LIVRANÇA EM BRANCO
AVAL
PLANO DE INSOLVÊNCIA
OPONIBILIDADE
MORATÓRIA
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
Sumário

Sumário (cf. nº 7, do art.º 663º, do CPC):
I. A subscrição de uma “livrança em branco” encontra expressa previsão legal no art.º 10º da LULL (aplicável às livranças ex vi do art. 77º do mesmo diploma), que admite como válida uma letra (livrança) incompleta no momento em que é emitida, desde que venha a ser completada, de modo que para ficar cambiariamente obrigado, bastou que o requerido/apelado tivesse aposto a respetiva assinatura em documentos em que se assume como avalista das livranças, mesmo estando estas em branco.
II. A obrigação do avalista é uma obrigação materialmente autónoma, ainda que formalmente dependente da do avalizado, pois o avalista responsabiliza-se pela pessoa que avaliza, assumindo a responsabilidade, abstrata e objetiva, pelo pagamento da quantia titulada na letra ou livrança (mantendo-se mesmo que seja nula a obrigação garantida, salvo se a nulidade desta provier de um vício de forma – art.º 32 da LULL).
III. A autonomia da obrigação do avalista está conforme e harmoniza-se com o preceituado no art.º 217º, n.º 4, do CIRE.
IV. Uma vez declarada a insolvência, a exigibilidade da dívida decorrente do art.º 91º, n.º 1 do CIRE, legitima o credor a preencher o título cambiário, devendo fazê-lo pelo valor que estiver em dívida em tal momento, respeitando o acordo de preenchimento.
V. Se só o fizer depois da aprovação de um plano de insolvência que altere o conteúdo da obrigação fundamental (montante/prazos/modos de pagamento), face à redação do art.º 217º, 4 do CIRE, que estabelece que as alterações introduzidas pelo plano de insolvência não afetam nem a existência nem o montante do direito do credor contra o garante, não se mostra possível sustentar, em regra, que o credor garantido está obrigado a respeitá-lo em relação ao avalista.
VI. À data do incumprimento ou vencimento, nos termos do art.º 91º, 1 CIRE, o crédito garantido tinha um determinado conteúdo e, é esse conteúdo da relação fundamental originária que vai determinar o preenchimento do título, independentemente de esse conteúdo, relativamente ao devedor insolvente (o devedor garantido), vir posteriormente a ser reconfigurado no plano de insolvência por força de redução, perdão ou moratória.
VII. A previsão do art.º 217.º, n.º 4, do CIRE aplica-se igualmente à modificação dos prazos de cumprimento ou concessão de moratórias de pagamento, por se entender que existe uma «identidade de razão» entre estas situações e aquelas expressamente previstas na norma, assim se aplicando extensivamente, nestas situações, o artigo 217.º, n.º 4, do CIRE.
VIII. O portador da letra ou livrança pode sempre exercer o seu direito de ação contra qualquer obrigado cambiário, reclamando o seu pagamento (arts.º 43.º a 48.º da LULL, aplicável ex vi do art.º 77.º do mesmo diploma), não podendo o credor ser limitado no seu direito de acionar de imediato o avalista desde que haja incumprimento do pagamento por parte do devedor principal, mesmo que, como no caso, se encontre abrangido por um plano de insolvência.
IX. O que verdadeiramente releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciem a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.
X. No caso, o elevado montante das obrigações já vencidas e a sua natureza, e a ausência demonstrada de quaisquer rendimentos, ativos financeiros ou possibilidade de recurso a crédito, apenas permitem a conclusão de que o não cumprimento da dívida assente nos autos é revelador da situação de penúria e de impossibilidade, atual, de o apelado satisfazer pontualmente as suas obrigações por falta de liquidez para satisfazer a totalidade das dívidas vencidas.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
BANCO COMERCIAL PORTUGUÊS, S.A., com sede na Praça D. João I, 28, Porto, pessoa coletiva com o número único de matrícula e de pessoa coletiva 501525882, intentou a presente ação declarativa com processo especial, requerendo a declaração de insolvência de A …, casado, contribuinte fiscal n.º … 43, residente na Rua … … …, n.º …, 1400-… Lisboa.
Alegou, para tanto e em síntese que: é credor do requerido, no montante de € 1.219.945,00€, relativo a incumprimento das obrigações emergentes de Contratos de Cessão Pontual de Créditos com Recurso, de Contratos de Locação Financeira Mobiliária, de Locação Financeira e de um Acordo de Represtinação celebrado com a V.C. – VALENTIM DE CARVALHO AUDIOVISUAIS, S.A., e com o GRUPO VALENTIM DE CARVALHO SOM E IMAGEM SGPS, S.A., que levou ao subsequente preenchimento da livrança de caução avalizada pelo Requerido e, ainda, que o Requerido é titular de conta de depósito, aberta junto BCP, que regista um valor de descoberto de 2.234,90€; que é credora do valor de 12.500€, enquanto crédito comum sobre condição, emergente da garantia prestada pelo Requerido – através de aval - a favor da Sociedade Portuguesa de Autores, destinada a garantir os termos do contrato IFPI/BIEM para a indústria fonográfica. Mais alegou que no âmbito de acionamento da garantia dos contratos de crédito e de locação financeira mobiliária o Requerido foi sempre interpelado para o pagamento da dívida. Finalmente, que os créditos sobre o Requerido encontram-se integralmente vencidos e que o Requerido se encontra impossibilitado de satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, pelas circunstâncias e montante do incumprimento, o que é indício da sua situação de insolvência.
Regularmente citado, o requerido deduziu oposição alegando que:  os créditos que o Requerente se arroga ainda não se encontram vencidos, uma vez que a sociedade V.C. – Filmes e Audiovisuais foi objeto de um plano de insolvência, o qual consagra os créditos da Requerente, não se encontrando nenhum deles vencido (vencendo-se a primeira prestação a 05-04-2025) e que relativamente ao contrato de locação financeira celebrado com o Grupo Valentim de Carvalho SGPS a primeira renda vence-se em 01-04-2025. Mais alega que o preenchimento das livranças, por parte da Requerente, foi efetuado posteriormente ao trânsito em julgado da decisão de homologação do Plano de Insolvência. Finalmente, que o Requerido, que dispõe de património suficiente para solver as suas responsabilidades junto da Requerente, detendo participações sociais no valor de 1.511.500€, sendo ainda titular de direito de crédito sobre a VC – Fonogramas e Videogramas S.A., a título de suprimentos, no valor de 3.102.758€, mais explicando que as dívidas que tem relativamente à AT e SS são reversões efetuadas nos termos do disposto no artigo 23.º da Lei Geral Tributária, pugnando pela não verificação dos pressupostos legais dos quais depende a declaração da sua insolvência.
Termina pedindo a improcedência da ação e a absolvição do pedido de declaração de insolvência.

Em audiência de julgamento, com início em 5.03.2025, foi proferido despacho que fixou o valor da causa, fixou o objeto do litígio e enunciou os temas da prova.
Por sentença proferida em 19.03.2025 (ref. n.º 443510962) a ação foi julgada improcedente e, em consequência, foi o réu absolvido do pedido.
Não se conformando, o requerente recorreu da sentença, apresentando alegações com as seguintes conclusões:
A) …
B) Conforme decorre dos documentos juntos aos autos, o Requerido constitui-se avalista nos contratos dos autos.
C) Decorre da lei, e, é comumente aceite pela N/ Jurisprudência que as medidas adotadas num Plano de Insolvência, não se estendem aos avalistas/garantes do devedor.
D) O Recorrente tem o direito de exigir imediatamente aos avalistas, e, neste caso, ao Recorrido, o pagamento de todos os montantes que lhe forem devidos, mas não está obrigado, uma vez que não se trata de uma obrigação, mas, de um direito, - exigir o pagamento dos montantes devidos.
E) Independentemente do que foi negociado no plano, o credor, aqui Recorrente, mantém intocados os direitos de que dispõe contra os terceiros avalistas podendo exigir deles aquilo a que estavam obrigados, designadamente mediante o preenchimento das livranças que tinha na sua posse.
F) O que carateriza essencialmente o estado de insolvência é a impossibilidade de o devedor solver os seus compromissos (art.º 3.º n.º 1 do CIRE).
G) O que releva é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.
H) Dos factos provados alínea 33), consta a identificação dos cinco principais credores do Requerido, (excetuando o Recorrente), natureza e montante dos créditos em causa, conforme relação junta aos autos pelo Requerido, aquando da sua oposição.
I) Ao deduzir a sua “CONTESTAÇÃO”, apresentada em 17/01/2025, referência … 27, o Requerido não invocou quaisquer exceções dilatórias ou a inexistência do crédito que o aqui Recorrente se avoca para fundamentar a sua legitimidade.
J) É comumente aceite pela N/ Jurisprudência e Doutrina que a impossibilidade de cumprimento não tem de abranger todas as obrigações assumidas pelo Devedor e vencidas.
