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CRIME DE PERSEGUIÇÃO
STALKING
Sumário
I - O crime de perseguição foi introduzido no nosso ordenamento jurídico há relativamente poucos anos e o fenómeno que está por trás denomina-se em inglês, stalking. II - O Professor Manuel da Costa Andrade, no comentário conimbricense ao Código Penal, escreve que “o stalking abrange as diferentes manifestações de perseguição persistente e repetida de uma pessoa, imposta contra a vontade da vítima, provocando-lhe estados de ansiedade, stress, perturbação e medo. Impondo-lhe sacrifícios (v.g., mudança de hábitos, de lugares frequentados, de casa.), e impedindo-a de conduzir e conformar livremente a sua vida. III - A análise do tipo penal consagrado no artigo 154º-A do CP permite-nos constatar, desde logo, considerando a opção do legislador nacional pela expressão “de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”, estarmos em presença de um crime de perigo concreto – pois que a hipotética lesão vem descrita na norma mas não necessita de existir para que o crime se verifique – não sendo necessária para a sua consumação a efetiva lesão do bem jurídico, bastando-se aquela com a adequação da conduta a provocar a referida lesão, ou seja, exigindo-se apenas que a conduta criminosa seja idónea a prejudicar a liberdade de determinação da vítima ou a provocar-lhe medo. Quanto ao tipo subjetivo, o crime de perseguição é um crime doloso, não admitindo a sua configuração objetiva qualquer concessão a comportamentos negligentes, desde logo porquanto as próprias condutas criminosas evidenciam uma premeditação e uma reiteração que não abrem caminhos a eventuais processos não intencionais ou meramente resultantes de violações de deveres de cuidado. IV - O crime em causa pressupõe a ideia de reiteração e de frequência, através da repetição de várias condutas. V - No caso em apreço, já depois de terminado o relacionamento, e porque não interiorizou esse final, o arguido passou a perseguir a vítima, perturbando a sua paz e a sua liberdade de movimentos, adoptando reiteradas formas de comunicar com ela, contra a vontade da mesma, para tentar dela reaproximar-se e nas suas palavras para tentar compreender os motivos que conduziram ao fim do relacionamento, uma vez que o arguido se convence que estão relacionados com outro homem.
Texto Integral
Acordam em Conferência os Juízes da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
1. Relatório: Nos autos de Processo n.º 87/23.8GDSNT.L1 foi proferida sentença na qual foi decidido:
A) Absolvo o arguido, AA, da prática em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravada, na pessoa da filha do arguido, BB, previsto e punido pelo artigo 152º, nºs 1, alíneas d) e e), 2, alínea a), 4 e 5, do Código Penal por cuja prática vinha o mesmo acusado.
B) Condeno o arguido, AA pela prática, como
autor material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, na pessoa da sua ex-companheira CC. p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, alínea b), do C. Penal, na pena de 1 ano e 8 meses de prisão suspensa, na sua execução, nos termos do disposto no artigo 50º, do Código Penal, pelo período de 1 ano e 8 meses, sujeitando tal suspensão a regime de prova, nos termos do disposto nos artigos 53º e 54º, ambos do Código Penal impondo, igualmente, ao arguido, nos termos do disposto no artigo 54º, nº 3, do Código Penal, as obrigações aí mencionadas, a saber:
1) Responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do
técnico de reinserção social;
2) Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à
sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de
subsistência;
3) Informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de
emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a
data do previsível regresso; e
4) Obter autorização prévia do magistrado responsável pela execução para se
deslocar ao estrangeiro.
C) Condeno o arguido, AA, na pena acessória de proibição de contacto com a ofendida, CC, devendo afastar-se da residência desta, do seu local de trabalho e do local onde aquela se encontre, pelo período de 1 ano e 8 meses (artigo 152°, nºs 4 e 5, do Código Penal) sendo, o seu cumprimento, fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
D) Mais, condeno o arguido, AA, nos termos do disposto no artigo 82º-A, do C. P. Penal, em conjugação com o disposto no artigo 21º, da Lei nº 112/2009, de 16 de Setembro, a pagar á ofendida, CC, a título de reparação por danos não patrimoniais, no montante no valor de €500, acrescida de juros vencidos e vincendos. Não conformado com tal acórdão, veio o arguido acima melhor identificado, interpor recurso para este Tribunal, juntando para tanto as motivações que constam dos autos, e que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais, concluindo nos seguintes termos, que se transcrevem:
1ª)O presente recurso versa sobre matéria de facto e de Direito, com os fundamentos previstos no disposto no art.410º do CPP, nomeadamente, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova.
2ª)Por uma questão de economia processual dá-se aqui por reproduzida toda a matéria de facto julgada provada e não provada na douta sentença recorrida.
3ª)Na motivação da decisão da matéria de facto, consta, designadamente, que: “Na verdade, o arguido prestou declarações de natureza presencial, porquanto envolvido na situação, porém de forma nervosa, algo baralhadas, fugidias ao teor da acusação, evasivas, perturbada, mas assumindo os factos imputados quanto á sua ex-companheira, explicando que não tinha intenção de ofender quem quer que fosse, só queria saber o que se estava a passar. (…) Manifesta que, na altura da separação nada lhe foi explicado que a sua ex-companheira nada lhe explicou, apenas lhe pediu espaço, tendo-lhe dito que não se sentia bem, sendo que, na altura, ocorreu-lhe que pudesse estar a ser traído, tendo dito á sua ex-companheira que precisava de saber se ela tinha alguém, (…) Terminou por dizer que não mais contactou com a ofendida. (…) Prestou depoimento CC, ofendida dos autos, que disse conhecer o arguido por terem mantido uma relação amorosa entre 2000 a ... de 2020, explicando que foi a depoente quem acabou com a relação com o arguido, mas que este não aceitou a separação, sendo que depois de regressar do ..., em Setembro, teve uma conversa explicita com o arguido.” (…)“Relatou que o arguido tinha desconfiança em relação a um amigo comum, assim como também disse que a depoente tinha uma relação com alguém do seu trabalho, sendo que estas desconfianças e estas conversas só tiveram o seu inicio depois de Setembro, são posteriores á separação.” (…) O arguido também teve desconfiança em relação a um dos directores do local onde a depoente trabalha, o que colocou o trabalho da depoente em risco Explicou que o arguido lhe dirigiu ofensas verbais, que a perseguia, que recorria ao Instagram, sempre dizendo que queria saber a verdade, acrescentando que no decurso das discussões a filha de ambos assistiu e que o arguido nunca lhe chamou chula. (…)Confirmou que, actualmente, não há contacto entre o arguido e a depoente” -O negrito e o sublinhado são nossos.
4ª)Daqui decorre que, salvo o devido respeito, a douta sentença recorrida, enferma, nomeadamente, do vício da errada interpretação e apreciação das provas e de contradição entre a decisão e a fundamentação, ao julgar incorretamente como provados os factos constantes dos pontos 1, 5, 35, 36, 37, 38 e 39 do elenco dos factos provados da sentença recorrida, em clara violação dos arts.º 129.º e 134.º n.º 1 b) do CPP.
5ª)Como decorre das declarações da própria ofendida, explanadas na motivação da decisão de facto, a relação amorosa de ambos durou desde o ano de 2000 (e não de 2006-cfr. facto julgado provado no ponto 1) até ... de 2020. Mais resulta das referidas declarações da ofendida que o arguido não aceitou a separação e que lhe disse que queria saber a verdade e que atualmente não há contacto entre si e o arguido.
6ª)Acresce que, o arguido referiu nas suas declarações supra referidas na motivação da matéria de facto que não tinha intenção de ofender quem quer que fosse, só queria saber o que se estava a passar e que aquando da separação a sua ex-companheira só lhe pediu espaço, pelo que, lhe ocorreu que estivesse a ser traído, mais referindo que não mais contactou com a ofendida.
7ª)Deste modo, nomeadamente face à contradição verificada, os factos constantes dos pontos 1, 5, 35, 36, 37, 38 e 39 do elenco dos factos julgados provados na sentença recorrida foram incorretamente dados por provados, pelo que, devem ser julgados não provados, com a consequente absolvição do arguido, porquanto, este não praticou o crime de violência doméstica em que foi incorretamente condenado, quando muito terá cometido um crime de perseguição e injúrias, pois abordou por diversas vezes a ofendida com o único intuito de querer saber o que se estava a passar, ou seja, se esta o traiu.
