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CONTRATO DE SEGURO
FURTO
PROVA
PARTICIPAÇÃO
Sumário
I – Visando o segurado obter uma indemnização por força do contrato de seguro celebrado com a seguradora e o segurado, cabe àquele prova da ocorrência do crime. II - A mera participação de furto feita perante a autoridade policial não constitui prova da ocorrência do furto, exigindo-se ainda que as circunstâncias que rodearam a prática do ilícito sejam sérias e que indiciem a sua verosimilhança. (Sumário elaborado pela Relatora)
Texto Integral
Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa
I. Relatório
AA, residente no Lugar do ..., veio propor a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra Generali Seguros S.A., com sede na ..., peticionando a condenação da Ré no pagamento da quantia global de €23.637,28, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal, a contar desde a data de citação Ré e até efectivo e integral pagamento.
Para tanto alegou, em resumo, que celebrou com a Ré um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel com a cobertura facultativa de danos próprios, que incluía o risco “Furto ou Roubo”. A viatura objecto desse contrato foi furtada entre os dias 04 de Fevereiro e 05 de Fevereiro de 2019, data em que a apólice de seguro se encontrava válida e em vigor, tendo comunicado à Ré a ocorrência do sinistro, a qual, contudo, declinou a sua responsabilidade.
Conclui pedindo a condenação da Ré no pagamento do capital seguro, acrescido de uma indemnização por danos não patrimoniais, emergentes dos prejuízos decorrentes da falta de pagamento do capital seguro o que o impossibilitou de adquirir um veículo que substituísse o anterior.
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Regularmente citada, a Ré contestou, aceitando ter celebrado com o Autor o contrato de seguro em apreço, mas sustentando, em suma, que o sinistro terá ocorrido em circunstâncias diversas das participadas pelo Autor, motivo pelo qual declinou a respectiva responsabilidade. Sem prescindir, alegou adicionalmente que, caso se conclua pela ocorrência do sinistro, os valores a indemnizar ao Autor são diversos dos peticionados, não sendo devida qualquer indemnização por conta dos danos não patrimoniais emergentes da privação do uso.
Concluiu pugnando pela improcedência da acção e, consequente, absolvição do pedido.
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Foi dispensada a realização da audiência prévia.
Foi proferido despacho saneador, foi fixado o objecto do litígio e enunciados os temas da prova, sem que tenham sido apresentadas reclamações.
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Procedeu-se à realização de audiência de julgamento.
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Por sentença proferida em 16 de Setembro de 2024, foi julgada “a presente ação totalmente improcedente, por não provada, e em consequência disso, absolvo a Ré GENERALI SEGUROS S.A. de todo o peticionado pelo Autor NUNO MIGUEL MARTINS RODRIGUES CARDOSO.”
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Não se conformando com a sentença proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, o Autor interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões: “1. A sentença em crise proferida em sede de 1ª instância fez errada valoração da prova e, em consequência, errada decisão absolutória. 2. O que se justifica atendendo às suspeições levantadas “ab initio”, na contestação, pela Ré acerca do perfil pessoal do Autor/Recorrente (que nada a ver com o caso em juízo) que influenciou o julgador quer durante o julgamento na inquirição da prova testemunhal, quer na convicção formada sobre a prova produzida em audiência de discussão e julgamento e viciando, por conseguinte, a sentença proferida. 3. Traduzindo-se num total menosprezo da prova produzida pelo Autor/Recorrente - já por si difícil por a prova recair sobre factos negativos -, concretizada na excessiva sindicância dessa mesma prova testemunhal, para além dos limites do razoável. 4. Ignorando o tribunal que o roubo de um veículo da família implica sobretudo quem está diretamente implicado - no caso, o Autor e a sua mulher -, não sendo possível produzir/arranjar outras testemunhas pois em rigor da verdade, são dispensáveis. 5. Na situação em análise depreende-se, do teor da sentença (fundamentação), que a espontaneidade dos depoimentos prejudicou a sua credibilidade, o que não é de todo aceitável. 6. O tribunal por outro lado sublimou, para além do razoável, os depoimentos prestados pelas testemunhas da seguradora (Ré), esses sim pouco credíveis e inaptos para contribuir para a verdade dos factos ocorridos e muito menos para descredibilizar a ocorrência participada pelo Recorrente à Seguradora Ré. 7. Com efeito, o depoimento das testemunhas da Ré não serviram – atentos os factos dados como provados – para que o tribunal desse como provados, como deu, condições de exclusão da cobertura e que nem foram alegadas pela Ré, na certeza de que competia a esta prová-las, não podendo o Tribunal julga-las provadas por sua iniciativa. 8. É sabido que a valoração da prova produzida em julgamento assenta e muito na perceção que o julgador obtém dos depoimentos testemunhais produzidos, mas nunca pode é ignorar a prova documental e a realidade que efetivamente é relevante para a questão a decidir. 9. Com efeito, nos autos em análise, a prova testemunhal produzida, juntamente com a prova documental apresentada pelo Autor são suficientes para que fossem julgados procedentes os pedidos do Autor. 10. Aliás, os factos dados como provados pelo Tribunal, baseiam-se na prova documental junta pelo Autor e ora Recorrente, que foi assim acolhida pelo Julgador, comprovando o cumprimento por parte do Recorrente das condições contratuais da apólice que justificam o seu direito de indemnização. 11. Nomeadamente as que constam da cláusula 4ª da apólice e transcrita nos factos provados (facto provado 3) da sentença: a) Apresentação de queixa-crime à PSP e apresentação no prazo de 8 dias de participação à Seguradora. b) Aguardando que as autoridades policiais, competentes para o efeito, encontrassem o veículo.- diligências adequadas à descoberta do veículo; c) Como o veículo não foi descoberto pelas autoridades policiais, ao fim de 3 meses, como prevê o contrato de seguro, o Recorrente deslocou-se à esquadra e pediu comprovativo disso mesmo. 12. Pois, como é consabido, as Seguradoras não se bastam com a informação verbal de que o veículo não foi encontrado, exigindo nova comprovação junto das autoridades, já que caso o veículo fosse encontrado deixaria de constar da base de dados. 13. Formalismos que foram cumpridos na íntegra pelo Autor e ora Recorrente, na certeza de que se tratam das condições de funcionamento da cobertura (furto ou roubo) - facto provado 3 e de que existe prova nos autos, concretamente, documental, ignorada pelo Tribunal quanto às suas consequências. 14. Por isso o ora Recorrente não pode deixar de se insurgir com a valoração da prova feita pelo Tribunal “a quo”. 15. Tudo aconselhando que sejam ouvidas em sede de recurso, pelo tribunal “ad quem” integralmente, sobretudo, 3 (três) dos depoimentos testemunhais prestados em Audiência de Julgamento pois, também ao tribunal de Recurso, interessará aperceber-se da forma como os mesmos foram prestados e como foram inquiridos, para daí tirar também as suas próprias conclusões. 16. Sendo esses 3 (três) depoimentos os prestados pelas seguintes testemunhas: BB - depoimento gravado digitalmente mediante Habilus Media Studio das 10:05m às 10:17m da ata de julgamento de 22/04/2024 – em relação ao qual interessa perceber que se trata de um depoimento de tão espontâneo, que se tornou confuso e justificou um juízo de melindre da testemunha perante a desconfiança das perguntas que lhe foram feitas; CC - depoimento gravado digitalmente mediante Habilus Media Studio das 10:17m às 10:29m da ata de julgamento de 22/04/2024 – em relação ao qual interessa perceber que se trata de um pouco à vontade natural ao invés de “comprometido”, como refere a sentença em crise. DD - depoimento gravado digitalmente mediante Habilus Media Studio das 15:01m às 15:21m da ata de julgamento de 22/04/2024 – no sentido de se perceberem as incongruências no depoimento testemunhal que comprometem o juízo e os fundamentos da decisão da Seguradora em recusar a regularização do sinistro (furto/roubo). 17. Pode concluir-se que a Ré/Recorrida celebrou o contrato de seguro com profunda má-fé, já que recusa assumir o risco coberto pela apólice contratada com o segurado, com base em factos que a Seguradora à data da celebração do contrato de seguro já conhecia (pex. Divergência proprietário e segurado) ou devia conhecer (pex. contexto familiar do Autor), se assim era relevante. 18. Com efeito, a recusa em indemnizar por parte da Ré e ora Recorrida, é ilegal e viola os princípios da boa-fé pré contratual e contratual, tudo na certeza de que, até ao sinistro, nunca se coibiu de receber os prémios e ter como bom o seguro celebrado com o Autor. 19. Cabe a quem invoca um direito (Autor) fazer prova dos factos constitutivos por ele alegados, mesmo que os factos sejam negativos e, logo, mais difíceis de provar. --artº342 n.1 Código Civil. 20. Mas, também, a quem contesta (Ré) “a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita” ---artº342º n.2 Código Civil. 21. Ou seja, se ao Recorrente competia fazer prova do desaparecimento do veículo e do direito que lhe assiste a ser ressarcido, pelo valor seguro, com base no contrato de seguro automóvel contratado, 22. À Recorrida competia fazer prova dos factos impeditivos do direito alegado pela Recorrente, ou seja, e aplicando ao caso, dos factos que constituem, de acordo com as condições especiais da apólice, “exclusões” –cfr. ponto 3 da rubrica “factos provados” da sentença e que transcreve essas exclusões. 