K) O Requerido não demonstrou nos autos a inexistência da sua situação de insolvência, não demonstrou que detém liquidez suficiente para cumprir as obrigações vencidas.
L) A única questão levantada na sua CONTESTAÇÃO, resulta do Requerido entender que, pelo facto do Plano de Insolvência da “V C Valentim de Carvalho – Filmes, Audiovisuais, SA”, ter sido aprovado e homologado, por sentença transitada em julgado em 05/07/2024, no âmbito do Pº …/…-…T8SNT, que correu termos no Juiz … do Juízo do Comércio de Sintra, as responsabilidades, por si assumidas, não se encontram vencidas.
M) Sendo certo, que no âmbito da referida insolvência, os créditos reclamados pelo aqui Recorrente, não foram colocados em causa pelo aqui Recorrido, seu avalista.
N) Sublinha-se, também, que, e, no que respeita ao incumprimento do contrato de locação financeira LEA … 70, (cfr. DOC 15 junto aos autos pelo Requerente), referente ao acordo celebrado pelo aqui Recorrente com o “GRUPO VALENTIM DE CARVALHO SOM E IMAGEM SGPS, S.A. (“designado nos artigos 6.º e 57.º e seguintes da petição inicial por “GRUPO VALENTIM DE CARVALHO”, este contrato nada tem a ver com a sociedade insolvente “V C Valentim de Carvalho – Filmes, Audiovisuais, SA”.
O) O Requerido não apresentou qualquer contraditório, sobre este contrato, na sua “CONTESTAÇÃO”, apresentada em 17/01/2025, referência … 27.
P) A única questão levantada na sua “CONTESTAÇÃO”, respeita ao facto do Requerido entender que devido à existência de um plano de insolvência referente à sociedade “V C Valentim de Carvalho – Filmes, Audiovisuais, SA”, o Requerente não poderia preencher as livranças em seu poder.
Q) Entendimento, que veio também a ser sufragado, no âmbito da sentença recorrida, o que salvo o devido respeito que é muito, se entende ser, no presente caso, uma incorreta interpretação da lei.
R) É também entendimento da sentença recorrida que, tendo o Plano de Insolvência da sociedade “V C Valentim de Carvalho – Filmes, Audiovisuais, SA”, sido aprovado e homologado, por sentença transitada em julgado em 05/07/2024, as obrigações não se encontram vencidas.
S) O incumprimento das obrigações dos autos, é anterior ao estado de insolvência da sociedade “V C Valentim de Carvalho – Filmes, Audiovisuais, SA”, mas, mesmo que assim não fosse, o que apenas se admite por dever de patrocínio, mesmo nesse caso, no domínio do direito cambiário, e como resulta de forma clara dos normativos legais, da N/ Doutrina e da N/ Jurisprudência, com sua a declaração de insolvência, todas as obrigações da sociedade devedora se venceram.
T) A obrigação do avalista é imune a alterações introduzidas por via contratual na obrigação da obrigação subjacente, ainda que tenham sido aceites ou impostas em sede de aprovação de um plano de insolvência.
U) Pelo que, salvo o devido respeito, não andou bem o Tribunal Recorrido, ao entender que o preenchimento das livranças foi abusivo e que o Requerido não se encontrava em situação de insolvência.
V) Pelo exposto, salvo melhor opinião e com o devido respeito que é muito, não pode o Recorrente sufragar o entendimento e a fundamentação da sentença recorrida, que “julgou a ação integralmente improcedente, absolvendo o Requerido A … do pedido de declaração de insolvência contra si formulado.”
W) Foram violados, a título de exemplo, os art.º 3.º, n.º 1, 20.º, 91.º, 217.º n.º 4, do CIRE, 30.º, 31,º32.º, 43.º a 48.º, 75.º, 77.º, 78.º, da LULL.

Foram apresentadas contra-alegações pelo requerido/apelado, que conclui pedindo que seja declarada a improcedência do recurso (ref. n.º 42675873).
O recurso foi devidamente admitido.

Recebida a apelação, foram os autos aos vistos das Meritíssimas Juízas Adjuntas.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II. Do Objeto do recurso:
O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Cód. do Proc. Civil.
A questão a decidir é a seguinte:
- em primeira linha, a existência do crédito invocado pelo apelante e, em segunda linha, a verificação dos pressupostos para a declaração de insolvência do requerido.
*
III. Fundamentação
De Facto
Foram os seguintes os factos julgados provados em primeira instância:
1) Entre o Banco Requerente e a sociedade V.C. – Valentim de Carvalho Filmes Audiovisuais S.A. foi celebrado, a 11-08-2021 um acordo denominado “Contrato de Cessão Pontual de Créditos com Recurso” (FACT … 99), regido, entre outras, pelas seguintes condições gerais:
“1. IDENTIFICAÇÃO DOS CRÉDITOS
1. O CLIENTE [V.C. – Valentim de Carvalho] é titular de créditos no valor indicado nas CONDIÇÕES PARTICULARES sobre as entidades (…) discriminadas na relação dos créditos que constitui o Anexo I ao presente contrato.
2. CESSÃO DOS CRÉDITOS
1. Pelo presente contrato, o CLIENTE cede ao BANCO os créditos referidos na cláusula anterior.
2. A cessão ora acordada abrange todos os acessórios e garantias dos créditos cedidos, incluindo o direito a juros sobre os mesmos.
3. O CLIENTE declara que os créditos cedidos estão livres de ónus ou encargos, não havendo, designadamente, quais impedimentos à sua cessão.
E condições particulares:
2. Valor nominal dos créditos: 1.076.250,00€
(…)
5. O preço dos créditos cedidos é de 1.076.250,00€ e é pago da seguinte forma:
a) 861.000,00€, em 13-08-2021
b) O remanescente, no valor de 215.250,00€, se e na medida em que o Banco venha a receber quantias de montante superior ao valor confirmados pelos Devedores.
(…)
10. GARANTIAS:
10.1 Livrança “em branco” a favor do BANCO, subscrita pelo CLIENTE e avalizada por B … NIF … 59 e A … NIF … 43, destinada a titular as responsabilidades do CLIENTE perante o BANCO resultantes deste contrato e que pode ser preenchida e apresentada a pagamento em caso de incumprimento pelo CLIENTE de qualquer obrigação emergente deste contrato.
O BANCO fica autorizado a, através de qualquer um dos seus funcionários completar o documento em causa, nomeadamente pelo que toca à sua data de emissão, local de pagamento, data de vencimento e ao seu valor, o qual corresponderá ao valor das responsabilidades do CLIENTE perante o BANCO na data de preenchimento, correspondente ao limite global de adiantamento de fundos a conceder ao ADERENTE constante do clausulado (Condições Particulares) deste Contrato, a que acrescem os juros remuneratórios e moratórios que eventualmente venham a ser devidos, comissões e demais encargos com a selagem em caso de incumprimento – cfr. documento 1, junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
2) O escrito aludido em 1) tem assinaturas apostas sobre os carimbos do Banco Comercial Português, S.A. e da V.C. – Valentim de Carvalho Filmes Audiovisuais S.A. e sob os nomes dos aí identificados como avalistas B … e A ….
3) O Requerido A … apôs a sua assinatura no verso da livrança nº … 25 sob os dizeres “bom por aval à firma subscritora”, surgindo identificada como tal a sociedade V.C. – Valentim de Carvalho Filmes Audiovisuais S.A. – cfr. documento 3, junto com a petição inicial cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
4) O Banco Requerente preencheu a indicada livrança com a data de vencimento de 10-07-2024 ao lado da referência ao contrato nº … 99, pelo montante de € 193.725,00€ – cfr. documento 3, com a petição inicial cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
5) Em 20-06-2024 a Requerente enviou uma carta dirigida ao Requerido, tendo por referência o acordo descrito em 1), com o seguinte teor:
Assunto: Resolução do contrato – Contrato de Factoring FAC … 99 (…)
Não tendo sido saldadas até ao presente as situações de mora e/ou incumprimento verificadas no contrato identificado em assunto, apesar das diversas interpelações efetuadas pelo Banco para cumprimentos dessas situações, o Banco Comercial Português, S.A. vem, pela presente, informar que, nesta data foi efetuado o preenchimento da livrança de caução em branco para o efeito avalizada por V. Exa. e subscrita por VC VALENTIM CARVALHO FILMES AUDIOVI SA.
Nesta conformidade e nos termos do acordo de preenchimento constante do aludido contrato, informamos que a mesma se encontra a pagamento na morada abaixo indicada com vencimento fixado para o próximo dia 10 de julho de 2024 pelo montante de 233.011,74€ (…).
6) A indicada livrança referida em 3) não foi paga, nem na data do seu vencimento, nem posteriormente.
