria de facto – Conclusões 10 a 5 a 61, e 72 a 82;
c. A resolução do contrato por iniciativa da ré e a sua invocada ineficácia - Conclusões 83 a 143;
d. A contra-exceção de abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium – Conclusão 130;
e. O invocado incumprimento do contrato pela ré, e o consequente o mérito da resolução judicial do mesmo, e das pretensões indemnizatórias deduzidas pelos autores- Conclusões 83 a 143.
3. Fundamentação
3.1. Os factos
3.1.1. Factos provados
O Tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:[8]
1- A 1.ª Autora é proprietária de uma viatura de marca Jaguar, Modelo XE Pure, com a matrícula …-XB-….
2- A 1.ª Ré, advogada de profissão, precisava de um carro para se deslocar e, não pretendendo adquirir um, chegou a um consenso com a 1.ª A. em como essa lhe cedia a referida viatura, mediante contrato escrito, que as partes denominaram de “contrato de cedência de veículo entre particulares”, datado de 18 de Novembro de 2019.
3- Nos termos do acordo identificado em 2- a 1.ª Ré obrigou-se a pagar uma prestação mensal de 600 € (seiscentos euros), com reforços de 2.000,00 € (dois mil euros) no primeiro dia dos meses de fevereiro, junho e novembro de 2020, bem como no primeiro dia dos meses de fevereiro e junho de 2021.
4- A 1.ª Ré assumiu, ainda, a responsabilidade de liquidar:
a) Todos os impostos, taxas, multas e coimas relacionadas com a utilização, ou detenção do veículo;
b) Todas as revisões e/ou manutenções de acordo com o programa da marca num concessionário Jaguar;
c) Seguro contra todos os riscos com franquia zero.
5- Ademais, durante o período em que perdurasse a cedência da viatura, não podia a 1.ª Ré exceder o limite de 20.000km de circulação por cada 12 meses, sendo, ademais, responsável pela substituição dos quatro pneus aquando da entrega da mesma à 1.ª Autora.
6- A viatura encontra-se coberta pela apólice de seguro n.º … 57 da Ocidental Seguros, com data de início de 25-11-2019, constando a 1.ª Ré como condutora habitual da referida viatura.
7- Os Réus liquidaram os seguintes valores:
a) 30.11.2019 - € 835,27 (oitocentos e trinta e cinco euros e vinte e sete cêntimos) – prestação correspondente ao mês de novembro de 2019;
b) 03.02.2020 - € 3.200,00 (três mil e duzentos euros) – prestação correspondente aos meses de dezembro de 2019 e janeiro de 2020 e reforço correspondente ao mês de fevereiro de 2020;
c) 05.03.2020 - € 600,00 (seiscentos euros) – prestação correspondente ao mês de fevereiro de 2020;
d) 27.04.2020 - € 600,00 (seiscentos euros) prestação correspondente ao mês de março de 2020;
e) 17.06.2020 - € 1.200,00 (mil e duzentos euros) prestação correspondente aos meses de abril de 2020 e de maio de 2020 .
8- A primeira prestação paga (30.11.2019) contempla o valor devido pelo seguro automóvel correspondente à apólice supramencionada, e foi a única prestação liquidada pela 1.ª Ré.
9- Todas as demais foram liquidadas pelo 2.º Réu, o fiador da 1.ª R.
10- No dia 12 de Junho de 2020, a 1.ª Ré remeteu um e-mail ao 2.º A. onde consta:
“Após a n/a conversa de há minutos atrás, e na impossibilidade de chegar a acordo com relação à cedência do veículo acima identificado, venho por este meio e uma vez que não obtive resposta aos emails enviados no que se refere à imobilização do Jaguar XE por avaria, rescindir o contrato celebrado em 18 de Novembro de 2019 por inutilidade superveniente uma vez que o bem objecto do contrato de cedência se encontra avariado desde 28 de Março de 2020 data em que vigorava o EdE, tendo sido transportado para a oficina e recebido orçamento em 27/05/2020, estando a aqui locatária impedida do gozo do veículo.
A resolução aqui comunicada tem efeitos à data de recepção do orçamento de reparação do veículo em que se confirma a avaria não ser imputável a mau uso ou a accão ou omissão da Segunda Contraente (27/05/2020) e não antes em virtude do EdE decretado.
Sendo o veículo propriedade da Sra. A … e com a rescisão aqui comunicada (embora conhecimento da proprietária) o veículo encontra-se à V/ disposição na oficina Fórmula F, Quinta … …, Rua …- Lote …, 2685-870 Sacavém para recolha, conforme cópia do orçamento remetido em 04/06”.
11- Em virtude de nessa altura haver pagamentos incumpridos, a Autora remeteu, por intermédio de mandatário, uma missiva datada de 15 de Junho de 2020, advertindo a 1.ª Ré e o fiador do incumprimento dos valores devidos pelas prestações vencidas referentes aos meses de Abril e Maio, bem como quanto ao reforço vencido no dia 1 de Junho de 2020, num total de € 3.200 (três mil e duzentos euros) .
12- A 1.ª R. enviou ao 2º Autor, a 04.06.2020 um email com o seguinte conteúdo:
“Olá F …,
Como sabes o carro está imobilizado desde 28 de Março, nessa data estava em vigor o estado de emergência e não havia oficinas nem meios para se fazer diagnóstico.
No dia 19/05 foi transportado de reboque para oficina, foi feito diagnóstico que me chegou por email no dia 27/05 e no valor de 2.546,006 sendo que foi o turbo que se estragou, foi-me dito que teria também de ser visto se há danos provocados no motor, segundo o mecânico pode acontecer.
É certo que as prestações acordadas pela utilização do carro não foram pagas pontualmente, mas estão liquidadas / até fim de Março.
Neste momento e por causa da situação actual que veio agravar as dificuldades que tinha desde meados de Janeiro é-me impossível manter o contrato, o estado de emergência e a situação actual tomaram impossível suportar este encargo.
Queria saber se estás disponível para rescindir o contrato com a recolha imediata do carro e se atendendo à actual conjuntura concedes uma moratória de 3 meses para liquidação das prestações de Abril e Maio? (à semelhança do que fazem os concessionários, stands, financeiras etc).
Não te consigo ligar hoje estou a acabar um projecto que tem de ir para o ar amanhã.
Ligo-te amanhã logo de manhã.
Envio em anexo o orçamento como combinado.
Obrigada”
13- As prestações trimestrais relativas aos meses de Fevereiro e Março de 2020 do seguro automóvel, no montante individual de 235,52€ não foram pagas.
14- A 4 de novembro de 2020, a Autora recebeu um e-mail da oficina “Fórmula F”, sita em Sacavém, assinada pelo Sr. F …, informando que aí se encontrava parqueada a viatura …-XB-…, somando-se já o valor do parque em € 2.950,00 (dois mil novecentos e cinquenta euros) acrescido de IVA.
15- A Ré entregou-lhe a viatura, tendo a oficina “Formula F”, elaborado dois orçamentos em nome daquela, datados de 20.05.2020: um descritivo dos trabalhos a realizar na viatura e outro concernente ao valor do parque.
16- A Autora procedeu ao levantamento da viatura através de reboque no dia 5 de janeiro de 2021, tendo liquidado a quantia de 1.845,00 a título de parqueamento.
17- A viatura, no dia de 5 de janeiro levada por reboque para a oficina Auto DCS.
18- Na Oficina verificaram que a viatura não tinha bateria.
19- Não tinha óleo.
20- O turbo estava partido.
21- Verificaram ainda que após retirar o turbo da viatura e carregada a bateria, o motor fazia um grande barulho.
22- Os AA. ainda não procederam ao arranjo do veículo.
23- A Ré não procedeu ao pagamento das prestações relativas aos meses de junho de 2020 a dezembro de 2020 e, bem assim, aos reforços de junho e novembro de 2020, cifram-se em € 8.200 (oito mil e duzentos euros).
24- A 1.ª A. procedeu ao pagamento dos montantes, a título de seguro automóvel, no valor total de € 957.98 (novecentos e cinquenta e sete euros e noventa e oito cêntimos) devidos pelas seguintes prestações (Prestação de 28-02-2020 a 29-05-2020: 242.19€; Prestação de 29-052020 a 29-08-2020: 236.80€; Prestação de 29-08-2020 a 29-11-2020: 236.80€; Prestação de 2911-2020 a 28-02-2021: 242.19€).
25- A viatura tinha registado 84.765 km quando retornou à posse dos Autores.
3.1.2. Factos não provados
O Tribunal a quo considerou não provados os seguintes factos[9]:
26- Para resolução das sobreditas avarias, previa-se que o valor desta intervenção ascendesse a €12.000,25 (doze mil euros e vinte e cinco cêntimos).
27- Por se revelar insuficiente uma intervenção apenas a nível do turbocompressor, os AA. lograram obter um orçamento para reparação da viatura na oficina Land Rover - Auto Sueco, sita em Barcarena, a 11/02/2021.
28- Estimando-se que as reparações irão ascender a € 14.657,28 (catorze mil, seiscentos e cinquenta e sete euros e vinte e oito cêntimos) – conforme orçamento que se junta como Doc.20.
29- Em momento anterior à entrega da viatura à 1.ª R., mais concretamente, a 19/08/2019, a viatura em causa tinha ido à revisão automóvel na marca, Carclasse Lisboa, sita na Avenida Marechal Gomes da Costa.
30- Nessa data, foi feito um check-up geral à viatura, substituíram-se peças e procedeu-se às reparações que se demonstravam necessárias – todas estas discriminadas na fatura já junta como Doc.21 –, tendo-se ainda procedido à substituição do óleo e respetivo filtro.
31- A viatura encontrava-se em bom estado quando foi entregue pelos Autores à Ré no início do contrato.
3.2. Os factos e o direito
3.2.1. Da nulidade processual
Sustentaram os apelantes que a circunstância de o Tribunal a quo não ter determinado oficiosamente a realização de uma perícia ao automóvel dos autos configura uma nulidade processual, prevista no art. 195º do CPC, na medida em que tal omissão conduziu à não demonstração dos factos vertidos nos pontos 29 e 30 dos factos não provados, o que seria evitado se aquela perícia tivesse sido levada a cabo[10].
Vejamos então.
Estabelece o art. 195º, nº 1 do CPC que não se verificando os casos previstos nos números anteriores[11], “a prática de um ato que a lei não admita, bem como a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa”.
No caso vertente é manifesto que a lei não prevê especificamente que a omissão da diligência probatória referidas pelos apelantes constitua nulidade processual, pelo que só poderá estar em causa uma nulidade secundária.
Assim, serão requisitos da verificação de uma tal nulidade:
- a prática de ato que a lei não permita, ou a omissão de ato ou formalidade que a lei imponha;
- que tal ato ou omissão influa no exame ou decisão da causa
A este propósito haverá que recordar que em regra o meio processual adequado para invocar nulidades processuais não é o recurso para o Tribunal da Relação, mas a arguição de nulidades perante o Tribunal recorrido[12].
Não obstante, caso a nulidade se revele por efeito de uma decisão recorrível, então o meio próprio para a impugnar será o recurso.
Com efeito, já em 1945 ensinava ALBERTO DOS REIS[13]:
“a arguição de nulidade só é admissível quando a infracção processual não está ao abrigo de qualquer despacho judicial; se há um despacho a ordenar ou autorizar a prática ou omissão do acto ou da formalidade, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade que se tenha cometido, não é a arguição ou reclamação por nulidade, é a impugnação do respectivo despacho pela interposição do recurso competente.
Eis o que a jurisprudência consagrou nos postulados: dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se.
É fácil justificar esta construção. Desde que um despacho tenha mandado praticar determinado acto, por exemplo, se porventura a lei não admite a prática dêsse acto é fora de dúvida que a infracção cometida foi efeito do despacho; por outras palavras, estamos em presença dum despacho ilegal, dum despacho que ofendeu a lei do processo. Portanto a reacção contra a ilegalidade traduz-se num ataque ao despacho que a autorizou ou ordenou; ora o meio idóneo para atacar ou impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso (...)”.
Na mesma linha se pronunciou MANUEL DE ANDRADE[14]: “(...) se a nulidade está coberta por uma decisão judicial que ordenou, autorizou ou sancionou, expressa ou implicitamente, a prática de qualquer acto que a lei impõe, o meio próprio para a arguir não é a simples reclamação, mas o recurso competente a interpor e a tramitar como qualquer outro do mesmo tipo. Trata-se em suma da consagração do brocardo: «dos despachos recorre-se, contra as nulidades reclama-se»”.
Também ANTUNES VARELA[15] dizia: “se entretanto, o acto afectado de nulidade for coberto por qualquer decisão judicial, o meio próprio de o impugnar deixará de ser a reclamação (para o próprio juiz) e passará a ser o recurso da decisão”.
Finalmente argumentou ANSELMO DE CASTRO[16]: “Tradicionalmente entende-se que a arguição da nulidade só é admissível quando a infracção processual não está, ainda que indirecta ou implicitamente, coberta por qualquer despacho judicial; se há um despacho que pressuponha o acto viciado, diz-se, o meio próprio para reagir contra a ilegalidade cometida, não é a arguição ou reclamação por nulidade, mas a impugnação do respectivo despacho pela interposição do competente recurso, conforme a máxima tradicional – das nulidades reclama-se, dos despachos recorre-se. A reacção contra a ilegalidade volver-se-á então contra o próprio despacho do juiz; ora o meio idóneo para atacar impugnar despachos ilegais é a interposição do respectivo recurso (…), por força do princípio legal de que, proferida a decisão, fica esgotado o poder jurisdicional do juiz (art. 666.º)”.
É este também o entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores [neste sentido, cfr., por todos, ac. RL 09-05-2019 (Isoleta Almeida Costa), p. 8764/16.3T8LSB.L1-8].
No caso em apreço, como vimos, os apelantes consideram que a realização de uma perícia, que em seu entender o Tribunal a quo deveria ter determinado oficiosamente constitui um ato que a lei prescreve e que a sua omissão influiu no exame da causa.
Poder-se-ia acrescentar que da argumentação dos apelantes decorre que a nulidade invocada se revelou apenas com a prolação da sentença o que, como se depreende do supra exposto, os habilitaria a invocar esta nulidade apenas em sede de recurso, na medida em que a influência da referida omissão na apreciação e decisão da causa só se manifestou com a prolação da sentença e o facto de esta ter julgado a ação improcedente.
Sucede, contudo, que do inciso inicial do nº 1 do art. 195º do CPC decorre de forma clara que a figura da nulidade processual secundária é manifestamente subsidiária, o que significa que a mesma só ocorre quando a lei não comine outra consequência para a prática de um ato processual não admitido ou a omissão de ato processual imposto por lei.
Ora, no caso vertente, é isso mesmo que se passa.
Temos por inequívoco que o art. 411º do CPC consagra a possibilidade de o Tribunal determinar, mesmo oficiosamente, a realização das diligências probatórias ao apuramento dos factos em discussão na causa, numa clara manifestação do princípio do inquisitório na instrução da causa, e admitindo-se que se trata de um poder cujo exercício envolve uma certa margem de discricionariedade, mas ainda assim se deve entender vinculado pela finalidade visada, numa clara manifestação de discricionariedade técnica.
Porém, a lei processual prevê um remédio específico para suprir a injustificada omissão do exercício de tal poder: o mecanismo previsto no art. 662º, nº 2, al. c) do CPC.
Com efeito, estabelece esta disposição legal que a Relação deve, mesmo oficiosamente, anular a decisão probatória proferida na 1ª instância quando, não dispondo de todos os elementos que permitam alterar a decisão sobre matéria de facto, a repute de deficiente, ou quando considere necessário ampliá-la, acrescentando o nº 3, al. a) do mesmo preceito que a prolação de nova decisão sobre matéria de facto pelo Tribunal a quo pode ser antecedida de novas diligências de prova.
Daqui decorre, com clareza, que as situações como as descritas nos autos não configuram nulidade, nos termos previstos no art. 195º do CPC, embora possam conduzir à anulação da decisão probatória, nos termos previstos no art. 662º, nº 2, al. c), com as consequências previstas na al. a) do nº 3 do mesmo preceito.
Termos em que se conclui que não se verifica a nulidade invocada pelos apelantes.
3.2.2. Da impugnação da decisão sobre matéria de facto e da falta de motivação desta, no tocante aos factos não provados
3.2.2.1. Dos ónus impugnatórios
Dispõe o art. 662º n.º 1 do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Por seu turno estatui o art. 640º n.º 1 do mesmo código que quando seja impugnada a decisão sobre matéria de facto deve o recorrente especificar, sob pena de rejeição:
a) os concretos factos que considera incorretamente julgados;
b) os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; e
c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
O n.º 2 do mesmo preceito concretiza que, sempre que o recorrente se baseie em meios probatórios gravados[17], incumbe-lhe, sob pena de imediata rejeição, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o recurso.
