REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
ELEMENTOS OBJECTIVOS
CRIME DOLOSO
Sumário

I - Segundo as regras de experiência comum um toque não é apto a provocar dores. É uma actuação penalmente inócua, precisamente porque não tem aptidão ofensiva e, correspondentemente, falta o suporte objectivo para a intensão de causar qualquer forma de dor, o que determina uma situação de erro notório na apreciação da prova, vício a que se reporta o artigo 410º/2c), do CPP.
II - Dizendo-se no provado simultaneamente que o arguido só quis praticar alguns dos actos descritos e que quis adoptar todas as condutas descritas verifica-se um vício de contradição insanável na fundamentação.
III - Um qualquer tipo de crime, não omissivo, congrega, necessariamente elementos objectivos - que se podem definir como a materialidade da conduta ou da acção, enquanto modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos - e elementos subjectivos, que se traduzem na atitude interior do agente face ao facto naturalístico produzido.
IV - Num crime doloso hão-de constar, necessariamente, da acusação - pela absoluta relevância de que se revestem, face à necessidade de imputação do crime ao agente - factos que sejam susceptíveis de integrar a materialidade da conduta descrita no tipo e que levem a concluir que cada agente agiu: - Livremente, ou seja, que pôde determinar a sua acção – assim se afastando as causas de exclusão da culpa; - Com o conhecimento dos elementos e circunstâncias descritos no tipo legal de crime e do resultado da sua conduta (elemento intelectual do dolo); - Deliberadamente, ou seja, que quis o facto criminoso (elemento volitivo); - Conscientemente, o que significa que é imputável (imputabilidade); - Sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento emocional do dolo).
V - Tudo isto pressupõe a prévia definição do facto típico praticado, que se desconhecendo qual é, dá origem ao referido vício de vício de contradição.

Texto Integral

Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal:
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I – Relatório:
Em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido AA foi absolvido da prática do crime de violência doméstica por que foi acusado.
Vem o Ministério Público recorrer duplamente, quer quanto ao entendimento de que a consideração de que determinados factos constituem uma alteração substancial da acusação quer quanto à absolvição do arguido.
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II- Fundamentação de facto:
Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes os factos:
1º- Em ... de 2015 o arguido AA e BB iniciaram um relacionamento amoroso, do qual nasceu um filho a ... de ... de 2018, CC.
2º- O arguido AA e BB viveram em comunhão de mesa, habitação e leito durante 8 anos, sendo que começaram a viver juntos em ... de 2015, numa residência sita na ....
3º- Em ... de 2018, o arguido AA e BB passaram a viver na ....
4º- Em ... de 2020, o arguido AA e BB passaram a viver no ....
5º- Juntamente com o arguido AA e BB vivia o filho de ambos e uma filha de BB, menor de idade, nascida a ... de ... de 2013.
6º- Depois de um desentendimento ocorrido após o ...de 2023, BB foi para casa da mãe com os filhos e AA permaneceu na casa.
7º- Pouco tempo depois, BB voltou para casa com os filhos, tendo combinado com o arguido que no fim de semana de ...e … de 2023 este não iria a casa.
8º- Na execução do acordo o arguido saiu de casa no dia ... de ... de 2023, levando consigo a chave da porta.
9º- No dia ... de ... de 2023, Sábado, pelas 06h00, o arguido AA entrou na residência sem avisar, tendo encontrado BB a dormir com DD, pessoa com quem BB tinha um relacionamento.
10º- Depois de BB ter ido levar DD a casa desta e voltado, ocorreu uma discussão entre BB e o arguido AA, no decurso da qual o arguido tocou no pescoço daquela, causando-lhe dores, e ela empurrou o arguido.
11º- O arguido saiu definitivamente de casa levando os seus pertences no dia seguinte, depois de BB ter dito ao arguido AA que a reconciliação não era possível.
12º- No dia ... de ... de 2023, pelas 19h45, no momento em que BB foi buscar o filho a casa do arguido, após ter buzinado como costumava fazer com vista a que o filho fosse ao seu encontro, o arguido AA, irritado com a buzina porque esta incomodava os vizinhos, contactou telefonicamente BB e disse-lhe: “não faças muito barulho que eu bato-te com um barrote até deixares de respirar”.
13º- O arguido AA quis praticar alguns dos actos supra descritos, sendo que alguns quis praticá-los no interior da residência onde vivia com BB, sendo conhecedor da condição de companheira.
14º- O arguido AA quis adoptar as condutas descritas, bem sabendo que estas eram idóneas e adequadas a ofender a saúde física e psicológica de BB, bem como a provocar-lhe mal-estar psicológico, e provocar-lhe sentimentos de humilhação e medo de ser agredida fisicamente.
15º- O arguido AA agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas não lhe eram permitidas.
16º- Neste momento o arguido AA e BB têm um relacionamento cordial, interagindo apenas nas questões relacionadas com o filho de ambos.
17º- O arguido encontra-se desempregado, auferindo subsídio de desemprego no montante de €600.
18º- Vive sozinho em casa arrendada, pagando €250 de renda de casa.
19º- Paga €80 de prestação de alimentos a cada um dos dois filhos menores que tem.
20º- Do certificado do registo criminal do arguido não consta qualquer condenação.
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Para apreciação do recurso intercalar importa considerar que está documentado em acta que no final última audiência de discussão e julgamento, e antes da leitura da sentença, ocorreram os seguintes procedimentos:
« DESPACHO
“Do julgamento foi referido que o arguido terá mandado diversas mensagens telefónicas a BB dizendo-lhe que ela era fufa, puta e nojenta, nos quatro meses a seguir à saída do arguido de casa.
Esta factualidade não consta da acusação, sendo por isso nova, estando fora do objecto do processo tal como delimitado pela a acusação.
Trata-se por isso de um acrescento e não uma alteração de factos que já constassem da acusação, na medida em que nada é modificada, mas adicionado.
Assim, nos termos e para os efeitos do artigo 359.º, n.º 1 do Código de Processo Penal comunique a referida alteração que se configura como substancial de factos à defesa.”
Do despacho que antecede foram todos os presentes devidamente notificados.
Dada a palavra à Ilustre Defensora Oficiosa do arguido pela mesma foi dito não dar acordo.
Após, pelo Mm.º Juiz de Direito foi proferido o seguinte:
DESPACHO
“Uma vez que a defesa não dá acordo para continuação do julgamento por estes factos, nos termos e para os efeitos do artigo 359.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, a comunicação vale como denuncia.”»