23. Da prova produzida em audiência de discussão e julgamento não resulta que qualquer uma das exclusões contratualmente acordadas entre Autor (Recorrente) e Ré (Recorrida) tenha ficado provada. 24. Já no que respeita ao furto/roubo do veículo segurado de matrícula ..-GH-.., a prova é suficiente e a possível também recorrendo às regras da experiência comum e que devem nortear o julgador. 25. No que respeita a todos os factos dados como “não provados” – nas alíneas A) a F) do ponto 4.1.2 da decisão em crise - devem os mesmos ser dados como “provados”, face à prova produzida em julgamento e bem assim à prova documental que resulta dos autos. 26. Em relação aos meios de prova constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida (artº.640-1-b)CPC), diga-se que o Tribunal reconheceu a aptidão da prova documental, na qual fundamentou os factos que deu por provados, conforme factos provados 1 a 11. 27. Os factos dados como provados e que se alicerçam em prova documental não mereceram qualquer valoração positiva por parte do Tribunal em termos da sua convicção no que respeita ao pedido pelo Autor na PI. 28. Justificada pelas dúvidas sérias quanto à veracidade dos depoimentos testemunhais, o tribunal deu como não provados os factos que elencou de A) a G) do título 4.1.2.da sentença em crise. 29. Pois, no seu entender, o ónus da prova que competia ao Autor e ora Recorrente fazer, não foi alcançado. 30. Na certeza de que ao dar como provado que o seguro existiu com as cláusulas contratadas, deveria sim, ter exigido a prova de as mesmas, no caso concreto, não tinham condições de funcionamento, o que sempre competia à Ré nos termos do artº 342º n.2 CC. 31. Só que, apenas por não ter feito uma devida apreciação sobre a prova documental e sobre as ilações daí decorrentes, o erro de julgamento aconteceu. 32. Em boa verdade se diga que o tribunal negligenciou a importância das cláusulas contratuais ajustadas entre as partes e que dispensavam mais prova, nomeadamente testemunhal e evitariam muitas das considerações feitas acerca da credibilidade das testemunhas. 33. Segundo essas cláusulas contratuais, o valor seguro estava estipulado, como ficou provado: capital seguro de 14.187,28€, sendo que 11.886,64€ eram referentes ao veículo e 2.300,64€ de extras. 34. No que respeita à cobertura de furto/roubo cumpriu, conforme conclusão supra, o Recorrente cumpriu com os procedimentos contratualmente estipulados 35. No que respeita à cláusula contratual geral que o tribunal deu como provada no ponto 3 dos factos dados como provados -cláusula 4ª n.1, II parte- a interpretação feita da mesma é claramente abusiva quando se impõe ao segurado que se substitua em diligências que competem às autoridades policiais ou seja, promover “as diligências ao seu alcance conducentes à descoberta do veículo e dos seus autores”. 36. Em especial quando tal exigência se torna fundamento de condição de funcionamento da cobertura. 37. Na certeza de que a prova da comunicação e do cabal entendimento pelo Segurado dessa cláusula contratual compete por lei à Seguradora (art.º 1º n.3 e 5º n.3 do DL 446/85 de 25 de Outubro), pelo que nenhuma consequência pode resultar em detrimento do Segurado do seu eventual incumprimento. 38. De todo o modo não foi alegado pela Ré/Recorrida o incumprimento por parte do Autor de qualquer dever para consigo no que respeita à relevância das buscas que o tribunal entende que deveriam ter sido empreendidas pelo Autor, tendo sido o tribunal quem levantou, oficiosamente, das mesmas. 39. Este excesso de pronúncia e a omissão da Ré no sentido de qualquer incumprimento neste campo por parte do Autor, deve ter como consequência , pelo que o previsto na cláusula contratual 4º n.1 (Cfr. factos provado 3) deve ser dado como provado. 40. Desmerecendo por isso toda a importância dada pelo tribunal à busca do veículo pelo Segurado, na certeza de que os depoimentos prestados pelas testemunhas CC e BB são suficientes. 41. Assim, a prova documental produzida – nos factos provados - permite provar cabalmente o cumprimento por parte do Segurado das condições contratuais que lhe permitiriam ter direito à indemnização contratada e constante do contrato de seguro firmado com a seguradora. 42. Na certeza que, por sua vez, a Ré não logrou provar qualquer simulação/fraude que justificasse o não pagamento, o que lhe competia fazer nos termos do disposto no artigo 342º n.2 CC. 43. Assim, dando cumprimento ao artigo 640º n.1 al.b) do CPC, diga-se que a prova documental que é indicada para que o tribunal tenha dado como provados os factos de 1 a 7 da rubrica ”Factos Provados” (4.1.1. da sentença), impunha a prova de que estavam reunidas as condições para que a Ré procedesse ao pagamento do capital seguro. 44. Havendo assim erro de julgamento. 45. Pelo que, nos termos supra explanados, o Tribunal apreciou incorrectamente, face à prova documental e testemunhal produzida os factos que deu como não provados de “A” a “D” e que deveria ter dado como provados. 46. Tudo na certeza de que os documentos juntos pelo Autor não foram impugnados pela Ré e que os depoimentos testemunhais das testemunhas arroladas pelo Recorrente são suficientes. 47. Tendo por certo que o depoimento da testemunha da Ré, perito averiguador DD limitando-se a lançar suspeições que disso não passam. Como bem se detalhou em sede de alegações. 48. Assim, dando cumprimento ao disposto no artigo 640º n.1 CPC, o facto não provado A) deveria ter sido dado como provado, não obstante a sua total irrelevância para a decisão a proferir nos autos, deve ser tido por provado atento o teor da PI e que não foi desacreditado pela Ré e pelo depoimento da testemunha BB. 49. Os Factos Não Provados B) e C) deveriam ter sido dados como provados atenta a prova documental dos autos e testemunhal produzida. 50. Quanto a tal merece melhor apreciação a prova documental e a testemunhal das testemunhas BB e CC, com depoimentos gravados mediante Habilius Media Studio das 10:05m às 10:17m e 10:17m às 10:29m e transcritos supra, nas alegações 51. O Facto Não Provado D) deveria ter sido dado como provado atenta a prova testemunhal produzida. 52. Assim, face à prova referida e que se transcreveu em alegações, em cumprimento do disposto na alínea a) do nº.2 do artº640 do CPC, os factos não provados identificados nas alíneas A) a D) do ponto 4.1.2. da sentença “a quo” devem, por erro de apreciação da prova, SER JULGADOS COMO PROVADOS, transitando para a respetiva secção (ponto 4.1.1 da sentença) justificando, por conseguinte, a condenação da Ré no pedido, pelo menos no que respeita ao peticionado quanto ao valor seguro, acrescido de extras (no caso dos extras atento o facto não provado H, em desfavor da Ré), tudo no valor de 14.187,28€. 53. Sendo que os demais factos “não provados” pouco ou nada importam para uma boa decisão da causa sendo por isso irrelevantes quer sejam dados como não provados quer o seu contrário. 54. Aliás, a modificabilidade da decisão de facto formada pelo Tribunal que se peticiona no presente recurso, atentas as considerações tecidas na sentença em crise pelo tribunal “a quo” acerca da prova testemunhal arrolada pelo Autor, que coloca dúvidas sérias sobre a credibilidade das testemunhas BB e CC, impõem nos termos do disposto no artigo 662º n.2 alínea a)do CPC. seja ordenada a renovação da prova testemunhal supra requerida. Ou, em alternativa, 55. Seja ordenada à Ré a junção do relatório de averiguação que este (perito) elaborou, para que se comprovem as diligências probatórias por este efetivamente levadas a cabo (art.º 662º n.2 al.b) CPC) 56. No que respeita ao Direito: a) A Recorrente cumpriu com os procedimentos contratualmente previstos e que lhe conferem o direito à indemnização devida por furto ou roubo (Cláusula 1º, 2ª e 4ª do contrato de seguro e que consta do facto provado n.3 da sentença em crise) b) Não resultaram provados pela Ré, ora Recorrida, quaisquer factos que a escusem da responsabilidade de indemnizar que decorre do contrato de seguro nos termos previstos no mesmo. ---cfr. cláusula 3ª (exclusões) do contrato de seguro e que consta do facto provado n.3 da sentença em crise. c) Na certeza de que tal prova compete à Ré/Recorrida atento o disposto no artigo 342º n.2 do Código Civil. d) E que não competia ao Tribunal suprir a falta de alegação e prova da Ré neste sentido. 57. Há contradição clara entre a prova produzida nos autos e em julgamento, e a decisão proferida. 58. Pelo que, a Ré deve ser condenada a indemnizar o Autor nos termos contratuais firmados pelas partes. 59. Se o Tribunal “ad quem”, ouvidos os depoimentos, ainda tiver dúvidas sérias sobre a credibilidade das testemunhas referidas, tal como o referiu o tribunal “a quo”, sempre deverá dar cumprimento ao disposto no artigo 662º n.2 al.a) do CPC e que desde já se requer. 60. A decisão em crise, para além do mais, interpretou e aplicou erradamente o estatuído nos artigos 607º n.5 e n.6 do Código do Processo Civil e o disposto nos artigos 100º, 102º e 104º do Decreto-Lei nº 72/2008 de 16 de Abril e no artigo 1º n.3 do Decreto-Lei nº 446/85 de 25 de Outubro. Pelo exposto e pelo muito mais que resultar do douto suprimento de Vossas Excelências, deve dar-se provimento ao recurso, decidindo-se de acordo com as CONCLUSÕES supra que melhor resumem as alegações e, em consequência, alterando-se a matéria de facto (provada e não provada) como acima proposto observando-se o disposto no art. 662, CPC e, em consequência, deve revogar-se a sentença Recorrida substituindo-a por outra que julgue a acção procedente por provada, condenando-se a Recorrida no pedido, em conformidade, tudo como peticionado, Na certeza de que, sempre o Venerando Tribunal “ad quem” ouvidos os depoimentos testemunhais indicados, se ainda tiver dúvidas sérias sobre a credibilidade das testemunhas referidas, tal como o referiu o tribunal “a quo”, sempre deverá dar cumprimento ao disposto no artigo 662º n.2 al.a) do CPC e que desde já se requer.”