A lei impõe assim ao apelante específicos ónus de impugnação da decisão de facto, sendo o primeiro o ónus de fundamentar a discordância quanto à decisão de facto proferida, o qual implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, tendo como ponto de partida a totalidade da prova produzida.
Sumariando todos os ónus impostos pelo citado preceito, ensina ABRANTES GERALDES[18]:
“(…) podemos sintetizar da seguinte forma o sistema que agora vigora sempre que o recurso de apelação envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso, e síntese nas conclusões;
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos;
c) Relativamente aos pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;
d) (…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente;
f) (…).”
Nos termos do disposto no art. 640.º, n.º 2, al. b) do CPC, a inobservância deste ónus tem como consequência “a imediata rejeição do recurso na respetiva parte”.
Esta respetiva parte será a parte do recurso referente à impugnação da matéria de facto afetada pela inobservância daquele(s) ónus.
No caso em apreço, afigura-se inequívoco que os apelantes observaram todos os ónus consagrados no art. 640º do CPC, pelo que nada obsta à apreciação do mérito da impugnação da decisão sobre matéria de facto.
3.2.2.2. Apreciação
No caso vertente, a impugnação da decisão sobre matéria de facto incide sobre os pontos 26 a 31, que o Tribunal a quo considerou não provados.
3.2.2.2.1. Pontos 26 a 28
Os pontos 26 a 28 da decisão probatória (factos não provados) têm a seguinte redação:
26. Para resolução das sobreditas avarias, previa-se que o valor desta intervenção ascendesse a €12.000,25 (doze mil euros e vinte e cinco cêntimos)
27. Por se revelar insuficiente uma intervenção apenas a nível do turbocompressor, os AA. Lograram obter um orçamento para reparação da viatura na oficina Land Rover – Auto-Sueco, sita em Barcarena, a 11/02/2021.
28. Estimando-se que as reparações irão ascender a € 14.657,28 (catorze mil, seiscentos e cinquenta e sete euros e vinte e oito cêntimos) – conforme orçamento que se junta como Doc.20 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido.
Do trecho da fundamentação da sentença apelada que se reporta à motivação da decisão sobre matéria de facto respeitante aos factos não provados consta o seguinte:
“Quanto aos factos 26, 27 e 28 não provados assim o foram considerados atendendo:
“A testemunha F … referiu, então que o veículo não tinha óleo nem bateria. Mais referiu que o motor fazia muito barulho e que o turbo estava partido. Não reparando motores, não foi possível reparar o turbo. Ligou de volta ao Autor e disse-lhe para ir buscar o veículo. Tal como a testemunha anterior, o seu depoimento foi credível e não tentou ir além dos seus conhecimentos.”
O documento 19 junto com a PI, aliás impugnado, e o depoimento da testemunha E …, colocou desde logo em crise o seu conteúdo tendo em conta o demais verificado por este aquando do diagnóstico do estado da viatura.
Consequentemente, o documento 20, também impugnado, não teve sob o mesmo a produção de qualquer prova nem obteve reflexo do documento anterior.”
Os apelantes discordam deste entendimento, sustentando que os factos em apreço devem considerar-se provados. Para tanto invocaram os documentos nºs 19 e 20 juntos com a petição inicial e os depoimentos das testemunhas F ….
Em abono da tese que propugnam transcreveram os seguintes trechos dos depoimentos invocados:[19]
Testemunha E …
00:02:22 – 00:03:04
“Mandatária: Boa tarde Sr. F …, referiu que é patrão na oficina Auto DCS, correto?
Testemunha: Sim.
Mandatária: E disse também que sabe do que é que estamos aqui a falar.
Testemunha: Sim.
Mandatária: Pode por favor explicar ao tribunal a sua intervenção?
Testemunha: Mandaram-me um carro para a minha oficina de reboque.
Mandatária: Que carro?
Testemunha: O Jaguar, o E … tinha ligado “Olha vou-te mandar um carro com o turbo todo partido” e eu “Então manda” é a minha área, o carro quando lá chegou, mas quer que eu lhe dê detalhes de outros procedimentos que a gente faz?
Mandatária: O máximo que se lembrar por favor.
Testemunha: Não fui eu que estava de volta do carro mas os procedimentos funcionam lá pelos empregados é sempre igual. Quando vem um carro do reboque a primeira coisa que a gente vai fazer é sempre ver o nível de óleo do carro, saber o porquê do carro foi para lá e entretanto disseram que o turbo estava partido. Entretanto, fez-se a desmontagem das primeiras partes que é o filtro da ar para chegar ao pé do turbo e ver-se que o tubo tava partido, pronto, tirou-se o turbo fora que é o procedimento normal, vê-se o nível do óleo se está baixo se está alto, se estiver pouco óleo a gente mete um bocado de óleo a nível, estrapa o tubo da lubrificação como vimos se tem bateria se não tem, desligamos as fichas dos injetores, damos à chave, limpar algum gasóleo que tenha para não haver uma, o carro não desalvorar, prontos, quando se fez o trabalho, foi se dar à chave o motor fazia muito barulho, como fazia muito barulho a gente automaticamente parou, informou-se o cliente a dizer “Olhe o carro tem uma batida muito grande no motor não vamos proceder à reparação porque isto tem a ver com o motor primeiro e depois a gente repara o turbo”, não se vai reparar o turbo e pronto o que a gente lá fez. Mandatária: O senhor na sua oficina não repara motores é isso?
Testemunha: Não, mas tenho causas porque sei os barulhos dos sintomas dos carros.
Mandatária: E foi por isso que não reparou o turbo?
Testemunha: Claro, aquilo fazia muito barulho, ao dar à chave apercebe-se que o motor fazia muito barulho, como faz muito barulho e a gente automaticamente não reparamos o turbo, normalmente os carros vão para outras oficinas que reparam motores e nós reparamos depois o turbo a posteriormente.”
00:02:23 – 00:04:51
“Mandatária: Boa tarde Sr. F …, referiu que é patrão na oficina Auto DCS, correto?
Testemunha: Sim.
Mandatária: E disse também que sabe do que é que estamos aqui a falar.
Testemunha: Sim.
Mandatária: Pode por favor explicar ao tribunal a sua intervenção?
Testemunha: Mandaram-me um carro para a minha oficina de reboque.
Mandatária: Que carro?
Testemunha: O Jaguar, o E … tinha ligado “Olha vou-te mandar um carro com o turbo todo partido” e eu “Então manda” é a minha área, o carro quando lá chegou, mas quer que eu lhe dê detalhes de outros procedimentos que a gente faz?
Mandatária: O máximo que se lembrar por favor.
Testemunha: Não fui eu que estava de volta do carro mas os procedimentos funcionam lá pelos empregados é sempre igual. Quando vem um carro do reboque a primeira coisa que a gente vai fazer é sempre ver o nível de óleo do carro, saber o porquê do carro foi para lá e entretanto disseram que o turbo estava partido. Entretanto, fez-se a desmontagem das primeiras partes que é o filtro da ar para chegar ao pé do turbo e ver-se que o tubo tava partido, pronto, tirou-se o turbo fora que é o procedimento normal, vê-se o nível do óleo se está baixo se está alto, se estiver pouco óleo a gente mete um bocado de óleo a nível, estrapa o tubo da lubrificação como vimos se tem bateria se não tem, desligamos as fichas dos injetores, damos à chave, limpar algum gasóleo que tenha para não haver uma, o carro não desalvorar, prontos, quando se fez o trabalho, foi se dar à chave o motor fazia muito barulho, como fazia muito barulho a gente automaticamente parou, informou-se o cliente a dizer “Olhe o carro tem uma batida muito grande no motor não vamos proceder à reparação porque isto tem a ver com o motor primeiro e depois a gente repara o turbo”, não se vai reparar o turbo e pronto o que a gente lá fez. Mandatária: O senhor na sua oficina não repara motores é isso?
Testemunha: Não, mas tenho causas porque sei os barulhos dos sintomas dos carros.
Mandatária: E foi por isso que não reparou o turbo?
Testemunha: Claro, aquilo fazia muito barulho, ao dar à chave apercebe-se que o motor fazia muito barulho, como faz muito barulho e a gente automaticamente não reparamos o turbo, normalmente os carros vão para outras oficinas que reparam motores e nós reparamos depois o turbo a posteriormente.”
00:03:49 e 00:04:48:
Testemunha: O carro tinha uma avaria no turbocompressor, mas não se conseguiu averiguar o resto do danos porque não tivemos autorização para fazer a desmontagem do veículo.
Juiz: Não tiveram autorização para?
Testemunha: Para fazer desmontagem.
Juiz: Hm.
Mandatária: Por parte de quem?
Testemunha: Sempre fui contactado pela, pela D. H ….
Mandatária: E após fazer este orçamento do carro e após receber os valores a quem é que remeteu o referido orçamento?
Testemunha: À única pessoa que conheci na altura que me foi indicada como responsável, a D. H ….
Mandatária: Diga-me uma coisa, ao nível do motor chegaram a avaliar o carro?
Testemunha: Não, verificou-se que o turbocompressor tinha danos, mas a nível interno de motor não conseguimos verificar.
Mandatária: Pela tal questão de não ter autorização para fazer a desmontagem…
Testemunha: Sim, teria que fazer a desmontagem.”
Declarações de parte do autor
00:02:20 – 00:02:35
“Juiz: Depois temos a outra questão que é a reparação do veículo, mas entretanto mandou ir buscar o carro aonde ele estava parqueado mandou ir para uma oficina, essa oficina devolveu o carro e depois levou-o para uma outra oficina, correto?
Autor: Certo”
00:02:36 – 00:04:06
“Juiz: Pronto, e qual foi o valor que foi pedido pela reparação?
Autor: Meritíssima primeiro começou por analisar a viatura também… Um cálculo, achavam que o motor estava a fazer muito barulho, se calhar conseguiam poupar dinheiro, ao fim de 15 dias lá chamaram quer era muitas horas que era muito tudo quanto eu queria pelo carro que o carro o motor não sabiam o que fazer, já não sabia do turbo, puderam algum líquido indevido, tinha ali muitos problemas e depois acabei por dizer 27, 28 como assim ofereceram-me 15000 euros Meritíssima a pagar em prestações como nós não conseguíamos aguentar reparações e tudo nesta altura do campeonato, achamos por bem mesmo sendo em prestações, entregar o carro a pessoas que percebessem da situação, porque Meritíssima no contrato era sempre para a Jaguar sempre Jaguar para defender todas as partes.
Juiz: Diga-me só uma coisa mas chegaram a dizer-lhe qual era o valor desse orçamento?
Autor: Meritíssima se fosse um motor novo que iria sempre para os 13.000 euros por a volta desse valor, se fosse usado podiam arranjar por volta dos 7000 euros mais o turbo usado mais 2000 iria uns 10, 11.000 euros.
Juiz: Ou seja o valor seria sempre entre 11 e 13 é isso?
Autor: Sim Meritíssima, sempre, sempre, sempre.”
Apreciando, e no que diz respeito ao ponto 26, diremos que do depoimento da testemunha E …, mecânico que examinou o veículo dos autos e ao qual o Tribunal a quo atribuiu credibilidade resultou de forma evidente que o mesmo considerou que o veículo dos autos necessitava de uma reparação no seu turbo, e que para verificar se necessitaria também de reparar o motor, necessitaria de o abrir, coisa que a ré não autorizou. Deste depoimento resulta de forma inequívoca que a mencionada testemunha considerou necessário verificar o estado do motor, sendo certo que o mesmo também afirmou que naquela oficina não reparavam motores. Esta menção à eventual necessidade de reparar o motor do veículo encontra ainda eco no documento nº 19 junto com a petição inicial, emitido pela “Auto DCS” (a empresa da testemunha E …, conforme o mesmo esclareceu), no qual se refere que aquela oficina recebeu o veículo dos autos em 05-01-2019, e, para além de se mencionar que o turbo se encontrava partido, se consigna ainda que “o motor tem uma batida bastante grande”. Aliás, no seu depoimento, a testemunha E … também referiu que o motor “tinha uma batida” . e que informou o autor desse facto (06:00 – 06:08). Mais adiante explicou ainda que essa “batida” pode ter sido causada pela rotura do turbo, e que não decorreu de acidente ou pancada exterior no motor.
Por outro lado, no seu depoimento, o autor referiu que noutra oficina lhe apresentaram uma estimativa de custo da reparação do veículo entre € 11.000 e 13.000.
Quanto ao documento nº 19, verifica-se ser um orçamento com o timbre da Auto-Sueco com data de 06-01-2021, onde consta o nome da autora, bem como os dizeres ”MOTOR-DESMONTADO” e “TURBOCOMPRESSOR”, e o valor global de € 12.000,25.
Este documento parece, pois, referir-se ao custo estimado do fornecimento de um motor e de um turbocompressor.
Já o documento nº 20 ostenta o timbre da Auto-Sueco II Automóveis, S.A. e reporta-se a uma “estimativa” do custo da reparação do veículo dos autos (ali consta a matrícula do mesmo), com o valor global de € 14.657,28, que compreende, nomeadamente, a substituição do motor e do turbocompressor.
Não obstante ter um valor global superior ao do orçamento que constitui o doc. 19, é possível verificar que a diferença entre ambos se explica pelo fornecimento de outras peças como juntas, parafusos, e um termóstato, bem como óleo, sendo plausível que se tratasse de elementos necessários à concretização da reparação do veículo assente na substituição do motor e do turbocompressor, com vista a repor o mesmo em condições de circular.
Da análise conjugada dos apontados meios de prova é possível concluir, com suficiente segurança que a autora obteve um orçamento no valor mencionado no ponto 26, mas que este valor não se reportava propriamente a uma reparação, mas sim ao custo de um turbocompressor e um motor, a incorporar no veículo.
Por outro lado, resulta igualmente do mesmo acervo probatório, nomeadamente do doc. 20 junto com a petição inicial que foi elaborado um segundo orçamento, referente com vista à reparação do veículo, que incluía a substituição do motor e do turbocompressor.
É certo que quer este foi emitido em nome de uma sociedade comercial, a “A.C. Importação Exportação, Lda”[20]. Porém, os autos indiciam claramente que se tratava de uma empresa dos autores. Com efeito e desde logo, verificamos que no documento nº 21 junto com a petição inicial (outro orçamento emitido em nome da mesma sociedade) consta como endereço… a “moradia Bernardino”. E, por outro lado, aquando da prestação dos respetivos depoimentos, ambos os autores declararam ser empresários, e que a sua empresa se denomina “Afonsinhos do Condado”.
Esta afirmação encontra igualmente eco no registo comercial do veículo dos autos (refª … 61, de 19-05-2025), do qual consta que em 22-06-2020 o direito de propriedade relativo ao mesmo veículo foi registado a favor da mencionada empresa, através da apresentação … 77 para, logo de seguida, e na mesma data, o mesmo direito ser registado a favor da autora, mediante a apresentação 06178.
A sigla A.C. corresponderá, assim, à “Afonsinhos do Condado”, ou seja, à empresa dos autores.
Assim sendo, decide-se:
1- Alterar a redação dos pontos 26 a 28, fundindo os pontos 27 e 28, e transferir tais pontos para o elenco de factos provados, com a seguinte redação
- Em 06-01-2021 a Auto Sueco II Automóveis S.A. elaborou orçamento relativo ao fornecimento de um motor e de um turbocompressor para incorporar no veículo identificado em 1-, no valor de 12.000,25.
- Em 11-02-2021 a Auto Sueco II Automóveis S.A. estimou o custo da reparação do veículo identificado em 1-, com substituição do motor e do turbocompressor, em € 14.657,28.
3.2.2.2.2. Pontos 29 e 30
Os pontos 29 e 30 têm tem a seguinte redação:
29-Em momento anterior à entrega da viatura à 1.ª R., mais concretamente, a 19/08/2019, a viatura em causa tinha ido à revisão automóvel na marca, Carclasse Lisboa, sita na Avenida Marechal Gomes da Costa
30- 3Nessa data, foi feito um check-up geral à viatura, substituíram-se peças e procedeu-se às reparações que se demonstravam necessárias – todas estas discriminadas na fatura já junta como Doc.21 –, tendo-se ainda procedido à substituição do óleo e respetivo filtro.
Do trecho da fundamentação da sentença apelada que se reporta à motivação da decisão sobre matéria de facto respeitante aos factos não provados consta o seguinte:
“Quanto aos factos 29, 30 e 31 não provados assim o foram considerados atendendo às seguintes contradições entre os documentos e a ausência de prova (cf. resulta do último paragrafo):
“A testemunha G … não demonstrou conhecimento algum dos factos, tendo-se limitado a divagar quanto ao conteúdo da factura da Carclass.