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Factos não provados:
Não se provou que:
- A ... de ... de 2023 o arguido AA tivesse levado a chave da porta sem o consentimento de BB.
- No dia ... de ... de 2023 o arguido tivesse chamado a BB “és uma puta, uma nojenta, uma fufa.”
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III- Fundamentação da aquisição probatória:
O Tribunal a quo justificou a aquisição probatória nos seguintes termos:
«Para a fixação dos factos dados como provados serviu-se o tribunal do princípio da livre apreciação da prova, fixado no art.º 127º do Cód. de Processo Penal, valorada da seguinte forma:
- O arguido AA e a ofendida BB descreveram a relação que mantiveram. Ambos estão de acordo no facto de a relação só ter terminado definitivamente depois do arguido se ter mudado de malas e bagagens para outra casa, e tal só sucedeu após o fim-de-semana de ...e ... de ... de 2023 BB foi explícita nisso e AA ainda referiu que no dia da discussão ainda jantaram em família, sendo este sido o último jantar em que todos estiveram juntos.
BB explicou ainda que uma semana antes tinham saído ela e os filhos da casa de morada de família após um desentendimento, indo para casa da sua mãe. Uma semana mais tarde, e uma vez que o arrendamento da casa de morada de família estava em seu nome, decidiu voltar, tendo acordado com o arguido que naquele fim-de-semana em particular ele não permaneceria em casa e não iria lá. Foi por isso necessário alterar ligeiramente a factualidade descrita na acusação, que referia que o arguido tinha saído definitivamente de casa antes da discussão do dia .... Isto resulta ainda mais evidente do acordo para o arguido não ir a casa durante o fim-de-semana, ou seja, aquela continuava a ser a sua casa. DD disse que, nessa ocasião, o relacionamento entre o arguido e a sua actual companheira BB já tinha terminado e ambas se estavam ainda a conhecer, mas esta apreciação é puramente subjectiva, sendo improvável que a dormirem juntas a relação não fosse já sólida, tratando-se então de um caso de infidelidade. Não resultou provado que a chave de acesso à casa tivesse sido retirada contra a vontade de BB atentas as explicações dadas por esta, pois a casa ainda era também a do arguido; a violação da vontade desta resultou da quebra do acordo de ele ficar fora de casa aquele fim-de-semana.
Quanto ao que se passou durante a discussão, pode argumentar-se que BB falou verdade quando disse ter-lhe o arguido apertado o pescoço e, como reacção e em defesa, ela o empurrou, uma vez que não se descortinou qualquer vontade de o prejudicar faltando à verdade (tanto assim é, que nunca quis apresentar queixa). Por outro lado, também o arguido assumiu ter quebrado a palavra dada de não ir a casa naquele fim-de-semana e a ameaça proferida em ..., não revelando qualquer vontade de se exculpar. Assim sendo, não conseguiu o tribunal mais do que estabelecer que ambos se tocaram naquela ocasião, tendo o arguido dito que não apertou o pescoço à companheira.
No que toca ao alegado no artigo 13º da acusação, o mesmo é puramente conclusivo, não se tendo o tribunal pronunciado sobre o mesmo.
Por último, e no que respeita à ameaça de ... de 2023, o arguido reconheceu-a, como já se havia dito, e contextualizou-a com a sua irritação resultante das buzinadelas que a mãe do seu filho dava à porta de sua casa quando queria ir buscar este, buzinadelas que incomodavam a vizinhança e o deixavam mal visto. Esta versão surge como coerente e permite explicar a referência ao “muito barulho” que a acusação, por referir secamente apenas o comportamento do arguido, não permite perceber, tornando a frase quase arbitrária. BB confirmou ter deixado de buzinar depois dessa ocasião. Quantos aos palavrões, BB disse peremptoriamente que o arguido não lhe chamou os nomes referidos na acusação, não se tratando de situação de esquecimento ou de pouca memória. Assim, o facto de DD ter dito estar a ouvir o telefonema por se encontrar no carro com a companheira e ter ouvido o arguido a proferir o insulto “fufa” torna duvidosa essa parte.
O tribunal deu como provado que as palavras do arguido exprimindo a vontade de bater na companheira com um barrote até ela deixar de respirar eram apenas idóneas a causar nesta receio de ser agredida e não de morrer. Como BB mesma disse, ela sabia que o arguido não seria capaz de atentar contra a sua vida. Em suma, as palavras do arguido eram idóneas a causar receio na destinatária de que algo de mal lhe poderia acontecer, mas não que a sua vida pudesse estar em risco, pois nada foi revelado que demonstrasse que o arguido seria capaz de ir tão longe.
Por último, quanto às condições sócio-económicas do arguido, valorou o tribunal as suas declarações em sede de audiência de julgamento, as quais se mostraram credíveis e não foram postas em causa por qualquer outro meio de prova.
Em relação aos antecedentes criminais, o tribunal tomou em consideração o CRC do arguido junto a fls. 190 e seguintes».
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IV- Recursos:
O Ministério Público recorreu do despacho referido no final do provado, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem:
« 1. Nestes autos foi submetido a julgamento o arguido AA, acusado da prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º n.º 1 b) e n.º 2 a) in fine, n.º 4 e n.º 5 do Código Penal.
2. Na data designada para leitura da sentença, o Mmo. Juiz de Direito comunicou ao arguido AA, tendo-se apurado em audiência do julgamento que o “arguido terá mandado diversas mensagens telefónicas a BB, dizendo que ela era fufa, puta, nojenta nos quatro meses a seguir à saída do arguido de casa, tal consubstanciava uma alteração de factos” (facto novo não constante da acusação), o que significaria estar-se perante uma alteração substancial dos factos descritos na acusação, a submeter ao regime do artigo 359.º 1 do Código de Processo Penal.
3. Perante essa comunicação, a Ilustre Defensora do arguido AA opôs-se à continuação do julgamento pelos novos factos, o que levou o Mmo. Juiz de Direito a proferir novo despacho, determinando: “Uma vez que não há acordo da defesa para a continuação do julgamento por estes factos, nos termos e para os efeitos do artigo 359.º n.º 2, a comunicação vale como denúncia.”.
4. Salvo o devido respeito, este despacho não merece aplauso, porquanto a lei distingue, no artigo 359.º do Código de Processo Penal, em matéria de alteração substancial, entre factos autonomizáveis e factos não autonomizáveis.