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A Ré contra-alegou apresentando as seguintes conclusões: “Deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo ora recorrente, confirmando-se a douta sentença recorrida, com as legais consequências. Termos em que contando com o douto suprimento de V. Exas. não se deve conceder provimento ao recurso da recorrente, com as consequências legais, tal como é de JUSTIÇA!”
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida de imediato, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
* II. O objecto e a delimitação do recurso
Colhidos os vistos, sabendo que o recurso é objectivamente delimitado pelo teor do requerimento de interposição (artigo 635º, nº 2 do Código de Processo Civil) pelas conclusões (artigos 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 640º, todos do Código de Processo Civil) pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas e, ainda pelas questões que o Tribunal de Recurso possa ou deva conhecer ex officio e cuja apreciação se mostre precludida.
A tanto acresce que o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir expostas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Efectuada esta breve exposição e ponderadas as conclusões apresentadas, as questões a dirimir são:
- Apurar se é de alterar a matéria de facto nos termos pretendidos pelo Recorrente e em que medida essa alteração importa a alteração do direito a aplicar.
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III. Os factos
No Tribunal recorrido foram considerados:
III. 1. Como provados os seguintes Factos: “1. Entre o Autor AA, na qualidade de segurado, e a Ré Generali Seguros, S.A., na qualidade de seguradora, foi celebrado um acordo escrito intitulado «contrato de seguro do ramo automóvel» titulado pela apólice n.º ..., através do qual a segunda declarou assegurar o risco de circulação automóvel do veículo ..-GH-.., na modalidade de responsabilidade civil obrigatória, e, ainda, de danos próprios, com as coberturas de furto ou roubo e de complemento de indemnização extra, com o capital seguro de € 14.187,28, sendo € 11.886,64 o capital seguro do veículo e de € 2.300,64 o capital seguro nos extras. 2. O Autor e a Ré estipularam ainda, nos termos da cláusula 38.º, das condições gerais anexas ao acordo, o seguinte: «Extras: Componentes ou equipamentos não integrados de origem no veículo seguro, devidamente identificados e valorizados pelo Tomador do Seguro, nomeadamente: - Todos os equipamentos ou componentes incorporados no veículo por decisão do adquirente e em data posterior à sua saída de fábrica; - Quaisquer letras, desenhos, emblemas, dísticos alegóricos, reclamos ou propaganda, pintados, apostos ou fixados no veículo seguro.» 3. Acordaram ainda as partes nas cláusulas 1.ª., 2.ª, 3.ª e 4.ª das condições especiais atinentes à cobertura de furto ou roubo o seguinte: «Cláusula 1.ª – Definições Para efeito da presente Condição Especial considera-se: FURTO OU ROUBO: O desaparecimento, destruição, ou deterioração do veículo por motivo de furto, roubo ou furto de uso (tentados ou consumados). Cláusula 2.ª – Âmbito da cobertura Em derrogação do disposto na alínea a) do n.º 4 da cláusula 5.ª, a presente Condição Especial garante ao Segurado o ressarcimento dos danos causados ao veículo seguro por furto ou roubo, quer estes se traduzam no desaparecimento, na destruição ou deterioração do veículo e/ou dos seus componentes, quer na subtração de peças fixas e indispensáveis à sua utilização. Cláusula 3.ª – Exclusões Para além das exclusões previstas nas cláusulas 5.ª e 40.ª das Condições Gerais, não ficam garantidas ao abrigo da presente Condição Especial as seguintes situações:
a. a) Danos que consistam em lucros cessantes, perda de benefícios ou de resultados para o Tomador do Seguro e/ou Segurado em consequência de privações de uso, gastos de substituição ou depreciação do veículo seguro; b) Furto ou roubo cometido por pessoas que coabitem ou dependam economicamente do Tomador do Seguro/Segurado, pessoas que se encontram ao seu serviço, ou por quem, em geral, aqueles sejam civilmente responsáveis; c) Danos diretamente produzidos por lama ou alcatrão ou outros materiais utilizados na construção das vias; d) Danos causados em extras, tal como definido na cláusula 38.ª, incluindo o teto de abrir, quando os mesmos não forem devidamente valorizados e identificados nas Condições Particulares; e) Danos em capotas de lona. Cláusula 4.ª – Condições de funcionamento da cobertura 1. Ocorrendo furto ou roubo, e querendo o Segurado usar dos direitos que a presente Condição Especial lhe confere, deverá apresentar assim que possível queixa às autoridades competentes e promover as diligências ao seu alcance conducentes à descoberta do veículo e dos autores do crime. 2. Ocorrendo furto ou roubo que dê origem ao desaparecimento do veículo, o Segurador obriga-se ao pagamento da indemnização devida, decorridos que sejam sessenta (60) dias sobre a data da participação da ocorrência à autoridade competente, se ao fim desse período não tiver sido encontrado.» 4. No dia 5 de Fevereiro de 2019, pelas 15:20 horas, o Autor apresentou queixa na 75.ª Esquadra da Polícia de Segurança Pública de Caneças, contra desconhecidos, comunicando a ocorrência do furto do veículo ..-GH-.., ocorrido entre as 20:00 horas do dia 04-02-2019 e as 14:00 horas do dia 05-02-2019, a qual deu origem ao processo n.º 000041/19.4PKLRS. 5. No dia 05-02-2019, o Autor comunicou o furto do veículo ..-GH-.. à Ré, o que deu origem ao processo de sinistro n.º .../Apólice .... 6. Em 11-04-2019, a pedido do Autor, foi emitida uma declaração escrita pelo Agente da Polícia de Segurança Pública EE, da 75.ª Esquadra de Caneças, com o seguinte teor: «Para os devidos efeitos se declara que em 2019-02-05 foi elaborado neste Departamento Policial, Auto de Denúncia NPP 59488/2019, NUIPC 000041/19.4PKLRS/Crimes contra a propriedade, entre 2019-02-04 20:00 e 2019-02-05 14:00, em que o denunciante Nuno Miguel Martins Rodrigues Cardoso, nascido a 1975-07-23, em Portugal residente em .... (lista de bens furtados/roubados perdidos) ..-GH-.., BMW 560L, Preto, 2008, n.º de chassis: (…) Acrescenta-se que até ao presente, a referida viatura ainda consta como furtada, no sistema informático em uso nesta Polícia por ainda não ter sido recuperada. (…)». 7. O Autor juntou ao processo de sinistro n.º .../Apólice ... aberto junto da Ré a declaração referida em 6) e solicitou-lhe o pagamento de indemnização, com base na cobertura de «Furto ou Roubo». 8. Por carta datada de 15-05-2019, a Ré informou o Autor nos termos seguintes: «Exmo/a.(s) Senhor/a(s): Reportamo-nos ao sinistro em título, de cuja regularização nos ocupamos. Serve a presente para informar V. Exa.(s) que, após análise aos elementos que integram o nosso processo, nomeadamente averiguação efectuada, se constatou a existência de um conjunto de irregularidades que nos levam a concluir que o sinistro não terá ocorrido de uma forma aleatória, súbita e/ou imprevista, pelo que declinamos qualquer responsabilidade pela liquidação dos danos decorrentes do mesmo. Se pretender obter algum esclarecimento adicional, por favor contacte-nos através de um dos meios abaixo indicados. Com os nossos melhores cumprimentos, (…)». 9. Em 09-07-2019, a Ré enviou uma missiva ao Autor comunicando-lhe que: «Exmo/a(s) Senhor/a(s): Reportamo-nos ao sinistro em título, cuja regularização nos ocupamos. Serve a presente para informar V. Exa. (s) que, após análise aos elementos que integram o nosso processo, nomeadamente averiguação efectuada, concluímos que o sinistro não ocorreu nos moldes em que nos foi participado/reclamado. Em face do exposto, declinamos qualquer responsabilidade pela via extra-judicial, pela liquidação dos danos decorrentes do mesmo. Com os nossos melhores cumprimentos, (…)». 10. O Autor, por intermédio de advogado, remeteu uma carta datada de 11-06-2019 à Ré, com o seguinte teor: «Exmos. Senhores, Venho contactar V. Exas. em nome e representação do Senhor AA, v/segurado através da apólice de seguro automóvel n.º ..., ao abrigo da qual decorreu o processo de sinistro supra identificado com o n.º ... e referente a roubo do veículo seguro de matrícula ..-GH-.. (marca BMW/modelo 560L). Com efeito, o n/Cliente e v/segurado, no dia 05.02.2019 subscreveu uma participação de sinistro em que deu conhecimento do roubo do veículo seguro, que estava regularmente estacionado, desde o dia anterior, na ..., na Ramada. Com data de 15.05.2019 foi remetida carta ao Segurado, m/Cliente, informando que “após análise aos elementos que integram o nosso processo, nomeadamente averiguação efectuada, se constatou a existência de um conjunto de irregularidades que nos levam a concluir que o sinistro não terá ocorrido de uma forma aleatória, súbita ou imprevista, pelo que declinamos qualquer responsabilidade pela liquidação dos danos decorrentes do mesmo.” Por não ter sido invocada qualquer causa de exclusão da responsabilidade e sendo certo que, deste modo, não é possível apreciar da validade da posição assumida pela Tranquilidade face às condições gerais e especiais da apólice contratadas, solicito a V. Exa. a concretização das razões porque declinam a responsabilidade pela regularização do roubo de veículo ocorrido e participado. Na expectativa de breves notícias, subscrevo-me com os melhores cumprimentos.» 11. Desde 16-05-2018, que a propriedade do veículo ..-GH-.. encontra-se registada a favor de BB.”