Alias, desta factura resultam varias dúvidas: desde logo, até para um leigo, fácil é aferir que algo se passou inicialmente com o veículo, nomeadamente atendendo aos itens constantes na primeira folha e aos dois primeiros da segunda nos quais se verifica que o veículo foi eventualmente interveniente num acidente de viação (não obstante o que foi feito constar na Apólice (doc.3 junto com a PI) onde, consta 0 sinistros, mas onde também a Autora está identificada como “solteira”, pelo que verifica a falta de rigor declaratório.
Acresce que, mesmo resultando que o óleo foi mudado, desde logo não se vislumbra como seria possível, em quatro meses, a “ausência” de óleo. Salvo melhor opinião ou efectivamente não foi colocado o óleo ou então, quando foi entregue o veículo não estava em condições. Acresce que, não sabendo quantos quilómetros a Ré percorreu (mas nunca mais de 3.268) um óleo colocado num carro em perfeitas condições (no âmbito de uma revisão) dura, pelo menos, até à revisão seguinte, e não menos de seis meses…
Quanto à revisão, a mesma – realizada pelos Autores antes de entregarem à Ré - ocorreu mais de 13.000 km depois do sugerido! O que desde logo sugere falta de cuidado por parte dos Autores na manutenção do veículo.
Quanto à questão do turbo: o veículo é de Maio de 2016, tendo alegadamente à data de Agosto de 2019, 81.496 km e na data do retorno à posse dos Autores 84.765. O que desde logo demonstra que o veículo fez em média mensal 2.000 km…. Sendo certo que, entre 22.01.2019 e 19.08.2019 percorreu 63 km (cf. documento junto a 3.03.2022) o que nos leva a questionar “porquê?” - e entre 18 de Novembro e Junho de 2020 (Março de 2020) percorreu 3.269, Existem dúvidas quanto à integridade do veículo (conforme supra se referiu), considerando desde logo os poucos quilómetros que percorreu nas mãos da Ré, ou que a mesma foi, por si, interveniente num acidente. Repare-se que, para partir o turbo, e imputa-lo à falta de óleo, o passo é de gigante, pois inexistem de todo elementos para tal, na certeza que incumbia aos Autores demonstrarem que o veiculo foi entregue em perfeitas condições, o que, como se viu não o lograram. Tendo aliás determinado várias dúvidas.
No que se reporta à bateria a mesma parece-nos imputável ao facto de o veículo estar parado, mormente durante o período de Estado de Emergência, o qual, como infelizmente sabemos, determinou o encerramento das oficinas (e a impossibilidade de reboque do veículo).
Esta factura, bem como os orçamentos foram impugnados e atentas as dúvidas e a ausência de prova sobre os mesmos, foram considerados os respectivos factos como não provados.”
Os apelantes discordam desta decisão, considerando que os factos em apreço devem considerar-se provados.
Para tanto invocam o documento nº 21 junto com a petição inicial, bem como o depoimento da testemunha G …, transcrevendo o seguinte trecho deste último:
00:02:14 – 00:03:15
“Mandatária: Olá boa tarde Sr. G … diz que trabalhava para a Carclasse e nos últimos tempos para a Mercedes, trabalhou na parte da Jaguar?
Testemunha: Trabalhei na parte da jaguar, durante cerca de quatro anos e tal não consigo precisar.
Mandatária: E o quê que fazia em concreto na parte da Jaguar?
Testemunha: Assessor de clientes também.
Mandatária: Peço desculpa não percebi.
Testemunha: Assessor de clientes.
Mandatária: Assessor de clientes, e isso consubstancia basicamente o quê?
Testemunha: É receber os clientes, acompanhar o processo, dizer por que é que precisa de gastar ou não, se quer ajuda ou não que mas na realidade foi isso que eu fiz durante parte do tempo que cá tive.
Mandatária: E isto para todo o nível de intervenções, manutenções, revisões?
Testemunha: Sim, sim, na generalidade.
Mandatária: Sabe, consegue explicar qual é o procedimento de revisão na marca da Jaguar?
Testemunha: É assim o procedimento tem que correr os procedimentos da marca, a marca manda fazer uma revisão x substituições mais isto, tem que se cumprido…”
00:07:31 – 00:08:11
“Testemunha: É assim, a quantidade de óleo não são os rececionistas ou os assessores de clientes, entre aspas, que estão dentro da oficina a controlar.
Mandatária: Mas estando essa identificação ali significa que os colaboradores intervencionaram o carro ao nível do óleo?
Testemunha: Exactamente, a nível de tudo, a nível de tudo o que tá provisionado, em todas as marcas de concessionários, o que está definido para fazer em determinada revisão é para fazer ponto, não é, por isso é que o cliente vem à marca e não vai fora da marca.”
Analisando o doc. nº 21 junto com a petição inicial, verifica-se que o mesmo é uma fatura emitida em 19-08-2019 pela Carclasse, Comércio de automóveis, S.A., que se reporta ao veículo dos autos e refere atividades de manutenção do mesmo, ostentando os dizeres expressos “MANUTENÇÃO 68.000 KM 48 km”, e enumerando diversas reparações e substituição de peças, incluindo ´filtro de óleo, bem como fornecimento de óleo.
Acresce que tais informações constam igualmente do doc. nº 2 junto com o requerimento com a refª … 53/… 84, de 03-03-2022 que pela sua aparência se depreende ter sido extraído do sistema informático da assistência técnica da marca Jaguar, do qual consta que 20-08-2019 o veículo dos autos foi[21] objeto de revisão na Carclasse.[22]
Como já mencionámos, o facto de a fatura estar emitida em nome de uma sociedade comercial não nos suscita dúvidas de maior, dado que a prova produzida permite concluir que se trata da empresa dos autores.
Por outro lado, o facto de os trabalhos terem sido faturados também indicia que foram efetuados, pois a experiência comum demonstra que as oficinas só faturam trabalhos já efetuados.
Isso mesmo comprovam os documentos juntos pela própria Carclasse, anexos à mensagem de correio eletrónico com a refª … 32, de 31-03-2022, a saber, a fatura em questão, e o comprovativo bancário que documenta o respetivo pagamento (feito pela sociedade “Os Afonsinhos do condado Imp Exp, Lda”).
Tais documentos foram exibidos à testemunha G … que a fatura em questão foi emitida pela Carclasse.
Nesta conformidade, não comungamos das dúvidas manifestadas pela Mmª Juíza a quo, antes consideramos que da conjugação destes meios de prova emerge a convicção de que os factos vertidos nos pontos 29 e 30 devem considerar-se provados,.
Não obstante, afigura-se ser de depurar referências redundantes e remissões para meios de prova.
Assim sendo decide-se eliminar os atuais pontos 29 e 30 e acrescentar ao elenco de factos provados um novo ponto de facto com o seguinte teor:
28 – Em 19-08-2019 a viatura identificada em 1- havia sido objeto de revisão (“manutenção 68.000 km”) na oficina Carclasse em Lisboa, sita na Av. Marechal Gomes da Costa, ocasião em que foi objeto das reparações tidas por adequadas àquele tipo de “manutenção”, incluindo a substituição do óleo do motor e do respetivo filtro.
3.2.2.2.3. Ponto 31
O ponto 31 dos factos provados tem a seguinte redação:
31- A viatura encontrava-se em bom estado quando foi entregue pelos Autores à Ré no início do contrato.
A convicção do Tribunal a quo relativamente a este ponto de facto formou-se nos termos descritos em 3.2.2.2.2..
Os apelantes discordam do entendimento manifestado pelo Tribunal a quo, por considerarem que a proposição constante deste ponto 31- se deve considerar provada, invocando para tanto a presunção legal consagrada no art. 1043º do CC e a prova documental junta aos autos.
Reportam-se os apelantes ao disposto no art. 1043º, nº 2 do CC que dispõe como segue:
“2- Presume-se que a coisa foi entregue ao locatário em bom estado de manutenção quando não exista documento onde as partes tenham descrito o estado dela ao tempo da entrega.”
Esta disposição consagra, efetivamente, uma presunção (elidível).
Estabelece o art. 349º do CC que “presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido”.
Por seu turno, refere o art. 350º do mesmo código, sob a epígrafe “presunções legais”:
“1. Quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz.
2. As presunções legais podem, todavia, ser elididas, mediante prova em contrário, exceto nos casos em que a lei o proibir.”
Na situação prevista no art. 1043º, nº 2 do CC, o facto conhecido será a inexistência de documento onde as partes tenham descrito o estado da coisa locada ao tempo da sua entrega ao locatário, e a realidade desconhecida será o bom estado da mesma.
Interpretando este preceito diz LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA[23]: “O estado de coisas ideal (entrega da coisa (a) + ao locatário (b) + em bom estado de manutenção (c) ou se prova diretamente, ou se prova indiretamente demonstrando que as partes não redigiram documento descrevendo o estado do locado ao tempo de entrega (x). É manifesto que nesta segunda hipótese ocorre uma facilitação da prova.
A norma de presunção legal permuta ou substitui um dos pressupostos de uma consequência jurídica (no caso a+b+c) por outro pressuposto distinto (x), ligado ao primeiro por um certo enlace. Este pressuposto (x) deve ser distinto de todos os pressupostos concretos determinantes da consequência jurídica prevista na norma.”
Importa contudo considerar duas particularidades da presunção que ora analisamos.
Com efeito, e por um lado, embora o facto indiciante aparente ser um facto negativo, na realidade não o é, antes se tem por demonstrado a menos que se apure a concreta existência do documento onde as partes tenham descrito o estado da coisa locada ao tempo da sua entrega ao locatário. Assim, o facto indiciante tem-se por preenchido a menos que se apure a efetiva existência de um documento em que as partes tenham descrito o estado da coisa locada ao tempo da sua entrega ao locatário. Assim sendo, cabe ao locatário alegar e provar a existência de tal documento, no pressuposto que a descrição das caraterísticas da coisa locada constante de tal documento permite concluir que a mesma não se encontrava em bom estado (art. 342º, nº 2 do CC).
Por outro lado, a realidade indiciada não é um facto ou um conjunto de factos, mas um conceito indeterminado,
Com efeito, como referia Rosenberg[24] por factos jurídicos devem entender-se os acontecimentos (e circunstâncias) concretos, determinados no espaço e no tempo, passados e presentes, do mundo exterior e da vida anímica humana que o direito objetivo converteu em pressuposto de um efeito jurídico.
Para Alberto dos Reis, “é questão de facto tudo o que tende a apurar quaisquer ocorrências da vida real, quaisquer eventos materiais e concretos, quaisquer mudanças operadas no mundo exterior” e “é questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei”. Ou seja, estaremos no âmbito da matéria de direito “sempre que, para se chegar a uma solução, se torna necessário recorrer a uma disposição legal” ao passo que “há matéria de facto quando o apuramento das realidades se faz todo à margem da aplicação directa da lei, isto é, quando se trata de averiguar factos cuja existência ou não existência não depende da interpretação a dar a nenhuma norma jurídica”.
E acrescenta: “Reduzido o problema à sua simplicidade, a fórmula é esta: a) é questão de facto determinar o que aconteceu; b) é questão de direito determinar o que quer a lei, ou seja a lei substantiva, ou seja a lei de processo”.
Assim, o mesmo Mestre conclui que juridicamente relevantes são os factos que constituem «ocorrências da vida real, isto é, os fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos humanos (…) vistos à luz das normas e critérios do direito»[25].
A expressão bom estado traduz uma apreciação que qualifica o estado da coisa que é objeto de locação. Tal estado será bom quando em função das suas caraterísticas, for possível concluir que se acha mantém as funcionalidades que lhe são próprias e não revela desgaste significativo.
Assim, e para os efeitos previstos no art. 1043º nº 2 do CC um automóvel em bom estado será aquele que, para além de circular sem dificuldades, não apresentar marcas ou sinais de uso ou desgaste significativos ou acentuados.
O referido bom estado corresponde, assim a um verdadeiro conceito indeterminado.
Sobre a figura dos conceitos indeterminados diz PEDRO ROMANO MARTINEZ:[26]
“A regra jurídica pode ser formulada por um conceito indeterminado, que recorre a directrizes com alguma imprecisão, a concretizar perante cada caso concreto, carecendo de um preenchimento valorativo. O conceito indeterminado corresponde a um modo de superar o positivismo, porquanto o aplicador do direito não se limita a proceder à exegese das leis; ao aplicar a regra jurídica tem de se atender às especificidades da situação real.
O conceito indeterminado - atento o caráter incerto da previsão e a sua extensão aplicativa - permite uma adaptação do comando constante da regra a realidades futuras, que não são idênticas a outras já resolvidas, conferindo ao aplicador da regra a possibilidade de ajustar a solução à imprevisibilidade das novas factualidades. Facilita, deste modo, a necessidade da concretização da regra jurídica a cada nova situação real.”
No caso da presunção consagrada no art. 1043º, nº 2 do CC, como a realidade presumida não é um facto, mas um conceito indeterminado, sempre que a invocação da presunção pela parte a que aproveita se fizer por mera referência ao mencionado conceito indeterminado, sem alegação de factos concretos que suportem o preenchimento do mesmo, a não elisão da presunção não pode conduzir à inclusão, no elenco de factos provados, de uma proposição que se traduza na afirmação genérica de que a coisa estava em bom estado quando foi entregue.
Nessas circunstâncias, o “bom estado” da coisa locada ao tempo da celebração do contrato deve ser considerado apenas em sede de apreciação jurídica da causa, no contexto da aplicação do disposto no nº 1 do mesmo art. 1043º, conjugado com o art. 1044º do mesmo código.
Já se o locador alegar factos concretos que permitam preencher aquele conceito indeterminado, mas soçobrar na sua prova direta, poderá ainda assim beneficiar da demonstração dos mesmos por efeito da referida presunção (arts. 1043º, nº 2 e 350º, nº 2 do CC).
A elisão da presunção consiste, neste caso, na demonstração de factos que permitam concluir que ao tempo da sua entrega ao locatário, a coisa locada tinha defeitos ou avarias ou padecia de desgaste acentuado, que prejudicassem o gozo da mesma (art. 342º, nº 2 do CC).
No caso dos autos, considerando a factualidade provada, maxime os pontos 2 a 5, e o teor do contrato celebrado entre as partes, que constitui o doc. nº 2 junto com a petição inicial, é manifesto que no contrato de locação firmado ente a autora e os réus, as partes não descreveram o estado da coisa locada ao tempo da sua entrega à ré, nem se apurou ou sequer foi alegado que alguma vez tenham outorgado declaração escrita conjunta com tais caraterísticas.
Ora, como já referimos, o citado art. 1043º, nº 2 do CC deve ser interpretado no sentido de que não é necessário provar a inexistência de tal documento, mas antes que a presunção funciona sempre que a parte contrária daquela a quem a presunção aproveita não demonstre que o mesmo existe.
Assim, não tendo os réus feito prova da existência de um tal documento, forçoso é concluir que os autores beneficiam da referida presunção legal, ficando os réus com o ónus de a elidir.
Tal elisão – reitera-se - far-se-ia mediante a prova de factos que permitissem concluir que, aquando da entrega do veículo locado, o mesmo não se encontrava em bom estado, ou seja, de que se achava afetado por qualquer defeito ou avaria, ou desgaste acentuado, de molde a prejudicar o gozo da coisa locada. Prova essa que os réus não lograram fazer.
Nada obsta, por isso ao funcionamento da presunção legal consagrada no art. 1043º, nº 2 do CC.
Contudo, não tendo os autores alegado quaisquer factos concretos que permitam preencher o conceito indeterminado do bom estado do veículo dos autos ao tempo da sua entrega à ré, a consequência da presunção não consiste na inclusão da proposição vertida no ponto 31 no elenco de factos provados, embora se imponha que, na análise do mérito da causa, se considere, para todos os efeitos, que aquando da sua entrega à ré, o veículo dos autos se achava em bom estado.
Assim sendo, decide-se eliminar o ponto 31.
3.2.2.2.4. Alteração oficiosa por aditamento de facto superveniente
Nos termos do disposto no art. 611º, nº 1 do CPC, “Sem prejuízo das restrições estabelecidas noutras disposições legais, nomeadamente quanto às condições em que pode ser alterada a causa de pedir, deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à proposição da ação, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão.”
Desta disposição legal resulta, de forma clara, que na sentença deve o Tribunal atender a factos supervenientes que se revistam da relevância para a decisão da causa.
Assim, sempre que a prova produzida na audiência de julgamento resulte no apuramento de factos dessa natureza, e salvaguardado o exercício do contraditório, deve o Tribunal integrar tais factos na decisão sobre matéria de facto.
Porém, quando não o faça, nem por isso fica o Tribunal da Relação impedido de o fazer, nos termos previstos no art. 662º, nº 1 do CPC.