5. Os factos são autonomizáveis quando podem, por si só, ser suscetíveis de fundamentar uma incriminação autónoma em face do objeto do processo e os factos não são autonomizáveis quando são insuscetíveis de valoração jurídico-penal autónoma em relação aos factos objeto da acusação.
6. No caso dos autos, os factos novos, praticados no período do crime em apreço, violência doméstica, constituem, claramente, factos não autonomizáveis. Pois, na verdade, o arguido ao enviar mensagens para a ofendida, apelidando-a de “fufa, puta, nojenta”, no exato período em que, também, o dizia, por exemplo, por chamada telefónica, não constitui um crime autónomo, fazendo parte do mesmo pedaço de vida do fragmento em apreciação na acusação – objeto do processo, pelo que estamos perante facto que, por si só, não pode constituir objeto de um processo penal autónomo.
7. Existe uma unidade de sentido entre os factos da acusação e os novos factos, que não permite a autonomização destes últimos, pois o pedaço de vida em apreço, que resulta da acusação, situado num período de meses após o fim do relacionamento amoroso e a conduta reiterada do arguido ao longo desse hiato temporal, faz com que estes novos factos não redundem como diferentes na imagem global e valorativa da factualidade.
8. Assim, não sendo os novos factos autonomizáveis, impõe o artigo 359.º do Código de Processo Penal que o processo em curso prossiga os seus termos com os factos anteriores, ignorando o tribunal os factos novos.
9. Significa isto que, no caso em apreço, face à oposição da Ilustre Defensora do arguido AA à continuação do julgamento pelos novos factos, e porque estes não eram autonomizáveis do objeto do processo, o que o Mmo. Juiz de Direito deveria ter decidido, nessa parte, era o prosseguimento do processo em curso com os factos anteriores, ignorando o tribunal os factos novos e proferindo a final uma sentença de mérito.
10. Deste modo, ao determinar, face àquela oposição, a comunicação ao Ministério Público dos novos factos, para que procedesse pelos novos factos, valendo como denúncia, o despacho recorrido violou, por erro de interpretação, o disposto no artigo 359.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal.
11. Assim, o despacho em análise deve ser revogado e substituído por outro que determine o prosseguimento do processo em curso com os factos anteriores contra o arguido AA, ignorando o tribunal os factos novos e proferindo a final uma sentença.».
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O Ministério Público recorreu ainda da sentença, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem:
« 1. Nestes autos foi o arguido AA submetido a julgamento e absolvido da acusação contra ele formulado pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º n.º 1 b), n.º 2 a) in fine, n.º 4 e n.º 5 do Código Penal.
2. Nesta sequência, o Tribunal quo convolou o crime de violência doméstica, do qual o arguido vinha acusado, em crimes de ofensa à integridade física simples, previstos e punidos pelo artigo 143.º n.º 1 do Código Penal e num crime de ameaça, previsto e punido pelo artigo 153.º n.º 1 do Código Penal e, perante a falta de queixa, o Tribunal declarou que o Ministério Público carecia de legitimidade para dar andamento ao procedimento criminal.
3. A sentença é nula, por omissão de pronuncia quanto ao facto 8 da acusação, não cumprindo o disposto no artigo 374.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, verificando-se a nulidade da sentença, por força do disposto no artigo 379.º n.º 1 c) do Código de Processo Penal.
4. O facto 8 “- O arguido AA não aceitou o fim do relacionamento amoroso” é relevante para a discussão da causa, pois em caso de condenação é relevante para determinar a medida da pena e é ainda relevante para o preenchimento do tipo de ilícito imputado ao arguido, pois reveste importância compreender a motivação do arguido e o que o levou a praticar os elementos objetivos do tipo de crime, não tendo tal facto ficado consagrado na matéria de facto provada ou não provada.
5. A sentença não contém na enumeração dos factos provados e não provados o referido facto 8, sendo que da sentença consta apenas uma formulação genérica “Nenhuns outros factos resultaram provados”, p. 4 da sentença recorrida.
6. Esta formulação é ineficaz “(…) porque não dão a indispensável garantia de que todos os factos relevantes alegados, que não surgem descriminados na decisão sobre a matéria de facto, foram considerados nos termos legais. (…) A questão da exigência de enumeração dos factos provados e não provados não pode ser vista como uma mera formalidade. De facto, trata-se de uma garantia, designadamente para os sujeitos processuais, de que o tribunal, num processo equitativo, teve em atenção de igual modo, os factos, as provas e os argumentos da acusação e da defesa, e indagou e apreciou todos os factos - da acusação e da defesa - que podia e devia (…)”, in acórdão do Tribunal de Coimbra, datado de 08-02-2012, Relator: Alberto Mira, proc. n.º 38/10.0TAFIG.C1.
7. Assim, entende-se que deve ser determinada a prolação de nova decisão, com vista a expurgar o vício, formulando nova sentença que colmate a omissão detetada, não podendo o tribunal recorrido deixar de ter em conta, na estrutura global da nova motivação de facto este facto 8, devendo o mesmo ser dado como provado, atenta a prova produzida e a importância que o mesmo tem em todo o contexto factual, retirando-se a devida consequência jurídico-penal.
8. O facto “8 - O arguido AA não aceitou o fim do relacionamento amoroso” devia ter sido dado como provado, considerando a seguinte prova:
O depoimento da testemunha BB, gravada no Citius em média studio 20250214095316_12349218_2870245, desde o minuto 00:14 até ao minuto 00:22: “separei-me do senhor AA, da parte dele houve uma má aceitação.”, sublinhado nosso.
Acrescentou que “foi mais o choque, a reação dele não foi boa, de momento eu entendo que não foi a melhor, por isso é que eu não queria prestar declarações (…) apresentei queixa por causa do meu filho menor, senti-me ameaçada (…)”, desde o minuto 01:17 até ao minuto 01:38, sublinhado nosso.
“ele não aceitou bem o fim do relacionamento”, desde o minuto 08:36 até ao minuto 08:38, sublinhado nosso.
Depoimento da testemunha DD, gravado em media studio 20250214103205_12349218_2870245, desde o minuto 06:04 até ao minuto 06:10, perguntado se o arguido não aceitou o fim do relacionado, a testemunha disse que sim.