III. 2. Como não provados os seguintes Factos: “A) O veículo ligeiro de passageiros, de marca BMW, modelo série 5 LCI Diesel, versão 520, com a matrícula ..-GH-.. (doravante veículo ..-GH-..) pertence ao Autor AA. B) No dia 4 de Fevereiro de 2019, pelas 20:00 horas, o Autor estacionou o veículo ..-GH-.. em frente ao prédio situado no n.º 34 da ..., em Odivelas. C) No dia 5 de Fevereiro de 2019, pelas 14:00 horas, o Autor dirigiu-se ao local onde havia estacionado o veículo ..-GH-.. e este não se encontrava no local. D) Nessa sequência, o Autor procurou o veículo ..-GH-.. na área envolvente ao local referido em B) e não o encontrou. E) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em B), no interior do veículo ..-GH-.. encontravam-se os seguintes objetos: um carrinho de bebé e uma cadeira para transporte de bebé em automóvel do grupo 0+. F) O Autor é empresário. G) O Autor utilizava diariamente o veículo ..-GH-.. nas suas deslocações decorrentes do exercício da sua atividade e, bem assim, para prover às necessidades da sua vida particular e familiar. H) O veículo ..-GH-.. é composto por pack’s M, equipamentos opcionais de série.”
* IV. O Direito IV.1. - Impugnação da Matéria de Facto Provada
A recorrente veio impugnar a matéria de facto considerada como não provada pelo Tribunal de 1ª Instância defendendo que os factos vertidos nas alíneas A) a D) deveriam ser eliminados do elenco dos factos não provados e levados ao rol dos factos provados.
O Tribunal de 1ª Instância deu como não provado, ao que aqui nos interessa, que: “A) O veículo ligeiro de passageiros, de marca BMW, modelo série 5 LCI Diesel, versão 520, com a matrícula ..-GH-.. (doravante veículo ..-GH-..) pertence ao Autor AA. B) No dia 4 de Fevereiro de 2019, pelas 20:00 horas, o Autor estacionou o veículo ..-GH-.. em frente ao prédio situado no n.º 34 da ..., em Odivelas. C) No dia 5 de Fevereiro de 2019, pelas 14:00 horas, o Autor dirigiu-se ao local onde havia estacionado o veículo ..-GH-.. e este não se encontrava no local. D) Nessa sequência, o Autor procurou o veículo ..-GH-.. na área envolvente ao local referido em B) e não o encontrou.”
Para fundamentar a sua convicção o Tribunal de 1ª Instância referiu que: “(…) No mais, o Tribunal formou a sua convicção negativa, quanto à matéria de facto relevante para a decisão da causa através da análise crítica e ponderada, à luz das regras da lógica e das máximas da experiência da vida, dos documentos juntos aos autos e dos depoimentos prestados pelas testemunhas. Vejamos: O Tribunal formou a sua convicção negativa no que tange aos factos aludidos em A), B), C), D), E), F) e G) atenta a falta de prova segura que atestasse a sua verificação, pelas razões que infra se farão por explicitar. Diga-se, antes de mais, que, das pessoas ouvidas em audiência final apenas a testemunha BB, cunhado do Autor, e a testemunha CC, companheira do Autor, revelaram conhecimento direto sobre a factualidade acima referida, por terem (alegadamente) presenciado, ainda que em diferente medida, os factos ora em apreciação. Quanto ao facto mencionado em A) o Tribunal não o deu como provado uma vez que não foram carreados para os autos meios de prova suficientemente seguros que atestassem a sua verificação, sendo certo que o ónus de prova de tal facto cabe ao Autor. Com efeito, ficou provado em 11) que a propriedade do veículo ..-GH-.. encontra-se registada a favor de BB, cunhado do Autor, sendo certo que não tendo o registo de propriedade efeito constitutivo, a referida propriedade a favor de AA poder-se-ia ter dado como demonstrada com base em outros meios de prova. Sucede que, apenas consta do processo, um requerimento de registo automóvel junto de fls. 10v a 11, o qual encerra a declaração de venda assinada por BB e o Autor, por via da qual o primeiro declara vender ao segundo o veículo ..-GH-... Porém, tal documento não se encontra sequer datado, ficando o Tribunal com dúvidas com base no seu teor se de facto o contrato de compra e venda do veículo em questão foi concluído entre as partes. Por outro lado, o depoimento da testemunha BB, cunhado do Autor, revelou-se muitíssimo comprometido com a defesa da transparência e lisura do negócio que alegadamente celebrou com o Autor, na medida em que aquela testemunha se limitou a confirmar que assinou o requerimento de fls. 10v a 11, sem contudo especificar e concretizar os aspetos essenciais do negócio, como seja o preço pelo qual efectuou a respectiva venda ou a data em que o negócio foi concluído. Instado pelo I. Mandatário do Autor, a testemunha BB referiu não se lembrar da data em que vendeu o veículo ao Autor, repetindo por várias vezes «já foi há algum tempo (…)», tendo, após ser sugestionado pelo mandatário, admitido que entre a data em que tal negócio foi concluído e a data em que o veículo foi furtado possam ter decorrido entre 1 mês a 3 meses. Contudo, em sede de esclarecimentos suscitados pelo I. Mandatário da Ré foi evidente a postura defensiva e agressiva que denotou, tendo inclusive retorquido com a expressão «(…) isso é uma comédia, o que está a perguntar …»(sic), quando questionado se o requerimento de registo automóvel de fls. 10v a 11 poderia ter sido preenchido após a ocorrência do furto, respondendo de forma hostil que não se recordava da data em que tal documento tinha sido assinado e qual o período de tempo que havia decorrido entre o preenchimento e a assinatura de tal documento e o furto do veículo, afirmação inconsistente com a prestada aquando da instância do Autor. Ora, atenta a forma comprometida e pouco objetiva com que a testemunha BB prestou depoimento, aliado à circunstância de denotar uma relação familiar com o Autor, não conseguiu o Tribunal conferir credibilidade às suas declarações, no sentido de com base nelas formar um juízo de convicção positiva sobre o facto mencionado em A) (a que não será alheio, em nossa perspetiva, o facto de o documento de fls. 10v a 11 não se encontrar datado – vide ausência do preenchimento do campo 7. de tal documento -, e, bem assim, atento o facto de nenhuma justificação plausível ter sido alegada pelo Autor ou pelo seu cunhado quanto à falta de regularização do registo de propriedade do veículo). Com efeito, seria de todo o interesse quer do Autor, quer da própria testemunha, que a propriedade do veículo se encontrasse devidamente registada, para obviar, nomeadamente, que o anterior proprietário pudesse receber interpelações para pagamento do IUC ou, inclusive, de portagens. Por outro lado, sendo o bem efetivamente da propriedade do Autor este também teria interesse em regularizar a propriedade junto do registo, evitando, por exemplo, que o veículo pudesse ser objeto de penhoras, em caso da eventual existência de dívidas por parte do anterior proprietário – a não ser que o Autor soubesse, de antemão, que a viatura iria desaparecer e, por essa via, não pudesse ser objeto de quaisquer apreensões. A este propósito, diga-se adicionalmente que não deixou o Tribunal de estranhar que a companheira do Autor, a testemunha CC, quando questionada sobre a identidade da pessoa a quem o seu marido teria comprado o carro, ter respondido não saber a resposta a tal questão. Ora, não é crível, face às regras da experiência da vida, que atenta a natureza existente entre esta testemunha e o Autor – vivem em condições análogas às dos cônjuges há 23 anos – e, bem assim, a relação familiar entre estes e o alegado vendedor do carro – BB – que a companheira do Autor não saiba a quem é que o seu companheiro comprou a viatura, ainda para mais quando pela própria foi afirmado que este veículo era o único que o seu agregado familiar possuía, à data dos factos. Assim sendo, e em jeito de conclusão, cumpre referir que inquiridas as testemunhas BB e CC e concatenando, confrontando e relacionando os seus depoimentos com os demais elementos de prova recolhidos nos autos – em especial, o requerimento de registo automóvel de fls. 10 e 11 e certidão de registo automóvel de fls. 96v – ficou este Tribunal com sérias e inultrapassáveis dúvidas quanto à veracidade dos seus depoimentos. Posto isto, o Tribunal deu como indemonstrado o facto vertido em A) em estreita observância das regras de repartição do ónus da prova previstas no art. 342.