7) Entre o Banco Requerente e a sociedade V.C. – Valentim de Carvalho Filmes Audiovisuais S.A. foi celebrado, a 07-01-2022, um denominado “Contrato de Cessão Pontual de Créditos com Recurso” (FAC … 94), regido, entre outras, pelas seguintes condições gerais:
“1. IDENTIFICAÇÃO DOS CRÉDITOS
1. O CLIENTE [V.C. – Valentim de Carvalho Filmes Audiovisuais S.A] é titular de créditos no valor indicado nas CONDIÇÕES PARTICULARES sobre as entidades (…) discriminadas na relação dos créditos que constitui o Anexo I ao presente contrato.
2. CESSÃO DOS CRÉDITOS
1. Pelo presente contrato, o CLIENTE cede ao BANCO os créditos referidos na cláusula anterior.
2. A cessão ora acordada abrange todos os acessórios e garantias dos créditos cedidos, incluindo o direito a juros sobre os mesmos.
3. O CLIENTE declara que os créditos cedidos estão livres de ónus ou encargos, não havendo, designadamente, quais impedimentos à sua cessão.
E condições particulares:
2. Valor nominal dos créditos: 350.550,00€
(…)
5. O preço dos créditos cedidos é de 350.550,00€ e é pago da seguinte forma:
a) 280.440,00€, em 07-01-2022;
b) O remanescente, no valor de 70.110,00€, se e na medida em que o Banco venha a receber quantias de montante superior ao valor confirmados pelos
Devedores.
(…)
9. GARANTIAS:
9.1 Livrança “em branco” a favor do BANCO, subscrita pelo CLIENTE e avalizada por B … NIF … 59 e A … NIF … 43, destinada a titular as responsabilidades do CLIENTE perante o BANCO resultantes deste contrato e que pode ser preenchida e apresentada a pagamento em caso de incumprimento pelo CLIENTE de qualquer obrigação emergente deste contrato.
O BANCO fica autorizado a, através de qualquer um dos seus funcionários completar o documento em causa, nomeadamente pelo que toca à sua data de emissão, local de pagamento, data de vencimento e ao seu valor, o qual corresponderá ao valor das responsabilidades do CLIENTE perante o BANCO na data de preenchimento, correspondente ao limite global de adiantamento de fundos a conceder ao ADERENTE constante do clausulado (Condições Particulares) deste Contrato, a que acrescem os juros remuneratórios e moratórios que eventualmente venham a ser devidos, comissões e demais encargos com a selagem em caso de incumprimento – cfr. documento 4, junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
8) O escrito aludido em 7) tem assinaturas apostas sobre os carimbos do Banco Comercial Português, S.A. e da V.C. – Valentim de Carvalho Filmes Audiovisuais S.A. e sob os nomes dos aí identificados como avalistas B … e A ….
9) O Requerido A … apôs a sua assinatura no verso da livrança nº … 17 sob os dizeres “bom por aval à firma subscritora”, surgindo identificada como tal a sociedade V.C. – Valentim de Carvalho Filmes Audiovisuais S.A. – cfr. documento 6, junto com a petição inicial cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
10) O Banco Requerente preencheu a indicada livrança com a data de vencimento de 10-07-2024 ao lado da referência ao contrato nº … 94, pelo montante de € 386.763,47€ – cfr. documento 6, junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
11) Em 20-06-2024 a Requerente enviou uma carta dirigida ao Requerido, tendo por referência o acordo descrito em 7), com o seguinte teor:
Assunto: Resolução do contrato – Contrato de Factoring FAC … 94 (…)
Não tendo sido sanadas até ao presente as situações de mora e/ou incumprimento verificadas no contrato identificado em assunto, apesar das diversas interpelações efetuadas pelo Banco para cumprimentos dessas situações, o Banco Comercial Português, S.A. vem, pela presente, informar que, nesta data foi efetuado o preenchimento da livrança de caução em branco para o efeito avalizada por V. Exa. e subscrita por VC VALENTIM CARVALHO FILMES AUDIOVI SA.
Nesta conformidade e nos termos do acordo de preenchimento constante do aludido contrato, informamos que a mesma se encontra a pagamento na morada abaixo indicada com vencimento fixado para o próximo dia 10 de julho de 2024 pelo montante de 233.011,74€ (…).
12) A indicada livrança referida em 9) não foi paga, nem na data do seu vencimento, nem posteriormente.
13) Entre o Banco Requerente e a sociedade V.C. – Valentim de Carvalho Filmes Audiovisuais S.A. foi celebrado, a 22-03-2022, um denominado “Contrato de Cessão Pontual de Créditos com Recurso” (FAC … 32), regido, entre outras, pelas seguintes condições gerais:
“1. IDENTIFICAÇÃO DOS CRÉDITOS
1. O CLIENTE [V.C. – Valentim de Carvalho Filmes Audiovisuais S.A] é titular de créditos no valor indicado nas CONDIÇÕES PARTICULARES sobre as entidades (…) discriminadas na relação dos créditos que constitui o Anexo I ao presente contrato.
2. CESSÃO DOS CRÉDITOS
1. Pelo presente contrato, o CLIENTE cede ao BANCO os créditos referidos na cláusula anterior.
2. A cessão ora acordada abrange todos os acessórios e garantias dos créditos cedidos, incluindo o direito a juros sobre os mesmos.
3. O CLIENTE declara que os créditos cedidos estão livres de ónus ou encargos, não havendo, designadamente, quais impedimentos à sua cessão.
E condições particulares:
2. Valor nominal dos créditos: 350.550,00€
(…)
5. O preço dos créditos cedidos é de 1.076.250,00€ e é pago da seguinte
forma:
a) 861.000,00€, em 23-03-2022;
b) O remanescente, no valor de 215.250,00€, se e na medida em que o Banco venha a receber quantias de montante superior ao valor confirmados pelos Devedores.
(…)
9. GARANTIAS:
9.1 Livrança “em branco” a favor do BANCO, subscrita pelo CLIENTE e avalizada por B … NIF … 59 e A … NIF … 43, destinada a titular as responsabilidades do CLIENTE perante o BANCO resultantes deste contrato e que pode ser preenchida e apresentada a pagamento em caso de incumprimento pelo CLIENTE de qualquer obrigação emergente deste contrato.
O BANCO fica autorizado a, através de qualquer um dos seus funcionários completar o documento em causa, nomeadamente pelo que toca à sua data de emissão, local de pagamento, data de vencimento e ao seu valor, o qual corresponderá ao valor das responsabilidades do CLIENTE perante o BANCO na data de preenchimento, correspondente ao limite global de adiantamento de fundos a conceder ao ADERENTE constante do clausulado (Condições Particulares) deste Contrato, a que acrescem os juros remuneratórios e moratórios que eventualmente venham a ser devidos, comissões e demais encargos com a selagem em caso de incumprimento – cfr. documento 7, junto com a petição inicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
14) O escrito aludido em 13) tem assinaturas apostas sobre os carimbos do Banco Comercial Português, S.A. e da V.C. – Valentim de Carvalho Filmes Audiovisuais S.A. e sob os nomes dos aí identificados como avalistas B … e A ….
15) O Requerido A … apôs a sua assinatura no verso da livrança nº … 81 sob os dizeres “bom por aval à firma subscritora”, surgindo identificada como tal a sociedade V.C. – Valentim de Carvalho Filmes Audiovisuais S.A. – cfr. documento 9, junto com a petição inicial cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
16) O Banco Requerente preencheu a indicada livrança com a data de vencimento de 10-07-2024 ao lado da referência ao contrato nº … 32, pelo montante de 75.654,70€ – cfr. documento 9, junto com a petição inicial cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
17) Em 20-06-2024 a Requerente enviou uma carta dirigida ao Requerido, tendo por referência o acordo descrito em 13), com o seguinte teor:
Assunto: Resolução do contrato – Contrato de Factoring FAC … 32 (…)
Não tendo sido sanadas até ao presente as situações de mora e/ou incumprimento verificadas no contrato identificado em assunto, apesar das diversas interpelações efetuadas pelo Banco para cumprimentos dessas situações, o Banco Comercial Português, S.A. vem, pela presente, informar que, nesta data foi efetuado o preenchimento da livrança de caução em branco para o efeito avalizada por V. Exa. e subscrita por VC VALENTIM CARVALHO FILMES AUDIOVI SA.
Nesta conformidade e nos termos do acordo de preenchimento constante do aludido contrato, informamos que a mesma se encontra a pagamento na morada abaixo indicada com vencimento fixado para o próximo dia 10 de julho de 2024 pelo montante de 75.654,70€ (…).
18) A indicada livrança referida em 15) não foi paga, nem na data do seu vencimento, nem posteriormente.