Com efeito, dispõe o art. 662.º n.º 1 do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Em comentário a esta disposição legal ensinam ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA E LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA[27]:
“1. A decisão sobre matéria de facto pode ser impugnada pelo recorrente quando os elementos fornecidos pelo processo possam determinar uma decisão diversa insuscetível de ser destruída por quaisquer outras provas, como sucede quando não tenha sido respeitado documento confissão ou acordo das partes com força probatória plena (…). Outrossim quando tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (…), situação em que a modificação da decisão da matéria de facto passa pela aplicação ao caso da regra de direito probatório material (..).
2. Em qualquer destas situações a Relação, no âmbito da reapreciação da decisão recorrida e naturalmente dentro dos limites objetivo e subjetivo do recurso, deve agir oficiosamente, mediante aplicação das regras vinculativas extraídas do direito probatório material, modificando a decisão da matéria de facto advinda da 1ª instância (arts. 607º, º 4, e 663º, nº 2). A oficiosidade desta atuação é decorrência da regra geral sobre a aplicação do direito (in casu, das normas de direito probatório material), na medida em que possam interferir no resultado do recurso que foi interposto e, é claro, respeitando o seu objeto global, que, no essencial, é delimitado pelo recorrente, nos termos do art. 635º, e respeitando também o eventual caso julgado parcelar que porventura se tenha formado sobre alguma questão ou segmento decisório.”
Como bem explicam os citados autores, nos casos mencionados a alteração da decisão sobre matéria de facto pode ter lugar por iniciativa do Tribunal da Relação e ainda que nenhuma das partes o requeira, isto é, pode ter lugar oficiosamente. E o uso da forma verbal deve não deixa margem para dúvidas: não se trata de uma mera faculdade, mas de um dever imposto à Relação.
Nas palavras de ABRANTES GERALDES[28], “Como a nova redação do art. 662.º pretendeu-se que ficasse claro que, sem embargo da correção mesmo a título oficioso, de determinadas patologias que afetam a decisão da matéria de facto, (v.g. contradição) e também sempre juízo do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente e que está concretizado nos termos previstos no art. 640.º, quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos a livre apreciação, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras de experiência.
(…)
Obviamente que a modificação continuará a justificar-se (…) designadamente quando o tribunal recorrido tenha desrespeitado a força plena de certo meio de prova, o que ocorre quando, apesar de ter sido junto ao processo um documento com valor probatório pleno relativamente a determinado facto (arts. 371.º, n.º 1, e 376.º, n,º 1 do CC), o considere não provado, relevando para o efeito prova testemunhal produzida ou presunções judiciais.
O mesmo deve acontecer quando tenha sido desatendida determinada declaração confessória constante de documento ou resultante do processo (art. 358.º do CC e arts. 484.º, n.º 1, e 463.º do CPC) ou quando tenha sido desconsiderado algum acordo estabelecido entre as partes nos articulados quanto a determinado facto (art. 574º.º, n.º 2, do CPC) (…), optando por se atribuir prevalência à livre convicção formada a partir de outros elementos probatórios (v.g. testemunhas, documento particular sem valor confessório ou prova pericial). Ou ainda nos casos em que tenha sido considerado provado certo facto com base em meio de prova legalmente insuficiente (v.g. presunção judicial ou depoimento testemunhal, nos termos dos arts 351.º e 393.º do CC), situação em que modificação da decisão da matéria de facto passa pela aplicação ao caso da regra de direito probatório material (art. 364.º, n.º 1, do CC).
Em qualquer destes casos a relação limitando-se a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material deve integrar na decisão o facto que a 1.ªinstância considerou não provado o retirar dela o facto que ultimamente foi considerado provado sempre juízo neste caso da sua sustentação no torneio de prova alteração que nem sequer Depende da iniciativa da parte.
Com efeito nos termos do art. 663.º n.º 2 aplicam-se ao acórdão da Relação as regras prescritas para elaboração da sentença entre as quais se insere o arte 607.º, n.º 4, norma segundo a qual o juiz deve tomar em consideração na fundamentação da sentença (que agora integra também a decisão sobre os “temas da prova”) dos factos admitidos por acordo e plenamente provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito.
Por outro lado, continua a ser impedido que se considerem provados os factos relativamente aos quais foram violadas regras prova vinculada, como aquelas que impõem a apresentação de prova documental.
Tal como o tribunal de 1.ª instância, também a Relação tem poderes que tanto podem determinar a assunção de factos segundo regras imperativas de direito probatório como a desconsideração de factos cuja prova tem respeitado essas mesmas regras.”
À luz destes ensinamentos, e no tocante ao exercício, pelo Tribunal da Relação, dos poderes de reapreciação da prova, a jurisprudência do STJ tem sublinhado os seguintes princípios norteadores:
1.º Os poderes de averiguação oficiosa da Relação a que se reporta o nº 1 do art. 662º do CPC devem ser exercidos:
a. as situações de desrespeito por regras de direito probatório material, e bem assim às situações em que, em virtude da apreciação de impugnação da decisão sobre matéria de facto que julgue procedente, seja necessário alterar pontos de facto não impugnados, a fim de evitar contradições – Cfr. STJ 12-09-2013 (Fonseca Ramos), p. 2154/08.9TBMGR.C1.S1; STJ 07-11-2019 (Rosa Tching), p. 2929/17.8T8ALM.L1.S1, STJ 08-04-2021 (Maria Rosário Morgado), p. 453/14.0TBVRS.L1.S1; e STJ 08-09-2021 (Rosa Tching), p. 1721/17.4T8VIS-A.C1.S1;
b. em caso de insuficiência da decisão sobre matéria de facto, a fim de evitar anulação da sentença apelada, nos termos do nº 2 do mesmo art. 662º - cfr. o mesmo acórdão;
c. nas situações em que, resultando da prova produzida em 1ª instância o apuramento de factos supervenientes relevantes para a decisão da causa, o Tribunal a quo não os tenha integrado na decisão sobre matéria de facto, nos termos previstos nos arts. 611º do CPC em conjugação com os arts. 5º, nº 2, al. c) e 412º, nº 2 do mesmo Código.
2.º Ao apreciar a impugnação da decisão sobre matéria de facto, a Relação pode, de acordo com as circunstâncias:
a. concluir pela desnecessidade de ouvir os trechos invocados por apelante e apelado, se considerar que tal é desnecessário, nomeadamente se considerar aplicável qualquer meio de prova plena, ou proibição de prova testemunhal;
b. limitar-se a ouvir o registo dos depoimentos invocados por apelante e apelado; ou ainda;
c. ouvir toda a prova gravada (e não apenas o registo dos depoimentos invocados por apelante e apelado)
– STJ 17-11-2021 (Tibério Silva), p. 8344/17.6T8STB.E1.S1.
No caso vertente, verificamos que aquando da prestação de declarações e depoimento de parte, a autora declarou ter vendido o veículo dos autos; o que o autor corroborou expressamente no seu depoimento de parte[29]. Tais declarações constituem o reconhecimento de um facto potencialmente desfavorável aos depoentes, na medida em que é suscetível de fazer questionar o direito a uma das pretensões indemnizatórias formuladas pelos autores nos presentes autos, a saber, a condenação da ré no pagamento da quantia de € 14.657,28, correspondente ao custo da reparação do veículo[30]. Trata-se, pois, de uma confissão, confissão essa que, sendo de qualificar como judicial (arts. 355º do CC), e tendo sido reduzida a escrito, faz prova plena do facto confessado (arts. 358º, nº 1 do CC e 463º do CPC).
Este mesmo facto também se acha provado através da certidão de registo automóvel que, por determinação deste Tribunal, veio a ser junta aos presentes autos, sendo certo que tal certidão também faz prova plena da alienação do veículo em causa (art. 363º, nº 2 e 371º, nº 1º do CC e art. 5º do Código do Registo Automóvel, aprovado pelo DL n.º 54/75, de 12-02, na redação que lhe foi conferida pelo DL n.º 111/2019, de 16-08).
Nesta conformidade, porque provados por meios de prova qualificáveis como prova plena, a saber, confissão e um documento autêntico, determina-se o aditamento ao elenco de factos provados de dois novos pontos com o seguinte teor:
- Em data posterior àquela em que ocorreram os factos descritos em 25, a autora vendeu o veículo identificado em 1 à empresa Moticristo – Comércio de Automóveis, Lda
- O registo automóvel relativo ao veículo identificado em ostenta as seguintes inscrições e encargos:
Registo de propriedade com ap. … 77, em 22/06/2020, a favor de:
OS AFONSINHOS DO CONDADO IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO LDA
RUA DA PAZ MORADIA BERNARDINO 1º ESQº PEDRENAIS
2620 353 RAMADA
Registo de propriedade com ap. … 78, em 22/06/2020,
A …
RUA DA … CHALLE DO …, ALMORQUIM
2705 … TERRUGEM SNT
Registo de propriedade com ap. … 41, em 15/10/2021, MOTICRISTO - COMÉRCIO DE AUTOMÓVEIS, S . A. a favor de:
RUA GAGO COUTINHO 4
2640 487 MAFRA
Registo de propriedade com ap . … 54 , em 05/11/2021,
BANCO PRIMUS, S.A.
QUINTA DA … - EDF. D. JOÃO I - …º PISO
2770 … PAÇO DE ARCOS
Registo de propriedade com ap . … 32 , em 19/11/2021,
I …
LUGAR ALTO DA FONTE MAFRA, QUINTA NOVA,
… MAFRA
(…)
ENCARGO RESERVA
N. ORDEM - 0 DATA - 19/11/2021
SUJEITO ACTIVO
NOME BANCO PRIMUS, S.A.
MORADA - i QUINTA DA FONTE EDF. D. JOÃO 1 1 0 PISO
COD. POSTAL – 2770 192 LOCALIDADE PAÇO DE ARCOS
SUJEITO PASSIVO
NOME – I …
MORADA - LUGAR … DA … MAFRA, QUINTA …, MAFRA
COD. POSTAL - … LOCALIDADE - MAFRA
3.2.2.2.5. Recapitulação
Face ao decidido nos pontos anteriores, o elenco de factos provados passa a ser o seguinte:
1. A 1.ª Autora é proprietária de uma viatura de marca Jaguar, Modelo XE Pure, com a matrícula …-XB-….
2. A 1.ª Ré, advogada de profissão, precisava de um carro para se deslocar e, não pretendendo adquirir um, chegou a um consenso com a 1.ª A. em como essa lhe cedia a referida viatura, mediante contrato escrito, que as partes denominaram de “contrato de cedência de veículo entre particulares”, datado de 18 de Novembro de 2019.
3. Nos termos do acordo identificado em 2- a 1.ª Ré obrigou-se a pagar uma prestação mensal de 600 € (seiscentos euros), com reforços de 2.000,00 € (dois mil euros) no primeiro dia dos meses de fevereiro, junho e novembro de 2020, bem como no primeiro dia dos meses de fevereiro e junho de 2021.
4. A 1.ª Ré assumiu, ainda, a responsabilidade de liquidar:
a. Todos os impostos, taxas, multas e coimas relacionadas com a utilização, ou detenção do veículo;
b. Todas as revisões e/ou manutenções de acordo com o programa da marca num concessionário Jaguar;
c. Seguro contra todos os riscos com franquia zero.
5. Ademais, durante o período em que perdurasse a cedência da viatura, não podia a 1.ª Ré exceder o limite de 20.000km de circulação por cada 12 meses, sendo, ademais, responsável pela substituição dos quatro pneus aquando da entrega da mesma à 1.ª Autora.
6. A viatura encontra-se coberta pela apólice de seguro n.º … 57 da Ocidental Seguros, com data de início de 25-11-2019, constando a 1.ª Ré como condutora habitual da referida viatura.
7. Os Réus liquidaram os seguintes valores:
a. 30.11.2019 - € 835,27 (oitocentos e trinta e cinco euros e vinte e sete cêntimos) – prestação correspondente ao mês de novembro de 2019;
b. 03.02.2020 - € 3.200,00 (três mil e duzentos euros) – prestação correspondente aos meses de dezembro de 2019 e janeiro de 2020 e reforço correspondente ao mês de fevereiro de 2020;
c. 05.03.2020 - € 600,00 (seiscentos euros) – prestação correspondente ao mês de fevereiro de 2020;
d. 27.04.2020 - € 600,00 (seiscentos euros) prestação correspondente ao mês de março de 2020;
e. 17.06.2020 - € 1.200,00 (mil e duzentos euros) prestação correspondente aos meses de abril de 2020 e de maio de 2020 .
8. A primeira prestação paga (30.11.2019) contempla o valor devido pelo seguro automóvel correspondente à apólice supramencionada, e foi a única prestação liquidada pela 1.ª Ré.
9. Todas as demais foram liquidadas pelo 2.º Réu, o fiador da 1.ª R.
10. No dia 12 de Junho de 2020, a 1.ª Ré remeteu um e-mail ao 2.º A. onde consta:
“Após a n/a conversa de há minutos atrás, e na impossibilidade de chegar a acordo com relação à cedência do veículo acima identificado, venho por este meio e uma vez que não obtive resposta aos emails enviados no que se refere à imobilização do Jaguar XE por avaria, rescindir o contrato celebrado em 18 de Novembro de 2019 por inutilidade superveniente uma vez que o bem objecto do contrato de cedência se encontra avariado desde 28 de Março de 2020 data em que vigorava o EdE, tendo sido transportado para a oficina e recebido orçamento em 27/05/2020, estando a aqui locatária impedida do gozo do veículo.
A resolução aqui comunicada tem efeitos à data de recepção do orçamento de reparação do veículo em que se confirma a avaria não ser imputável a mau uso ou a accão ou omissão da Segunda Contraente (27/05/2020) e não antes em virtude do EdE decretado.
Sendo o veículo propriedade da Sra. A … e com a rescisão aqui comunicada (embora conhecimento da proprietária) o veículo encontra-se à V/ disposição na oficina Fórmula F, Quinta … …, Rua … - Lote …, 2685-870 Sacavém para recolha, conforme cópia do orçamento remetido em 04/06”.
11. Em virtude de nessa altura haver pagamentos incumpridos, a Autora remeteu, por intermédio de mandatário, uma missiva datada de 15 de Junho de 2020, advertindo a 1.ª Ré e o fiador do incumprimento dos valores devidos pelas prestações vencidas referentes aos meses de Abril e Maio, bem como quanto ao reforço vencido no dia 1 de Junho de 2020, num total de € 3.200 (três mil e duzentos euros) .
12. A 1.ª R. enviou ao 2º Autor, a 04.06.2020 um email com o seguinte conteúdo:
“Olá E …,
Como sabes o carro está imobilizado desde 28 de Março, nessa data estava em vigor o estado de emergência e não havia oficinas nem meios para se fazer diagnóstico.
No dia 19/05 foi transportado de reboque para oficina, foi feito diagnóstico que me chegou por email no dia 27/05 e no valor de 2.546,006 sendo que foi o turbo que se estragou, foi-me dito que teria também de ser visto se há danos provocados no motor, segundo o mecânico pode acontecer.
É certo que as prestações acordadas pela utilização do carro não foram pagas pontualmente, mas estão liquidadas / até fim de Março.
Neste momento e por causa da situação actual que veio agravar as dificuldades que tinha desde meados de Janeiro é-me impossível manter o contrato, o estado de emergência e a situação actual tomaram impossível suportar este encargo.
Queria saber se estás disponível para rescindir o contrato com a recolha imediata do carro e se atendendo à actual conjuntura concedes uma moratória de 3 meses para liquidação das prestações de Abril e Maio? (à semelhança do que fazem os concessionários, stands, financeiras etc).
Não te consigo ligar hoje estou a acabar um projecto que tem de ir para o ar amanhã.
Ligo-te amanhã logo de manhã.
Envio em anexo o orçamento como combinado.
Obrigada”
13. As prestações trimestrais relativas aos meses de Fevereiro e Março de 2020 do seguro automóvel, no montante individual de 235,52€ não foram pagas.
14. A 4 de novembro de 2020, a Autora recebeu um e-mail da oficina “Fórmula F”, sita em Sacavém, assinada pelo Sr. E …, informando que aí se encontrava parqueada a viatura XB, somando-se já o valor do parque em € 2.950,00 (dois mil novecentos e cinquenta euros) acrescido de IVA.
15. A Ré entregou-lhe a viatura, tendo a oficina “Formula F”, elaborado dois orçamentos em nome daquela, datados de 20.05.2020: um descritivo dos trabalhos a realizar na viatura e outro concernente ao valor do parque.
16. A Autora procedeu ao levantamento da viatura através de reboque no dia 5 de janeiro de 2021, tendo liquidado a quantia de 1.845,00 a título de parqueamento.