º do Cód. Proc. Civil. Por argumento de identidade de razão, o Tribunal ficou igualmente com dúvidas inultrapassáveis acerca das circunstâncias de tempo e lugar em que o veículo ..-GH-.. terá sido furtado e, bem assim, acerca das condições pessoais do Autor, razão pela qual deu como indemonstrados os factos referidos em B) a G). Não se olvida que nos casos de furto de veículo, o juízo probatório a empreender ao nível do alegado desaparecimento do automóvel não é, a mais das mais vezes, compatível com a exigência de prova directa. Assim, e tal como tem vindo a ser defendido pela jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores (veja-se, a título meramente exemplificativo, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 16-05-2019, e Tribunal da Relação do Porto, datado de 25-01-2022, ambos disponíveis in www.dgsi.pt), tal juízo probatório deverá bastar-se com a existência de uma participação às autoridades, feita em circunstâncias que possam ser objeto de corroboração por outros elementos de prova, que não ponham em causa a verosimilhança e seriedade dos factos constantes de tal participação. De facto, o ónus de alegação e prova sobre a ocorrência do risco coberto, v.g. furto do veículo, incumbe ao Autor, pelo que, ainda que se entenda que o Tribunal não possa exigir a verificação de prova directa sobre o desaparecimento do veículo, terá ainda assim que ser feita prova indirecta, com recurso a elementos de prova adicionais, que confirmem do ponto de vista das regras do senso comum, que os factos narrados pelo lesado, aquando da elaboração da participação, correspondem à verdade. Não pode o Tribunal, em nossa modesta opinião, bastar-se com o teor do auto de denúncia, na medida em que de tal auto só é possível extrair-se o que foi declarado pelo lesado, uma vez que o ónus de prova sobre o desaparecimento do veículo a si lhe incumbe, não existindo qualquer regra, neste campo, de inversão do ónus da prova. Feito este esclarecimento, cumpre referir que não foi feita prova suficientemente segura que ateste que o desaparecimento do veículo se deu nas circunstâncias de tempo, lugar e modo alegadas pelo Autor. Com efeito, a única testemunha inquirida sobre o referido desaparecimento foi a companheira do Autor, a qual depôs com uma postura comprometida, à defesa, parca em pormenores e, destarte, pouco consistente. De facto, a testemunha CC, companheira do Autor, limitou-se a afirmar que o carro foi estacionado na esquina do prédio onde o casal residia, à data dos factos, por volta das 20:00, quando ambos regressavam da casa da sua sogra e que no dia seguinte, por volta da hora de almoço, em hora que não soube precisar, mas entre as 13:30 e as 14:00, o Autor e a própria testemunha dirigiram-se ao local onde havia sido estacionado o veículo e depararam-se com o seu desaparecimento. Referiu ainda que o seu companheiro foi fazer queixa à PSP sobre o desaparecimento do veículo, mas que antes disso ligou ao seu cunhado (BB) e «deram umas voltinhas na área» (sic), sem contudo terem conseguido localizar a viatura. Ao longo do depoimento desta testemunha foi perceptível a sua postura muitíssimo comprometida, sendo evidente a sua enorme tensão e preocupação em relatar de forma estudada e mecanizada as circunstâncias que presidiram ao desaparecimento do veículo, sem contudo, conseguir esclarecer pontos essenciais que rodearam tal desaparecimento. Com efeito, a testemunha diz não se recordar se o dia em que desapareceu o veículo foi um dia de fim-de-semana ou dia da semana, o que muito se estranha, diga-se, pois, tendo a mesma afirmado que o casal saiu de casa para almoçar, não tendo saído desde a noite anterior, aquando deixaram o veículo estacionado, tal rotina é mais compaginável com um dia de fim-de-semana (sendo certo que o dia 5 de fevereiro de 2019 foi terça-feira), uma vez que, e conforme igualmente afirmado por CC, tanto a própria como o seu companheiro, à data dos factos, trabalhavam. De facto, segundo o relato constante do auto de denúncia o Autor não encontrou o seu veículo, no dia 5 de fevereiro de 2019, pelas 14:00, sendo que decorre das regras da experiência da vida que, nos dias de trabalho, é pouco plausível que apenas se saia de casa por volta das 14:00, para ir almoçar, a não ser que, por exemplo, a testemunha estivesse de folga. Ora, se é certo que atento o hiato de tempo decorrido é perfeitamente compreensível que a testemunha não se recorde do dia exato que o veículo do seu companheiro desapareceu é igualmente incontestável que é estranho que não se recorde de certos aspectos essenciais que circunstanciaram tal desaparecimento, pois, tais aspectos sempre ficariam impressos na sua memória atento o estado de tensão, susceptível de provocar o desaparecimento do único veículo do respectivo agregado familiar. Acresce que, ficou evidente a pouca segurança e firmeza com que a testemunha prestou o seu depoimento, sendo evidente o seu pouco à-vontade em responder às questões que lhe eram colocadas pelo Tribunal, no que respeita à conduta adoptada pelo seu marido, nos dias seguintes à participação do desaparecimento da viatura junto da PSP. A este propósito a testemunha CC afirmou que não sabia se o seu companheiro foi regularmente à PSP, após ter realizado a respetiva participação, tendo em vista apurar se o seu veículo tinha sido encontrado, afirmando, a este propósito, que «ele nunca mais falou sobre o assunto.» (sic). Ora, é absolutamente implausível que perante o desaparecimento do único veículo existente no agregado familiar do Autor, constituído por si e pela sua companheira, a que acresce a circunstância de igualmente terem desaparecido um carrinho de bebé e um ovo do neto de ambos, que o referido desaparecimento não fosse objeto de conversa entre o casal, nos tempos seguintes ao seu desaparecimento, pois a reação normal de um qualquer cidadão nestas circunstâncias é de se sentir nervoso e perturbado, o que convocaria uma postura proactiva junto das autoridades policiais, no sentido de indagar se o veículo teria aparecido e, bem assim, a partilha dessas mesmas preocupações com a sua companheira, que ademais, estava consigo, no último momento em que o veículo foi visto. Dito de outra forma: o desaparecimento do veículo nos moldes alegados pelo Autor não é compatível com uma postura ligeira e serena, após a ocorrência dos factos, ao ponto de nunca mais ter falado sobre o assunto no seu seio familiar, feita a participação às autoridades policiais, conforme relatado pela sua companheira. Adicionalmente também se refira que são igualmente pouco plausíveis os depoimentos de CC e BB, respetivamente mulher e cunhado do Autor, no que respeita à circunstância de perante o desaparecimento do veículo, no dia seguinte a ter estacionado junto à sua residência, o Autor ter entrado em contacto com o cunhado, ao invés de por sua própria iniciativa, eventualmente na companhia da sua mulher, ter de imediato encetado diligências para encontrar a sua viatura, incluindo ter ido falar com vizinhos que lhe pudessem fornecer alguma pista quanto à ocorrência. Por último, igualmente se estranha que o Autor apenas tenha arrolado como testemunhas da ocorrência do desaparecimento do seu veículo, e, bem assim, das suas condições pessoais, a sua companheira, CC, e o seu cunhado, BB, cujas relações familiares de grande proximidade são prejudiciais à assunção de uma postura isenta e desinteressada. De facto, caso o único veículo do Autor, à data dos factos, tivesse desaparecido nas circunstâncias alegadas, julga-se que não faltariam familiares, amigos próximos e vizinhos, isto é, outras testemunhas, que atestassem o estado de nervosismo e tensão de AA em consequência do referido desaparecimento. Destarte., atentas as inconsistências e implausibilidades dos factos relatados pela testemunha CC, o Tribunal ficou com sérias e inultrapassáveis dúvidas sobre a verificação da factualidade referida em B) a G), uma vez que não foram produzidos elementos probatórios coadjuvantes do teor da participação que foi apresentada nas autoridades policiais pelo Autor, razão pela qual tais factos reputaram-se não provados, em decorrência das regras do ónus da prova prevista no art. 342.º do Cód. Civil.”.