As declarações do arguido AA que, pese embora, não quisesse falar inicialmente, depois de ouvir o depoimento de BB, decidiu prestar declarações, gravadas em média studio 20250214100936_ 12349218_ 2870245, desde o minuto 03:44 até ao minuto 04:11h:
“E ter tratado como uma rainha durante 8 anos e ela trai-me com uma colega de trabalho, pronto não interessa, fez o que quis e lá está senhor Juiz, inicialmente foi muito difícil, eu gostava muito dela, não vou estar a mentir”, sublinhado nosso.
9. Os elementos probatórios que deixámos enunciados impunham que o tribunal recorrido, valorando os depoimentos da testemunha BB, conjugando-o com o depoimento de DD e com as declarações do arguido, de acordo com as regras da lógica e da experiência, inferisse/concluísse, sem margem para dúvidas, que o arguido não aceitou o fim do relacionamento amoroso, tendo vindo a atuar como atuou, durante meses, após o términus do relacionamento com BB.
10. O tribunal recorrido deu como não provado os seguintes factos: “- A ... de ... de 2023 o arguido AA tivesse levado a chave da porta sem o consentimento de BB.
- No dia ... de ... de 2023 o arguido tivesse chamado a BB “és uma puta, uma nojenta, uma fufa.”
11. Impunha-se que estes factos fossem dados como provados, considerando a seguinte prova:
O depoimento da testemunha BB, gravada no Citius em média studio 20250214095316_12349218_2870245, desde o minuto 05:20 até ao minuto 05:51:
“Há um episódio em que eu e o senhor AA tínhamos um acordo verbal em que naquele fim-de-semana, ainda não tinha havido mudança de moradia, ele ainda morava naquela casa, eu é que me ausentei de casa com os meus dois filhos. E depois decidi que não, a casa estava em meu nome, o contrato estava em meu nome e decidi voltar a casa. E disse-lhe, tínhamos um acordo verbal que naquele fim-de-semana, ele não iria lá a casa, o senhor AA não o cumpriu, levando uma chave de uma porta que não usava e entrou-me lá em casa às 06:00h e tal da manhã”, sublinhado nosso.
“sai de casa com os meus dois filhos e fui para casa da minha mãe e dei-lhe a hipótese naquela semana de ele ficar na casa, porque ele não tinha para onde ir, depois decidi voltar a casa, a verdade é essa, ao fim de uma semana, porque o contrato de arrendamento era no meu nome, eu já tinha falado com a senhoria, ela tinha dito se eu não voltasse a casa, ele também não ia ficar na casa, tudo bem, falei com ele, verbalmente acordamos que naquele fim de semana, eu iria ficar na casa e o senhor AA não ia à casa.”, desde o minuto 06:05 até ao minuto 06:35, sublinhado nosso.
“o senhor AA entrou por uma porta que eu não uso, a porta lateral da casa e no sábado de madrugada, às 06:00h e tal da manhã, entra-me por lá dentro”, desde o minuto 06:36 até ao minuto 06:49, sublinhado nosso.
Perguntado à testemunha qual o intuito do arguido ao entrar na casa, sem a avisar, a mesma respondeu: “eu acho que ele queria apanhar alguma coisa”, desde o minuto 07:52 até ao minuto 07:59.
Quanto ao segundo ponto a testemunha disse ainda que: “Naquele dia ele disse-me que eu não podia apitar do lado de fora da casa dele para ir buscar o meu filho, se não dava-me com um barrote até eu deixar de respirar”, desde o minuto 02:40 até ao minuto 02:50.
Perguntado à testemunha se, nessa mesma chamada, o arguido chamou nomes à mesma, a testemunha respondeu: “não, por mensagens é que ele me chamou nomes”, “que eu era uma puta, uma fufa, que não prestava”, desde o minuto 03:30 até ao minuto 04:40.
Perguntado à testemunha em que momento foram enviadas essas mensagens, a testemunha respondeu: “no fim do relacionamento, quando terminamos e depois mudou de moradia, foi aí, naqueles primeiros meses, depois de estarmos separados (…) durante quatro meses”, relacionadas com os momentos em que ia buscar o filho a casa do arguido, desde o minuto 03:30 até ao minuto 04:40. A instâncias do Mmo. Juiz, quando perguntado o porquê da frase “não apitar”, a testemunha respondeu: “eu não sei, senhor Juiz, eu não sei responder, porque é assim, o senhor AA vai levar o meu filho e apita sempre do lado de fora, mas quando era ao contrário, eu acho que fui uma vez e eu apitei e ele disse que eu tinha exagerado no apito e a partir daquele dia, ele entendeu que se eu fosse buscá-lo, não tinha que apitar e eu não apitei, porque a verdade é essa, eu esperei até às 09:00 horas”, desde o minuto 13:44 até ao minuto 14:16.
Depoimento da testemunha DD, gravado em media studio 20250214103205_12349218_2870245, desde o minuto 02:25 até ao minuto 02:51: “teve uma situação que o senhor AA voltou a casa e supostamente não era para voltar, o relacionamento deles já tinha terminado (…) estávamos a conhecer ainda (…) começando a namorar uns dias mais tarde”.
Sobre o episódio da ameaça, a testemunha disse: “lembro-me do senhor AA dizer à senhora BB que não era para chegar aquela hora e se fizesse barulho ou apitasse agarra num barrote e dava-lhe pela cabeça abaixo até deixar de respirar, isto eu ouvi, numa chamada telefónica”, desde o minuto 03:50 até ao minuto 04:04.
Perguntado se nessa chamada ouviu o arguido chamar nomes a BB, a testemunha respondeu: “ouvi dizer que ela era uma fufa”, desde o minuto 04:12 até ao minuto 04:17, sublinhado nosso. As declarações do arguido AA que, pese embora, não quisesse falar inicialmente, depois de ouvir o depoimento de BB, decidiu prestar declarações, gravadas em média studio 20250214100936_12349218_2870245, tendo dito que:
“E ter tratado como uma rainha durante 8 anos e ela trai-me com uma colega de trabalho, pronto não interessa, fez o que quis e lá está senhor Juiz, inicialmente foi muito difícil, eu gostava muito dela, não vou estar a mentir e houve uma vez que lhe chamei nomes, os nomes que lhe chamei, ela apresentou na polícia, os nomes que ela me chamou, eu guardei e vão comigo para a cova, senhor Juiz”, desde o minuto 03:44 até ao minuto 04:11h, sublinhado nosso.