8ª)Caso não se entenda que o arguido deve ser, desde já, absolvido da prática do crime que lhe vem imputado, face ao supra exposto, deverá a pena que lhe foi aplicada ser reduzida para o seu limite mínimo de 12 meses de prisão suspensa na sua execução, face à diminuta gravidade dos factos praticados. De facto, há que valorar, para aferir e determinar a medida da pena, o grau de culpa do agente - devendo o facto ilícito ser valorado em função do seu efeito externo -, e, por outro lado, atender às necessidades de prevenção - cfr. artigo 71º do Código Penal.
9ª)Nos termos dos artigos 40º, n.º 2 e 71º do Código Penal, a determinação da medida concreta da pena terá sempre como limite inultrapassável a culpa do agente e as exigências de prevenção geral e especial positivas.
10ª)Quanto à prevenção geral positiva, sempre que o Tribunal aplica uma pena, tem por fim restaurar a confiança que a comunidade deve ter naquela determinada norma que foi violada. Como muitas vezes se tem dito, citando Anabela Miranda Rodrigues, a finalidade essencial e primordial da aplicação da pena reside na prevenção geral, o que significa “que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto...alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada...” (“A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade”, Coimbra Editora, pág. 570).
11ª)No que respeita à prevenção especial positiva, visa-se a reintegração do autor do facto ilícito na sociedade, por forma a que não volte a cometer mais crimes.
12ª)A culpa, como vertente pessoal do crime, limita as exigências de prevenção, na medida em que a pena jamais poderá ultrapassar essa culpa sob pena de se desrespeitar o princípio basilar da dignidade humana. Em síntese, dentro desse limite máximo inultrapassável que é a medida da culpa, a pena é determinada “no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo da tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico” (vide Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, Coimbra 2001, pp. 110 e 111) e em função de exigências de prevenção especial.
13ª)Para além disso, para decidir da pena concreta a aplicar há que ter em consideração os fatores previstos no n.º 2 do citado artigo 71º do Código Penal, assim atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime (estas já foram tomadas em consideração ao estabelecer-se a moldura penal do facto), deponham a favor do agente ou contra ele. Saliente-se que o arguido não tem antecedentes criminais, é atualmente cuidador informal da mãe (cfr. factos julgados provados), a sua filha reside consigo em semanas alternadas e tem apenas o 7º ano.
14ª)Sem violar o princípio da proibição da dupla valoração pode ainda atender-se à intensidade ou aos efeitos do preenchimento de um elemento típico e à sua concretização segundo as especiais circunstâncias do caso, já que o que está aqui em causa são as diferentes modalidades de realização do tipo (neste sentido, Figueiredo Dias, As consequências jurídicas do crime, pág. 234).
15ª)Mas teremos ainda que ponderar especialmente o disposto no art. 71.º, nº 2, do Código Penal, designadamente, a intensidade do dolo e a ausência de antecedentes criminais do arguido.
16ª)O Tribunal a quo violou, assim o disposto no artigo 71º do Código Penal, por incorreta e imprecisa aplicação.
17ª)Há que respeitar a livre apreciação da prova e a convicção do Tribunal, sem, contudo, se descurar o facto de assistir ao arguido o direito de exigir que o acórdão que determina a sua condenação seja criteriosamente fundamentado e se sustente em factos decorrentes da prova efetivamente produzida em audiência de julgamento que permitam, só por si, valorar o grau de ilicitude e a intensidade do dolo.
18ª)Face ao supra exposto, não poderá o recorrente ser condenado, como foi na pena de 1 ano e oito meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, devendo antes a pena aplicada em concreto ser substancialmente inferior, ou seja, situando-se no limite mínimo de 12 meses de prisão, sendo suspensa na sua execução por igual período.
19ª)Deve ainda a suspensão da execução da pena não ser sujeita a regime de prova nem ser aplicada qualquer pena acessória de afastamento da ofendida cujo cumprimento seria verificado por meios de controlo à distância, uma vez que, como decorre dos autos, em sede de inquérito a ofendida rejeitou expressamente tal meio de controlo (cfr. requerimento da DGRSP junto aos autos em 5 de Abril de 2023 e que aqui se dá integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais).
20ª)Aliás, como resulta dos depoimentos prestados pelo arguido e pela ofendida atualmente já não se verifica qualquer contacto entre ambos, não existindo qualquer perigo.
21ªAo assim não ter decidido, violou a douta decisão recorrida o disposto nas normas jurídicas acima mencionados, não tendo feito a mais correta interpretação e aplicação das mesmas ao caso concreto, devendo tais normativos legais ter sido interpretados e aplicados no sentido do supra exposto. Não conformado com tal acórdão, veio o MP, interpor recurso para este Tribunal, juntando para tanto as motivações que constam dos autos, e que aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais, concluindo nos seguintes termos, que se transcrevem:
Vem o presente recurso interposto da douta Sentença a quo que condenou o arguido AA pela prática de um crime de violência doméstica agravada, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, Alínea b), do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período e sujeita a regime de prova, na pessoa de CC.
Foi, igualmente, o arguido condenado na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida, CC, devendo afastar-se da residência desta, do seu local de trabalho e do local onde aquela se encontre, pelo período de 1 (um) ano e 8 (oito) meses, sendo, o seu cumprimento, fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
Por último, foi o arguido AA condenado, nos termos do disposto no artigo 82º-A, do Código Processo Penal, em conjugação com o disposto no artigo 21.º, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, a pagar à ofendida, CC, a título de reparação por danos não patrimoniais, no montante no valor de 500,00 €, acrescida de juros vencidos e vincendos.
A sentença proferida pelo Tribunal a quo considerou provada a seguinte factualidade: “1. CC e o arguido AA viveram um com o outro em comunhão de leito, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, desde, pelo menos, o ano de 2006 e até 2019.(….)
Atenta a factualidade dada como provada, entende o Ministério Público que o Tribunal a quo procedeu a uma errada qualificação jurídica dos factos dados como provados, entendendo-se que tais factos são susceptíveis de integrar os elementos objectivos e subjectivos dos crimes de perseguição e de injúria, previstos e punidos pelos artigos 154.º-A, n.º 1 e 181.º, n.º 1, do Código Penal.
O que distingue o crime de violência doméstica do crime de ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças, conferindo àquele uma maior moldura penal e carácter público é, assim, a maior abrangência dos bens jurídicos protegidos por aquele tipo legal como sejam, para além da integridade e saúde física e psíquica, a salvaguarda da dignidade da pessoa humana do ofendido, como sujeito enfraquecido em relação ao agressor. In casu, e de acordo com a matéria de facto dada como provada, resultou provado que, - o arguido, por diversas vezes, já depois de terminada a relação, apelidou a ofendida de “vaca”; - o arguido, repetidamente, já depois de terminada a relação com a ofendida, contactou a mesma, directamente ou através da filha de ambos, por diversas vezes por telefone, exigindo saber onde a mesma se encontrava e com quem;
- o arguido, já depois de terminada a relação com a ofendida, continuou a procura-la, quer na sua residência, local de trabalho ou junto ao estabelecimento de ensino frequentado pela filha de ambos;
- o arguido, após o termo do relacionamento passou a enviar mensagens ofendida sempre com o intuito de obter respostas quanto ao fim do relacionamento de ambos;
- o arguido sabia que a sua conduta era adequada a causar medo e inquietação na ofendida.
De facto, atenta a prova produzida em audiência e a factualidade supra dada como provada, entende o Ministério Público que não se apurou a gravidade exigível para o preenchimento do tipo legal – violência doméstica.
A conduta do arguido (que não deixa, no nosso entender, de configurar a prática, em concurso, de um crime de perseguição e de um crime de injúria) não representa um aviltamento da dignidade humana da vítima com a sua “coisificação” que é própria do crime de violência doméstica.
Na verdade, e como decorre das próprias declarações do arguido, a sua conduta foi decorrente do fim abrupto e inesperado do relacionamento com a ofendida e a da sua “necessidade” de compreender os motivos daquela, contexto que deve ser considerado.
Assim, embora criminalmente relevante a conduta do arguido, entende o Ministério Público que a mesma não pode ser considerada, como integradora de um crime de violência doméstica, mas antes de um crime de perseguição, previsto e punido pelo artigo 154.º-A, do Código Penal e de um crime de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, do Código Penal, encontrando-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos de tais ilícitos.