Ouvida a totalidade da prova produzida em audiência de julgamento e analisados os documentos juntos aos autos, acompanhamos parcialmente a posição do Tribunal de 1ª Instância.
Na 1ª Instância foi considerado como não provado sob a alínea A) que “O veículo ligeiro de passageiros, de marca BMW, modelo série 5 LCI Diesel, versão 520, com a matrícula ..-GH-.. (doravante veículo ..-GH-..) pertence ao Autor AA.”
Não obstante a convicção do Tribunal de 1ª Instância devidamente explanada em sede de motivação quanto à propriedade do veículo objecto dos autos é entendimento deste Tribunal da Relação que o Recorrente/Autor deve ser considerado como proprietário do veículo.
Em sede de contestação a Ré/Recorrida impugna o alegado no artigo 1º da petição inicial invocando “não ter obrigação de saber, por não se tratar de factos pessoais”, bem como impugna, a letra, assinatura e, por maioria de razão, o conteúdo de todos os documentos que não tenham por si sido elaborados, o que faz nos termos e para os efeitos do nº. 1 do artigo 444º do Código de Processo Civil, nomeadamente o documento junto como documento 01 com a petição inicial.
Não se compreende a posição da Recorrida quanto a este aspecto. Na verdade, aquando da celebração do contrato de seguro automóvel o Autor teve necessariamente de apresentar documento que titulasse a propriedade do veículo ou de documento através do qual o proprietário do veículo o autorizasse utilizá-lo.
Não cremos que a Recorrida celebrasse qualquer contrato de seguro automóvel sem um desses documentos.
Não obstante o teor do documento 01 junto com a petição inicial, certo é que foi o Autor que celebrou o contrato de seguro com a Recorrida seguradora e é perante aquele que esta responde.
Mais se refira que peses embora não se prove o modo como o Recorrente/Autor adquiriu o veículo, pois repare-se que do documento 01 não consta qualquer menção à forma de aquisição da viatura, temos por provado que a viatura a determinada altura, antes de celebrado o contrato de seguro, passou para a titularidade do Recorrente.
A tanto acresce que a Recorrida em lado algum alega que aquando da celebração do contrato de seguro com o Autor este a ludibriou invocando uma falsa propriedade do veículo.
O facto de na queixa apresentada junto da autoridade policial competente se referir que não é o lesado e depois se dizer que “denunciante não é o lesado, contudo adquiriu a viatura não a tendo regularizado”, não permite concluir que o Recorrente não é o proprietário.
Por último, é certo que a propriedade do veículo se encontra registada a favor de terceiro, a testemunha BB, que afirmou que vendeu o veículo ao Recorrente, o que corrobora o teor do documento 01 junto com a petição inicial.
Sendo certo que o acto de registo de um bem a favor de determinada pessoa não tem efeitos constitutivos do direito, mas apenas declarativos da existência desse direito perante terceiros, é entendimento deste Tribunal considerar como provado que “O veículo ligeiro de passageiros, de marca BMW, modelo série 5 LCI Diesel, versão 520, com a matrícula ..-GH-.. (doravante veículo ..-GH-..) pertence ao Autor AA.”
Nestes termos, considera-se parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto quanto a este segmento e consequentemente determina-se a eliminação da alínea A) dos factos não provados e carrear tal factualidade aos factos considerados como provados acrescentando-se o ponto 12 com a seguinte redacção: “12 - O veículo ligeiro de passageiros, de marca BMW, modelo série 5 LCI Diesel, versão 520, com a matrícula ..-GH-.. (doravante veículo ..-GH-..) pertence ao Autor AA.”
Veio ainda o Recorrente pugnar pela eliminação dos factos descritos nas alíneas B) a D), defendendo que tais factos devem ser levados ao elenco dos factos provados.
Não podemos deixar de efectuar um reparo inicial às alegações apresentadas pelo Recorrente.
Obviamente que, impugnada a matéria de facto considerada como não provada pelo Tribunal de 1ª Instância, este Tribunal da Relação ouviu atentamente toda a prova produzida, bem como leu e apreciou todos os documentos juntos.
Posto isto, no que diz respeito a esta impugnação da matéria de facto, é entendimento deste Tribunal de Recurso que a mesma se encontra votada ao insucesso.
Em primeiro lugar, é de referir que, nos termos do artigo 342º, nº 1 do Código Civil, Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
Quanto às regras de repartição de ónus de prova, mais concretamente, ao ónus de prova que recaía sobre o Recorrente/Autor, acompanhamos o defendido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 07 de Novembro de 2024, in www.dgsi.pt, onde se lê: “Num primeiro momento, vejamos como questão com contornos semelhantes - relativamente ao ónus probatório e suficiência dos elementos probatórios produzidos, quanto está em causa pedido de indemnização às seguradoras, decorrente do risco assumido por danos próprios, incluindo o decorrente do furto de veículos - tem sido tratada jurisprudencialmente. O que faremos referenciando várias decisões por ordem cronológica. No douto Acórdão da RG de 16/11/2017 – Relator: José Alberto Moreira Dias, Processo nº. 216/14.2T8EPS.G1, in www.dgsi.pt– sumariou-se que “celebrado contrato de seguro entre as partes, em que um dos riscos cobertos é o furto do veículo, incumbe ao autor a prova da verificação do furto, por se tratar de facto constitutivo do direito indemnizatório que se arroga titular perante a seguradora (art. 342º, n.º 1 do CC), competindo à última o ónus da alegação e da prova de factos conducentes à exclusão da sua responsabilidade (n.º 2 do art. 342º do CC)”. Pelo que, “não cumprindo o segurado este ónus, a dúvida sobre a existência do sinistro tem de ser resolvida contra si (art. 414º do CPC)” (sublinhado nosso). Por sua vez, no douto Acórdão desta Relação e Secção de 22/11/2018 – Relator: Pedro Martins, Processo nº. 18262/17.2T8LSB.L1-2, in www.dgsi.pt -, defende-se que “quando as partes incluem num contrato de seguro a cobertura do risco do furto do bem segurado, não podem deixar de saber – principalmente a seguradora, devido à actividade que exerce – que a prova inequívoca da verificação do furto é, senão impossível, pelo menos muito difícil porque a subtracção da coisa, que caracteriza o furto (art. 203 do Código Penal), se faz, na maior das vezes, de forma subrepetícia, sem que o proprietário da coisa se dê conta de tal subtracção. Se o proprietário se desse conta da subtracção, por norma tentaria evitar a mesma, o que poderia levar a que ela não ocorresse ou que o agente que levava a cabo a subtracção reagisse com violência, o que transformaria o furto num roubo (art. 210 do CP). Nestas hipóteses, deixaria, por isso de se poder falar de furto. Ou seja, a constatação de que um crime, por ser um acto ilícito e censurável, é, na maior parte dos casos, praticado de forma oculta, vale com particular força, para o crime de furto”. Desta forma, acrescenta-se, “se, por isso, se celebra um contrato de seguro incluindo aquele risco de furto, por cuja cobertura o tomador de seguro vai pagar um prémio de valor superior ao que pagaria sem essa cobertura, e se nesse contrato – como é o caso dos autos – nada se diz para restringir o conceito de furto -, então, para que o contrato não se torne uma pura forma de a seguradora cobrar mais dinheiro pelo seguro, isto é, para que ele tenha utilidade também para o tomador do seguro (conduzindo ao equilíbrio das prestações para que aponta a regra de interpretação do art. 237 do CC ou os ditames da boa fé como regra de integração dos negócios por força do art. 239 do CC, com particular aplicação no caso dos contratos com cláusulas contratuais gerais, por força dos arts. 10, 11, 15, 16, 9 e 21/-c, todos do da LCCG - DL 446/85, de 25/10, sendo que os contratos de seguro são, por norma, contratos de adesão, com cláusulas contratuais gerais), não se pode exigir que se faça a prova com toda a certeza do furto, devendo ela fazer-se por meio de indícios, entre eles o mais forte e com valor bastante, o da formalização de uma queixa junto das autoridades policiais, feita em circunstâncias tais que não ponham em causa a seriedade da mesma, ou seja, que apontem para a sua verosimilhança. Pois que, senão, só quase nos casos de furto que tivessem sido captados por câmaras de vigilância é que o segurado poderia receber o capital acordado com a seguradora para indemnização do sinistro. Mas não foi isso que a seguradora se comprometeu a cobrir: caso contrário, bastar-lhe-ia fazer com que isso ficasse a constar do contrato – por exemplo: só os furtos ocorridos em lugares abrangidos por câmara de vídeo ou só os furtos filmados é que estão cobertos, etc - e o tomador do seguro saberia que só nessa hipótese é que seria indemnizado e só pagaria o prémio por esse risco reduzido”. Donde, aduz-se, “se é certo que o segurado tem o ónus da prova de que o veículo foi furtado (neste sentido, todos os acórdãos referidos mais abaixo – depois deste § - e os por eles citados), para tal basta, no entanto, aquela queixa com aquelas características (na prática, assim aconteceu, por exemplo, no caso do ac. do TRL de 24/05/2018, proc. 2098/16.0T8SXL.L1-2, com referência a um abuso de confiança englobado na definição que foi dada de furto; tal como no caso do ac. do