17. A viatura, no dia de 5 de janeiro levada por reboque para a oficina Auto DCS.
18. Na Oficina verificaram que a viatura não tinha bateria.
19. Não tinha óleo.
20. O turbo estava partido.
21. Verificaram ainda que após retirar o turbo da viatura e carregada a bateria, o motor fazia um grande barulho.
22. Os AA. ainda não procederam ao arranjo do veículo.
23. A Ré não procedeu ao pagamento das prestações relativas aos meses de junho de 2020 a dezembro de 2020 e, bem assim, aos reforços de junho e novembro de 2020, cifram-se em € 8.200 (oito mil e duzentos euros).
24. A 1.ª A. procedeu ao pagamento dos montantes, a título de seguro automóvel, no valor total de € 957.98 (novecentos e cinquenta e sete euros e noventa e oito cêntimos) devidos pelas seguintes prestações (Prestação de 28-02-2020 a 29-05-2020: 242.19€; Prestação de 29-052020 a 29-08-2020: 236.80€; Prestação de 29-08-2020 a 29-11-2020: 236.80€; Prestação de 2911-2020 a 28-02-2021: 242.19€).
25. A viatura tinha registado 84.765 km quando retornou à posse dos Autores.
26. Em 06-01-2021 a Auto Sueco II AUTOMÓVEIS S.A. elaborou orçamento relativo ao fornecimento de um motor e de um turbocompressor para incorporar no veículo identificado em 1-, no valor de 12.000,25.
27. Em 11-02-2021 a Auto Sueco II AUTOMÓVEIS S.A. estimou o custo da reparação do veículo identificado em 1-, com substituição do motor e do turbocompressor em € 14.657,28.
28. Em 19-08-2019 a viatura identificada em 1- havia sido objeto de revisão (“manutenção 68.000 km/48 KM”) na oficina Carclasse em Lisboa, sita na Av. Marechal Gomes da Costa, ocasião em que foi objeto das reparações tidas por adequadas àquele tipo de “manutenção”, incluindo a substituição do óleo do motor e do respetivo filtro.
29. Em data posterior àquela em que ocorreram os factos descritos em 25, a autora vendeu o veículo identificado em 1 à empresa Moticristo – Comércio de Automóveis, Lda.
30. O registo automóvel relativo ao veículo identificado em ostenta as seguintes inscrições e encargos:
Registo de propriedade com ap. … 77, em 22/06/2020, a favor de:
OS AFONSINHOS DO CONDADO IMPORTAÇÃO E EXPORTAÇÃO LDA
RUA DA PAZ MORADIA BERNARDINO 1º ESQº PEDRENAIS
2620 353 RAMADA
Registo de propriedade com ap. … 78, em 22/06/2020,
A …
RUA DA TOI\LDILHA CHALLE DO MONTE, ALMORQUIM
2705 834 TERRUGEM SNT
Registo de propriedade com ap. … 41, em 15/10/2021, MOTICRISTO - COMÉRCIO DE AUTOMÓVEIS, S . A. a favor de:
RUA GAGO COUTINHO 4
… MAFRA
Registo de propriedade com ap . … 54 , em 05/11/2021,
BANCO PRIMUS, S.A.
QUINTA DA … - EDF. D. JOÃO I - …º PISO
2770 192 PAÇO DE ARCOS
Registo de propriedade com ap . … 32 , em 19/11/2021,
I …
LUGAR … DA … MAFRA, QUINTA …,
… MAFRA
(…)
ENCARGO RESERVA
N. ORDEM - 0 DATA - 19/11/2021
SUJEITO ACTIVO
NOME BANCO PRIMUS, S.A.
MORADA - i QUINTA DA … EDF. D. JOÃO 1 … 0 PISO
COD. POSTAL – 2770 … LOCALIDADE PAÇO DE ARCOS
SUJEITO PASSIVO
NOME – I …
MORADA - LUGAR … DA FONTE …, QUINTA …, MAFRA
COD. POSTAL - … LOCALIDADE - MAFRA
Inexistem factos não provados com interesse para a decisão da causa.
3.2.3. Do mérito da causa
3.2.3.1. Do contrato
Da factualidade provada flui com evidência, que as rés celebraram entre si um contrato de aluguer que tinha por objeto um veículo automóvel.
Muito embora alguns arestos aludam à atipicidade do contrato de aluguer de veículo, o mesmo é objeto de previsão legal específica, no DL nº 181/2012, de 06-08[31]. Não obstante, este diploma rege a atividade comercial vulgarmente designada por rent a car, e não estipula sobre as obrigações emergentes daquele contrato, limitando-se a prescrever a forma escrita e as menções que do mesmo devem constar.
De qualquer modo, tal diploma não se aplica ao caso vertente, visto que o contrato a que aludem os presentes autos foi firmado entre particulares[32].
Pode, pois afirmar-se, com segurança, que o contrato de aluguer de veículo sem condutor celebrado entre particulares se rege pelas disposições contratuais livremente ajustadas entre as partes, no âmbito da sua liberdade contratual (art. 405º do CC) e pelas regras gerais da locação na parte aplicável ao aluguer, enquanto locação de coisa móvel (arts. 1022º a 1063º do CC).
3.2.3.2. Da resolução por iniciativa da ré, da ineficácia desta, do incumprimento imputável à autora
No caso vertente, apurou-se que na vigência do contrato, o turbo do veículo locado se partiu[33], e que a ré enviou ao autor uma mensagem de correio eletrónico, na qual lhe comunicou “rescindir o contrato celebrado em 18 de Novembro de 2019 por inutilidade superveniente uma vez que o bem objecto do contrato de cedência se encontra avariado desde 28 de Março de 2020 data em que vigorava o EdE, tendo sido transportado para a oficina e recebido orçamento em 27/05/2020, estando a aqui locatária impedida do gozo do veículo.”[34]
Sucede, contudo, que esta comunicação foi dirigida ao autor, que não outorgou o contrato de aluguer dos autos, razão pela qual a mesma não pode produzir o almejado efeito extintivo do contrato dos autos.
Discordamos, por isso, do entendimento manifestado pelo Tribunal a quo que, sem explicar por que razão considera que a declaração resolutória, dirigida a quem não é parte do contrato, pode produzir qualquer efeito, considerou eficaz tal declaração resolutória e absolveu os réus de todos os pedidos.
Seja como for, sempre diremos que ainda que entendêssemos que a declaração resolutória dirigida ao autor poderia produzir efeitos, sempre concluiríamos que no caso vertente não se pode considerar demonstrado o fundamento nela invocado.
Vejamos então.
Do contrato de locação emerge para o locador a obrigação de proporcionar ao locado o gozo de determinada coisa para os fins a que a mesma se destina – arts. 1022º e 1301º, al. b) do CC.
No caso vertente, sendo a coisa locada um veículo automóvel, forçoso será reconhecer que a sua finalidade é circular, sendo inegável que um veículo automóvel, não pode circular com o turbo partido.
É igualmente certo que nos termos do disposto no art. 1032º do CC estabelece que “se a coisa locada apresentar vício que lhe não permita realizar cabalmente o fim a que é destinada ou carecer de qualidades necessárias a esse fim ou asseguradas pelo locador, considera-se o contrato não cumprido”. Contudo, como expressamente decorre da al. b) do mesmo preceito, no caso de o defeito surgir posteriormente à entrega do veículo pelo locador ao locatário, o incumprimento contratual aqui previsto, só se verifica se tal defeito sobrevier “por culpa do locador”.
Quanto ao estado da coisa locada ao tempo da entrega, dispõe o art. 1043º, nº 2 do CC: “Presume-se que a coisa foi entregue ao locatário em bom estado de manutenção quando não exista documento onde as partes tenham descrito o estado dela ao tempo da entrega”.
No caso dos autos, como já referimos, o contrato dos autos não descreve o estado do veículo ao tempo da entrega do mesmo, nem se apurou que as partes tenham outorgado qualquer declaração escrita na qual se reportem a tal aspeto, pelo que, não tendo os réus feito prova do contrário, funciona a presunção emergente daquele preceito.
Presumindo-se que à data da entrega do veículo dos autos o mesmo se encontrava em bom estado, tal implica, necessariamente, que a avaria tenha ocorrido em momento posterior, o que aliás é manifesto, porque o motor de um automóvel com o turbo partido simplesmente não funciona.
Assim, esta avaria só geraria incumprimento do contrato pelo locador se se tivessem apurado factos que permitissem concluir que tal avaria constituiu uma consequência da ação ou omissão culposa do locador, ou se tenha devido a qualquer outro motivo estranho à pessoa do locatário ou dos seus familiares (vd. art. 1050º, al. a) do CC).
Ora, no caso vertente não se apurou nenhum facto que permita concluir nesse sentido, sendo certo que neste particular, o ónus da prova incidia sobre os réus, por estarem em causa factos impeditivos do direito à resolução do contrato invocado pelos autores – art. 342º, nº 2 do CC.
Em consequência, conclui-se que a missiva enviada pela ré não pode produzir os efeitos de resolução do contrato por incumprimento imputável à autora.
Poderia igualmente considerar-se a possibilidade de a avaria em questão, que objetivamente privou a ré do gozo do veículo locado, poder justificar a resolução do contrato por causa objetiva, nos termos previstos no art. 1050º do CC.
Contudo, para tanto, teriam os réus de fazer prova da causa da avaria, e demonstrar que a mesma foi alheia ao comportamento da ré ou dos seus familiares (art. 342º, nº 2 do CC). Coisa que manifestamente não lograram fazer.
Não se verificam, por isso, os pressupostos da resolução do contrato por iniciativa da ré.
3.2.3.3. Da resolução do contrato por iniciativa da autora com fundamento no incumprimento imputável à ré
Aqui chegados, cumpre apreciar se se verificam os pressupostos necessários à resolução do mesmo contrato por iniciativa da autora, com fundamento no incumprimento definitivo do contrato imputável à ré.
Para tanto, cumpre recordar que o incumprimento definitivo de um contrato pode ocorrer numa das seguintes situações:
a) se em consequência da mora do contraente faltoso, o contraente fiel perder o interesse que tinha na prestação – art. 808º, nº 1 do CC;
b) se, em consequência da mora, a outorga do contrato prometido se tornar impossível – art. 801º, nº 1 do CC;
c) se, na sequência da mora, o promitente fiel interpelar o promitente faltoso, atribuindo-lhe um prazo razoável para a celebração do contrato prometido, e este não o outorgar – art. 808º, nº 1 do CC;
d) se o promitente faltoso declarar, expressa ou tacitamente (embora de forma clara, inequívoca e perentória), que não quer celebrar o contrato prometido – art. 808º, nº 1 do CC por interpretação extensiva[35].
Quanto à perda do interesse, rege o nº 2 do art. 808º do CC que dispõe que “a perda do interesse na prestação é apreciada oficiosamente”.
A este propósito, ensina ANTUNES VARELA[36]:
“(…) a lei não se contenta com a simples perda (subjectiva) de interesse do credor na prestação em mora, para decretar a resolubilidade do contrato (…), exigindo, “apertes verbis” no nº 2 do art. 808º do Código Civil que a perda do interesse na prestação seja apreciada objectivamente.
(…).
É necessário que a perda – a perda e não a simples diminuição – do interesse seja apreciada à luz de circunstâncias objectivas.
(…).
A formulação da lei – “a perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente – inculca desde logo, antes mesmo de serem conhecidas as raízes históricas do preceito, duas conclusões importantes.
A primeira é de que a perda do interesse na prestação não pode filiar-se numa simples mudança de vontade do credor, desacompanhada de qualquer circunstância além da mora. O credor não pode alegar, noutros termos, como fundamento da resolução, o facto de, não tendo o devedor cumprido a obrigação na altura própria, o negócio não ser já do seu agrado.
A apreciação objectiva da situação, prescrita na lei, exige algo mais do que esse puro elemento subjectivo, que é a alteração da vontade do credor, apoiada na mora da outra parte.
A segunda conclusão é que também não basta, para fundamentar a resolução, qualquer circunstância que justifique a extinção do contrato aos olhos do credor. Se a situação é apreciada objectivamente, por imperativo expresso da lei, é porque não basta para o efeito o critério subjectivo do titular da prestação.
A perda do interesse há-de ser justificada segundo o critério de razoabilidade, próprio do comum das pessoas.
(…).
O § 326 do Código alemão também começa por conceder ao credor, no caso de o devedor incorrer em mora no cumprimento da obrigação que o contrato bilateral lhe impõe, a faculdade de fixar a este um prazo adequado (…) para a realização da prestação, com a declaração de que a não aceitará depois de findo esse prazo.
Mas no nº 2 do mesmo parágrafo, a propósito da perda de interesse, acrescenta-se o seguinte: “Se o cumprimento do contrato, em consequência da mora, não tiver nenhum interesse (…) para a outra parte, competirão a esta os direitos a que se refere o número anterior (indemnização pelo não cumprimento ou resolução do contrato), sem necessidade de fixação do prazo”.
E são realmente de perda absoluta, completa, do interesse na prestação – e não de mera diminuição ou redução de tal interesse – traduzida por via da regra no desaparecimento da necessidade que a prestação visava satisfazer[37], os casos com que os autores ilustram a aplicação prática desse preceito fundamental da lei civil alemã. Insiste-se, além disso, na nota de que a perda do interesse tem que resultar da mora no cumprimento e não de qualquer outra circunstância. Exigência que tem pleno cabimento em face do nosso direito, visto não ser outro o sentido imputável à expressão introdutória do art. 808º do Código Civil: “Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação …”
No mesmo sentido sublinha o ac. STJ 07-06-2011 (Fernando Bento), p. 7005/06.6TBMAI.P1.S1: “Não basta, pois, uma perda subjectiva de interesse na prestação; é necessário que essa perda de interesse transpareça numa apreciação objectiva da situação.
A perda do interesse não se verifica porque o credor a alega nem porque, em juízo meramente subjectivo, entende que a prestação já não lhe aproveita – o que pode decorrer de mero capricho seu.
O interesse é uma relação entre a pessoa e os bens – id quod inter est – fundada na aptidão destes para satisfazer necessidades daqueles.
Mas a subsistência ou desaparecimento de tal relação é aferida, não em função do juízo do respectivo sujeito – ninguém é (bom) juiz em causa própria… - mas em função do juízo que, numa ponderação global do caso (na qual, entre outras, avulta o fim do credor ao celebrar o contrato), efectuaria um homem de bom senso e razoável, suposto pela ordem jurídica.
Com efeito, a satisfação do interesse do credor é o fim principal da prestação, podendo afirmar-se que, sendo a relação obrigacional um processo (isto é, um conjunto de actos encadeados entre si) tendente ao cumprimento, este só se realiza de acordo com esse processo quando o credor vê realizado o interesse que pretendia com aquela relação obrigacional, na dupla vertente de prestação-acção (conduta devida) e de prestação-resultado (fim da prestação), pois, “muito embora o interesse do credor, cuja satisfação é o fim e razão de ser da obrigação, seja um elemento extrínseco à sua estrutura, a decomposição ou cisão da prestação em acção de prestar (conduta) e resultado útil a prestar acaba por estar subjacente ao regime jurídico do cumprimento e não cumprimento” (cfr. Calvão da Silva, Cumprimento e sanção pecuniária compulsória, Coimbra, 1987, p. 82).”
Na síntese feliz do ac. STJ 18-12-2003 (Araújo Barros), p. 03B3697“não basta o juízo valorativo arbitrário do próprio credor antes aquela (falta de interesse) há de ser apreciada objectivamente, com base em elementos susceptíveis de serem valorados por qualquer pessoa (designadamente pelo próprio devedor ou pelo juiz).”
Finalmente, como salienta BAPTISTA MACHADO[38], não valem casos de escassa importância para não sujeitar o devedor ao capricho ou até ao arbítrio do credor.
Relativamente à impossibilidade da prestação temos por desnecessário expender quaisquer considerações explicativas, na medida em que esta causa de incumprimento definitivo não foi invocada por qualquer das partes, nem se afigura aplicável ao caso dos autos, atentos os factos provados.
No tocante à interpelação admonitória, diz ANTUNES VARELA[39]:
“a interpelação admonitória não surge neste artigo 808º como um simples pressuposto da resolução do contrato, à semelhança do que sucede no Código italiano, mas antes como uma ponte obrigatória de passagem da tal ocorrência transitória da mora para o cumprimento da obrigação ou para a situação mais firme e mais esclarecedora do não cumprimento (definitivo) da obrigação. E não reveste sequer textualmente a forma de um puro direito (ou faculdade) concedido ao credor, precisamente porque, como ponte obrigatória de passagem de uma situação jurídica para outra, a intimação do credor funciona substancialmente no interesse de uma e outra das partes
Por um lado, o credor tem a possibilidade de impor à outra parte um prazo para cumprir, como meio de obter a realização efetiva da prestação a que tem direito ou de lançar mão das providências com que a lei castiga o não cumprimento definitivo da obrigação, entre as quais se conta a de resolver o contrato, donde nasceu a obrigação que também a ele vincula.