Quanto ao crime de injúria e de acordo com o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 9/2024 do Supremo Tribunal de Justiça “O Ministério Público mantém a legitimidade para o exercício da acção penal e o assistente a legitimidade para a prossecução processual, nos casos em que, a final do julgamento,por redução factual de acusação pública por crime de violência doméstica p. e p. no artigo 152º, nº 1, do Código Penal, são dados como provados os factos integrantes do crime de injúria p. e p. no artigo 181º, nº 1, do Código Penal, desde que o ofendido tenha apresentado queixa, se tenha constituído assistente e aderido à acusação do Ministério Público.”
Nos presentes autos, a ofendida CC manifestou desejo de procedimento criminal contra o arguido, conforme resulta do teor do auto de notícia elaborado pela G.N.R. de Colares, contudo, não requereu a sua constituição como assistente, nem acompanhou a acusação pública deduzida pelo Ministério Público.
Pelo que, operando a desqualificação e consequente alteração da qualificação jurídica dos factos dados como provados (como o Ministério Público entende que deve operar), deve o procedimento criminal relativamente ao crime de injúria ser arquivado por falta de legitimidade do Ministério Público para a sua prossecução processual.
Quanto ao crime de perseguição e no que concerne à medida da pena, os critérios legais para tal operação encontram-se cristalizados nos artigos 71.º nºs 1 e 2 e 40.º n.º 2, ambos do Código Penal, os quais determinam que a mesma é efectuada em função da culpa do agente (limite máximo), das exigências de prevenção geral (limite mínimo) e especial (critério determinante dentro da moldura encontrada pela culpa e pela prevenção geral).
No caso, em face do conjunto de todos estes factos, bem como das circunstâncias anteriores e posteriores ao cometimento do crime, da elevada intensidade do dolo, da culpa elevada do agente, das elevadas exigências de prevenção geral e das diminutas de prevenção especial, entende o Ministério Público que a aplicação ao arguido AA de uma pena não privativa da liberdade alcança de forma suficiente as finalidades da punição, pelo que se deve dar preferência à pena de multa com que também é punido o crime imputado.
Assim, tendo em consideração as circunstâncias em que o crime foi cometido, o grau de culpa do agente, a ilicitude do facto, as exigências de prevenção geral e especial supramencionadas e as condições socioeconómicas do arguido, considera-se adequada, necessária e proporcional a aplicação ao arguido de uma pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à razão diária de 5,50€ (cinco euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz um total de 825,00 € oitocentos e vinte e cinco euros).
Face ao exposto e tudo considerado, entende o Ministério Público que a sentença recorrida procedeu a uma errada qualificação jurídica dos factos dados como provados, devendo o arguido AA ser absolvido do crime de violência doméstica na pessoa de CC e condenado pela prática de um crime de perseguição, previsto e punido pelo artigo 154.º-A, n.º 1, do Código Penal na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à razão diária de 5,50€ (cinco euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz um total de 825,00 € (oitocentos e vinte e cinco euros). Respondeu o MºPº ao recurso do arguido, pugnando pela manutenção da decisão, concluindo nos seguintes termos:
A.A sentença recorrida não padece do vício de erro notório na apreciação da prova/erro de julgamento, cf. artigo 410.º, n.º 2, alínea c), do Código de Processo Penal, porquanto o Tribunal a quo mais não fez do que extrair, a partir da prova produzida, conclusão perfeitamente lógica, não atentatória das regras da experiência comum, decorrente do exercício (tão legítimo quanto devido) da livre apreciação da prova.
B. Por outro lado, os factos dados como provados ou a fundamentação da decisão não apresentam qualquer contradição entre si e apontando para o preenchimento dos elementos do tipo de crime por que o arguido foi condenado, não se verificando assim o vício de contradição insanável da fundamentação e da fundamentação e da decisão, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal.
C. No mais, o Ministério Público discorda da qualificação jurídica da factualidade dada como provada na sentença recorrida tendo interposto recurso da mesma e para a qual se remete no demais.
D. Por tudo o exposto, a sentença recorrida não padece dos vícios invocados na peça processual a que se responde. Neste Tribunal o Ilustre Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pugnando quanto ao recurso do arguido pela manutenção da decisão recorrida, aderindo as alegações redigidas pela colega de primeira instância, e pela procedência do recurso quanto à peça recursória do MP.
Foi cumprido o disposto no artigo artº 417º nº 2 do CPP.
Cumpridas as formalidades legais, procedeu-se á conferência.
2. Fundamentação:
Cumpre assim apreciar e decidir. É a seguinte a decisão recorrida (fundamentação de facto e motivação): 3.1 – Factos Provados Discutida a causa, com relevância para a decisão da mesma, lograram provar-se os seguintes factos:
1. CC e o arguido AA viveram um com o outro em comunhão de leito, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem, desde, pelo menos, o ano de 2006 e até 2019.
2. Reataram o relacionamento no ano de 2020, sem coabitação.
3. Em ... de 2022, terminaram o relacionamento amoroso.
4. Do relacionamento nasceu uma filha, BB, em ........2012.
5. O arguido não aceita o fim do relacionamento.
6. Por diversas vezes, desde ..., o arguido telefonou a CC perguntando: “onde estás?”, “com quem estás?”.
7. No dia ... de ... de 2022 CC ausentou-se de férias com a sua filha para o ....
8. No dia ... de ... de 2022 o arguido telefonou para CC e disse: “estás-me a enganar”, “só queres estar em férias”.
9. Após essa data, por diversas vezes, o arguido disse a CC: “eu quero a verdade”, “quero saber se sou o tipo mais cornudo da zona”, “vaca”, “vai para o caralho”, “grande vaca”, “fodeste-me a vida”.
8. Em data não concretamente apurada, em ... de 2022, o arguido telefonou a CC e disse: “vou matar o teu patrão”, “se não o matar, mando alguém matá-lo”.
9. Em data não concretamente apurada, no início do mês de ... de 2022, a meio da manhã, o arguido deslocou-se ao local de trabalho de CC, sito em ..., e telefonou para aquela dizendo: “tens de me dizer a verdade senão vou até às últimas consequências”.
10. CC foi ao seu encontro, altura em que o arguido exigiu aceder ao conteúdo do telemóvel daquela.
11. CC entregou o seu telemóvel ao arguido para que aquele visse o seu conteúdo.
12. O arguido acedeu às aplicações Messenger.
15. Após, o arguido exigiu que queria ver as mensagens da aplicação Whatsapp de CC ao que aquela negou e retirou-lhe o telemóvel.
16. O arguido ficou muito agressivo, começou a bater com a cabeça numa parede e em voz alta disse: só preciso de saber a verdade”, “matas-me”, “preciso saber a verdade para renascer”, “a ti não te toco mas tudo o que está à volta eu destruo, mas em ti não te toco”.
17. CC, com receio do arguido, dirigiu-se à sua viatura automóvel.
18. O arguido foi atrás de CC ao mesmo tempo que dizia: “quero saber a verdade”, “quero saber se sou o tipo mais cornudo da zona”, ao mesmo tempo que rasgava a camisola que trajava de forma agressiva.
19. CC entrou na viatura, trancou as portas e conduziu até à sua residência.
20. Enquanto conduzia o arguido telefonou várias vezes para CC que não atendeu.
21. No dia ... de ... de 2023, pelas 17h00 CC telefonou ao arguido por questões relativas à filha comum.
22. Após discussão, o arguido disse: “acabaste com a minha vida”, “eu estou aí perto, sei onde estás, vou já ter contigo”.
23. CC deslocou-se à escola para ir buscar a filha, altura em que o arguido se dirigiu à viatura daquela e, junto ao vidro gritou: “quero saber a verdade”, “mataste-me por dentro”, “vais ficar cheia de remorsos quando me vires no chão morto”, “a verdade mais cedo ou mais tarde vai vir ao meu encontro”, “agora os teus meninos já estão todos cá”.
24. CC pediu ao arguido que cessasse aquela conduta ao que o mesmo disse: “já tens macho não é?”.
25. CC abandonou o local.
26. Por diversas vezes, em datas não concretamente apuradas, o arguido enviou fotografias do casal a CC, pedindo-lhe que reatasse o relacionamento.
27. Por diversas vezes, em datas não concretamente apuradas, o arguido disse a CC: “tu ainda me vais ver morto aqui no chão e vais sentir remorsos para o resto da vida”.