“Ela pede-me um dia para não ir a casa e naquele dia, sim senhor, eu falto com a palavra, sabendo o que é que se estava a passar, senhor Juiz e chego a casa e vi o que eu vi, fui um grandíssimo homem”, desde o minuto 04:23 até ao minuto 04:36, sublinhado nosso. O auto de denúncia, datado de ...-...-2023, resultante da denúncia apresentada por BB (Ref. Citius n.º 5462468, datada de .../...-2023), do qual consta:
“Por na data e hora supracitada, quando me encontrava de graduado de serviço, compareceu neste departamento policial a vítima, a qual denunciou uma situação da qual é alvo de violência doméstica.
Questionada, a vítima refere que o seu ex-companheiro (item suspeito), tem atitudes ameaçadoras para com a mesma, através de chamadas telefónicas. A vítima relata que o suspeito, através de chamada, proferiu as seguintes palavras ameaçadoras e injuriosas: «NÃO FAÇAS MUITO BARULHO QUE BATO-TE COM UM BARROTE ATÉ DEIXARES DE RESPIRAR», «ÉS UMA PUTA, UMA NOJENTA, UMA FUFA», sublinhado nosso.
12. Quanto ao primeiro facto resulta claro do depoimento de BB que o arguido levou, sem esta saber, a chave da porta lateral, que não era utilizada, o que fez sem o seu consentimento, sendo de assinalar que, nesta parte, o arguido nada disse de muito concreto, apenas admitindo que entrou na residência, contra o que tinha acordado com BB, mas que foi um “grandíssimo homem” por isso.
13. Quanto ao segundo facto, pese embora BB tenha dito que efetivamente o arguido lhe chamou “puta e fufa” por mensagens e não por chamada naquela ocasião, a verdade é que o próprio arguido admite que chamou estes nomes à ofendida, porquanto o mesmo admitiu que chamou os nomes que a ofendida havia denunciado na polícia, o que é corroborado pelo auto de denúncia junto aos autos e ainda pelo depoimento de DD, que confirmou que, pelo menos, ouviu o arguido chamar “fufa” a BB na referida chamada telefónica.
14. O tribunal recorrido deu como provados os seguintes pontos: “(…) 8 - Na execução do acordo o arguido saiu de casa no dia ... de ... de 2023, levando consigo a chave da porta.
10 - Depois de BB ter ido levar DD a casa desta e voltado, ocorreu uma discussão entre BB e o arguido AA, no decurso da qual o arguido tocou no pescoço daquela, causando-lhe dores, e ela empurrou o arguido. (…)”.
15. Ora, quanto a estes pontos da matéria de facto dados como provados, temos por inequívoco que a prova produzida em audiência, conjugada com a prova documental constante dos autos, impunha que se dessem os mesmos como provados conforme resultavam da acusação, ou seja:
“- O arguido AA saiu de casa, lavando consigo a chave da porta, sem o consentimento de BB.”.
- Já no seu interior, o arguido AA aproximou-se de BB e, em ato contínuo, apertou-lhe o pescoço.”.
16. Sobre o ponto 8 dado como provado, remete-se para a fundamentação acima exposta relativamente ao ponto dado como não provado “- A ... de ... de 2023 o arguido AA tivesse levado a chave da porta sem o consentimento de BB.”, considerando-se que aí foram expostos os motivos pelos quais este facto deve ser dado como provado.
17. Por outro lado, com relevância para a decisão a proferir sobre o ponto 10 da matéria de facto dada como provada, e a impor que o mesmo fosse dado como provado de forma diferente, podemos sumariar a seguinte prova coligida nos autos:
O depoimento da testemunha BB, gravada no Citius em média studio 20250214095316_12349218_2870245, desde o minuto 06:50 até ao minuto 07:15:
“Eu na altura já tinha um relacionamento com a BB e ele apanhou-me com a BB lá em casa, em que eu fui levá-la depois a casa e depois regressei a casa e ele estava virado do avesso”, “apertou-me o pescoço, eu defendi-me, como sempre, percebo que ele depois se tenha arrependido”, sublinhado nosso.
A instâncias do Mmo. Juiz para esclarecer o episódio, a testemunha voltou a referir: “ele apertou-me o pescoço”, desde o minuto 13:03 até ao minuto 13:05, sublinhado nosso.
Perguntado, se nesse momento, o arguido falou em reconciliação, a mesma respondeu que “sim, mas que não queria”, esclarecendo ainda que ele disse “se podia haver alguma coisa, mas eu é que não quis”, desde o minuto 08:00 até ao minuto 08:23.
As declarações do arguido AA, gravadas em média studio 20250214100936_12349218_2870245, tendo o arguido começado por dizer: “isto que está aqui é o pagamento de ter tido a Senhora BB dentro de uma redoma de vidro durante quase 8 anos”, desde o minuto 03:16 até ao minuto 03:23.
“E ter tratado como uma rainha durante 8 anos e ela trai-me com uma colega de trabalho, pronto não interessa, fez o que quis e lá está senhor Juiz, inicialmente foi muito difícil, eu gostava muito dela, não vou estar a mentir (…)”, desde o minuto 03:44 até ao minuto 04:11h, sublinhado nosso.
Perguntado ao arguido se apertou o pescoço a BB, o mesmo respondeu “pegamo-nos, ela empurrou-me, toquei-lhe no pescoço, não houve mais nada (…) isto é o pagamento de eu a ter tratado bem durante quase 8 ano”, desde o minuto 04:57 ao minuto 05:03 e desde o minuto 05:30 ao minuto 05:32, sublinhado nosso.
18. Quanto ao facto 10 dado como provado, não vislumbramos, atento depoimento de BB, que se mostrou explicitou e sem hesitações, em afirmar que o arguido lhe apertou o pescoço, que tal facto não tivesse sido dado como provado e, ao invés, alterado para toque no pescoço, uma vez que a própria BB nem queria prestar depoimento, sendo possível perceber da sua postura que não queria prejudicar o arguido, merecendo total credibilidade por isso, ao que acresce o facto do arguido admitir que tocou no pescoço de BB.
19. A serem dados como provados os pontos de facto acima enunciados, entendemos que os mesmos, conjugados com os demais já dados como provados, integram a prática de um crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º n.º 1 a) do Código Penal.