Por outro lado, o devedor tem a garantia de que a contraparte (o credor) não goza ainda da possibilidade de desencadear contra ele nenhuma das sanções ou providências correspondentes ao não cumprimento ... enquanto lhe não der uma nova e derradeira chance de corrigir o seu descuido, de emendar a sua negligência, de superar a mora em que incorreu.
E têm os autores entendido - e bem! -, em face do espírito e do próprio texto da lei, que, para o devedor em mora ficar nessa situação de faltoso em definitivo, se torna necessário mesmo que na interpelação feita pelo credor, ao abrigo do disposto no artigo 808º, se inclua expressamente a advertência de que, não cumprindo o devedor dentro do prazo suplementar fixado, a obrigação se terá para todos os efeitos por não cumprida.”
A esta luz, a interpelação admonitória deve integrar três elementos:
- a exortação do devedor no sentido do cumprimento da obrigação;
- a concessão de um prazo perentório, suplementar, razoável e exato para cumprir;
- a declaração cominatória de que findo o prazo fixado, sem que ocorra a execução do contrato, este se considera definitivamente incumprido.
Este entendimento foi acolhido na jurisprudência do STJ – cfr. acs.:
- STJ 02-11-2006 (Custódio Montes), p. 06B3822;
- STJ 08-05-2007 (Sebastião Póvoas), p. 07A932;
- STJ 17-11-2015 (Mª Clara Sottomayor), p. 2545/10.5TVLSB.L1.S1;
- STJ 10-12-2019 (Raimundo Queirós), p. 386/13.7T2AND.P2.S1;
- STJ 21-01-2021 (Mª dos Prazeres Beleza), p. 109/19.7T8MAI.P1.S1;
- STJ 24-05-2022 (Manuel Capelo), p. 3025/20.6T8FAR.E1.S1;
- STJ 23-06-2022 (Fernando Baptista), p. 831/19.8T8PVZ.P1.S1
- STJ 28-03-2023 (Mª Clara Sottomayor), p. 211/21.5T8GMR.G1.S1;
- STJ 11-01-2024 (Sousa Lameira), p. 2356/21.2T8PTM.E1.S1.
Finalmente, e no que concerne à recusa de cumprimento, afigura-se que uma tal causa de incumprimento definitivo pressupõe uma declaração absoluta e inequívoca de repudiar o contrato, isto é, uma declaração séria, categórica, que traduza, sem qualquer margem para dúvidas, a intenção e propósito de não outorgar o contrato prometido.
Sobre esta causa de incumprimento definitivo, refere o ac. STJ 05-12_2006 (Sebastião Póvoas), p. 06A3914:
«A recusa de cumprimento (ou "riffiuto di adimpiere") é o incumprimento típico.
Mas tem de ser expressa por "uma declaração absoluta e inequívoca" de "repudiar o contrato". (cf. Dr. Brandão Proença, in "Do incumprimento do Contrato-Promessa Bilateral", 91 e "inter alia" os Acórdãos do STJ de 7/3/91 - BMJ 405-456, de 28/3/2006 - Pº 327/06-1ª e de 18 de Abril de 2006 - Pº 844/06).
Impõe-se que o renitente emita uma declaração séria, categórica e que não deixe que subsistam quaisquer dúvidas sobre a sua vontade (e propósito) de não outorgar o contrato prometido.
Ainda assim, certa doutrina entende ser necessária uma interpelação admonitória da parte do promitente fiel (cf. Doutor Pessoa Jorge - "Direito das Obrigações", 296-298) o que se pensa ser desnecessário (na esteira do ensinado pelos Profs. Galvão Telles - "Direito das Obrigações", 5ª ed., 224-225 - e Almeida Costa, in "Direito das Obrigações", 6ª ed., 921) já que a declaração inequívoca e peremptória da intenção de não cumprir equivale à interpelação antecipada.
Neste sentido vem julgando este STJ (Acórdãos de 15 de Março de 1983 - BMJ 325-561, de 15 de Fevereiro de 1990 - Act. Jur. 2ª -6-10 e de 7 de Janeiro de 1993 - C.J./STJ I-1,15 - "inter alia") e assim será face a toda a dogmática da recusa antecipada.
Mas, o que o direito da "common law" chama de "anticipatory breach of contract" ou "repudiation of a contract" terá de ser expresso - e nunca é demais repeti-lo, por forma a entender-se ser "a clear and absolute refusal to perform" e que "the party is unwilling".
Não pode, por outro lado, interpretar-se como recusa o atraso na prestação, ainda que reiterado.»
No caso vertente, já concluímos que não podemos considerar verificado o fundamento invocado pela ré para resolver o contrato, pelo que a declaração resolutória, não pode produzir os efeitos tópicos da resolução do contrato[40].
Contudo, tal não significa que essa resolução não possa gerar incumprimento definitivo do contrato, e consequentemente constituir a ré na obrigação de indemnizar a autora.
Com efeito, relativamente a esta matéria, não existe unanimidade na doutrina, entendendo uns que em casos como os dos autos, a resolução extingue o contrato, ainda que configure um ilícito indemnizável, ao passo que outros consideram que uma resolução injustificada não extingue o vínculo contratual, mantendo-se a vigência do contrato, e mantendo o contraente fiel a faculdade de exigir do contraente faltoso o cumprimento das obrigações contratadas.
Acerca de tais divergências diz JOANA FARRAJOTA:[41]
«apenas quando se encontrem preenchidos os pressupostos de existência do direito de resolução, bem como os respectivos pressupostos de exercício, será a resolução lícita. Interessa-
-nos todavia aqui não o exercício regular desta faculdade, mas o lado menos saudável daquele: a resolução emitida fora do respectivo quadro legal, do “licet”, em resultado da ausência de fundamento, “in casu”, o incumprimento. De facto, obtendo-se a resolução – em regra – por mera declaração à contraparte, nada obsta a que seja emitida sem que se verifique uma situação de incumprimento contratual relevante nos termos da lei.
A declaração de resolução, emitida em desconformidade com a lei ou a convenção das partes, não encontra uma designação consensual junto da doutrina e jurisprudência nacionais.
RAÚL GUICHARD e SOFIA PAIS designam esta forma de resolução por resolução ilegítima[42]. P. ROMANO MARTINEZ, por sua vez, apelida a resolução «(…) exercida em desrespeito de exigências formais, de pressupostos ou de direitos da contraparte ou de terceiros» por resolução ilícita[43].
(...)
O cerne da problemática da resolução infundada reside, num primeiro momento, nos respectivos efeitos na vigência do contrato, isto é, no esclarecimento da questão da produção do efeito extintivo, atendendo ao carácter ilícito da declaração. Será este então o nosso ponto de partida na análise do estado da arte da doutrina nacional.
(...)
Parte significativa da doutrina nacional tende a reconhecer eficácia extintiva à declaração resolutiva ilícita. Assim, não obstante a desconformidade daquela declaração com a lei, o contrato alvo da mesma seria destruído. (...) P. ROMANO MARTINEZ entende que a resolução ilícita representa o incumprimento do contrato. Não ficámos, todavia, totalmente esclarecidos quanto ao pensamento do Autor. Assim, embora comece por afirmar que «(…) a resolução contrária à lei seria nula (art. 280º, n.º 1 do CC), inválida, portanto (…)»[44], logo em seguida, partindo da impossibilidade de autonomização da declaração de resolução do contrato, retira que esta deve ser analisada como modo de cumprimento ou incumprimento do contrato, concluindo finalmente que «(…) a resolução ilícita não é inválida: representa o incumprimento do contrato» e, «(…) por via de regra, produz de imediato o efeito extintivo (…)»[45]. Não transparece, todavia, de forma clara a razão de ser desta aparente incompatibilidade entre invalidade e incumprimento aceite pelo Autor como premissa da construção apresentada.
ANTÓNIO PINTO MONTEIRO desenvolveu a problemática da resolução infundada no quadro do contrato de agência e, em geral, nos contratos de distribuição comercial[46]. Para o Autor, perante uma tal declaração, duas soluções possíveis se perfilam. Uma primeira, mais indicada no plano dos princípios, em que o contrato se manteria, fruto do carácter ilícito do exercício do direito resolutivo desprovido de fundamento. Neste caso a parte adimplente teria direito a ser indemnizada pelos danos causados pela «suspensão» do contrato, i.e., pelo período decorrido até à decisão da acção onde se apreciasse a licitude do acto. Outra, de ordem mais prática, em que o contrato se extinguiria, traduzindo-se a resolução sem fundamento num incumprimento contratual, gerador de uma obrigação de indemnizar a parte inadimplente. Muito embora reconhecendo que esta segunda orientação se traduz na admissibilidade da obtenção pelo devedor do resultado pretendido por meio de um comportamento ilícito, o Autor defende a respectiva adopção, apresentando para o efeito um conjunto de argumentos. De um lado salienta que, na prática, nem sempre será possível ou aconselhável impor a subsistência do contrato. E isto porque pode ter decorrido um longo período de tempo em que a relação entre as partes, de facto, cessou e em que se podem ter estabelecido relações alternativas com terceiros, com vista à satisfação dos interesses regulados pelo contrato em crise. Por outro lado, afirma o Autor, solução diversa também não se compaginaria com o carácter extrajudicial da resolução e a natureza meramente declarativa da acção judicial que aprecia a declaração de resolução[47]. O Autor como argumento na defesa desta orientação, a possibilidade de o contraente que resolve o contrato poder sempre denunciá-lo, caso se trate de um contrato de duração indeterminada. Seria assim possível, em regra, equiparar a resolução sem fundamento a uma denúncia sem respeito pelo pré-aviso legal que, por sua vez, confere apenas ao lesado o direito a uma indemnização, nos termos do n.º 1 do artigo 29.º do regime jurídico do contrato de agência130. Finalmente refere ainda, em abono desta posição, a equiparação, pela doutrina e jurisprudência, da resolução sem fundamento à recusa de cumprir e desta ao incumprimento definitivo. Finalmente refere ainda, em abono desta posição, a equiparação, pela doutrina e jurisprudência, da resolução sem fundamento à recusa de cumprir e desta ao incumprimento definitivo. Menos claras nos permaneceram as razões que conduzem o Autor, de um lado, a qualificar a declaração de resolução infundada como incumprimento contratual na segunda hipótese aventada – em que o contrato se extinguiu por efeito da resolução infundada – e, de outro, a recusar tal qualificação na primeira solução apresentada.
ASSUNÇÃO CRISTAS entende que a declaração de resolução – ainda que ilícita – destrói o contrato no momento em que se torna eficaz, chegando a tal conclusão pela combinação do modelo extrajudicial de resolução com o normal direito ao cumprimento das obrigações. Se a inexistência de fundamento da resolução for provada judicialmente, a resolução, esclarece a Autora, não desaparece, operando-se apenas uma modificação da respectiva valoração jurídica e dos seus efeitos: a resolução – anteriormente um acto legítimo – transforma-se em ilícito, com sentido de incumprimento. Assim, apesar de o contrato ter cessado irremediavelmente, o credor pode ainda exigir o cumprimento e oferecer a contraprestação[48]. Também aqui a solução apresentada não nos surge como clara, na medida em que parece prever o cumprimento do contrato (prestação e contraprestação) após a respectiva extinção. Se, de facto, o contrato se extinguiu, então também se extinguiram as pretensões jurídicas das partes ao cumprimento. Esta é, no nosso entendimento, a única posição consentânea com o entendimento segundo o qual o contrato se extingue por mero efeito da declaração de resolução. Neste sentido BECKMANN, na doutrina alemã, afirma que um dos efeitos do exercício do direito de resolução consiste na extinção dos direitos das partes ao cumprimento, bem como de quaisquer acções judiciais que tenham por base o interesse no cumprimento.
Esta crítica é extensível a toda a doutrina que, reconhecendo eficácia extintiva à resolução, simultaneamente a qualifica como acto de incumprimento contratual. Extinguindo-se o contrato não se deverá falar em incumprimento, na medida em que deixou de haver objecto de incumprimento. De facto, ainda que se enquadre a resolução infundada na figura do incumprimento do contrato, ao afirmar-se, simultaneamente, que extingue o contrato, sempre se terá de reconhecer que a sua vertente de acto de destruição do contrato consome aquela outra.
BRANDÃO PROENÇA, embora parecendo atribuir eficácia extintiva à declaração de resolução ilícita – afirmando que esta se produziu, inelutavelmente, nos momentos previstos no art. 224º, 1, 1ª parte, do C.C. – reconhece nesta uma modalidade de recusa de cumprimento[49] e, bem assim (...) uma forma de incumprimento. Ressalva o Autor, os casos em que nos encontremos «(…) face a uma representação infundada e não culposa do incumprimento da contraparte (…)» do devedor-declarante, caso em que não deverá este ser colocado numa situação de incumprimento, devendo ser mantido o contrato.
Refira-se ainda, finalmente, a posição de PAIS DE VASCONCELOS para quem a resolução sem fundamento, apesar da respectiva ilicitude, será em princípio eficaz, consubstanciando, todavia, o incumprimento definitivo do contrato. Excepcionalmente apenas, admite o Autor, nos casos em que a relação contratual tem especial relevância social – por exemplo, no caso do contrato de trabalho – a ilicitude poderá ter como consequência a ineficácia da resolução[50].
(...)
Apenas uma doutrina minoritária entende que a resolução ferida de ilicitude se encontra desprovida de eficácia extintiva.
O Autor que porventura mais terá aprofundado a questão da (in)eficácia da resolução infundada – muito embora o tenha feito de forma marginal – foi PAULO MOTA PINTO, cujo entendimento tendemos a partilhar. Defende este Autor a ineficácia daquela declaração «(…) por não possuir fundamento jurídico e o resolvente não ser titular do correspondente direito potestativo»[51]. Nestes casos, não há, na realidade um direito de resolução, pelo que não poderá, consequentemente, produzir-se a extinção do contrato. Face ao exposto, conclui PAULO MOTA PINTO, a sentença que reconheça a inexistência de fundamento da resolução tem como efeito declarar que o contrato, afinal, não se extinguiu.
O Autor admite, todavia, que, nos casos em que o resolvente dispusesse de um direito de denúncia ad nutum, a resolução sem fundamento possa ser equiparada, ou mesmo convertida, a uma denúncia sem pré-aviso. As duas únicas possíveis consequências da declaração de resolução infundada são assim, para PAULO MOTA PINTO, de um lado a manutenção do contrato, acompanhada do respectivo não cumprimento e, de outro, a sua extinção, acompanhada de responsabilidade pelo desrespeito da obrigação de pré-aviso a que o exercício da denúncia se encontra sujeito. Adicionalmente entende o Autor, respondendo aos argumentos avançados por PINTO MONTEIRO, não dever este princípio encontrar-se sujeito a desvios por razões de ordem prática, designadamente por dificuldades na retoma da relação contratual, «(…) sob pena de se estar a conceder directa prevalência, sobre a inequívoca força do Direito ao facto ilícito (…) e ao decurso do tempo». Por outro lado, continua, se se considerasse que o contrato se extinguia por efeito da resolução infundada, estar-se-ia a vedar ao credor a possibilidade de requerer a execução específica – quando esta fosse possível, abrindo assim a porta para que o devedor, sempre que quisesse eximir-se àquela, pusesse fim ao contrato, resolvendo-o, ainda que sem fundamento. Finalmente, considerando que a obrigação de indemnizar depende de culpa, sempre que o comportamento do devedor ao resolver infundadamente o contrato não fosse culposo, deixar-se-ia o credor sem qualquer protecção.
CALVÃO DA SILVA, a propósito de um caso em que a resolução foi declarada sem que se verificasse um seu pressuposto – o incumprimento – afirma a ilegalidade e ineficácia da mesma. Acrescenta o Autor ainda que a intervenção do tribunal é de mera apreciação da legalidade da resolução, i.e., de verificação dos respectivos pressupostos e de declaração da existência ou inexistência e eficácia da mesma.
Finalmente, BAPTISTA MACHADO, ao afirmar que a existência do direito de resolução se encontra dependente da verificação do respectivo fundamento[52], parece inclinar-se no sentido da ineficácia da declaração resolutiva sem fundamento. Acrescente-se ainda que, para BAPTISTA MACHADO, a declaração de resolução infundada consubstancia uma forma de recusa de cumprimento[53]-[54].
(…)
«considerando que o vício de que sofre a declaração infundada resulta de “uma falta ou irregularidade dos elementos internos (essenciais, formativos) do negócio”, conclui-se que esta seria enquadrável na categoria das invalidades[55].