28. No dia ... de ... de 2023, pelas 14h25, o arguido disse a CC que não queria que a filha fosse ao seu local de trabalho porque não a queria “na companhia” dos seus patrões.
29. Pelas 14h37 o arguido disse a CC que caso aquela persistisse em levar a sua filha para o local de trabalho ia dirigir-se à porta daquele local e impedir a sua entrada.
30. CC dirigiu-se ao local de trabalho onde se encontrava, à porta, o denunciado.
31. O arguido encetou discussão com CC.
32. A Guarda Nacional Republicana foi chamada ao local e o arguido foi identificado.
33. Na presença dos militares da Guarda Nacional Republicana o arguido disse: “era isto que querias não era?”.
34. Após, disse aos militares da Guarda Nacional Republicana: “nunca lhe toquei com um dedo! Se ela disse o contrário está a mentir! Posso gritar, dar cabeçadas na parede, mas nunca lhe toquei com um dedo!”.
35. Todas as actuações assim descritas são fortemente ofensivas da dignidade pessoal de CC e provocam na mesma estado de nervos constante, angústia, ansiedade, receio e sentimentos de sujeição aos humores do denunciado.
36. Ao agir da forma descrita o arguido quis e conseguiu maltratar CC, sobretudo a sua saúde psíquica, fazendo-a viver em permanente sobressalto por força das expressões de cariz injurioso que proferiu contra a mesma, bem sabendo que a sua conduta é idónea a provocar medo e inquietação àquela como efetivamente provocou.
37. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
38. Com o seu comportamento conseguiu diminuí-la no respeito que lhe era devido, mostrando-se indiferente pelo estado em que a deixava.
39. Agiu o arguido livre, conscientemente, com intenção de ofender psicologicamente CC, demonstrando falta de consideração por esta enquanto sua companheira. Não se lograram provar factos com interesse para a descoberta da verdade e boa decisão da causa. * 3.2 - Factos Não Provados Dos alegados não se lograram provar os seguintes factos com relevo para a decisão da causa: a. Que nas circunstâncias descritas na matéria de facto supra provada, o arguido desde o início do relacionamento ingeria bebidas alcoólicas em excesso, ficando ébrio com frequência e que nessas ocasiões o arguido discutia com CC e tornava-se agressivo.
b. Que em data não concretamente apurada, a partir de ..., na residência do arguido, o mesmo disse à filha BB, referindo-se a CC: “ela fodeu a minha vida”.
c. O arguido diz a BB que a mãe se vai encontrar com amantes.
d. Que nas circunstâncias descritas na matéria de facto supra provada, a filha BB chegou à viatura e, vendo que o pai gritava, entrou no carro a chorar.
e. No dia ... a filha do casal informou o arguido que não pretendia passar com ele o fim de semana e o arguido telefonou para CC e disse em tom agressivo: “fodeste a minha vida e ainda me queres tirar a minha filha!”.
f. Que nas circunstâncias descritas na matéria de facto supra provada, na presença da filha menor que ficou muito nervosa e ansiosa, chorosa e triste.
g. Que BB recusa-se a ir às aulas de natação com receio que o pai lá esteja ou que a vá ver.
h. O arguido praticou os factos na presença da sua filha, menor de idade, maltratando-a na sua saúde psíquica, fazendo-a viver em permanente sobressalto por força das expressões de caráter ameaçatório que proferiu contra a progenitora, bem sabendo que a sua conduta é idónea a provocar medo e inquietação àquela como efetivamente provocou e perturbar o seu crescimento enquanto criança.
i. Que todas as actuações descritas na matéria de facto provada supra são fortemente ofensivas da dignidade pessoal de BB e provocam na mesma estado de nervos constante, angústia, ansiedade, receio e sentimentos de sujeição aos humores do denunciado.
j. Que ao agir da forma descrita na matéria de facto provada supra, o arguido quis e conseguiu maltratar BB, sobretudo a sua saúde psíquica, fazendo-a viver em permanente sobressalto por força das expressões de cariz injurioso que proferiu contra a mesma, bem sabendo que a sua conduta é idónea a provocar medo e inquietação àquela como efectivamente provocou.
k. Com o seu comportamento, descrita na matéria de facto provada supra, conseguiu o arguido diminuí-la no respeito que lhe era devido, mostrando-se indiferente pelo estado em que a deixava.
l. Agiu o arguido livre e conscientemente, com a intenção de ofender psicologicamente BB, demonstrando falta de consideração por esta enquanto filha.
j. Que o arguido tenha em qualquer circunstância chamado “ chula” á sua ex-companheira.
m. Desde final do ano de 2022, por diversas vezes, o arguido enviou mensagens ao patrão de CC demonstrando ciúmes e dizendo que aqueles mantinham um relacionamento amoroso
k. Que nas circunstâncias descritas na matéria de facto provada o arguido cuspisse para o chão.
n. Após várias insistências do arguido, CC atendeu a chamada e aquele disse: “vou a tua casa e vou partir tudo”, “para esclarecer os vinte e dois anos em que me mataste”.
o. CC disse que ia chamar a Guarda Nacional Republicana ao local, altura em que o arguido disse: “podes chamar quem tu quiseres, que eu não tenho medo de ninguém”, “chama a polícia, chama”. 3.3 - Motivação da decisão da matéria de facto A decisão sobre a matéria de facto formou-a, este tribunal, com base na apreciação crítica do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, sendo que a convicção do tribunal, relativamente aos factos que considerou provados e não provados, teve por base as declarações prestadas pelo arguido e o depoimento prestado pelas testemunhas, em audiência de julgamento, devidamente concatenados e confrontados entre si, na inexistência de prova documental relevante, não resultando corroborada a totalidade da acusação pública. Na verdade, o arguido prestou declarações de natureza presencial, porquanto envolvido na situação, porém de forma nervosa, algo baralhadas, fugidias ao teor da acusação, evasivas, perturbada, mas assumindo os factos imputados quanto á sua ex-companheira, explicando que não tinha intenção de ofender quem quer que fosse, só queria saber o que se estava a passar. Confirmou o inicio e o fim da relação nos termos constantes da acusação. Disse não se recordar que tenha usado expressões como “vaca” e “chula” dirigindo-se á sua ex-companheira, assim como não se lembra se ameaçou matar o patrão da sua ex-companheira, mas se o disse não foi com intenção. Acabou por assumir o essencial do que consta no facto 9 supra provado. Disse que não tem problemas com a bebida. Assume que o que disse foi de cabeça quente. Disse á sua ex-companheira que se matava e esta riu-se, gozou com o declarante. Manifesta que, na altura da separação nada lhe foi explicado que a sua ex-companheira nada lhe explicou, apenas lhe pediu espaço, tendo-lhe dito que não se sentia bem, sendo que, na altura, ocorreu-lhe que pudesse estar a ser traído, tendo dito á sua ex-companheira que precisava de saber se ela tinha alguém, confirmando
• O episódio supra provado em que se descontrolou e bateu com a cabeça, admitindo
• que consta no facto 16, supra provado. Também confirmou que mandou fotos dos dois á sua ex-companheira. Terminou por dizer que não mais contactou com a ofendida. Quanto aos factos imputados relativos á sua filha disse que esta nunca assistiu aos factos que admitiu ter praticado em relação a sua ex-companheira e que o Hotel era frequentado por modelos, havia consumo de droga, mas que a sua filha nunca se queixou da piscina. Acrescentou que nunca falou em amantes da ex-companheira. Declarações em que acabou por corroborar parte da acusação pública quanto á ofendida, sua ex-companheira, nada assumindo quanto á ofendida sua filha. Prestou depoimento CC, ofendida dos autos, que disse conhecer o arguido por terem mantido uma relação amorosa entre 2000 a ... de 2020, explicando que foi a depoente quem acabou com a relação com o arguido, mas que este não aceitou a separação, sendo que depois de regressar do ..., em Setembro, teve uma conversa explicita com o arguido. Relatou que o arguido tinha desconfiança em relação a um amigo comum, assim como também disse que a depoente tinha uma relação com alguém do seu trabalho, sendo que estas desconfianças e estas conversas só tiveram o seu inicio depois de Setembro, são posteriores á separação. O arguido também teve desconfiança em relação a um dos directores do local onde a depoente trabalha, o que colocou o trabalho da depoente em risco. Explicou que o arguido lhe dirigiu ofensas verbais, que a perseguia, que recorria ao Instagram, sempre dizendo que queria saber a verdade, acrescentando que no decurso das discussões a filha de ambos assistiu e