20. Em primeiro lugar cabe destacar que consideramos ser patente a atitude de supremacia do arguido, que após o fim do relacionamento amoroso, “pôs e despôs da ofendida BB”, a seu bel-prazer, na medida em que, revoltado com o facto de a mesma não querer reatar o relacionamento amoroso e ter um novo relacionamento com uma mulher, pensou que era “um grandíssimo homem”, nas palavras do arguido, em invadir o espaço desta, agredindo-a fisicamente e, chamando-lhe nomes e ameaçando-a, dificultando os momentos em que a ofendida ia levar e buscar o filho de ambos à casa do arguido, para cumprir os convívios do filho com o arguido, deixando a vítima insegura e indefesa perante os ataques do arguido.
21. Analisando a factualidade como um todo, está assente que o arguido agrediu física e psiquicamente a ofendida para a afrontar a sua dignidade enquanto pessoa humana. O objetivo do arguido foi exclusivamente o de espezinhar, humilhar e amedrontar a ofendida, porque não aceitou a sua decisão de terminar o relacionamento. Após o fim do relacionamento, o arguido tratou a ofendida como sendo um objeto que perdeu, de modo a tratá-la como bem queria durante meses.
22. O bem jurídico a proteger está também intimamente ligado com o núcleo dos vínculos que se estabelecem no seio familiar e doméstico e nas relações de confiança que se estabeleceram enquanto casal ou ex-casal. Assim, este bem jurídico também visa a tutela da pacífica convivência familiar, que no caso foi gravemente afetada, relembrando que alguns dos atos ocorreram no momento em que a vítima ia levar ou buscar o filho em comum a casa do arguido.
23. A saúde psíquica de BB foi brutalmente ofendida, não apenas pelas ofensas, ameaças e injúrias adotadas pelo arguido, mas sobretudo através do clima de medo, angústia, intranquilidade, insegurança e humilhação que o arguido conseguiu criar e que levaram a que a ofendida a apresentasse queixa, tal como explicou.
24. Porém, ainda que se considere que existiam fundamentos para a desqualificação jurídica operada pelo julgador, cremos importaria proferir decisão absolutória quanto ao crime de violência doméstica e, decisão que convolasse os factos para o crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º e 145.º n.º 1 a) e n.º 2 ex vi 132.º b) e ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º e 155.º a), todos do Código Penal, considerando os argumentos supra expostos, cremos que é especial censurável a conduta do arguido, atenta a globalidade dos factos.
25. No que toca ao crime de ameaça agravada não podemos deixar de entender que alguém que diz a outrem que lhe bate com um barrote até que essa pessoa deixe de respirar, não queira dizer que a mata, pois logicamente se alguém não respira significa que não vive.
26. Em síntese, deve conceder-se provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado a sentença recorrida, que deverá ser substituída por outro que, apreciando e valorando a globalidade dos meios de prova postos a disposição do tribunal, dê como provados os factos acima apontados e, em consequência, condene o arguido, como autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º n.º 1 a), n.º 2 a), n.º 4 e n.º 5 do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão, suspensa na sua execução em igual período e na pena acessória de proibição de contactos com a vítima pelo período de 2 (dois) anos.
27. O Tribunal recorrido violou o artigo 374.º n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal e o artigo 152.º do Código Penal.
V. Ex.as, porém, e como sempre, farão Justiça! ».
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Não foi apresentada resposta aos recursos
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Nesta instância, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta aderiu ao teor de ambos os recursos.
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V- Questões a decidir:
Do artigo 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso, exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso.
A questão colocada pelo Ministério Público no recurso interlocutório é saber da legalidade da consideração de que o aditamento de factos não constantes na acusação consistiria uma alteração substancial.
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As questões colocadas pelo recorrente, Ministério Público, no recurso da sentença são:
- Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379º/1-a) do CPP;
- Aditamento do conteúdo do ponto 8 da acusação ao provado e impugnação do provado e não provado;
- Alteração da qualificação jurídica dos factos para o crime de violência doméstica agravado.
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VI- Fundamentos de direito:
Do recurso interlocutório:
Atendendo a que a questão colocada neste recurso pode ter reflexos na matéria em causa no recurso final, o mesmo será apreciado desde já.
A questão colocada pelo Ministério Público implica apreciar se o aditamento ao provado de factos que tinham sido objecto de denúncia mas não foram levados à acusação constituem uma alteração substancial ou não substancial dos factos.
O Ministério Público entende que, tendo em vista que o arguido foi acusado pela prática de um crime de violência doméstica, porque os factos em causa não são autonomizáveis dos demais contidos na acusação, o respectivo aditamento configura alteração não substancial..
Diz expressamente que «Os factos são autonomizáveis quando podem, por si só, ser suscetíveis de fundamentar uma incriminação autónoma em face do objeto do processo e os factos não são autonomizáveis quando são insuscetíveis de valoração jurídico-penal autónoma em relação aos factos objeto da acusação».
A noção de alteração não substancial está mais do que escalpelizada na doutrina e jurisprudência.
Nos termos do artº 1º/f, do CPP, uma alteração substancial dos factos é «aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis».
Nos termos do artº 358º/3, do CPP «se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa»; segundo o nº 3 do mesmo preceito «o disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia».
Nos termos do artº 359º/1, do CPP, «uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal, para efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância».
Nos termos do artº 379º/1-b, do CPP, «é nula a sentença (…) que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º».
Estas são as normas basilares para a compreensão do estatuto da alteração substancial.
A distinção entre alteração substancial e não substancial é de extrema relevância para o processo penal, porque está em causa, claramente, a salvaguarda dos princípios do acusatório (ainda que mitigado) e do contraditório - princípios constitucionais enformadores do nosso sistema processual penal (artº 32º/1 e 5, da CRP).
Por força do princípio do acusatório a decisão final de qualquer processo-crime há de incidir apenas sobre os factos contidos na acusação, que são a condição e limite do tema do julgamento. Só relativamente a eles é admissível uma pronúncia do Tribunal, mediante a condenação ou a absolvição.
Por força do princípio do contraditório a decisão a proferir tem que respeitar sempre os direitos de defesa, o que compreende necessariamente o conhecimento, pelo arguido, do preciso teor da acusação e a possibilidade (efetiva, concreta) de sobre esses factos puder organizar a sua defesa. Ele significa que «nenhuma prova deve ser aceite em audiência, nem nenhuma decisão (mesmo interlocutória) deve ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade ao sujeito processual contra o qual é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar» (1).
Em causa, como se pode ver, está impreterivelmente a noção de facto, enquanto acontecimento naturalístico e pré-existente no mundo real.