19) Entre o Banco Requerente e a sociedade V.C. – Valentim de Carvalho Filmes Audiovisuais S.A. foi celebrado, a 25-10-2020 um acordo denominado “Contrato de Locação Financeira Mobiliária” (LEA … 86), no valor de 328.867,56€ acrescido de IVA, pelo prazo de 36 meses, com a primeira prestação mensal a pagar pela sociedade à Requerente no valor de 69.979,34€, acrescida de IVA, e as posteriores no valor de 6.857,56€, regido, pelas seguintes condições particulares (documento n.º 10, junto com a petição inicial, cujo teor se dá aqui integralmente reproduzido):
“11. Garantias:
Para garantia do bom e integral cumprimento das obrigações emergentes do presente contrato, o Locatário deverá apresente ao Locador:
Livrança subscrita pelo Locatário com aval de:
- B …
- A …
20) Entre a sociedade V.C. – Valentim de Carvalho Filmes Audiovisuais S.A. e o aqui Requerido e B … foi celebrado um acordo denominado de “Convenção de Preenchimento de Livrança”, por referência à livrança descrita em 19), com o seguinte conteúdo:
(…)

21) Em 13-03-2024 a Requerente enviou uma carta dirigida ao Requerido, tendo por referência o acordo descrito em 19), com o seguinte teor:
22) Entre o Banco Requerente e a sociedade V.C. – Valentim de Carvalho Filmes Audiovisuais S.A. foi celebrado, a 08-09-2021 um acordo denominado “Contrato de Locação Financeira Mobiliária” (LEA … 60), no valor de 226.608,74€ acrescido de IVA, pelo prazo de 48 meses, com a primeira prestação mensal a pagar pela sociedade à Requerente no valor de 20.500€, acrescida de IVA, e as posteriores no valor de 3.936,47€, regido, pelas seguintes condições particulares (documento n.º 10, junto com a petição inicial, cujo teor se dá aqui integralmente reproduzido):
“11. Garantias:
Para garantia do bom e integral cumprimento das obrigações emergentes do presente contrato, o Locatário deverá apresente ao Locador:
Livrança subscrita pelo Locatário com aval de:
- B …
- A …
23) Em 15-11-2024, por referência ao acordo referido em 22) faltava pagar a quantia de 143.052,11€, acrescido de IVA.
24) Entre o Banco Requerente e a sociedade Grupo Valentim de Carvalho Som e Imagem, SGPS, S.A. foi celebrado, a 20-06-2023, um acordo denominado “Acordo de Repristinação e Aditamento” no que respeita ao Contrato de Locação Financeira n.º … 70, celebrado em 26-06-2026 entre a Requerente e a sociedade V.C. – Valentim de Carvalho Filmes Audiovisuais S.A – que tem como objeto o prédio urbano, sito na Estrada para Porto Salvo, E.N. 249/3, freguesia de Paço de Arcos, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o número …, inscrito na respetiva matriz sob o artigo … da referida freguesia - no valor de 226.608,74€ acrescido de IVA, pelo prazo de 48 meses, com a primeira prestação mensal a pagar pela sociedade ao Requerente no valor de 20.500€, acrescida de IVA, e as posteriores no valor de 3.936,47€, regido, nomeadamente, pelas seguintes cláusulas (documento n.º 10, junto com a petição inicial, cujo teor se dá aqui integralmente reproduzido):

(…)

25) Por referência ao acordo referido em 24), o Requerido A … apôs a sua assinatura no verso da livrança nº … 65 sob os dizeres “bom por aval à firma subscritora”, surgindo identificada como tal a sociedade Grupo Valentim de Carvalho Som e Imagem S.A..
26) Em 26-09-2024 a Requerente enviou uma carta dirigida ao Requerido, tendo por referência o acordo descrito em 24), com o seguinte teor:
(…)

27) O Banco Requerente preencheu a livrança objeto da convenção referida em 25) com a data de vencimento de 09-10-2024 ao lado da referência ao contrato nº … 70, pelo montante de 190.225,72€ – cfr. documento 17, junto com a petição inicial cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
28) A indicada livrança não foi paga, nem na data do seu vencimento, nem posteriormente.
29) Entre a sociedade Edições Valentim de Carvalho, S.A. e a Requerente foi celebrado um acordo denominado de “Garantia Bancária n.º 125-02-0879827”, em 17-10-2005, com o seguinte conteúdo:
30) A sociedade V.C. – Valentim de Carvalho – Filmes Audiovisuais, SA foi declarada insolvente em 29-02-2024, pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo de Comércio de Sintra – Juiz 5, processo n.º …/…-…T8SNT, tendo sido homologado Plano de Insolvência, por despacho transitado em julgado em 05-07-2024.
31) Consta da certidão permanente da sociedade Grupo Valentim de Carvalho Som e Imagens, S.A. a seguinte inscrição:
Insc. 14 Ap. 16/20220104 16:05:10 UTC – DECISÃO DE HOMOLOGAÇÃO DE PLANO DE RECUPERAÇÃO EM PER
Homologado e Aprovado o acordo de revitalização. DATA DA SENTENÇA 2021-11-27 DATA DO TRÂNSITO: 2021-12-20
Conservatória do Registo Comercial Cascais
O(A) Conservador(a) Auxiliar, C …
32) Pela Requerente foi enviada à sociedade VC – Valentim de Carvalho – Filmes, Audiovisuais, S.A., em 26-12-2024, uma carta com o seguinte teor:
33) O Requerido apresentou uma lista dos seus “5 maiores credores”, com o seguinte conteúdo:
- AT – Autoridade Tributária
(…)
Valor do crédito: €714.258,29€
Natureza do crédito: reversão
- Caixa Geral de Depósitos, S.A.
(…)
Valor do crédito: €1.109.123,04
Natureza do crédito: aval
- Instituto de Segurança Social, IP CD Lisboa
(…)
Valor do crédito: €1.695.920,70
Natureza do crédito: reversão
- Lisgarte – Sociedade de Garantia Mútua, S.A.
(…)
Valor do crédito: 228.721,48€
Natureza do crédito: reversão
- Novo Banco S.A.
(…)
Valor do crédito: €52.347,41
Natureza do crédito: financiamento
Crédito com garantia hipotecária
*
B) FACTOS NÃO PROVADOS
Com interesse para a decisão da causa, não se provaram os seguintes factos:
A. O Requerido é titular da conta de depósitos à ordem n.º … 30, aberta junto da Requerente, com o valor de 2.234,90€ em dívida atualmente.
B. O Requerido é titular das seguintes participações sociais:
-176.726 ações, no valor nominal de €5,00 cada ação, da sociedade Grupo Valentim de Carvalho Som e Imagem, SGPS, SA, com o capital social de €1.863.500,00 (372.700 ações).
- 10.000 ações, no valor nominal de €1,00 cada ação, da sociedade V. C. Fonogramas e Videogramas, SA, com o capital social de €50.000,00 (50.000 ações).
C. As participações sociais detidas pelo Requerido têm os seguintes valores:
- 1.271.000€ no Grupo Valentim de Carvalho Som e Imagens, SGPS, SA.
- 240.000,00€ na V.C. – Fonogramas e Videogramas, S.A.
C. O Requerido é titular de um direito de crédito sobre a V.C.- Fonogramas e Videogramas, S.A. no valor de 3.102.768€.
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Fundamentação de Direito
Na sentença recorrida concluiu-se, em primeira linha, que passando o objeto do litígio por apurar da existência do crédito do requerente/apelante, e uma vez apurado, da situação de solvência do requerido/apelado, contendendo a primeira questão com a legitimidade substantiva do primeiro para intentar a presente ação, dela carece o apelante.
Fundamentou o Tribunal a quo o seu entendimento na seguinte linha de argumentação: i) o requerente funda o pedido de declaração de insolvência do requerido na falta de pagamento de livranças que este avalizou, em branco, como garantia dos contratos celebrados entre a requerente e as sociedades do Grupo Valentim de Carvalho; ii) o requerente preencheu as livranças, assinadas em branco pelo requerido, na qualidade de avalista, na data de 10/07/2024, por referência aos contratos elencados nos pontos 1), 7), 13), 15), 19) e 22) e 09/10/2024, esta última referente ao acordo de repristinação do contrato de locação financeira n.º … 70; iii) a sociedade V.C. – Valentim de Carvalho – Filme Audiovisuais S.A. foi declarada insolvente, tendo sido homologado Plano de Insolvência transitado em julgado em 05/07/2024, donde consta o apelante como credor; iv) o plano prevê a manutenção das garantias existentes, mas a data de vencimento das primeiras prestações é apenas a 5 de abril de 2025, à exceção do plano financeiro dos pagamentos relativos ao contrato de locação financeira n.º … 60, com a primeira data de vencimento a 01/04/2025, de modo que no que concerne aos créditos abrangidos no Plano de Pagamentos, ainda nenhum se encontra vencido, o que de resto corresponde aos próprios termos do acordo de preenchimento da livrança; v) à data em que o requerente preencheu as livranças, nenhum dos créditos decorrentes dos contratos supra elencados se encontrava vencido, nada sendo devido à data do preenchimento pela sociedade V.C. – Grupo Valentim de Carvalho – Filmes e Audiovisuais S.A., uma vez que estava em vigor, estando a dita sociedade a cumprir o Plano de Pagamentos homologado no decurso da sua declaração de insolvência, plano esse a que a Requerente está vinculada; vi) o preenchimento da livrança àquela data foi abusivo, porquanto nenhum dos créditos se encontra vencido.