que o arguido nunca lhe chamou chula. Explicou que com a sua actuação o arguido afectou a imagem da depoente, quer como mulher, quer como mãe, nunca a agrediu fisicamente, mas a pressão psicológica era enorme. Mais, disse que o arguido foi, por vária vezes, ao local de trabalho da depoente, tendo a intenção de reatar a relação com esta. Também teve acesso ao telemóvel da depoente, acedeu ao Messanger e queria aceder ao Whatspp, mas a depoente não deixou. Acrescentou que o arguido também ameaçava dizendo que matava toda a gente á volta da ofendida e que se suicidava. Negou que o arguido bebesse. Confirmou o facto provado em 16, supra provado, mas disse que o arguido não cuspia. Terminou por relatar os factos ocorridos no dia da queixa, dia ... em que o patrão disse á depoente para que conseguisse que o arguido parasse com a publicação de que ele e a depoente tinham uma relação. Confirmou que, actualmente, não há contacto entre o arguido e a depoente. Quanto á filha de ambos a depoente afirmou que o arguido não é assim tão preocupado com a filha, não acrescentando a depoente factos concretos que pudessem levar a fixar factos praticados pelo arguido em relação á filha de ambos. Depoimento de natureza presencial, porquanto envolvida na situação, prestado de forma tranquila, explicada e circunstanciada, assumindo credibilidade, corroborando parte substancial dos factos da acusação pública relativos á depoente. Quanto aos factos imputados ao arguido em relação á filha BB a depoente não esclareceu factos suficientes, de forma consistente, que pudessem integrar a prática de qualquer crime perpetrado pelo arguido em relação á filha de ambos. BB, disse conhecer o arguido por ser seu pai e a ofendida por ser sua mãe, em exercício de direito que lhe assiste, não quis prestar quaisquer declarações, pelo que nada esclareceu. Prestou depoimento DD, que disse conhecer o arguido há muitos anos por ser ex-companheiro da sua amiga, aqui ofendida, esclarecendo que privou com o casal e que as coisas corriam bem, tendo tido conhecimento, entretanto, que a relação havia chegado ao fim. Explicou que a dada altura a ofendida CC quis ir para casa da depoente, sendo que o arguido fazia muitas videochamadas, sempre a perguntar onde estava e com quem estava. A depoente assistiu ao desespero da ofendida CC que chorava muito. Terminou por dizer que viu as mensagens do arguido em que esta chamava nomes á ofendida CC. Depoimento prestado de forma séria e imparcial, credível, apenas relatando o que viu, assumindo relevância quanto ás chamadas do arguido e ao teor das mesmas, bem como ao efeito que o arguido, com a sua conduta, causava á ofendida CC. EE, disse conhecer o arguido por terem sido colegas de escola e por ser ex-companheiro da sua amiga, a ofendida CC, que explicou que não privava com o casal, não frequentava a casa e que a nada assistiu, o que sabe foi a ofendida que lhe contou. Assim, a ofendida falou-lhe de actos de perseguição, uma vez que o arguido ia ao trabalho da ofendida CC. Mais, disse ter assistido, na casa da ofendida CC, a situação em que a filha BB não queria ir para o pai, o arguido e ao telefone a referida BB chorava compulsivamente. Terminou por dizer que a ofendida CC ficava triste. Depoimento prestado de forma séria e imparcial, credível, porém não assumindo relevância porquanto nada, de relevante, presenciou. Finalmente, prestou depoimento FF, que disse conhecer o arguido e a ofendida somente por serem pais de uma aluna na escola onde trabalha, depoimento que prestado de forma séria e imparcial, não assumiu qualquer relevância, uma vez que nada de relevante presenciou, apenas relatando que viu a ofendida CC dentro do carro e o arguido fora do mesmo sendo que este último gesticulava, mas a depoente não ouvia o que diziam. Assim considerada a prova constata-se a existência de duas versões, a do arguido e a da ofendida CC, sendo que o arguido assumiu factos, em relação á ofendida CC, de forma coincidente com o relatado pela própria. Quanto ao crime imputado ao arguido perpetrado sobre a filha de ambos, o arguido nada assumiu que pudesse consubstanciar a prática de qualquer crime e a depoente também não relatou factos de forma bastante e consistente para que se pudessem imputar factos ao arguido que se pudessem qualificar como crime. As demais testemunhas inquiridas, pese embora o tenham feito de forma imparcial e séria, a verdade é que não presenciaram situações em relação á ofendida BB que pudessem preencher a prática de qualquer crime. Assim, seria o depoimento de BB que poderia esclarecer os factos imputados ao arguido como tendo sido perpetrados contra a referida BB, assim como poderia relatar o que presenciou ou não entre arguido e ofendida CC. Uma vez que a filha do arguido não quis prestar depoimento, quanto aos factos relativos a ela, nada de relevante se apurou e quanto aos factos relativos á sua mãe, a ofendida CC, apenas se podem dar como provados os assumidos inequivocamente pelo arguido e aqueles que o arguido não se lembrava ao certo ou admitia tê-los praticado e a ofendida CC os relatou de forma lembrada e circunstanciada. Também, em sede de prova documental foram considerados as cópias de mensagens de fls. 29, 30 e 59 a 61; o auto de transcrição de áudio de fls. 69; certidão de assento de nascimento de fls. 93 e o CRC, actualizado, de fls. 253, dos autos.
*** As questões colocadas à consideração deste Tribunal são as seguintes:
A. Saber se o tribunal errou ao considerar como provados os factos constantes dos artigos 1, 5, 35 a 39; nomeadamente se ocorreu um erro notório na apreciação da prova e/ou contradição insanável da fundamentação e entre esta e a decisão;
B. Saber se os factos dados como provados integram a prática do crime pelo qual o arguido foi condenado, mormente o crime de violência doméstica ou se pelo contrário integram a prática de um crime de perseguição pelo qual o arguido deve ser condenado;
C. Saber se a pena aplicada foi ou não excessiva e se deve ser diminuída;
***
A. Saber se o tribunal errou ao considerar como provados os factos constantes dos artigos 1, 5, 35 a 39; nomeadamente se ocorreu um erro notório na apreciação da prova e/ou contradição insanável da fundamentação;
O arguido, na motivação, e nas conclusões, retira um pequeno pormenor relativo à data do início do relacionamento (2000 ou 2006) e descreve parcialmente os depoimentos de arguido e assistente, aludindo também à motivação, para concluir que o tribunal deu erradamente como provados os factos constantes dos artigos 1º, 5º, 35º a 39º, existindo, quanto ao arguido, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova.
O tribunal descreveu os depoimentos das testemunhas e explicitou os motivos pelos quais atribuiu, ou não, credibilidade às suas declarações, numa exposição simples, mas suficientemente, pormenorizada, sólida e coerente.
Quanto aos vícios a que alude o artigo 410º do CPP, o arguido faz referência ao erro notório na apreciação da prova e a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
Em todo o caso, vejamos se algum desses vícios se verifica.
Estatui o artigo 410º, n.º2 do CPP que: mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum:
a. a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b. a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c. erro notório na apreciação da prova.
Através da consagração, no nº2 do artigo 410º do CPP, do recurso de revista alargada, o legislador pretendeu que o recurso de revista visasse, tal como preconizava a melhor doutrina, também a finalidade de obtenção de uma “decisão concretamente justa do caso, sem perder de vista o fim da uniformidade da jurisprudência” – Castanheira Neves, Questão de facto – questão de direito ou o problema metodológico da juridicidade, I Coimbra, 1967,p. 34 e seguintes.
Os vícios elencados no n.º2 do artigo 410º do CPP têm de resultar do contexto factual inserido na decisão, por si, ou em confronto com as regras da experiência comum, ou seja, tais vícios apenas existirão quando uma pessoa média facilmente deles se dá conta.
Pode ler-se no Acórdão do STJ, relatado pelo Senhor Juiz Conselheiro João Silva Miguel, no processo n.º 502/08.0 GEALR.. de 24.02.2016, o seguinte, a propósito destes vícios:
O vício previsto pela alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP verifica-se quando, da factualidade vertida na decisão, se concluir faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, impossibilitem, por sua ausência, um juízo seguro (de direito) de condenação ou de absolvição: a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito encontrada.