Um processo penal de estrutura acusatória só assegura todas as garantias de defesa do arguido, mediante a exigência de que a condenação se limite pelo objecto do processo, definido pela acusação. Esta é a regra. São os factos descritos na acusação que delimitam definitivamente a essência do objecto do processo.
No entanto há excepções que ocorrem quando há concordância dos intervenientes processuais na alteração da factualidade, respeitadas as regras da competência do Tribunal (artº 359º/3, do CPP). Fora tais situações, a lei apenas permite que o arguido se confronte com alterações factuais que não colidam com a essência do tema definido pela acusação, nos termos previstos no artº 358º/CPP, ou seja, que não afectem de forma desrazoável o exercício do seu direito de defesa.
A noção de alteração substancial e não substancial dos factos é, na conformidade, um instrumento processual ao serviço da efectividade do exercício do direito de defesa.
Por fim, a noção dada pelo artº 1º/f, só pode ser entendida em conformidade com o sistema descrito, se se entender que a definição só compreende o que se haverá de entender por “substancial”, pressupondo-se sempre que esteja subjacente uma alteração de factos. O que a norma diz é que uma alteração de factos será considerada como substancial sempre que os novos factos se subsumam a um tipo de crime diverso ou que implique uma agravação dos limites máximos das sanções definidas pelos tipos contidos na acusação.
Figueiredo Dias chama a este efeito a vinculação temática do Tribunal, onde se consubstanciam os princípios da identidade (segundo o qual os factos objecto do processo serão necessariamente os mesmos desde a acusação ao trânsito em julgado da sentença), da unidade ou indivisibilidade (os factos objecto do processo devem ser julgados na sua totalidade) e da consumpção (mesmo que o objecto não tenha sido conhecido na sua totalidade há-de considerar-se irrepetivelmente decidido, e, portanto, os mesmos factos nunca poderão ser considerados no âmbito de outro processo).
O referido princípio da identidade significa que os factos que podem ser utilizados para efeitos de sentença serão apenas aqueles que tenham sido objecto de verdadeira acção penal: que tenham sido investigados e acusados e relativamente aos quais o arguido tenha tido oportunidade de defesa, ou seja, de poder exercer o contraditório.
Isto significa, desde logo, que integra a figura jurídica da alteração substancial a adição de factos novos, com relevância penal no caso concreto (isto é, que tenham sido fundamento da decisão, de per se ou em conjugação com outros), que não sejam uma mera especificação do iter criminis contido na acusação/pronúncia, porque eles influem, necessariamente, na verificação da factualidade típica ou na consideração de circunstâncias suscetíveis de agravar a medida concreta da pena.
São de considerar alteração substancial, portanto, todos os aditamentos que se refiram a factos (atos ou intenções) não descritos nem contidos na descrição factual feita na acusação/pronúncia, considerados enquanto acontecimentos naturalísticos (ocorrências do mundo real) distintos daqueles que foram imputados nessas peças, sobre os quais a defesa não se tenha sido chamada a pronunciar.
A situação é tanto mais inadmissível se em causa estiver uma alteração do tema da acusação/pronúncia.
As normas em causa – acima citadas – reportam-se à generalidade das situações, em que os factos que estão em causa são relativos ao mesmo bem jurídico tutelado, porque essa é a regra que decorre da forma como cada crime é caracterizado no nosso sistema penal.
Mas crimes há que tem uma abrangência singular, tutelando simultaneamente vários tipos de bens jurídicos distintos mas correlacionados, de tal forma que da conjugação de todos eles resulta a violação de um outro bem jurídico, abrangente e consumptivo dos directamente violados.
É o que se passa com o crime de violência doméstica, que protege bens jurídicos dotados de tutela penal individual, desde a integridade física, à liberdade e ao respeito pela individualidade e honorabilidade da vítima, tais como: injúrias, difamação, ofensas à integridade física, à autodeterminação sexual, ao direito à liberdade de acção e deambulação, e a toda uma série de comportamentos que atinjam de alguma forma a dignidade da pessoal da vítima.
Ora, no caso, feito o julgamento, o Tribunal recorrido entendeu que não ocorriam os pressupostos de facto que permitissem a qualificação dos factos delituosos provados como violência doméstica e, na conformidade, tendo encontrado prova relativa a factos não descritos na acusação, mas objecto de denúncia, insusceptíveis de integrar qualquer dos crimes relativamente aos quais entendeu que o provado se subsumia, fez funcionar, e bem, a tramitação própria da alteração substancial dos factos.
Na verdade, os factos que o Ministério Público agora pretende ver levados ao provado não foram objecto de inquérito, não foram considerados na acusação, sobre eles o arguido não pode promover uma defesa justa e a sua consideração constituiria uma verdadeira condenação sem a existência de uma acção penal que os abrangesse.
Verifica-se, no caso, precisamente uma situação em que os factos não levados ao provado são autonomizáveis porque podem, por si só, ser suscetíveis de fundamentar uma incriminação autónoma em face do objeto do processo.
Deste modo, não se vislumbra que o despacho recorrido ofenda as normas que estabelecem a distinção entre alteração substancial e não substancial dos factos, pelo que se manterá nos seus precisos termos.
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Do recurso relativo à sentença:
Da nulidade de sentença por falta de requisitos imperativos:
O Ministério Público invoca nulidade de sentença por falta de apreciação do conteúdo do ponto 8 da acusação, que não foi levado ao provado nem ao não provado o que, por princípio, constitui nulidade de sentença, nos termos do artigo 379º/1-a), conjugado com o artigo 374º/2, do CPP.
Na verdade, independentemente de o facto aí descrito ser inapto para a imputação de qualquer crime, ele é relativo a um determinado elemento circunstancial dos ilícitos imputados que, eventualmente, pode ser relevante para perceber a sua atitude, pelo que se impõe o reconhecimento da nulidade e a devolução dos autos para sua sanação.
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Dos vícios de sentença, de conhecimento oficioso:
Nos termos do artigo 410º/2 do CPP a sentença sofre de vícios que sempre que, considerado exclusivamente o elemento literal da mesma, considerado de per se, ou em conjugação com as regras da experiência comum, resulta, entre o mais, situações de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou erro notório na apreciação da prova.