É deste entendimento que discorda o apelante argumentando que as medidas adotadas num plano de Insolvência não se estendem aos avalistas garantes, assistindo-lhe o direito de exigir imediatamente aos avalistas o pagamento de todos os montantes que lhe forem devidos, mantendo intocados os direitos que dispõem contra os terceiros avalistas (conclusões C a E e P a T).
Estabelecendo o artigo 20º, nº 1, do CIRE, que “a declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida (…) por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito”, impõe-se saber, repetindo as palavras do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/11/2011, proc. n.º 433/10.4TYLSB.L1-7, relator Luís Lameiras, “como deve ele estar habilitado, de que apetrechos deve o seu crédito estar munido, e de que devem os autos dar notícia, que permitam que o processo de insolvência que entenda desencadear possa ser viável (…) o verdadeiros pressupostos de prossecução da acção, sem o qual, ou sem os quais, o pedido não é viável (Pedro Pidwell, “O processo de insolvência e a recuperação da sociedade comercial de responsabilidade limitada”, 2011, página 107).”
Por sua vez, estabelece o art.º 25º, n.º 1 do mesmo diploma que o credor requerente da declaração de insolvência deve justificar na petição a origem, natureza e montante do seu crédito.
O sentido que se extrai destes normativos é o de atribuir legitimidade ao titular de crédito, colocando tal legitimidade em termos gerais, isto é, entendendo como titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor, nos termos do art.º 30º, nº3 CPC (cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 20/05/2021, proc. n.º 7135/19.4T8GMR-A.G1, relatora Conceição Sampaio).
No âmbito do processo civil, o termo "legitimidade" assume o significado de legitimidade processual ou ad causam, a qual configura um pressuposto processual subjetivo, relativo às partes, indispensável para que o tribunal possa apreciar a causa e proferir decisão sobre o mérito. Tal legitimidade, contudo, não se confunde com a legitimidade substantiva, que diz respeito à titularidade jurídica dos direitos e deveres materiais controvertidos, ou seja, à relação jurídico-material que vincula os sujeitos da lide e que define quem são os titulares ativos ou passivos da situação jurídica deduzida em juízo.
Assim, será dotado de legitimidade processual para requerer a insolvência quem se atribua a qualidade de credor do requerido e não necessariamente quem seja, efetivamente, credor deste. Ao credor só é exigido que proceda à justificação do seu crédito, fazendo corresponder a essa justificação a simples menção da origem, da natureza e do montante do crédito. Trata-se rigorosamente de o credor requerente justificar a sua legitimidade processual, ou seja de demonstrar a sua qualidade de credor, que é requisito do seu direito de ação judicial. (Cf. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/11/2015, processo n.º 910/13.5TBVVD-G.G1.S1, relator Fonseca Ramos).
Reconhece-se, portanto, legitimidade ad causam ao titular de crédito litigioso para demandar, mas sem prejuízo da discussão da existência do crédito na fase antecedente à declaração de insolvência, reconhecendo-se as limitações que este processo comporta em termos de indagação aprofundada da verificação ou não do crédito invocado por aquele que se arroga credor do demandado/insolvente.
Aqui chegados, e partindo do pressuposto de que o titular de crédito litigioso tem legitimidade processual para requerer a insolvência, caso, da prova que vier a ser produzida, não resulte que o mesmo é efetivamente credor, a insolvência terá que improceder por ilegitimidade substantiva daquele, ou seja, àquela que diz respeito ao requisito da procedência do pedido. E, assim é, porquanto a adoção de uma conceção mais ampla da legitimidade, já não consente uma latitude que se baste com a mera alegação do crédito, desonerando o requerente da sua demonstração. Em termos gerais, há que não confundir legitimidade para pedir ou requerer – com procedência ou mérito do pedido ou requerimento correspondente (art.º 26 nºs 1 e 3 do CPC).
Como tivemos ocasião de escrever a este propósito no Acórdão desta secção de 19/12/2024, proferido no processo n.º 12510/24.0T8SNT.L1, qualquer credor constitui sujeito legitimado para requerer a abertura do processo de insolvência. No entanto, sendo a insolvência, necessariamente restringida, na sua parte inicial, a um processo de partes, não poderá prosseguir a fim de vir a ser ou não declarada, sem que se aquele que se arroga credor, demonstre a existência desse crédito, deixando de estar em causa uma simples legitimidade processual para se passar a exigir uma legitimidade substantiva, - pressuposto da titularidade, por um sujeito, de certo direito que o mesmo invoca ou que lhe seja atribuído, respeitando, portanto, ao mérito da causa - demonstração que se deverá fazer dentro do respeito pela natureza célere e urgente do processo de insolvência.
Foi este o entendimento pugnado pela primeira instância, que julgou improcedente o pedido de declaração de insolvência do requerido por quem substancialmente não estava, afinal, habilitado para a requerer, pese embora reconhecer-se a sua legitimidade ad causam para demandar, porquanto não logrou preencher a previsão do nº1 do art.º 20º nº1 do CIRE.
Tendo o Tribunal a quo concluído que a obrigação assumida pelo apelado perante o apelante não se encontra vencida, razão pela qual carecia de legitimidade substantiva para requerer a insolvência do devedor, cabe apreciar se essa conclusão foi correta.
Em concreto, importa saber se o preenchimento das livranças em 10/07/2024 - assinadas em branco pelo requerido, na qualidade de avalista por referência aos contratos elencados nos pontos 1), 7), 13), 15), 19) e 22) - e 09/10/2024 - esta última referente ao acordo de repristinação do contrato de locação financeira n.º … 70, após homologado Plano de Insolvência, transitado em julgado em 05/07/2024, donde consta o apelante como credor e prevendo o plano a manutenção das garantias existentes, com datas de vencimento posteriores - foi ou não abusivo.
Como é sabido, a responsabilidade do avalista é solidária, respondendo nos termos do art.º 32º da Lei Uniforme Relativa às Letras e Livranças (LULL), da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada. Ou seja, o avalista responde pelo pagamento da livrança solidariamente com os demais subscritores – art.º 47º, I, LULL, aplicável às livranças por força do disposto no art. 77º.
A subscrição de uma “livrança em branco” encontra expressa previsão legal no art. 10º da LULL (aplicável às livranças ex vi do art. 77º do mesmo diploma), que admite como válida uma letra (livrança) incompleta no momento em que é emitida, desde que venha a ser completada.
A este propósito, escreve Abel Delgado in Lei Uniforme sobre Letras e Livranças Anotada, 7ª ed., pág. 78, que para haver uma letra (aqui livrança) em branco basta que lhe falte algum requisito e nela haja pelo menos uma assinatura, a qual tanto pode ser do sacador, do aceitante, do avalista, como do endossante, desde que conste de um título que contenha a designação impressa e expressa de “letra” (no nosso caso será “livrança”) e que tal assinatura tenha sido feita com intenção de contrair uma obrigação cambiária.
Assim, para ficar cambiariamente obrigado, bastou que o requerido/apelado tivesse aposto a respetiva assinatura em documentos em que se assume como avalista das livranças, mesmo estando estas em branco, resultando evidente do teor literal da documentação descrita nos factos provados que as livranças foram entregues para garantia de um conjunto definido de responsabilidades, por referência a contratos específicos e identificados – três contratos de Cessão Pontual de Créditos com Recurso (vulgo contratos de factoring), dois contratos de Locação Financeira Mobiliária, um acordo denominado “Acordo de Repristinação e Aditamento” no que respeita a um dos contrato de Locação Financeira (n.º … 70, celebrado em 26-06-2026).
Relativamente às livranças subscritas no âmbito dos três contratos de factoring, a apelante ficou autorizada a preencher as livranças apondo-lhes, designadamente, as datas de vencimento e as quantias que estivessem em dívida no momento do preenchimento, “o qual corresponderá ao valor das responsabilidades do CLIENTE perante o BANCO na data de preenchimento”.
Relativamente ao contrato de Locação Financeira Mobiliária” (LEA … 86) celebrado em 25/10/2020, e de acordo com a convenção de preenchimento de livrança (facto 20) o apelado autorizou a apelante a preencher a livrança “à sua melhor conveniência e lugar, tempo e forma de pagamento, fixando-lhe a data de emissão e de vencimento, nos termos que correspondam às suas responsabilidades não satisfeitas, observando-se, no entanto, e sempre o seguinte: o montante da livrança (…) não poderá ser superior às da responsabilidade do Primeiro outorgante perante o Terceiro outorgante à data do seu vencimento”.
Finalmente, e no que diz respeito ao denominado “Acordo de Repristinação” o apelado autorizou o apelante a preencher as livranças apondo-lhes as datas de vencimento e as quantias que estivessem em dívida no momento do preenchimento, “o qual corresponderá ao valor das responsabilidades do CLIENTE perante o BANCO na data de preenchimento”.