Quanto ao vício previsto pela alínea b) do n.º 2 do mesmo preceito legal, verifica-se contradição insanável – a que não possa ser ultrapassada ainda que com recurso ao contexto da decisão no seu todo ou às regras da experiência comum – da fundamentação - quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios, e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto, ou contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão.
Por fim, ocorre o vício previsto pela alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, quando, partindo do texto da decisão recorrida, a matéria de facto considerada provada e não provada pelo tribunal a quo, atenta, de forma notória, evidente ou manifesta, contra as regras da experiência comum, avaliadas de acordo com o padrão do homem médio.
Especificamente quanto ao vício da contradição insanável, a que alude a alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, refere-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 12 de março de 2015, Proc. n.º 418/11.3GAACB.C1.S1 - 3.ª Secção, que «[o] vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão verifica-se quando no texto da decisão constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respetivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito».
Assim, pode afirmar-se que há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto.
A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, por sua vez, ocorrerá quando, também através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados ou entre a fundamentação e o dispositivo da decisão.
Nas palavras de Simas Santos e Leal Henriques[4], «[p]or contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não possam ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade. Para os fins do preceito (al. b) do n.º 2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser integrada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com auxílio das regras da experiência.»
Percorrida a decisão, não se vislumbram os invocados vícios.
Na decisão estão explanados os factos que conduziram à decisão e a possibilitaram, não há qualquer contradição na fundamentação, nem tão pouco é notório qualquer erro na apreciação da prova.
O arguido alude à questão de o relacionamento amoroso se ter iniciado em 2000, o que terá sido dito pela vítima, mas isso em nada conflitua com o artigo 1º da matéria de facto provada no qual se deu como assente que viveram em comunhão desde 2006 dado que ter um relacionamento amoroso e viver em comunhão de leito, mesa e habitação não é a mesma coisa.
Afirma também que haveria uma contradição por se ter dado como assente no artigo 5º que o arguido não aceita o fim do relacionamento porque na própria decisão se acaba por dizer que a ofendida terá dito que actualmente não mantêm contacto. Trata-se apenas da normal discrepância entre o que estava a suceder quando foi proferida a acusação e no momento em que as declarações são prestadas.
Por outro lado, pretende o arguido que afirmou que não teve a intenção de ofender a vítima, mas o tribunal deu como provados os artigos 35º a 39º, os quais se reportam ao dolo e à consciência da ilicitude.
Não há aqui contradição alguma, por um lado porque o tribunal não está obrigado a acreditar em tudo aquilo que o arguido diz e por outro porque em bom rigor, o dolo é composto por “conhecimento” e “vontade”, englobando o primeiro termo o conhecimento propriamente dito, mas também a representação e a previsão, enquanto no segundo termo poderemos incluir a intenção, mas também a aceitação, - ora, tal conhecimento e tal vontade são actos interiores, psíquicos, tratando-se, do ponto de vista da análise, de conceitos a que poderemos chamar mentalísticos. Os actos psíquicos não se comprovam em si mesmos, mas mediante ilações, ou seja, os actos psíquicos transcendem a possibilidade de comprovação histórico-empírica, pelo que, do ponto de vista da análise, da análise jurídico penal, para o nosso caso, não são questões de prova – adiantamos já – mas questões de validade (científica, sociológica, lógico-intencional, semântica, filológica); trata-se de significações, apreciações, avaliações, não se trata de factos; por outras palavras, o apuramento do dolo do agente, enquanto acto interior e conceito mentalístico, é uma conclusão, uma ilação e uma atribuição de significado social que o tribunal criminal extrai a partir dos factos imputados ao arguido que foram dados como provados, factos esses lidos à luz das regras da experiência da vida, da normalidade social, da experiência comum. Concretizando, a questão do dolo criminal não é uma questão de prova, é uma questão já para lá e posterior à prova, sendo certo que o dolo não é, digamos assim, do ponto de vista do juízo penal, algo de ontológico mas sim algo de sociológico e normativo, cuja existência ou inexistência in casu, é decidida tendo por base os factos dados como provados – em sede de questão-de-facto – e critérios de experiência comum, critérios sociais (Rui Patrício, o dolo enquanto elementos do tipo penal (no direito português actual): questão de facto ou questão de direito? , in separata da revista da ordem dos advogados, ano 58, I, 1998.
Isto é, o dolo não é uma questão de prova, mas há-de concluir-se de presunções legais e naturais que não são objecto de prova, sendo que, por isso mesmo, não pode o arguido afirmar que a decisão enferma de alguma contradição apenas porque deu como provada a intenção do arguido, e o mesmo afirma que não teve essa mesma intenção, de contrário, nunca nenhum arguido teria dolo, se ele dependesse exclusivamente da sua confissão.
Nos factos provados estão descritas as condutas integradoras dos elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime, nenhuma insuficiência se detectando.
Por outro lado, não há nenhuma contradição na matéria de facto, entre a matéria de facto e a respectiva motivação.
Não se descortina também nenhum clamoroso erro na apreciação da prova.
Concluindo, nenhum motivo existe para operar qualquer alteração à matéria de facto dada como provada.
A. Saber se os factos dados como provados integram a prática do crime pelo qual o arguido foi condenado, mormente o crime de violência doméstica ou se os factos integram a prática de um crime de perseguição;
O artigo 152º, n.º1 do CP, estatui hoje que:
1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima (…) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício das responsabilidades parentais(…) por um período de um a dez anos.
Convém dizer que o artigo 152º está integrado no título dedicado aos crimes contra as pessoas.
Já no que se referia ao anterior crime de maus tratos, dizia Américo Taipa de Carvalho, no Comentário Conimbricense ao Código Penal, tomo I, p. 332, que a ratio do tipo está não na protecção da família ou da sociedade conjugal mas sim na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana.
No entender deste autor, o bem jurídico protegido por este crime é a saúde – bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental e bem jurídico este que pode ser afectado por toda a multiplicidade de comportamentos (…) que afectem a personalidade do cônjuge.
Convém recordar que a nossa jurisprudência já antes de 2007 se encaminhava no sentido de que bastava um único acto para que houvesse um crime de maus-tratos.
Já no Acórdão do STJ de 14.11.97, in CJ III, p. 235 se podia ler que só as ofensas corporais, ainda que praticadas uma só vez, mas que revistam uma certa gravidade ou seja, que traduzam crueldade, insensibilidade ou até vingança desnecessária por parte do agente é que cabem na previsão do artigo 152º do CP.
Sendo assim, na esteira do Acórdão da Relação do Porto de 26.05.2010, relatado pelo Sr. Desembargador Joaquim Gomes, acessível em www.dgsi.pt, podemos assentar que no actual crime de violência doméstica da previsão do artigo 152º do CP, a acção típica aí enquadrada tanto pode revestir maus tratos físicos, como sejam as ofensas corporais, como de maus tratos psíquicos, nomeadamente humilhações, provocações, molestações, ameaças ou maus tratos, como sejam as ofensas sexuais e as privações de liberdade, desde que os mesmos correspondam a actos, isolada ou reiteradamente praticados, reveladores de um tratamento insensível ou degradante da condição humana da sua vítima. A função deste artigo é prevenir as frequentes e, por vezes, tão subtis e camufladas formas de violência no âmbito da família. Neste sentido, a necessidade prática da criminalização das espécies de comportamentos descritos no art. 152º, alínea a) resultou da consciencialização ético-social dos tempos recentes sobre a gravidade individual e social destes comportamentos. A neocriminalização, no sentido de que a disposição deste artigo é algo de relativamente recente, não significa novidade ou maior frequência deles, nos tempos actuais, mas sim uma saudável consciencialização da inadequação e da gravidade e perniciosidade desses comportamentos, de uma consciencialização recente da violência conjugal como problema social.
O crime de violência doméstica pressupõe um agente, um sujeito activo que se encontra numa determinada relação para com o sujeito passivo, a vítima, daqueles comportamentos. Assim sendo, estamos perante aquilo a que se chama um crime específico.
Este denominado crime específico será impróprio ou próprio, consoante as condutas por si mesmas consideradas já constituam crime (estamos a lembrar-nos dos maus tratos físicos, sinónimo de ofensa à integridade física simples, de algumas formas de maus tratos psíquicos, como por exemplo, ameaças, injúrias ou difamações) ou não configurem em si mesmas qualquer tipo de crime.