O vício de contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão supõe posições antagónicas e inconciliáveis entre si nos factos descritos ou entre essa descrição e a respectiva fundamentação. Verifica-se quando «segundo um raciocínio lógico, é de concluir que a fundamentação justifica precisamente a decisão contrária ou, quando, seguindo o mesmo raciocínio, se conclui que a decisão não fica suficientemente esclarecida, quer porque existe contradição entre os fundamentos e a decisão, quer porque se dá como provado e como não provado o mesmo facto» (2). «Existe o vício (…) quando, de acordo com um raciocínio lógico na base do texto da decisão, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, seja de concluir que a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão ou torna-a fundamentalmente insuficiente, por contradição insanável entre factos provados, entre facto provados e não provados, entre uns e outros e a indicação e a análise dos meios de prova fundamentos da convicção do tribunal» (3).
O erro notório na apreciação da prova pode definir-se também sumariamente, como o vício que tem a ver com a aptidão da fundamentação da aquisição probatória à consideração sobre se determinados factos se encontram, ou não, provados. Existe erro notório na apreciação da prova quando, considerado o texto da decisão recorrida, por si, ou conjugado com as regras de experiência comum, se evidencia um erro de tal modo patente que não escapa à observação do cidadão comum ou do jurista com preparação normal. Ocorre o vício, quando se dão por provados factos que, face às regras de experiência comum e à lógica normal, traduzam uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorreta (4), quando se violam as regras sobre prova vinculada ou de «leges artis» (5), ou quando resulta do próprio texto da motivação da aquisição probatória que foram violadas as regras do «in dubio» (6).
Vista a matéria de facto provada, bem como a fundamentação da aquisição probatória encontramos a seguinte redacção do provado:
10º- (…) ocorreu uma discussão entre BB e o arguido AA, no decurso da qual o arguido tocou no pescoço daquela, causando-lhe dores;
13º- O arguido AA quis praticar alguns dos actos supra descritos (…) sendo conhecedor da condição de companheira.
14º- O arguido AA quis adoptar as condutas descritas, bem sabendo que estas eram idóneas e adequadas a ofender a saúde física e psicológica de BB, bem como a provocar-lhe mal-estar psicológico, e provocar-lhe sentimentos de humilhação e medo de ser agredida fisicamente.
Da fundamentação da aquisição probatória resulta que « Assim sendo, não conseguiu o tribunal mais do que estabelecer que ambos se tocaram naquela ocasião » nada se dizendo sobre a aptidão desse toque para causar dores e, consequentemente, para tomar por assente como sua decorrência que o arguido tenha querido ofender a saúde física da companheira e menos ainda causar-lhe humilhação.
Ora, um toque entre duas pessoas é um simples contacto de pele com pela, sem pressão significativa. Difere de um empurrão, um murro, uma estalada, porque precisamente não há qualquer exercício de violência, mas uma simples aproximação de duas zonas de pele.
Segundo as regras de experiência comum um toque não é apto a provocar dores. É uma actuação penalmente inócua, precisamente porque não tem aptidão ofensiva e, correspondentemente, falta o suporte objectivo para a intensão de causar qualquer forma de dor.
Há um manifesto erro notório na apreciação da prova, ínsito à redacção do ponto 10 que configura o vício a que se reporta o artigo 410º/2c), do CPP.
Diz-se no ponto 13 que o «arguido quis praticar alguns dos actos supra descritos» e no ponto 14 que «quis adoptar as condutas descritas».
As duas mensagens são contraditórias entre si. Se o arguido só quis praticar alguns dos actos descritos não pode ter querido adoptar todas as condutas descritas. Ou a sua vontade só se dirigiu a alguns actos, e é imperioso que se explique quais, ou se dirigiu a todos. As duas situações em simultâneo tem inerente uma clara contradição. Isto porque, um qualquer tipo de crime, não omissivo, congrega, necessariamente elementos objectivos - que se podem definir como a materialidade da conduta ou da acção, enquanto modificação do mundo exterior apreensível pelos sentidos - e elementos subjectivos, que se traduzem na atitude interior do agente face ao facto naturalístico produzido.
Num crime doloso hão-de constar, necessariamente, da acusação - pela absoluta relevância de que se revestem, face à necessidade de imputação do crime ao agente - factos que sejam susceptíveis de integrar a materialidade da conduta descrita no tipo e que levem a concluir que cada agente agiu:
- Livremente, ou seja, que pôde determinar a sua acção – assim se afastando as causas de exclusão da culpa;
- Com o conhecimento dos elementos e circunstâncias descritos no tipo legal de crime e do resultado da sua conduta (elemento intelectual do dolo);
- Deliberadamente, ou seja, que quis o facto criminoso (elemento volitivo);
- Conscientemente, o que significa que é imputável (imputabilidade);
- Sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei (elemento emocional do dolo).
Tudo isto pressupõe a prévia definição do facto típico praticado, o que no caso acaba por se desconhecer qual é.
Temos, portanto, desenhada um vício de contradição insanável.
Estas são questões que só podem ser esclarecidas pelo Tribunal que apreciou a prova, e impedem que se apreciem as demais questões colocadas, dependentes da existência de uma sentença isenta de nulidades e vícios pelo que se impõe a devolução dos autos.
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A existência de vícios de sentença determina, por regra, o reenvio do processo, nos termos do disposto nos artigos 426º e 426º-A, do CPP.
Estando em causa, no entanto, uma situação de nulidade de sentença, de conhecimento prévio ao dos vícios, somente parciais, procede-se à simples remessa dos autos ao tribunal recorrido para que sane os defeitos encontrados.
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VII- Decisão:
Acorda-se, pois em:
-negar provimento ao recurso interlocutório;
- conceder parcial provimento ao recurso da sentença;
- considerar a existência de nulidade e vícios de sentença;
- e em determinar o regresso do processo ao Tribunal recorrido para respectiva sanação.
Sem custas

Lisboa, 27/ 6/2025
Maria da Graça dos Santos Silva
Ana Rita Loja
Alfredo Costa
____________________________________________
1. Cf. Parecer da Comissão Constitucional, nº 18/81, em «Pareceres da Comissão Constitucional, vol 17, 14 e ss.
2. Cf. Ac. do STJ, de 10.12.1996, em www.dgsi.pt.
3. Cf. Ac. do STJ de 13.10.1999, in CJSTJ, ano XXIV, III, pág.184.
4. Cf. Ac. do STJ, de 24.03.2004, proferido no processo nº.03P4043, em www.dgsi.pt.
5. Cf. AC RP de 2/2/2005, no proc. 0413844; da R.G, de 27/6/2005, no proc. 895/05-1ª.
6. CF ac. STJ 3/3/99, proc. 98P930, da RG. de 27/4/2006, proc. 625/06.