Sendo pacífica a legitimidade do avalista da livrança em branco para excecionar o abuso de preenchimento, cabendo-lhe assim o ónus de alegação e prova da existência desse abuso, a análise da jurisprudência revela-nos que é frequente o avalista vir invocar, em sede de oposição, o preenchimento abusivo da letra ou livrança nos termos do art.º 10º da LULL, por parte do credor. A linha de argumentação dos avalistas executados é, justamente, a existência de preenchimento abusivo, pois as modificações – em particular as moratórias ou “períodos de carência” e os esquemas de pagamento em prestações – introduzidas pela aprovação do plano de insolvência na dinâmica da relação fundamental garantida parecem apontar, à primeira vista, para a ocorrência de um preenchimento injustificado ou extemporâneo do título (cf. Carolina Cunha, in Do Aval e Insolvência, pág. 113).
No caso dos autos, invocou o apelado a seu favor - tese que foi subscrita pelo tribunal recorrido - que todos os financiamentos efetuados pela apelante à V C Valentim de Carvalho – Filmes, Audiovisuais, SA foram objeto do Plano de Insolvência aprovado e homologado, por sentença transitada em julgado em 05/07/2024, no âmbito do processo n.º …/…-…T8SNT, que correu termos no Juiz … do Juízo do Comércio de Sintra, plano esse que previa a regularização das dividas, período de carência sobre todos os valores exigíveis e manutenção das garantias existentes, ou seja, mantendo-se o aval pessoal como garantia do cumprimento das obrigações assumidas pela V C Valentim de Carvalho – Filmes, Audiovisuais, SA., não assistindo o direito à apelante de levar a cabo o preenchimento das livranças avalizadas pelo devedor após o trânsito em julgado da sentença que homologou o Plano de Insolvência da V C Valentim de Carvalho – Filmes, Audiovisuais, SA.
Estamos, portanto, perante livranças emitidas duplamente por preencher (só possuía as assinaturas da subscritora e dos avalistas da subscritora feitas na sequência, nos termos e para as finalidades dos contratos de factoring, de Locação mobiliária e do denominado “Acordo de Repristinação”), as quais foram preenchidas posteriormente à sua emissão pelo portador (o apelante) e credor do subscritor (a outra parte nesse contrato), a quem aquelas foram entregues em branco.
Ora, no caso dos autos, o tomador das livranças (o apelante) pede a insolvência do avalista, invocando o seu direito cambiário sobre este, por ter intervido, em nome próprio, nos contratos para cuja garantia as livranças foram emitidas e de que faz parte integrante o mencionado pacto de preenchimento. A livrança foi no caso concebida e utilizada como uma mera garantia de pagamento, isto é, destinada a converter-se num título de crédito válido e eficaz, possibilitando o acesso direto do portador à ação executiva, no caso de se tornar credor do subscritor nos termos da relação fundamental ou subjacente.
O apelado, reconhece e aceita a existência de um acordo escrito destinado a fixar os termos em que o apelante, a quem foram entregues as livranças com as assinaturas, ficou autorizado a fazer o preenchimento do título quanto aos requisitos que foram deixados em branco, o qual é normalmente designado por pacto de preenchimento.
Como deixamos dito, no que diz respeito aos denominados contratos de factoring o pacto de preenchimento previu que o apelante ficasse autorizada a preencher as livranças apondo-lhes as datas de vencimento e as quantias que estivessem em dívida no momento do preenchimento, “o qual corresponderá ao valor das responsabilidades do cliente perante o Banco na data de preenchimento”. No que diz respeito ao contrato de Locação Financeira Mobiliária” (LEA … 86) celebrado em 25/10/2020, e de acordo com a convenção de preenchimento de livrança (facto 20) o apelado autorizou o apelante a preencher a livrança “à sua melhor conveniência e lugar, tempo e forma de pagamento, fixando-lhe a data de emissão e de vencimento, nos termos que correspondam às suas responsabilidades não satisfeitas, observando-se, no entanto, e sempre o seguinte: o montante da livrança (…) não poderá ser superior às da responsabilidade do Primeiro outorgante perante o Terceiro outorgante à data do seu vencimento”.
A obrigação do avalista é uma obrigação materialmente autónoma, ainda que formalmente dependente da do avalizado, pois o avalista responsabiliza-se pela pessoa que avaliza, assumindo a responsabilidade, abstrata e objetiva, pelo pagamento da quantia titulada na letra ou livrança (mantendo-se mesmo que seja nula a obrigação garantida, salvo se a nulidade desta provier de um vício de forma – art.º 32 da LULL).
A circunstância de a relação subjacente se modificar ou possuir contornos de renovação não induz que esses efeitos se repercutam ou obtenham incidência jurídica na relação cambiária. Esta permanece independente às mutações ou alterações que se processem na relação subjacente, não acompanhando as eventuais transformações temporais e/ou de qualidade da obrigação causal. Por via dessa autonomia, o avalista não pode defender-se com as exceções que o seu avalizado pode opor ao portador do título, salvo a do pagamento.
A autonomia da obrigação do avalista está conforme e harmoniza-se com o preceituado no art.º 217º, n.º 4, do CIRE, onde se estabelece: «As providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência, designadamente os que votem favoravelmente o plano, contra os codevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas podem agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos.»
Analisando este preceito do CIRE, escreveu-se no Acórdão desta secção de 29/10/2024, processo n.º 2052/24.9T8SNT.L1-1, relatora Paula Cardoso, (aqui primeira adjunta) que: “Tenhamos em mente que este preceito foi introduzido de forma totalmente inovatória no CIRE, pois que o anterior preceito que lhe correspondia no CPEREF (art.º 63º.) dispunha de modo totalmente diverso, impedindo o credor que aprovasse o plano de atuar contra os coobrigados e garantes na exata medida ou modificação do direito. Na lei vigente, contrariamente, o credor, independentemente da posição que adote quanto à votação do plano, mantém incólume os direitos que dispunha contra os codevedores e terceiros garantes, podendo deles tudo exigir em conformidade com o regime obrigacional que resulta das obrigações assumidas e das garantias que prestaram.”
É o que resulta, de forma clara, do texto do normativo em causa (art.º 217.º n.º 4 do CIRE), cuja disciplina tem como consequência o afastamento da defesa do avalista quanto ao preenchimento abusivo.
Também a este propósito escreve Carolina Cunha, in Ob. Cit, pág. 115 que “O preceito representa um corte com o regime anteriormente consagrado no CPEREF e constitui uma tomada de posição do legislador insolvencial quanto ao merecimento relativo dos vários interesses – titulados pelos credores, pelo insolvente e pelos sujeitos que prestaram garantias pessoais – no contexto da aprovação e homologação de um plano de insolvência. A opção foi (e isso é generalizadamente reconhecido) no sentido de sacrificar a posição e interesses dos garantes à protecção do interesse dos credores e à tutela da posição do próprio insolvente.”
Ou seja, no atual regime da insolvência todos os riscos são alocados à esfera jurídica do garante. Este, além do risco da insolvência que, a acontecer, pode inviabilizar qualquer pretensão de regresso, suporta igualmente, nos termos do plano que lhe é imposto (pois que na sua ponderação “não foi tido nem achado”), a demora na satisfação do seu direito de regresso, ou a redução do respetivo montante, ou a sua extinção, em caso de perdão total do credor relativamente à dívida do devedor garantido. Sendo por isso ajustado afirmar que, neste regime, os garantes têm a função de financiadores da recuperação do devedor insolvente (cf. Anabela Luna de Carvalho, in Aval e Plano de Insolvência, Revista “Data Venia”, 13, pág. 10).
A aprovação do plano de insolvência surge na sequência da declaração de insolvência da avalizada.
Nos termos do n.º 1 do art.º 91º do CIRE “a declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva”, de modo que, uma vez declarada a insolvência, a exigibilidade da dívida decorrente deste preceito, legitimou o credor a preencher o título cambiário, devendo fazê-lo pelo valor que estiver em dívida em tal momento, respeitando o acordo de preenchimento - que, no caso, previa que “corresponderá ao valor das responsabilidades do CLIENTE perante o BANCO na data de preenchimento” quanto aos três contratos de factoring e a montante não superior às responsabilidades do subscritor perante o tomador no que diz respeito aos contratos de locação financeira.
Legitimado que estava a preencher as livranças nos termos supra expostos, o apelante veio a fazê-lo, depois da aprovação de um plano de insolvência que alterou o conteúdo da obrigação fundamental (montante/prazos/modos de pagamento). É o que que resulta do ponto 32 dos factos provados, face ao escrito enviado pelo apelante à subscritora VC – Valentim de Carvalho – Filmes, Audiovisuais, S.A., em 26-12-2024.
Acontece que, face à redação do art.º 217º, n.º 4 do CIRE, que estabelece que as alterações introduzidas pelo plano de insolvência não afetam nem a existência nem o montante do direito do credor contra o garante, não se mostra possível sustentar, em regra, que o credor garantido está obrigado a respeitá-lo em relação ao avalista, como pretendeu o apelado e foi sustentado na sentença recorrida.