TRP de 21/02/2018, proc. 32/17.0T8GDM.P1; no caso do ac. do TRL de 21/12/2017, proc. 32159/16.0T8LSB.L1-6, nada mais consta dos factos provados para além da participação e o furto não foi posto em causa; tal como no caso do ac. do STJ de 14/12/2016, proc. 2604/13.2TBBCL.G1.S1; e também no caso do ac. do TRG de 11/07/2013, proc. 2135/12.8TBBRG.G1, nada mais se provou para além do alegado desaparecimento e participação às autoridades policiais)”. Aduz-se, então, caber à seguradora “a prova de circunstâncias capazes de afastar a prova de primeira aparência do furto feita por aquela queixa. Trata-se, pois, de atribuir àquela queixa de furto um valor de prova bastante “que cede perante a simples dúvida que o julgador, confrontado com outros elementos de prova, tenha sobre a realidade do facto por ela em princípio provado (art. 346 CC)” (a parte entre aspas pertence a Lebre de Freitas; a aplicação à matéria do caso é do acórdão)”. Pois, “a qualquer seguradora, com a organização de meios de que dispõe, é extremamente fácil fazer a prova das circunstâncias – se elas se verificarem de facto - que, no caso concreto, põem em causa a prova do furto, como aliás se vê nos vários casos em que a questão se discutiu sempre de forma muito extensa (….). Ou seja, quando essas circunstâncias existem, são muito fáceis de provar. O que também resulta de a fraude ou burla provocadas pelos segurados dizerem, por regra, respeito a bens de valores elevados em que, por isso, também costumam haver meios/instrumentos que podem ser utilizados pelas seguradoras: desde localizadores instalados nos veículos, até chaves electrónicas que guardam dados de utilização que podem ser lidos, passando pelos bloqueadores de veículos”. Donde, ter-se sumariado que “o segurado tem o ónus da prova de que o veículo foi furtado, mas para tal basta a existência de uma participação às autoridades policiais, feita em circunstâncias tais que não ponham em causa a seriedade da mesma, ou seja, que apontem para a sua verosimilhança. É depois à seguradora que cabe a prova de circunstâncias capazes de afastar a prova de primeira aparência do furto feita por aquela participação” (sublinhado nosso). Por sua vez, em douto aresto da RP de 23/02/2023 – Relator: Aristides Rodrigues de Almeida, Processo nº. 30/21.9T8PVZ.P1, in www.dgsi.pt -, apreciando-se situação com alguma atinência ao caso sub judice, consignou-se que “um dos elementos decisivos para a formação da convicção do julgador é a verosimilhança dos factos sobre os quais recai a controvérsia, ou seja, a pertinência lógica dos mesmos ao domínio dos acontecimentos humanos que por definição possuem motivações apreensíveis, são norteados pela inteligência humana (no sentido de serem comportamentos orientados para um fim compreensível e delineados por processos intelectualmente aptos, mesmo quando são comportamentos asnáticos) e estão de acordo com o que as regras da experiência nos ensinam ser expectável, corresponder ao devir normal. Comportamentos privados de racionalidade, opostos ou diferentes da actuação que o comum dos cidadãos teria, cuja lógica ou motivação não é sequer perceptível ou se mostra destituída de coerência, são estranhos e como tal, ainda que possíveis, são pouco prováveis, indiciando que ou o comportamento não foi realmente aquele que é afirmado ou o seu objectivo é diferente daquele que se pretende”. Assim, “o reconhecimento de um direito pressupõe a demonstração dos factos geradores do direito e para isso existem regras que distribuem o ónus da prova dos factos. Todavia, a função dessas regras não é tanto a de definir quem tem de provar o quê, mas essencialmente a de determinar contra quem se irá repercutir a não prova (por falta ou insuficiência dos meios de prova) de um facto. Nos termos do artigo 414.º do Código de Processo Civil, havendo dúvidas sobre a realidade de um facto, a decisão deve ser desfavorável à parte a quem o facto aproveita. À outra parte não é exigida a prova do facto contrário, basta-lhe tornar o facto duvidoso. Isso mesmo resulta do artigo 346.º do Código Civil segundo o qual à prova que for produzida pela parte sobre quem recai o ónus probatório pode a parte contrária opor contraprova a respeito dos mesmos factos, destinada a torná-los duvidosos e se o conseguir, rectius, se lograr criar dúvidas sobre a verificação dos factos, a questão é decidida contra a parte onerada com a prova. Por conseguinte, o esforço probatório a produzir pela parte sobre quem recai o ónus de prova é tanto maior quanto maior forem as dúvidas sobre o facto criadas pelos meios de prova produzidos pela parte contrária, mesmo que estes não sejam suficientes para fazer a prova do contrário”. Acrescenta, incidindo sobre a questão em equação, existir “alguma jurisprudência que depois de afirmar a dificuldade em fazer a prova de que o veículo foi furtado para efeitos de accionamento do seguro que cobre o risco de furto ou roubo do mesmo, se inclina para atribuir à participação do furto às autoridades policiais pelo lesado a natureza de «prova de primeira aparência» (cf. Acórdão desta Relação de 08.11.2022, proc. n.º 2842/20.1T8STS.P1), considerando-a «suficiente… desde que a seguradora não consiga afastar essa prova de primeira aparência» (cf. Acórdão desta Relação de 28.10.2021, proc. n.º 1857/19.7T8VNG.P2), em resultado do que incumbiria à «seguradora, para afastar a sua responsabilidade … pôr em causa a aludida verosimilhança das alegações fácticas da autora fundada naquela prova» (cf. Acórdão desta Relação de 10.01.2022, proc. n.º 6509/18.2T8MTS.P1). Outro Acórdão entende mesmo que «o indeferimento da pretensão do beneficiário de seguro pode resultar da suspeita de que o mesmo facto foi falsa e ilicitamente por si alegado. Mas, porque encerra uma suspeição criminal, esse indeferimento pressupõe estejam reunidos indícios que diríamos quase suficientes, isto é, ainda que não revistam a característica de provas que ultrapassem a dúvida sobre uma possível condenação (caso fosse submetido a julgamento criminal), tornem mais verosímil a conclusão pela fundamento da suspeita de burla» (cf. Acórdão desta Relação de 09.12.202, proc. n.º 3521/17.2T8GDM.P2). Diferentemente e mais no sentido da nossa opinião, outro Acórdão manifesta que incumbe a quem «invoca a titularidade de um direito indemnizatório que lhe assiste por via da celebração de um contrato de seguro …, em consequência de se ter verificado um furto, … a prova da verificação do furto, uma vez que este surge como elemento constitutivo do seu direito. Porém, como a prova da verificação do furto de um veículo é normalmente difícil de efectuar por este ocorrer de forma sub-reptícia, impõe-se ao autor não uma prova directa deste, mas sim que, tendo apresentado a respectiva queixa junto das entidades policiais, forneça ao tribunal elementos probatórios coadjuvantes que permitam formular um juízo de verosimilhança relativamente a essa queixa. Se esses elementos probatórios coadjuvantes não são produzidos, a prova da verificação do furto não poderá ser feita apenas com base na participação que foi apresentada nas autoridades policiais» (cf. Acórdão desta Relação de 10.07.2019, proc. n.º 1521/17.1T8AMT.P1)”. Todavia, aduz-se, a este respeito “afigura-se-nos que não existem razões nem fundamento para a propósito de acções deste género nos afastarmos das regras legais do ónus da prova e do regime imperativo consagrado no artigo 347.º do Código Civil. Tais regras são, aliás, modelações legais do princípio da livre apreciação da prova, razão pela qual, em respeito pelas regras do Estado de Direito democrático que balizam o âmbito dos poderes dos vários órgãos de soberania, devem ser acatados pelo julgador de modo estrito. Por outro lado, tanto quanto vemos, a constatação correcta da dificuldade de provar determinados factos, que não é exclusiva das acções com este objecto e se intensifica quando estão em causa, por exemplo, factos negativos ou factos futuros, qualquer que seja a acção onde devem ser provado, não pode justificar que se atribua a um acto voluntário e livre do próprio interessado (o deslocar-se a um posto de policia para apresentar uma queixa) que é insusceptível de qualquer controlo ou fiscalização um valor probatório que manifestamente este não pode ter, atenta a sua natureza, origem e facilidade. Não é certamente por acaso que a lei penal consagra em os vários tipos legais de crime, o crime de simulação de crime (artigo 366.º do Código Penal) punindo-o com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias. Desse modo, na nossa leitura, numa situação como a que nos ocupa, não existe meio de prova que seja, pela sua própria natureza, isto é, abstractamente, mais valioso que outro, e todos se encontram sujeitos não apenas à livre apreciação do tribunal, como, sobretudo, aos critérios racionais de avaliação epistemológica do seu valor probatório relativo”. Deste modo, “a questão nuclear consiste em saber se à prova produzida pela autora (que a há indiscutivelmente) a ré opôs contraprova bastante para tornar duvidosos os factos que incumbia à autora demonstrar, rectius, se essas dúvidas são juridicamente relevantes, no sentido em que ultrapassam o limiar a partir do qual se deve aplicar a consequência prevista no artigo 346.º do Código Civil. (…)”.