As condutas previstas e punidas por este artigo podem ser de duas espécies: maus tratos físicos (ofensas à integridade física simples) e maus tratos psíquicos (ameaças, humilhações, provocações, molestações, perseguições).
E estes maus tratos podem ser infligidos de modo reiterado ou não. Anteriormente, à alteração introduzida pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro ao Código Penal, o tipo em análise pressupunha implicitamente uma reiteração das respectivas condutas. Um tempo longo entre dois dos referidos actos afastaria o elemento reiteração ou habitualidade. Contudo, existia já uma grande parte da jurisprudência, com a qual concordávamos, que considerava que uma conduta ainda que isolada podia configurar um crime de maus tratos desde que pela sua gravidade pusesse em causa a dignidade humana do cônjuge ofendido – cf. neste sentido Acórdão da Relação de Coimbra de 13/06/2007, in www.dgsi.pt.
O nº 2 do preceito em análise, prevê uma agravação da moldura penal quando os factos forem praticados contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima.
Nos factos típicos integradores do crime de violência doméstica estão contidas as ofensas verbais, físicas e psíquicas, sexuais e também os comportamentos persecutórios.
No Ac da RG de 11/02/2019, processo 1128/16.0PBGMR.G1, in www.dgsi.pt pode ler-se que:
II - No crime de violência doméstica, o comportamento imputado ao agente, normal e tendencialmente, pode ser susceptível de integrar, numa situação de concurso aparente, alguns outros crimes – como os de ofensas corporais simples (art. 143º, n.º 1), de injúria (art. 181º), de ameaça (art. 153º), de coacção (art. 154º), de sequestro simples (art. 158º, n.º 1), de devassa da vida privada [art. 192º, n.º 1. al. b)], de gravações e fotografias ilícitas [art. 199º, n.º 2, al b)] e de perseguição (art. 154º-A, n.º 1) –, que, pela subsunção a uma única previsão legal, deixam de ter relevância jurídico-penal autónoma, acabando por ser unificados naquele único crime (de violência doméstica), que é específico impróprio, pois a qualidade especial do agente ou o dever que sobre ele impende constitui o fundamento da agravação relativamente aos crimes que as condutas já integravam.
Entende o Ministério Público que a sentença recorrida procedeu a uma errada qualificação jurídica dos factos dados como provados, devendo o arguido AA ser absolvido do crime de violência doméstica na pessoa de CC e condenado pela prática de um crime de perseguição, previsto e punido pelo artigo 154.º-A, n.º 1, do Código Penal na pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à razão diária de 5,50€ (cinco euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz um total de 825,00 € (oitocentos e vinte e cinco euros).
Dispõe o artigo 154.º-A, n.º 1 do Código Penal que: “1 - Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal. 2 - A tentativa é punível. 3 - Nos casos previstos no n.º 1, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima pelo período de 6 meses a 3 anos e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção de condutas típicas da perseguição. 4 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. 5 - O procedimento criminal depende de queixa.”
O crime de perseguição foi introduzido no nosso ordenamento jurídico há relativamente poucos anos e o fenómeno que está por trás denomina-se em inglês, stalking.
O Professor Manuel da Costa Andrade, no comentário conimbricense ao Código Penal, escreve que “o stalking abrange as diferentes manifestações de perseguição persistente e repetida de uma pessoa, imposta contra a vontade da vítima, provocando-lhe estados de ansiedade, stress, perturbação e medo. Impondo-lhe sacrifícios (v.g., mudança de hábitos, de lugares frequentados, de casa.), e impedindo-a de conduzir e conformar livremente a sua vida.
Pode ler-se no Acórdão de 09.05.2023, relatado pela Desembargadora Maria Clara Figueiredo, do Tribunal da Relação Évora, que: inserido no capítulo dos crimes contra a liberdade pessoal, concretamente no capítulo IV do Título I do Código Penal, o crime de perseguição tutela o bem jurídico que de há muito se visava proteger com a criminalização do fenómeno do stalking: a liberdade de autodeterminação pessoal, i.e., a liberdade em algumas das suas manifestações específicas, tais como a liberdade de decisão, de ação, de organização da própria vida, em suma, a liberdade de viver o dia a dia num ambiente de paz e sossego. Trata-se de um crime de natureza complexa – pois que, pese embora o bem jurídico eminentemente protegido seja, sem dúvida, a liberdade de autodeterminação pessoal, ainda que reflexamente, o crime de perseguição tutela também a reserva da vida privada, a imagem e a saúde da vítima – e duradouro – uma vez que a execução do crime pode prolongar-se por um período de tempo mais ou menos longo, sendo que a reiteração é uma exigência do tipo.
A análise do tipo penal consagrado no artigo 154º-A acima transcrito permite-nos constatar, desde logo considerando a opção do legislador nacional pela expressão “de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”, estarmos em presença de um crime de perigo concreto – pois que a hipotética lesão vem descrita na norma mas não necessita de existir para que o crime se verifique – não sendo necessária para a sua consumação a efetiva lesão do bem jurídico, bastando-se aquela com a adequação da conduta a provocar a referida lesão, ou seja, exigindo-se apenas que a conduta criminosa seja idónea a prejudicar a liberdade de determinação da vítima ou a provocar-lhe medo. Quanto ao tipo subjetivo, o crime de perseguição é um crime doloso, não admitindo a sua configuração objetiva qualquer concessão a comportamentos negligentes, desde logo porquanto as próprias condutas criminosas evidenciam uma premeditação e uma reiteração que não abrem caminhos a eventuais processos não intencionais ou meramente resultantes de violações de deveres de cuidado.
O crime em causa pressupõe a ideia de reiteração e de frequência, através da repetição de várias condutas.
Pode também ler-se, com bastante interesse, o Acórdão desta Relação, de 11.07.24, relatado pela Desembargadora Paula Bizarro, no qual se diz o seguinte: a análise de tal normativo resulta que constituem elementos típicos objectivos de tal tipo de crime: - a acção consubstanciadora de assédio ou perseguição, praticada pelo agente ou por intermédio de terceiro; - que essa acção seja reiterada; - que essa acção seja adequada a causar medo ou inquietação no visado ou de o prejudicar a sua liberdade de determinação. Trata-se de um crime de execução livre, porquanto poderá ser perpetrado por qualquer meio. À sua consumação é desnecessária a produção de um dano efectivo no visado, ou seja, não se exige que o ofendido sinta medo, inquietude ou prejudicado na sua liberdade. A reiteração da conduta exigida ao preenchimento do tipo, pressupõe uma prática mais ou menos frequente, repetida mais do que uma vez.
Também a este respeito se pode ler, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 05-11-2019, relatado pelo Desembargador João Amaro: A “perseguição” (ou “stalking”) é um padrão de comportamentos persistentes, que se traduz em formas diversas de comunicação, contacto, vigilância e monitorização de uma pessoa-alvo. Tais comportamentos podem consistir em ações rotineiras e aparentemente inofensivas (como, por exemplo, oferecer presentes constantemente, telefonar insistentemente), ou mesmo em ações inequivocamente intimidatórias (como, por exemplo, seguir a vítima constantemente - a pé ou em veículo automóvel -, enviar repetidas mensagens de telemóvel com conteúdo persecutório e/ou “ameaçador”, enviar correspondência escrita de idêntico conteúdo, etc.). Pela sua persistência e contexto de ocorrência, este padrão de conduta pode assumir tal frequência e severidade que afete não só o “bem-estar” das vítimas, como, mais do que isso, lhes cause medo ou inquietação ou as prejudique na sua liberdade de determinação.
No acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22.09.2021, no âmbito do processo n.º1025/18.%PBMAI.P1, traça-se de forma muito correcta e apreensível a fronteira entre estes dois crimes, podendo ler-se que: quando não obstante a separação do casal, após um período longo de uma relação de namoro, um deles não interiorizou o términus da relação e passou a seguir o outro, perturbanco o seu direito ao sossego e de se movimentar livremente, o memso não comete um crime de violência doméstica, mas um crime de perseguição ou stalking, que é caracterizado pela existência de um padrão de comportamentos persistentes, que se traduz em formas diversas de comunicação, contacto, vigilância e monitorização de uma pessoa-alvo.