Com efeito, à data do incumprimento (ou vencimento, nos termos do art.º 91º, 1 CIRE) o crédito garantido tinha um determinado conteúdo e, é esse conteúdo da relação fundamental originária que vai determinar o preenchimento do título de acordo com o pacto de preenchimento, independentemente de esse conteúdo, relativamente ao devedor insolvente (o devedor garantido), vir posteriormente a ser reconfigurado no plano de insolvência por força de redução, perdão ou moratória. Neste sentido Anabela Luna de Carvalho, in Ob. Cit, pág. 15 e na jurisprudência, o Acórdão do STJ de 26/02/2013, proc. n.º 597/11.0TBSSB-A.L1.S1, onde se lê que: “(..) A aprovação de um plano de insolvência, com moratória para pagamento da dívida, de que beneficia a sociedade subscritora da livrança, não é invocável pelos avalistas contra quem é instaurada a execução para seu pagamento.”, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21/11/2017, processo n.º 302/15.1T8GRD-B.C1, relator Vítor Amaral, em cujo sumário se lê que “1 - O aval é uma garantia da obrigação cambiária, visando garantir o seu pagamento, sendo o avalista apenas sujeito da relação subjacente ao ato cambiário do aval. Assim, a obrigação do avalista, como obrigação cambiária, é autónoma e independente da do avalizado. 2 - O avalista responde solidariamente com os demais obrigados cambiários perante o portador do título (livrança). (...) 5 - O preenchimento da livrança após a insolvência da subscritora não viola, sem mais, o respetivo pacto de preenchimento, colhendo eficácia perante os avalistas daquela.” e o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 7/02/2023, proc. n.º 1314/21.1T8SRE-A.C1, relator Fonte Ramos, onde se pode ler que. “o plano de insolvência é constituído por um conjunto de medidas que só se aplicam à sociedade insolvente. Ao votar a favor de tal plano, o credor do insolvente fá-lo apenas por se tratar de medidas aplicáveis a uma sociedade (fá-lo apenas em relação ao insolvente; os garantes estão fora do âmbito da insolvência e do que nesta se delibera) que está numa particular situação de impossibilidade de cumprir as suas obrigações para com os credores. (…) O credor mantém incólumes os direitos de que dispunha contra codevedores e terceiros garantes, podendo exigir deles tudo aquilo por que respondem e no regime de responsabilidade originário, sendo que o exercício consentido aos credores pelo art.º 217º, n.º 4, do CIRE, não extravasa o limiar de risco que os garantes assumiram.
Em suma, a finalidade do art.º 217.º, n.º 4, do CIRE consiste, essencialmente, em viabilizar a aprovação de um plano de recuperação que harmonize os interesses dos credores e do devedor. Esta norma assegura que o credor, independentemente da posição que assuma na votação do plano, conserva os direitos de que dispunha contra os codevedores e terceiros garantes podendo deles tudo exigir em conformidade como regime obrigacional que resulta das obrigações assumidas e das garantias prestadas. Neste enquadramento, seguindo-se a posição maioritária da jurisprudência (cf. entre outros o Acórdão do STJ de 26/02/2013, Relator Azevedo Ramos, onde se lê que: “A aprovação de um plano de insolvência, com moratória para pagamento da dívida, de que beneficia a sociedade subscritora da livrança, não é invocável pelos avalistas contra quem é instaurada a execução para seu pagamento”), esta previsão aplica-se igualmente à modificação dos prazos de cumprimento ou concessão de moratórias de pagamento, por se entender que existe uma «identidade de razão» entre estas situações e aquelas expressamente previstas na norma, assim se aplicando extensivamente, nestas situações, o artigo 217.º, n.º 4, do CIRE.
A razão de ser radica no facto de não haver motivo sensivelmente diferente para distinguir entre modificação do direito de crédito em relação à existência e montante do mesmo e a mera alteração dos prazos de cumprimento da obrigação. Estaria, assim, no espírito e na finalidade da norma também abranger esta última situação, ainda que a estrita literalidade do preceito tenha ficado aquém, impondo-se, por isso, uma interpretação extensiva da norma (artigo 9.º do Código Civil) – neste sentido cf. Anabela Luna de Carvalho, in Ob. cit., Loc. Cit. e Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa Anotado, 3ª edição, pág. 794.
Assim sendo, o portador da letra ou livrança pode sempre exercer o seu direito de ação contra qualquer obrigado cambiário, reclamando o seu pagamento (arts.º 43.º a 48.º da LULL, aplicável ex vi do art.º 77.º do mesmo diploma), não podendo o credor ser limitado no seu direito de acionar de imediato o avalista desde que haja incumprimento do pagamento por parte do devedor principal, mesmo que, como no caso, se encontre abrangido por um plano de insolvência.
Diverso seria o caso de o plano ter previsto a reconfiguração do direito do credor sobre os garantes, prevendo, por exemplo, uma moratória no pagamento da dívida de avalistas, o que não sucedeu, posto que, assente que se mantiveram as garantias prestadas.
Conclui no mesmo sentido, Carolina Cunha, in Ob. Cit, pág. 137, entendendo que “na ausência de especial modelação das partes (credor, avalista e avalizado) vertida no acordo de preenchimento, responder pelo risco da insolvência significa responder nos termos (que serão per relationem vertidos no título) do incumprimento da relação fundamental aquando da verificação da insolvência do devedor principal. Significa, portanto, responder pela totalidade do valor em dívida, sem reduções, alterações ou moratórias. É, aliás, com isso que o avalista em branco pode contar desde o início – desde o momento em que subscreve o título e o acordo de preenchimento”. Esta conclusão tem como pressuposto que o acordo de preenchimento seja omisso quanto às eventuais repercussões da insolvência do devedor fundamental garantido sobre os poderes reconhecidos ao credor no preenchimento do título porquanto, conforme defende esta autora, está ao alcance do sujeito que avaliza em branco o título destinado a garantir uma dívida alheia acordar com o respetivo credor, no pacto de preenchimento, que, na hipótese de vir a ser homologado um plano num eventual processo de insolvência do devedor garantido, a letra ou livrança só possa vir a ser preenchida refletindo as modificações que esse plano introduza no crédito fundamental.
No caso dos autos, analisados os acordos de preenchimento que suportaram o preenchimento das livranças pelo apelante, constatamos que não foi consagrada nenhuma cláusula desta natureza.
Neste pressuposto, e divergindo da decisão da primeira instância, conclui-se que o apelante, independentemente da aprovação do plano de insolvência, manteve os direitos de que dispunha contra os terceiros garantes – no caso o requerido/avalista, - podendo dele tudo exigir em conformidade com o regime obrigacional que resulta das obrigações assumidas e das garantias que prestou e que correspondem ao montante da obrigação em divida pelo avalizado, no momento do seu vencimento. Do mesmo modo, no que respeita à modificação dos prazos de cumprimento ou à concessão de moratórias de pagamento, não se afigura sustentável a tese do preenchimento abusivo da livrança, uma vez que, relativamente ao avalista, e, tendo em conta os respetivos acordos de preenchimento, a obrigação cartular venceu-se e não foi paga, após interpelação (cf. factos provados n.ºs 5, 6, 11, 12, 17, 18, 21, 26 a 28).
Está, por isso, e ao contrário do decidido pelo Tribunal a quo devidamente justificado e demonstrado o crédito do apelante, nos termos previstos no art.º 20º, n.º1 do CIRE.
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Da questão da insolvência/solvência do apelado.
Aqui chegados, resta a apreciação dos restantes pressupostos de que depende a declaração de insolvência do apelado, mediante a constatação, em concreto, do preenchimento de quaisquer dos factos índice previstos o art.º 20º do CIRE, destinados à prova da situação de insolvência.
Nos termos do art.º 3º, n.º1 do CIRE é considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
Conforme referem Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação da Empresa Anotado, pág. 86, de há muito que tem sido geral e pacificamente entendido pela doutrina e pela jurisprudência que, para caracterizar a insolvência, a impossibilidade de cumprimento não tem de abranger todas as obrigações assumidas pelo insolvente e vencidas. O que verdadeiramente releva para a insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciem a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos.
Por outro lado, Catarina Serra, in Lições de Direito da Insolvência, 2ª Edição, pág. 55, afirma que a única exigência legal para que se verifique a insolvência é que haja uma ou mais obrigações vencidas, podendo a impossibilidade de cumprimento revelar-se quando o devedor está meramente constituído em mora, não havendo incumprimento em sentido próprio. Poderá assim suceder que a não satisfação de um pequeno número de obrigações ou até de uma única indicie, só por si, a penúria do devedor, característica da sua insolvência, da mesma forma que o facto de continuar a honrar um número quantitativamente significativo pode não ser suficiente para fundar saúde financeira bastante (Cf. Carvalho Fernandes e João Labareda, in Ob. cit., Loc cit.).