Revertendo ao caso dos autos, dúvidas não existem que o Recorrente apresentou uma queixa crime junto da autoridade competente, a PSP, relatando que no dia anterior estacionou o veículo numa Rua perto da sua residência e que no dia a seguir o veículo tinha desaparecido.
A apresentação da queixa junto da autoridade policial competente constitui prova de primeira aparência do furto, ou seja, sabendo-se da dificuldade que existe em provar de modo directo a existência do furto, a jurisprudência não impõe a prova directa deste.
Todavia, a prova da apresentação de queixa junto das entidades policiais, não basta por si só, é necessário que se forneça ao tribunal elementos probatórios coadjuvantes que permitam formular um juízo de verosimilhança relativamente a essa queixa. Se esses elementos probatórios coadjuvantes são produzidos, mas não lograram gerar uma convicção positiva no julgador, a prova da verificação do furto não pode ser feita apenas com base na queixa/participação que foi apresentada nas autoridades policiais.
Analisada a exposição da convicção do Tribunal de 1ª Instância que sustentou a decisão de considerar como não provados os factos constantes das alíneas B) a D), ouvidos na totalidade todos os depoimentos prestados em sede de audiência de julgamento e analisados e apreciados todos os documentos juntos, perfilhamos da posição do Tribunal de 1ª Instância quanto à ausência de prova segura e convincente que permita sustentar um juízo de verosimilhança da queixa/participação.
Ao invés da posição do Recorrente a convicção do Tribunal não se firma apenas no que dizem as testemunhas, mas sim do conjunto do depoimento de cada testemunha e modo como é prestado.
A testemunha BB, cunhado do Recorrente, prestou, em nosso entender, um depoimento pouco convincente. Esta testemunha disse que vendeu o veículo ao Autor, não se recordando da data em que a venda ocorreu. Posteriormente, emendando a mão, disse que a venda havia sido realizada um mês a três meses antes do furto ter ocorrido, para mais tarde voltar a afirmar não se recordar quanto tempo decorreu entre a venda e o furto. Mais se estranha ainda que não tenha referido o preço da venda e quando confrontado com o documento junto com a petição inicial que consubstancia a declaração de “venda”, documento este que para além de não se encontrar datado, também não se mostra assinalado o modo de aquisição da viatura pelo Autor/Recorrente.
O depoimento prestado pela testemunha CC ainda se revelou mais incoerente. Não se trata de qualificar ou não a postura mais ou menos calma da testemunha perante o alegado furto do veículo, mas antes de verificar a inconsistência desse depoimento.
Esta testemunha afirmou ser companheira do Autor/Recorrente há 23 anos. Vivendo a testemunha com o Recorrente em união de facto, muito se estranha que a testemunha não se recorde da pessoa que vendeu o veículo ao Recorrente, até porque a pessoa que vendeu foi exactamente a testemunha BB, cunhado do Recorrente, pessoa que acompanhou o Autor, segundo a versão carreada pelo Recorrente, no dia do furto à procura do veículo na zona.
Repare-se que não foi um desconhecido, mas sim o próprio cunhado do Recorrente. Muito menos se compreende, pois essa venda havia ocorrido 01 a 03 meses antes da aquisição.
Ora, sendo o veículo o único do agregado familiar e não se tratando de um veículo de baixa gama, mais se estranha que a testemunha não se recorde a quem foi adquirido e qual o preço.
Independentemente do modo mais calmo ou mais ansioso com que se esteja em Tribunal, o depoimento das testemunhas foi vago, pouco consistente e pouco revelador.
A convicção do Tribunal não se restringe apenas ao que dizem as testemunhas, mas também ao modo como o dizem e à postura que adoptam.
Esta apreciação critica efectuada pelo Tribunal não permite à parte concluir, como pretende o Recorrente, que o Tribunal preconiza o “carpimento partilhado”, bem como não lhe permite concluir que “(…)o tribunal teria ficado mais confortável com testemunhas muito bem industriadas no sentido de convencer o tribunal de algo que em rigor, apenas 2 pessoas atestaram, pois essa é a normalidade – o Autor e a sua mulher.”
A convicção do Tribunal de 1ª Instância encontra-se fundamentada de modo claro, explicito e devidamente circunstanciada.
Posto isto, e repita-se depois de ouvida a totalidade da prova produzida, este Tribunal da Relação acompanha a motivação e convicção do Tribunal de 1ª Instância.
Face ao exposto, improcede nesta parte a impugnação da matéria de facto invocada pelo Recorrente.
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IV.2 - Errada interpretação e aplicação do direito
Perante o quadro fáctico considerado como provado e não provado, acompanhamos na íntegra o enquadramento jurídico e a posição do Tribunal de 1ª Instância.
Com efeito, é evidente que a sindicância de direito da decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância se encontrava absolutamente dependente da alteração da matéria de facto pretendida pelo Apelante.
Improcedendo em toda a linha a impugnação da matéria de facto visada pelo Apelante, somos de concluir, sem necessidade de maiores considerações, pela improcedência do Recurso, na medida em que toda a construção jurídica pretendida pelo Recorrente assentava numa alteração substancial da matéria de facto.
Mantendo-se inalterado o elenco dos factos provados e não provados, resta concluir pela improcedência do Recurso.
Tendo decaído no recurso, é o recorrente responsável pelas custas – artigo 527º nº 1 e 2 do Código de Processo Civil.
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V. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto e consequentemente, mantém-se a decisão da 1ª Instância.
Custas do recurso pelo Recorrente.
Registe e notifique.
Lisboa, 26 de Junho de 2025
Juiz Desembargadora Cláudia Barata
Juiz Desembargador Jorge Almeida Esteves (vencido, nos termos da declaração infra)
Juiz Desembargadora Gabriela de Fátima Marques
Voto de Vencido:
Votei vencido porque considero que se deveria dar como provado a ocorrência do furto.
Entendo que, em termos objetivos, fez-se a prova desse facto, se bem que não propriamente nos termos específicos em que o autor alegou. O carro existia, estava estacionado junto à residência do autor, desapareceu desse local e nunca foi encontrado, tendo sido efetuada pelo autor, logo após o desaparecimento, a participação às autoridades policiais. Tal, a meu ver, resulta da prova testemunhal, conjugada com o teor da participação. O apontado no acórdão quanto à prova testemunhal, para além de considerar que respeita a assuntos acessórios e não ao aspeto fundamental do furto, parece-me resultante da circunstância de o furto ter ocorrido em 2019, ou seja, há 5 anos à data do julgamento, sendo que temos ainda necessariamente de atender ao facto de, após o furto, ter ocorrido uma pandemia que dominou de forma muito intensa todos os aspetos da vida, fazendo esquecer tudo o resto, pelo que os lapsos de memória e as contradições afiguram-se perfeitamente aceitáveis. Neste caso entendo que cabia à ré seguradora produzir prova suscetível de conduzir a uma dúvida séria sobre a ocorrência do furto. Ora, verifica-se que a ré nada disso fez e nem sequer concretizou com os devidos factos qualquer suspeita relativa à ocorrência de eventual burla de seguros.