Cabe-nos agora esclarecer se o vício do acto de resolução “(…) o priva de eficácia ou torna precária essa eficácia”[56], i.e., se se trata de um caso de nulidade ou anulabilidade. A maioria da doutrina e jurisprudência, que se pronuncia sobre a invalidade da declaração de resolução infundada, tende a reconduzi-la à figura da nulidade, por referência ao artigo 280.º, n.º 1 do CC, na parte em que sanciona com nulidade o “negócio jurídico cujo objecto seja (...) contrário à lei”. A declaração de resolução infundada, na medida em que contraria o disposto no n.º 1 do artigo 432.º do CC, seria assim nula por força da conjugação desta disposição com o n.º 1 do artigo 280.º – consoante a posição adoptada quanto à qualificação da declaração de resolução, poder-se-á ainda ter de recorrer ao artigo 295.º.
Não é necessário, com efeito, recorrer aqui à previsão do artigo 294.º do CC, já que esta, como refere HÖRSTER, “(…) traduz um princípio básico e cede o seu lugar, sempre que os haja, a preceitos específicos”, in casu, o n.º 1 do artigo 280.º. Este artigo é, de facto, uma concretização da norma geral do artigo 294.º, propondo critérios mais pormenorizados para identificar os conteúdos de negócios jurídicos desconformes à lei.
A conjugação das disposições constantes dos artigos 432.º, n.º 1, e 280.º, n.º 1, do CC, in fine, conduzem-nos, no nosso entender, de forma inequívoca, à conclusão de que a resolução a que falte o pressuposto do incumprimento é nula e, desta forma, insusceptível de destruir o contrato.
(...).
Em conclusão, pode-se afirmar que a sanção-regra da declaração de resolução desprovida de fundamento é a nulidade, por força do disposto no artigo 432.º, n.º 1, conjugado com o n.º 1 do artigo 280.º, do CC. Não se trata, todavia, de uma regra absoluta, como já tivemos oportunidade de constatar, a propósito da análise dos regimes jurídicos de alguns contratos em particular, designadamente o regime do contrato de trabalho, em que o despedimento infundado é sancionado com a anulabilidade. De facto, outros interesses reconhecidos pela ordem jurídica poderão conduzir a um afastamento pela lei daquela regra, em detrimento da protecção do vínculo contratual.
(...).
A declaração de resolução infundada, mais não é do que um “tigre de papel”. Donde, apesar da existência de um significado negocial do acto – a destruição do contrato, este, em razão da respectiva invalidade, não é juridicamente atendível enquanto acto dirigido à extinção do contrato. Embora em abstracto a declaração de resolução realizada à contraparte fosse, por força dos artigos 436.º, n.º 1 e 224.º, n.º 1 do CC, adequada à composição de um negócio jurídico, não produz os efeitos correspondentes ao seu significado, porque se encontra viciada. Tal, como salienta FERREIRA DE ALMEIDA, não põe em causa o princípio performativo, já que este só se aplica a negócios e outros actos jurídicos e, no caso da resolução infundada, em bom rigor, não há um negócio jurídico[57].
No mesmo sentido se pronuncia na doutrina alemã BECKMANN, ao afirmar que as consequências jurídicas de uma declaração de resolução podem realizar-se apenas quando esteja esclarecido que a declaração de resolução do credor foi efectuada legalmente, em particular, que existe um fundamento para a resolução. De facto, como chama a atenção PAULO MOTA PINTO, é importante manter presente a distinção entre os pressupostos do direito potestativo de resolução de um lado e, de outro, o modo como se produzem os efeitos do direito, isto é, por mera declaração à contraparte – sem a necessidade de intervenção judicial. Inexistindo os referidos pressupostos – no caso, o incumprimento – não há direito de resolução, sendo a declaração pretensamente resolutiva ilícita e, em regra, ineficaz. Neste contexto, a sentença, que reconheça a inexistência de fundamento da declaração resolutiva, declara, na realidade, que o contrato não se extinguiu. [58]-[59]»
Havendo que tomar posição, aderimos resolutamente à tese da ineficácia extintiva da declaração resolutiva infundada.
Por isso consideramos que no caso em apreço a resolução do contrato por iniciativa da ré, para além de não ter a eficácia resolutiva que almejava, também não extinguiu as obrigações emergentes do referido contrato que, por isso, se manteve em vigor.
Pretendem, por isso, os autores que o Tribunal declare a resolução do contrato de aluguer dos autos com fundamento no incumprimento definitivo do mesmo contrato por parte da ré.
Na apreciação desta questão haveremos que ter presente que aquela resolução contratual infundada, se dirigida à autora, configuraria uma inequívoca recusa em cumprir o contrato, qualificável como incumprimento definitivo do contrato que conferiria à autora o direito à resolução do mesmo, nos termos previstos no art. 801º, nº 2 do CC.
Só que, como também já o mencionámos, aquela resolução se deve ter por ineficaz, por não ter sido dirigida à autora.
Subsistem, contudo, outros fundamentos para a resolução do contrato.
Vejamos então.
Com efeito, provado ficou que a ré não pagou à autora os alugueres relativos aos meses de junho a dezembro de 2020, e respetivos acréscimos[60], e que depois de citados os réus tais alugueres se mantiveram por pagar, razão pela qual a mora se converteu em incumprimento definitivo, assistindo, por isso à autora o direito à resolução judicial do contrato – art. 1048º, nº 1 do CC.
A resolução do contrato de locação pode ser feita extrajudicialmente, ou mediante processo judicial (arts. 436º, nº 1 e 1047º do CC).
Nada obsta, por isso, a que o contrato seja declarado resolvido com fundamento no incumprimento imputável à ré.
No caso vertente, pedem os autores que tal resolução produza efeitos com referência à data de 05-01-2021, data em que a autora recuperou a viatura[61].
Tendo este facto resultado provado, nada obsta a que a declaração de efeitos da resolução se reporte a tal data.
Expliquemo-nos.
Dispõe o art. 433º do CC que “Na falta de disposição especial, a resolução é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, com ressalva do disposto nos artigos seguintes.”
Por seu turno, dispõe o art. 289º, nº 1 do mesmo código que “tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente”.
Contudo, no caso dos contratos de execução continuada, a repetição das prestações vencidas durante o tempo em que o contrato foi efetivamente executado pode não ser possível.
Nesta medida, o art. 434º, nº 1 do CC dispõe que a resolução do contrato tem, em princípio efeito retroativo, mas excetua as situações em que a retroatividade contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução.
E o nº 2 do mesmo preceito concretiza a exceção constante da parte final do nº 1, estabelecendo que nos contratos de execução continuada a resolução não abrange as prestações já efetuadas, exceto se entre estas e a causa da resolução existir cum vínculo que legitime a resolução de todas elas.
No caso em apreço, a resolução do contrato reporta-se a um contrato de arrendamento parcialmente executado, o que significa que o gozo da coisa pelo locatário, nos termos do contrato, não pode ser repetido, razão pela qual a resolução não pode retroagir ao momento da celebração do mesmo.
Nada obsta, por isso, que tal resolução produza efeitos a partir da data em que o contrato deixou de ser executado por ambas as partes.
No caso em análise, já vimos que a resolução do contrato por iniciativa da ré não produziu qualquer efeito, pelo que a autora manteve intacto o direito de exigir o cumprimento do mesmo, nomeadamente o pagamento das prestações pecuniárias nele previstas.
Com efeito, não tendo os réus demonstrado que a avaria do veículo se deveu a ato de terceiro ou por qualquer outra forma alheio à vontade da locatária, a imobilização do mesmo é imputável à ré, na medida em que lhe competia proceder às necessárias reparações da coisa locada, por força da obrigação de a manter em bom estado (art. 1043º, nº 1, e 1044º do CC).
Assim sendo, a autora manteve o direito de exigir da ré as prestações emergentes do contrato até à data em que recolheu o veículo, data essa a partir da qual claramente deixou de proporcionar à ré o gozo do mesmo.
3.2.3.4. Dos danos invocados e da indemnização
3.2.3.4.1. Considerações prévias
A resolução do contrato por incumprimento definitivo do mesmo imputável à ré confere à autora o direito a ser indemnizada pelos danos decorrentes do incumprimento.
Neste particular, cumpre salientar que da factualidade provada não emerge nenhum facto que permita concluir que o autor tem qualquer direito a ser indemnizado pelos danos decorrentes do incumprimento do contrato dos autos, visto que não resultou provado que tenha outorgado o referido contrato, seja ou tenha sido proprietário do veículo, ou sequer que seja casado com a autora.
Daí que procedendo a presente ação, no todo ou em parte, apenas poderá ser proferida decisão condenatória favorável à autora.
Seja como for, cumpre reconhecer que no caso em apreço está em causa o ressarcimento de danos no âmbito da responsabilidade civil contratual
Como aponta CARNEIRO DA FRADA[62] “a responsabilidade civil é um instituto jurídico que comunga da tarefa primordial do Direito que consiste na ordenação e distribuição dos riscos e contingências que afectam a vida dos sujeitos e a sua coexistência social”.
Por seu turno, acrescenta JOSÉ ALBERTO GONZÁLEZ[63] que a “responsabilidade civil cumpre uma função: obrigar terceiro a proceder à reparação de danos provocados na esfera jurídica do lesado (credor para esse efeito)”.
Qualquer que seja o ponto vista sobre o qual se encare, o direito a ser ressarcido nos quadros da responsabildade civil depende da verificação dos pressupostos desta.
Interpretando o disposto no art. 483º do CC, a doutrina dominante tem entendido, de modo convergente, que a responsabilidade civil delitual depende da verificação dos seguintes pressupostos :
a) Um facto - comportamento voluntário do lesante;
b) A ilicitude e a culpa;
c) A imputação do facto ao lesante;
d) O dano; e
e) O nexo de causalidade e adequação entre o facto e o dano.
Por facto deverá entender-se todo o comportamento voluntário ou forma de conduta humana.
A ilicitude poderá resultar, da violação de direito(s) de outrem (máxime direitos absolutos), ou de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios.
Mas, para uma conduta ser ilícita, a lesão desse direito de tutela erga omnes deve resultar de factos voluntários contrários ao direito.
Quanto à culpa, dispõe o art. 487º do CC que na falta de outro critério legal, pela ela deve ser aferida pela diligência de um bom pai de família, isto é, pela diligência de uma pessoa sem especiais qualidades, qualificações, ou perícia.
O dano consiste na ofensa de bens ou interesses alheios tutelados pela ordem jurídica.
O nexo de causalidade e adequação exprime uma relação de causa e efeito entre a conduta do lesante e o dano sofrido pelo lesado, apreciada não apenas de um ponto de vista naturalístico, mas numa perspetiva jurídica – vd. arts. 562º, 563º, e 566º do CC[64].
Estes pressupostos são transponíveis, mutatis mutandis, para o domínio da responsabilidade contratual.
Com efeito, no caso da responsabilidade contratual, o facto consiste na mora, incumprimento definitivo, cumprimento defeituoso ou impossibilidade culposa de uma obrigação, residindo a sua ilicitude desde logo na antinomia entre aqueles e esta – vd. arts. 799º e 801º do CC.
Assim, a responsabilidade civil geradora da obrigação de indemnizar será contratual quando resulte de uma relação jurídica de natureza creditícia, e decorra da violação de deveres originados nesse vínculo obrigacional originário; e será extracontratual quando resulte da violação de direitos absolutos ou da prática de atos lícitos ou ilícitos que provoquem danos a outrem.
Os pressupostos da responsabilidade civil são pois bastante semelhantes, quer numa, quer noutra modalidades, divergindo, quanto aos seguintes aspetos:
- ónus da prova da culpa (artigo 799.º, n.º 1 e artigo 487.º, n.º 1, do CC);
- prazos de prescrição (artigo 309.º e artigo 498.º do CC);
- responsabilidade por facto de outrem (artigo 800.º, n.º 1 e artigo 500.º do CC); e
- atenuação equitativa da indemnização em caso de mera culpa (artigo 494.º do CC).[65].
No caso vertente, foram invocados os seguintes danos[66]:
a) Alugueres vencidos e não pagos, e respetivos reforços, no valor de € 8.200,00
b) Cláusula penal - € 1.640,00;
c) Prémios de seguro vencidos e não pagos - € 957,98
d) Despesa previsível com a reparação do veículo, no valor de € 14.657,28;
e) Despesas emergentes do depósito da viatura locada em oficina - € 1.875,00.
3.2.3.4.2. Dos alugueres e “reforços”
Considerando que se apurou que nos termos previstos no contrato, a ré estava obrigada ao pagamento de um aluguer mensal de € 600, com reforços de 2.000 nos meses de fevereiro, junho e novembro, e que os alugueres relativos aos meses de junho a dezembro de 2020 e os reforços vencidos em junho e novembro do mesmo ano não foram pagos, totalizando os mesmos a quantia global de € 8.200,00[67], tem a autora direito a receber tal quantia.
3.2.3.4.3. Da cláusula penal
Acresce que igualmente se apurou que nos termos do contrato, nomeadamente a sua cláusula 5ª, a resolução do contrato por facto imutável à locatária conferia à locadora o direito a receber “uma importância igual a 20% da soma das prestações vencidas”.
Esta estipulação contratual configura uma evidente cláusula penal (art. 810º do CC), e tem natureza moratória (art. 811º, nº 2, 2ª parte do CC). Visto que se destina a compensar o dano decorrente da falta de pagamento atempado de prestações previstas no contrato.
Não tendo sido invocada qualquer exceção que obste à procedência desta pretensão indemnizatória, conclui-se pela sua procedência.
Finalmente, e no tocante a prestações previstas no contrato, apurou-se igualmente que este previa a obrigação da locatária suportar as prestações relativas ao contrato de seguro da viatura (cláusula 3ª, al. c) do contrato), e que a ré não pagou os prémios vencidos nos meses de fevereiro de 2020 a novembro de 2011 (inclusive), no valor global de € 957,98[68].
Termos em que também procede esta pretensão indemnizatória.
3.2.3.4.4. Dos prémios de seguro vencidos e não pagos
Previa igualmente o contrato dos autos que a ré deveria suportar os custos decorrentes da contratação e manutenção de um contrato de “seguro contra todos os riscos”[69], e que a autora suportou o pagamento de prémios de seguro no valor de € 957,98, não tendo a ré demonstrado haver reembolsado a autora. Deve, pois, ser condenada a pagar este montante.
3.2.3.4.5 Da reparação do veículo
Estabelece o art. 1038º, al. g) do CC que o locatário está obrigado a “não fazer da coisa uma utilização imprudente”.
Por outro lado estatui o art. 1043º, nº 1 mesmo diploma que “na falta de convenção, o locatário é obrigado a manter e restituir a coisa no estado em que a recebeu, ressalvando as deteriorações inerentes a uma prudente utilização, em conformidade com os fins do contrato.”
Finalmente dispõe o artº 1044º do CC que “o locatário responde pela perda ou deteriorações da coisa, não excetuadas no artigo anterior, salvo se resultarem de causa que lhe não seja imputável nem a terceiro a quem tenha permitido a utilização desta.”
Interpretando esta disposição legal ensinam PIRES DE LIMA E ANTUNES VARELA[70] que “[…]a expressão imputável ao locatário ou a terceiro, usada no artº 1044º, significa apenas devida a facto do locatário ou de terceiro, pois não é necessário que haja culpa do locatário na perda ou deterioração da coisa; basta que elas sejam devidas ao locatário ou a qualquer pessoa a quem ele tenha autorizado a utilização. É uma espécie de responsabilidade objetiva, que tem alguma justificação, quer por ser o locatário quem utiliza a coisa no seu próprio interesse, quer como estímulo legal a uma utilização prudente da coisa que lhe não pertence”
Neste sentido cfr. ac.
- RP 03-03-2011 (Deolinda Varão), p. 3837/06.3TBSTS.P1;
- RG 29-09-2016 (Fernando Fernandes Freitas), p. 88/14.7TBPCR-A.G1;
- RP 14-12-2022 (Ana Paula Amorim), p. 2022/21.7T8VNG.P1
No caso vertente, não se apurou qual a causa da avaria do veículo, razão pela qual não logrou a ré afastar a sua responsabilidade pelo ressarcimento dos danos decorrentes dessa avaria.
Contudo, tal não significa que se deva concluir pela procedência da pretensão indemnizatória formulada com fundamento nestes danos.
Com efeito, foi peticionada a condenação da ré a pagar a quantia que corresponderia ao custo da reparação do veículo, no óbvio pressuposto de que o mesmo seria reparado.
Tratar-se-ia, assim, de ressarcir um dano futuro previsível (art. 564º, nº 2 do CC).
Contudo, e apesar de se ter provado que o veículo dos autos sofreu diversas avarias, nomeadamente por ter partido o turbo e o motor fazer muito barulho[71], que o custo da respetiva reparação, com substituição do turbo e do motor foi calculado em € 14.657,28[72], e que à data da propositura da ação tal veículo não se mostrava reparado[73], igualmente se provou que o mesmo veículo veio a ser vendido[74].
Tendo o veículo sido vendido, é inegável que a autora não incorrerá na despesa relativa à sua reparação.