No caso em apreço, já depois de terminado o relacionamento, e porque não interiorizou esse final, o arguido passou a perseguir a vítima, perturbando a sua paz e a sua liberdade de movimentos, adoptando reiteradas formas de comunicar com ela, contra a vontade da mesma, para tentar dela reaproximar-se e nas suas palavras para tentar compreender os motivos que conduziram ao fim do relacionamento, uma vez que o arguido se convence que estão relacionados com outro homem.
Na verdade, e como decorre das próprias declarações do arguido, a sua conduta foi decorrente do fim abrupto e inesperado do relacionamento com a ofendida e a da sua “necessidade” de compreender os motivos daquela, contexto que deve ser considerado.
Conforme me parece dizer bem o MP, uma das coisas que distingue o crime de violência doméstica do crime de ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças, conferindo àquele uma maior moldura penal e carácter público é, assim, a maior abrangência dos bens jurídicos protegidos por aquele tipo legal como sejam, para além da integridade e saúde física e psíquica, a salvaguarda da dignidade da pessoa humana do ofendido, como sujeito enfraquecido em relação ao agressor.
Estamos em crer que sendo o crime de perseguição um crime especial relativamente ao crime de violência doméstica, deverá ser por ele punido o agente que adopta comportamentos persecutórios reiterados de forma a tentar manter acesa a chama do relacionamento, e não perder o contacto, sendo as suas condutas aptas a constranger a vítima.
Dados os factos considerados provados, parece-nos, que, efectivamente, assiste razão ao MP, integrando os factos a prática de um crime de perseguição, p.p. no artigo 154ºA, n.º1 do CP.
No que concerne às expressões injuriosas que no âmbito dessa perseguição o arguido proferiu deve o procedimento criminal ser arquivado por falta de legitimidade do Ministério Público para a sua prossecução processual.
De acordo com o recente Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 9/2024 do Supremo Tribunal de Justiça “O Ministério Público mantém a legitimidade para o exercício da acção penal e o assistente a legitimidade para a prossecução processual, nos casos em que, a final do julgamento,por redução factual de acusação pública por crime de violência doméstica p. e p. no artigo 152º, nº 1, do Código Penal, são dados como provados os factos integrantes do crime de injúria p. e p. no artigo 181º, nº 1, do Código Penal, desde que o ofendido tenha apresentado queixa, se tenha constituído assistente e aderido à acusação do Ministério Público.”
Nos presentes autos, a ofendida CC manifestou desejo de procedimento criminal contra o arguido, conforme resulta do teor do auto de notícia elaborado pela G.N.R. de Colares, contudo, não requereu a sua constituição como assistente, nem acompanhou a acusação pública deduzida pelo Ministério Público.
No que concerne à pena a aplicar, o crime de perseguição é punível com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.
Nos termos do artigo 47º, n.ºs 1 e 2 do CP a pena de multa situa-se entre os 10 e os 360 dias.
O MP propõe que se aplique ao arguido uma pena de 150 dias de multa.
Vejamos então. Quanto às condições pessoais do arguido, deu o tribunal como provado:
O arguido não tem antecedentes criminais registados conforme CRC, actualizado, de fls. 253, dos autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido.
O arguido é solteiro; reside com a sua mãe de quem é cuidador vivendo, ambos, da reforma da sua mãe, no valor mensal de cerca de €400 e tem a guarda partilhada da sua filha BB.
O arguido tem, como habilitações literárias o 7º ano.
*** No que respeita às exigências de prevenção geral estas mostrar-se-ão satisfeitas quando a pena se mostre comunitariamente suportável à luz da necessidade da tutela dos bens jurídicos e da estabilização da expectativa comunitária na validade das normas violadas (Jackobs, apud Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, Coimbra, 1993) .
Quanto às exigências de prevenção especial estas dizem, sobretudo, respeito ao próprio agente do crime, e não já à sociedade, e com estas se pretende satisfazer a necessidade de evitar a quebra de inserção social do agente e servir a sua melhor integração na sociedade, só deste modo se alcançando uma eficácia de protecção dos bens jurídicos.
No caso vertente, as exigências de prevenção geral são elevadas numa altura em que é cada vez mais frequente o cometimento deste tipo de ilícito, geralmente cometido contra mulheres.
Em termos de prevenção especial o facto de o arguido não ter antecedentes criminais, já ter deixado de contactar a ofendida, apesar de terem uma filha em comum e relativamente a qual tem a guarda partilhada, é determinante para que optemos pela aplicação de uma pena de multa.
No que respeita agora à fixação concreta da medida da pena, a culpa e a prevenção, são os dois vectores em que há que jogar.
Efectivamente, a pena, em caso algum, poderá, como dispõe o artigo 40º, n.º 2 do Código Penal, ultrapassar a medida da culpa. A culpa funcionará, nesta perspectiva, não exactamente como finalidade das penas mas como limite inultrapassável das mesmas.
Assim sendo, serão as considerações de prevenção que deverão abaixo da medida da culpa determinar a pena (artigo 71º do Código Penal).
O artigo 71º do Código Penal, enumera de forma exemplificativa os factores a considerar na dosimetria penal, e que hão-de dar satisfação às exigências de prevenção, tendo sempre como ponto de referência a culpa do agente.
Assim, há que ponderar as seguintes circunstâncias: Grau de ilicitude do facto: o grau de ilicitude é elevado atendendo a que o arguido perseguiu a mãe da sua filha. Intensidade do dolo: o arguido agiu com dolo directo. Conduta anterior e posterior aos factos: O arguido não tem condenações anteriores, nem posteriores, é cuidador da mãe, tem uma filha de quem tem a guarda partilhada. Deixou de contactar a ofendida.
Tudo visto e ponderado consideramos adequada a pena de 150 dias de multa, à taxa diária de 5 euros, num total de setecentos e cinquenta euros.
Quanto á última questão suscitada pelo arguido e que se reportava à pena pela prática do crime de violência doméstica, atendendo à alteração de qualificação jurídica operada, a mesma perde pertinência e não será, por isso, analisada.
O recurso do arguido deve, pois, ser julgado improcedente, e, pelo contrário, o recurso do MP completamente procedente.
3. Decisão:
Assim, e pelo exposto:
- nega-se provimento ao recurso do arguido, mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida.
- concede-se provimento ao recurso do MP, alterando a qualificação jurídica dos factos que em primeira instância lhe tinham valido a condenação por crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º/1-b, do CP, e em lugar disso condená-lo agora, como autor de um crime de perseguição, p. e p. pelo art. 154.º-A/1, do CP, na pena de cento e cinquenta dias de multa, à taxa diária de cinco euros, num total de setecentos e cinquenta euros, mantendo-se no mais a decisão recorrida.
Custas pelo arguido que se fixam em 4 UCS, sem prejuízo da isenção de que beneficie.
Notifique.
Lisboa, 27 de Junho de 2025
Cristina Isabel Henriques
Alfredo Gameiro
Hermengarda do Valle-Frias (com declaração de voto)
Declaração de voto:
Voto a decisão, concordando com a requalificação dos factos e fundamentos dela, bem como com a condenação do arguido enquanto autor material de um crime de perseguição, p. e p. pelo artº 154º-A, nº 1 do Cód.Penal.
No entanto, considero que, atenta a gravidade dos factos provados, o tempo por que se estendeu a actuação do arguido, que revelam uma intensidade criminógena considerável, sem nunca ele se ter demovido do propósito com que actuava e que era o de infligir sofrimento emocional e constrangimento na vítima, por isso sendo a ilicitude dos factos elevada e a culpa na actuação também, não pode deixar de ser-lhe aplicável pena de prisão.
Em conformidade, sopesando aqueles elementos e nos termos dos arts. 70º e 71º do Cód. Penal, conquanto o arguido não tenha antecedentes criminais registados, mas mostrando-se ainda socialmente desintegrado, sem ocupação lícita apurada [vivendo à custa da reforma da mãe no valor mensal de 400€, o que, aliás, fará recair sobre esta o pagamento da pena de multa aplicada ao filho], entendo que, entre o mínimo da moldura abstracta e o máximo dela, devia o arguido ser condenado numa pena de 7 (sete) meses de prisão, ainda que, aceitando que esta servisse de adequado estímulo e futura contenção, determinasse a sua suspensão na execução (artº 50º do mesmo diploma), sujeitando essa suspensão a regime de prova, nos exactos termos em que o fixou a primeira instância.
Hermengarda do Valle-Frias