O artigo 20.º, nº 1 do CIRE prevê que a declaração de insolvência de um devedor pode ser requerida por quem for legalmente responsável pelas suas dívidas, por qualquer credor, ainda que condicional e qualquer que seja a natureza do seu crédito, ou ainda pelo Ministério Público, em representação das entidades cujos interesses lhe estão legalmente confiados, verificando-se algum dos factos descritos nas suas oito alíneas, nomeadamente, pelo interesse que reveste para o caso dos autos, na alínea b) do art.º 20º. Trata-se daquilo a que, correntemente, se designa por factos-índices ou presuntivos da insolvência, tendo precisamente em conta a circunstância de, pela experiência da vida, manifestarem a insusceptibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações, que é a pedra de toque do instituto (cf. Carvalho Fernandes e João Labareda, in ob. Cit., pág. 197).
Assim, ao credor que requeira a declaração de insolvência do devedor incumbe alegar e provar algum ou alguns dos factos-índice enumerados no n.º 1 do art.º 20º, cuja verificação faz presumir a situação de insolvência, tal como a caracteriza o art.º 3º. Ao devedor que discorde e pretenda opor-se, competirá, se for o caso, impugnar a existência do(s) facto(s)-índice invocados pelo requerente e/ou ilidir a presunção de insolvência deles decorrente, provando a situação de solvência – art.º 30º, n.ºs 3 e 4. Ou seja, provado(s) o(s) factos(s)-índice alegado(s) pelo requerente, a insolvência só não será declarada se o requerido ilidir a presunção dele(s) decorrente, demonstrando que, apesar da sua verificação, não se encontra impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas, isto é, provando a sua solvência.
Não se provando o(s) factos(s)-índice alegado(s) pelo requerente, a insolvência não poderá ser declarada, nada precisando o requerido de provar.
Traçado, de forma genérica, o quadro geral das regras sobre ónus de prova no processo de insolvência, apliquemo-las ao caso em apreço.
O requerente alegou factualidade que, de acordo com os artigos 78º a 81º da petição inicial, integraria os factos-índice previstos na alínea b) do nº 1 do artº 20º, isto é, a falta de cumprimento de uma ou mais obrigações que, pelo seu montante ou pelas circunstâncias do incumprimento, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações.
O requerido, por sua vez, opôs-se, negando a existência desses factos-índice e a situação de insolvência.
Convocando-se o supra referido, este facto indiciador da insolvência não se basta com o mero incumprimento de uma ou de algumas das obrigações vencidas. É igualmente imprescindível que o incumprimento, pelo seu montante ou pelas circunstâncias em que ocorre, revele a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações, o que impõe que o requerente alegue e prove, para além da obrigação incumprida, as circunstâncias em que ocorre esse incumprimento, de modo a poder-se concluir que se trata de uma impossibilidade de cumprimento do devedor resultante da sua penúria ou incapacidade patrimonial generalizada (cf. entre vários o Acórdão desta secção de 31/10/2023, relatora Amélia Sofia Rebelo, proferido no processo n.º 2343/22.3T8VFX-B.L1-1).
Relevarão, pois, os factos que preencham a insatisfação de uma ou mais obrigações e o circunstancialismo que a rodeou, e que sejam tidos como idóneos e vocacionados para, razoavelmente e em consonância com os ditames próprios da experiência comum, fazer concluir pela falta de meios do devedor para solver em tempo os seus vínculos. Ou seja, do incumprimento terá que se inferir a impossibilidade de o devedor satisfazer a generalidade dos seus compromissos (cf. Luís Menezes Leitão, in Direito da Insolvência, Almedina, 8ª ed., pág. 143).
A factualidade com relevância para o eventual preenchimento da previsão da alínea referenciada é a constante dos nºs 3). 4), 5), 6), 9), 10), 11), 12), 15), 16), 17), 18), 20), 21), 23), 25), 26), 27), 28), 29) e 33).
Não há dúvida que o apelando prestou aval às obrigações que as subscritoras, a sociedades VC Valentim de Carvalho – Filmes, Audiovisuais, S.A. e Grupo Valentim de Carvalho Som E Imagem, SGPS, S.A. assumiram perante o Banco requerente, decorrentes de contratos de factoring e de leasing que ascendem ao valor total de 11.232.445,00€.
O apelado assumiu as obrigações derivadas daqueles avais, conferindo ao requerente autorização para o preenchimento das livranças que avalizou, entregues em branco quanto aos demais dizeres. O requerente procedeu ao preenchimento das livranças dadas em garantia, em estrita obediência às autorizações prestadas, as quais apresentadas a pagamento não foram pagas pelo avalista.
Como vimos supra, a obrigação do apelado é autónoma da obrigação assumida pela sociedade subscritora das livranças, não lhe assistindo o benefício da excussão. Acresce que, no Plano de Insolvência os demais responsáveis pela dívida, os garantes, não foram exonerados pelo apelante da mesma, mantendo-se as obrigações.
Posto isto, a questão reconduz-se a saber se o montante em dívida pelo apelado ao apelante, pelo seu montante ou pelas suas circunstâncias, revela a impossibilidade daquele satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações (art.º 20°, n.° 1, al. b) do CIRE).
À data do pedido de insolvência - 25/11/2024, os créditos da responsabilidade do requerido perante o requerente ascendiam ao valor total de € 1.054.680,14, (cf. factos 5, 6, 11, 12, 17, 18, 21, 23, 27, 28 e 29), cenário que surge agravado na consideração dos créditos elencados no facto 33) que ascendem à quantia global de 3.748.023,51€.
Nessas circunstâncias, e na ausência de pagamento voluntário da dívida, o processo de insolvência surge como o recurso processual mais célere para o recorrente diligenciar proativamente pelo exercício coercivo do seu crédito através do produto dos bens e direitos patrimoniais do recorrido e, se for o caso e na medida em que o for, estancar e substituir a situação de mora por definitiva situação de cumprimento (total ou parcial) e/ou situação de crédito incobrável (total ou parcial) (cf. o Acórdão desta secção de 25/03/2025, proc. n.º 9843/24.9T8SNT.L1-1, relatora Amélia Sofia Rebelo).
No caso, o elevado montante das obrigações já vencidas e a sua natureza, a falta de pagamento quando interpelado, e a ausência demonstrada de quaisquer rendimentos, ativos financeiros ou possibilidade de recurso a crédito, permitem a conclusão de que o não cumprimento da dívida assente nos autos é revelador da situação de penúria e de impossibilidade, atual, de o apelado satisfazer pontualmente as suas obrigações por falta de liquidez para satisfazer a totalidade das dívidas vencidas.
Em face dessa demonstração, competia ao devedor provar que tinha capacidade para cumprir, com regularidade e pontualidade, as suas obrigações, isto é, demonstrar que possuía crédito e património ativo líquido suficientes para saldarem o seu passivo, o que não fez. O requerido alegou, mas não provou, dispor de património suficiente para solver as suas responsabilidades junto da Requerente, detendo participações sociais no valor de 1.511.500€, sendo ainda titular de direito de crédito sobre a VC – Fonogramas e Videogramas S.A., a título de suprimentos, no valor de 3.102.758€, o que nos conduz à inevitável conclusão da impossibilidade de cumprimento pelo requerido da generalidade das suas obrigações vencidas (art.º 3.º, n.° 1, do CIRE).
Demonstrado o facto-índice, ao contrário do que este defendeu em sede de contra alegações, era ao requerido/apelado quem cabia o ónus de provar não apenas que dispunha de ativo suficiente para liquidar o passivo mas, outrossim, a capacidade para cumprir, com regularidade e pontualidade, as suas obrigações, isto é a demonstração de que possuía crédito e património ativo líquido suficientes para saldar o seu passivo, o que não fez, não lhe sendo conhecidos bens ou rendimentos que lhe permitam cumprir, atempadamente, as suas obrigações e para tanto não bastando a alegação genérica de que é administrador de um grupo económico com a dimensão e o historial do Grupo Valentim de Carvalho.
É esta a situação do requerido, que não logrou demonstrar que dispõe de ativos líquidos para saldar o seu passivo, encontrando-se, por isso, em situação de insolvência.
Verifica-se, pois, o facto-índice previsto no art.º 20°, n.º 1, al. b) do CIRE conducente ao decretamento da insolvência.
Ficando, demonstrada a situação de insolvência do apelado, nos termos dos arts. 3º, n. °s 1 e 2, e 20.º, n.° 1, al. b), ambos do CIRE, concluímos pela procedência das conclusões recursivas, devendo a sentença recorrida ser, por consequência, revogada e substituída por outra que declare a situação de insolvência do apelante.
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IV - Decisão:
Por todo o exposto julga-se a apelação procedente, revogando-se, em consequência, a sentença recorrida que deverá ser substituída por outra que declare a situação de insolvência do requerido.
Vencido na apelação, as custas nesta instância são a cargo do recorrido (cfr. arts. 527º, nº 1 e 2 do CPC).

Lisboa, 17-06-2025,
Susana Santos Silva
Paula Cardoso
Renata Linhares de Castro