Pode, pois, concluir-se que dano invocado e cujo ressarcimento foi reclamado, emergente da reparação do veículo não foi sofrido pela autora, nem o será.
Poder-se-ia, objetar que tendo o veículo sido vendido no estado de avariado, a autora sempre sofreu um dano emergente da desvalorização do mesmo. Simplesmente, essa desvalorização consubstancia um dano diverso do invocado, sendo certo que a autora podia ter requerido a alteração do pedido e da causa de pedir com fundamento na ocorrência de um facto superveniente (nos termos previstos nos arts. 265º, ou 588º e 611º do CPC[75]), e não o fez.
Acresce que mesmo nessa circunstância, o dano se consubstanciaria na diferença entre o valor pelo qual o veículo poderia ter sido vendido, caso se encontrasse em bom estado, e o valor pelo qual foi efetivamente vendido. Mas para tanto deveria a autora ter alegado e provado quer o valor pelo qual poderia ter vendido o veículo caso se achasse em bom estado, quer o valor pelo qual efetivamente o vendeu. O que não fez.
Daí a improcedência desta pretensão indemnizatória.
3.2.3.4.6. Das despesas emergentes com o depósito da viatura em oficina
Como já se referiu, no caso em apreço ficou demonstrado que o veículo dos autos sofreu uma avaria que determinou a sua imobilização, e que o mesmo foi depositado em oficina, tendo a autora liquidado as inerentes despesas, no valor global de € 1.845,00.[76]
Não tendo a ré demonstrado que a avaria se deveu a causa imputável à autora, a terceiro, ou motivo de força maior, forçoso é concluir que aquelas despesas lhe são imputáveis, porque resultam da inobservância do dever de manter o veículo em bom estado de funcionamento, conforme expusemos supra[77].
3.2.4. Da responsabilidade do réu
O réu outorgou o contrato de aluguer dos autos na qualidade de fiador, constituindo-se assim na obrigação de cumprir as obrigações emergentes do contrato dos autos e da sua cessação, nos mesmos termos em que a ré se obrigou – art. 627º, nº 1 do CC.
Não obstante, na sua contestação, o réu sustentou que apenas se obrigou a suportar dois alugueres, visto que nos termos da cláusula 4ª do contrato, a ré nunca poderia acumular mais de duas das mencionadas prestações, sob pena de “rescisão” do contrato. Assim, e porque efetivamente liquidou dois alugueres em falta, considera o réu que não tem que garantir qualquer outra obrigação emergente do contrato.[78]
A cláusula 4ª do contrato dos autos tem o seguinte teor:
“Se a Segunda contraente incorrer em atraso relativamente ao pagamento de qualquer obrigação pecuniária decorrente deste contrato, deverá a Segunda contraente ou o Fiador pagar à Primeira contraente ale do respetivo montante e a título de nora uma importância calculada por aplicação ao valor em mora e pelo período em que esta subsistir (…), nunca podendo acumular dois pagamentos em atraso ficando desta forma obrigada a restituir o veículo à Primeira contraente.”[79]
Analisada a cláusula em apreço, afigura-se claro que a interpretação que o réu faz da mesma não é correta.
Com efeito, e apesar de alguma falta de clareza, o que resulta desta cláusula é que a mora relativamente a dois alugueres se converte em incumprimento definitivo e legitima a resolução do contrato por iniciativa da locadora; sem que se possa concluir que nessas condições a mesma teria forçosamente que resolver o contrato.
Por outro lado, nem esta cláusula, nem qualquer outra limitam âmbito da fiança prestada pelo réu. Com efeito, o contrato não tem nenhuma cláusula expressa que determine o âmbito da fiança, resultando a prestação desta da secção inicial do contrato, que contém a identificação das partes e da qual consta que o réu outorga tal contrato na qualidade de fiador. Assim, e na ausência de estipulação específica, há que considerar que a fiança tem a amplitude prevista no regime da fiança constante do Código Civil.
Termos em que se conclui que por força da fiança prestada, deve o réu ser condenado a pagar à autora as quantias apuradas nos pontos precedentes, no valor global de € 12.642,98[80].
3.2.5. Das custas
Nos termos do disposto no art. 527º, nº 1 do CPC, “A decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.”
A interpretação desta disposição legal, no contexto dos recursos, deve atender ao elemento sistemático da interpretação.
Com efeito, o conceito de custas comporta um sentido amplo e um sentido restrito.
No sentido amplo, as custas tal conceito inclui a taxa de justiça, os encargos e as custas de parte (cf. arts. 529º, nº1, do CPC e 3º, nº1, do RCP).
Já em sentido restrito, as custas são sinónimo de taxa de justiça, sendo esta devida pelo impulso do processo, seja em que instância for (arts. 529º, nº 2 e 642º, do CPC e 1º, nº 1, e 6º, nºs 2, 5 e 6 do RCP).
O pagamento da taxa de justiça não se correlaciona com o decaimento da parte, mas sim com o impulso do processo (vd. arts. 529º, nº 2, e 530º, nº 1, do CPC). Por isso é devido quer na 1ª instância, quer na Relação, quer no STJ.
Assim sendo, a condenação em custas a que se reportam os arts. 527º, 607º, nº 6, e 663º, nº 2, do CPC, só respeita aos encargos, quando devidos (arts. 532º do CPC e 16º, 20º e 24º, nº 2, do RCP), e às custas de parte (arts. 533º do CPC e 25º e 26º do RCP).
Tecidas estas considerações, resta aplicar o preceito supracitado.
E fazendo-o, diremos que no caso em apreço, a ação improcede totalmente no que respeita ao autor, e bem assim parcialmente quanto à autora, no que respeita à quantia de € 14.657,28.[81]
Assim sendo, as custas devem ficar a cargo de autores e réus na proporção dos respetivos decaimentos. Tais decaimentos devem ser determinados em função da diferença entre o valor do pedido e o da condenação.
Não sendo, contudo, possível quantificar tal decaimento, entendemos adequado repartir a responsabilidade tributária por autores e réus, em partes iguais.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes nesta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a presente apelação parcialmente procedente, alterando a sentença apelada, e julgando a presente ação parcialmente procedente, nos seguintes termos:
a) Condenando os réus a pagar à autora a quantia de € 12.642,98;
b) Absolvendo os réus do demais peticionado.
Custas por autores e réus em partes iguais.
Lisboa, 17 de junho de 2025 [82]
Diogo Ravara
José Capacete
Edgar Taborda Lopes
_______________________________________________________ [1] Titular do nº de identificação civil … 75, e do nº de identificação fiscal … 24. [2] Titular do nº de identificação civil … 26, e do nº de identificação fiscal … 05. [3] Titular do nº de identificação civil … 39, e do nº de identificação fiscal … 53. [4] Titular do nº de identificação civil … 51, e do nº de identificação fiscal … 75. [5] Vd. arts. 45º a 50º da petição inicial. [6] Neste sentido cfr. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 114-117 [7] Vd. Abrantes Geraldes, ob. cit., p. 119 [8] Suprimimos as referências a meios de prova, constantes da parte final de diversos pontos de facto, porquanto as mesmas nada têm que ver com factos, mas antes com a motivação da decisão sobre matéria de facto. O local próprio para as mencionar é, pois, na referida motivação, e não no enunciado de factos provados. [9] A sentença recorrida não organizou o elenco de factos não provados por números ou alíneas. Por considerarmos que tal omissão dificulta a apreciação do presente recurso, organizámos o referido elenco por alíneas. [10] Cfr. conclusões 62 a 71. [11] Que regulam as matérias da nulidade de todo o processado decorrente da ineptidão da petição inicial – art. 186º; a falta de citação – arts. 187º a 190º; a nulidade da citação – art. 191º; o erro na forma de processo – art. 193º; e a falta de vista ou exame ao Ministério Público como parte acessória – art. 194º. [12] Podendo as partes recorrer da decisão que decidir o incidente de arguição de nulidades, se em função do valor da causa, essa decisão for recorrível – cfr. art. 629º do CPC. [13]”Comentário ao Código de Processo Civil”, vol. 2º, Coimbra Editora, 1945, pp. 507-508. Em sentido idêntico cfr. do mesmo autor, “Código de Processo Civil Anotado”, volume 1º, 3ª Ed. (reimpressão), Coimbra Editora, 2012, p. 381. [14]“Noções Elementares de Processo Civil”, Reimpressão, Coimbra Editora, 1993, p. 183. [15]“Manual de processo civil”, Coimbra Editora, 2ª Ed., 1985, p. 393. [16]“Direito Processual Civil Declaratório”, Vol. III, Almedina, 1982, p. 134. [17] Incluem-se nesta categoria os seguintes meios de prova: depoimentos de testemunhas, depoimentos de parte, declarações de parte, esclarecimentos de peritos, esclarecimentos prestados pelas partes. [18]“Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5ª Edição, Almedina, 2018, pp. 165-166. [19] Cfr. ponto B.3) da motivação do recurso e conclusões 11 a 13. [20] Tal como o foi o doc. nº 21 junto com a petição inicial. [21] Identificável através do nº do quadro referido em tal documento, que corresponde ao que consta da cópia do documento único automóvel do mesmo veículo – doc. 1 junto com a petição inicial. [22] Deste documento consta igualmente que se tratava de revisão prevista para os 68000 km ou que deveria ter lugar depois de passados desde 48 meses desde a anterior revisão, e que nessa altura o mesmo contava com 84.496 km, tendo a anterior revisão tido lugar em 27-04-2017, quando o mesmo veículo tinha 47.399 km. Estas informações permitem dissipar as dúvidas manifestadas pelo Tribunal a quo relativamente à quilometragem do veículo e à sequência das revisões feitas ao mesmo. [23]“Prova por presunção no Direito Civil”, 4ª ed., Almedina, 2023, p. 112 [24]“Tratado de Derecho Procesal Civil”, tomo II, tradução espanhola de Angela Romera Vera, 1995. [25]“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. III, 4ª ed., pp. 206-209. [26]“Introdução ao estudo do Direito”, 2ª ed., AAFDL Editora, 2024, p. 250. [27]“Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2018, p.796. [28]“Recursos no novo Código de Processo Civil”, 5ª Ed., Almedina, 2018, pp. 286-289 [29] Vd. ata com a refª 139445103, de 13-09-2022. [30] Vd. art. 46º da petição inicial. [31] Alterado DL 207/2015, de 24-09, pela Declaração de retificação 46/2015, de 16-10; e pelo DL 47/2018, de 20-06. [32] Cfr. pontos 2 a 5 dos factos provados. [33] Ponto 20 dos factos provados. [34] Ponto 10 dos factos provados. [35] Cfr., desde logo, a epígrafe do preceito que equipara a perda do interesse à recusa do cumprimento, embora o texto do preceito não contenha qualquer referência à hipótese de recusa da prestação devida. [36]Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 118º, p. 54. [37] Acentuado nosso. [38] “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, in Obra Dispersa, Vol. I, Scientia Ivridica, Braga, 2001, p. 162. [39] Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 128, pp. 136-138. [40] Fica, por isso, prejudicada a apreciação da contra-exceção de abuso do direito, invocada pelos autores (art. 608º. Nº 2, 2ª proposição, do CPC, aplicável ex vi do art. 663º, nº 2 do mesmo código). [41]“A resolução do contrato sem fundamento”, Teses, Almedina, 2015. Vd. tb., da mesma autora, “Os efeitos da resolução infundada por incumprimento do contrato”, disponível em https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&cad=rja&uact=8&ved=2ahUKEwiGtOXe66n1AhUPFRQKHUexCxg4ChAWegQICxAB&url=https%3A%2F%2Frun.unl.pt%2Fbitstream%2F10362%2F18555%2F1%2FFarrajota_2013.pdf&usg=AOvVaw2abKz1ixygo5-EhyfN4Qjl [42] “Contrato-Promessa: Resolução Ilegítima e Recusa Terminante em Cumprir; Mora como Fundamento de Resolução; Perda de Interesse do Credor na Prestação; Possibilidade de Desvinculação com Fundamento em Justa Causa; “Concurso de Culpas” no Incumprimento; Redução da Indemnização pelo Sinal”, in Direito e Justiça, XIV, 2000, I, pp. 316 a 333. [43]“Da Cessação do Contrato”, 2.ª ed., Almedina, 2006, p. 75. [44] “Da Cessação…” cit. p. 221. [45]“Da cessação…” pp. 221 ss. [46] “Direito Comercial. Contratos de Distribuição Comercial#, 3.ª Reimp. da ed. de 2001, Almedina, 2009, pp. 149 e ss. e “Contrato de Agência. Anotação”, 7.ª ed., Almedina, 2010, pp. 134 e ss. [47]Contrato…cit., p. 138. [48]“É possível impedir judicialmente a resolução de um contrato?”, Estudos Comemorativos dos 10 Anos da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Vol. II, Almedina, 2008, p. 63. [49] “Do incumprimento do contrato de promessa bilateral: a dualidade: execução específica – Resolução”, Separata do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1987, p. 89. [50]“Teoria Geral do Direito Civil”, 6.ª Edição, Almedina, 2010, p. 773. [51]“Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo”, Vol. II, Coimbra Editora, 2009, p. 1675, nota de rodapé n.º 4861. [52]“Pressupostos da resolução por incumprimento”, Obra Dispersa, Vol. I, Scientia Juridica, 1991, pp. 130 e 131. [53] Anotação ao acórdão de 08.11.1983, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 118, p. 275, nota de rodapé n.º 2. [54] Joana Farrajota, “A Resolução…” cit., pp. 49-55. [55] Veja-se, a título de exemplo, o Acórdão do STJ de 13.12.2007 (proc. n.º 07A2378, disponível em www.dgsi.pt), onde a propósito da verificação de ausência de fundamento resolutivo de um contrato promessa de compra e venda se afirma: «[e] só a ocorrência efectiva – e objectiva – da perda de interesse é que é geradora do direito potestativo à resolução do contrato. Conclui-se, assim, que os recorrentes não resolveram validamente o contrato promessa de compra e venda, e que os recorridos não se colocaram em situação de incumprimento». [56] Inocêncio Galvão Telles, “Manual dos Contratos em Geral (refundido e atualizado)”, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2002, p. 357. [57] «Para este Autor, “(...) a expressão ‘negócio jurídico nulo’ (ainda que conveniente e universalmente usada) é uma contradição nos próprios termos, porque, seja qual for o fundamento e a natureza que ao negócio se atribuam, ele só é concebível como instituto jurídico diferenciado, se existir uma relação adequada entre os efeitos que o acto produz e algo que os faça gerar (...)”» - Carlos Ferreira de Almeida, “Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico”, Vol. I, Almedina, 1992, pp. 218 e 219. [58] O destacado a negrito é da nossa autoria. [59] Joana Farrajota, “A Resolução…” cit., pp. 185-188. [60] Ponto 23 dos factos provados. [61] Vd. ponto 16 dos factos provados. [62]“Uma «terceira via» no Direito da Responsabilidade Civil?”, Almedina, 1997, página 15. [63]“Responsabilidade Civil”, 2ª edição, Quid Juris, 2009, páginas 14-15. [64] Cfr., ALMEIDA COSTA, ob. cit., pp. 760 ss. [65] Cfr. NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, “Tópicos sobre a distinção entre a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual”, in Estudos em comemoração dos vinte anos da Escola de Direito da Universidade do Minho, Coimbra Editora, 2014, pp. 513-526; e FILIPE ALBUQUERQUE MATOS, “Traços distintivos e sinais e contacto entre os regimes da responsabilidade civil contratual e extracontratual. O caso particular da responsabilidade civil médica [II]”, in Lex Medicinae. Revista portuguesa de direito da saúde, ano 12.º, 2015, pp. 25-54). [66] Arts. 45º a 50º dos factos provados. [67] Pontos 3 e 23 dos factos provados. [68] Ponto 24 dos factos provados. [69] Ponto 4, al. c), e 24 dos factos provados. [70] Código Civil Anotado, Coimbra Editora, [71] Pontos 20 e 21 dos factos provados. [72] Ponto 27 dos factos provados. [73] Ponto 22 dos factos provados. [74] Ponto 29 dos factos provados [75] Neste sentido cfr. ac. RL 09-04-2024 (Diogo Ravara), p. 96/20.9TNLSB-A.L1-7, relatado pelo ora relator. [76] Ponto 16 dos factos provados. [77] Vd. ponto 3.3.2.3.. [78] Vd. arts. 8º a 14º da contestação. [79] Sendo que a “Primeira contraente” é a autora, a “Segunda contraente” é a ré, e o Fiador é o réu. [80] 8.200,00 + 1.640,00 + 957,98 + 1.845,00 = 12.642,98 [81] Sustentando solução oposta, cfr. SALVADOR DA COSTA, Blog do IPPC, entradas de 25-01-2019 e de 04-04-2019. [82]Acórdão assinado digitalmente – cfr. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.