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ARQUIVAMENTO EM CASO DE DISPENSA DE PENA
ADMISSIBILIDADE DE ABERTURA DE INSTRUÇÃO
Sumário
1. Atendendo a que não existe qualquer norma a cominar a nulidade de um despacho que padeça de omissão de pronúncia ou de falta de fundamentação, a existirem estas, a imputação de tais imperfeições ao despacho recorrido constituirá sempre irregularidade, cujo regime e prazo de invocação se encontram previstos no artigo 123.º do Código de Processo Penal, sendo certo que a reparação oficiosa de irregularidades aqui referida só pode ocorrer se, existindo, puder afetar o valor do ato praticado. 2. A decisão de arquivamento em caso de dispensa de pena, prevista no artigo 280.º do Código de Processo Penal, constitui um mero afloramento do consenso, porque a lei não impõe a intervenção na génese desta decisão de todos os interessados no processo, designadamente o ofendido. 3. E constitui, ainda, tal decisão, um mero afloramento do princípio ou sistema da oportunidade, porque para ser válida carece da anuência do juiz. 4. Assim, estamos em presença de um tertium genus, por assim dizer: nem se trata de uma aplicação pura do consenso, porque há interessados que não participaram na decisão, nem de uma aplicação plena da oportunidade, porque o detentor da ação penal carece do consentimento de um juiz para proferir a decisão em causa. 5. Sendo seguro que o juízo de oportunidade que preside a tal decisão não é sindicável, caso os pressupostos formais desta estejam respeitados, o segmento em conformidade com o disposto nos números anteriores, constante da parte final do n.º 3 do artigo 280.º do Código de Processo Penal, pretende significar que é impugnável o juízo de legalidade subjacente à decisão. 6. Não pode considerar-se, à face da lei, no que toca à reparação do dano, que existiu reparação natural através da ofensa perpetrada ao outro agente, nem que, deste modo, os direitos indemnizatórios se compensam, designadamente para preenchimento dos pressupostos da dispensa de pena, prevista no artigo 74.º do Código Penal.
Texto Integral
I RELATÓRIO
1 No processo n.º 130/23.0PBVRL, do Juízo Local Criminal de Vila Real – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, foi proferido despacho de rejeição do requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente AA, por inadmissibilidade legal.
2 Não se tendo conformado com a decisão, assistente apresentou recurso, formulando as seguintes conclusões:
1.º O Assistente não se conforma com as conclusões tecidas pelo Digno Juiz de Instrução no despacho de rejeição de abertura de instrução, e à adjacente a esta decisão, dos entendimentos do MP, aceite qua tale pelo JIC, constantes do Despacho de arquivamento, ambos proferidos à margem dos presentes autos. 2.º O presente recurso versa a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de direito, o que é admissível pois os poderes de cognição deste Tribunal são de facto e de direito – artigo 428º do C.P.P. 3.º O despacho recorrido foi fundamentado nos termos e para efeitos das normas 280º, n.º 3 e 287º, n.º 3, ambos do CPP, que foram mal interpretados e mal aplicados às circunstâncias do caso em apreço. Posto isto: 4.º Ante o melhor alegado no corpo das alegações de recurso, invoca o recorrente que, contaminado pelo próprio despacho de concordância, com data de 24 de Abril de 2024, com a ref.ª n.º ...31, também o despacho prolatado pelo Exmo. Juiz de Instrução datado de 28-08-2024, Refª ...13, padece de nulidade por omissão de pronúncia e/ou falta de fundamentação. Nulidades que se invocam para os devidos e legais efeitos, tudo ao abrigo do 379º, n.º 1, al. c) do CPP. Sem prescindir, 5.º O MP emitiu despacho de arquivamento, tendo por base o n.º1, do artigo 280º do CPP, o que se entende ser no sentido da negação de justiça ao Assistente AA, já que o n.º3 do art. 280º do CPP não permite a impugnação do despacho que decide o arquivamento do inquérito no caso de dispensa de pena. 6.º Deverá ser entendido que a interpretação da norma 280º do CPP na jurisprudência não é unânime, devendo-se reconhecer ao assistente a possibilidade de impugnação do despacho que decidiu o arquivamento do inquérito no caso de dispensa de pena, e consecutivamente a abertura de instrução, garantindo o legítimo acesso à justiça. 7.ª Vejamos o que diz a jurisprudência sobre a situação sub judice: i) Ac. do Tribunal Constitucional 397/2004 proferido no processo 202/2004, do Conselheiro Mário Torres: “não julgar inconstitucional a norma do artigo 280º, n.º1 e 3 do CPP, interpretando como não admitindo recurso para o Tribunal da Relação das decisões do MP de arquivamento de inquérito, no caso de dispensa da pena”, não sem que antes tenha deixado claro que “para além da possibilidade da reclamação hierárquica da decisão de arquivamento do Ministério Público, o assistente tem sempre a possibilidade de requerer a abertura de instrução e de obter, no seu termo, a pronúncia do arguido, estando assim suficientemente assegurado o direito de acesso aos tribunais”. ii) Ac RC de 10.01.2018 – processo 260/14....: “quando o fundamento for o da violação da lei por falta de verificação dos pressupostos legais para a dispensa de pena (pressupostos materiais exigidos pela lei substantiva e pressupostos processuais estabelecidos nos nºs 1 e 2 do citado artigo 280º), a decisão do arquivamento considerada ilegal é suscetível de impugnação (…)”. iii) Ac. 64/20.0GACBC.G1 do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 07-02-2022: “A noção da inadmissibilidade legal da instrução é um conceito aberto ou que, pelo menos, permite que se preencha com diversas situações. É inequívoco que, por exemplo, nas formas de processo especiais (artigo 286º, nº 3) não pode haver lugar a instrução (…) porque a lei veda frontalmente tal possibilidade. Mas a mesma limpidez não se alcança noutras situações, nomeadamente na que nos ocupa (…) Muitas e divergentes têm sido também as decisões jurisprudenciais sobre a forma como podem as partes reagir a uma decisão de arquivamento no caso de dispensa da pena, ou de suspensão provisória do processo (artigo 280º e 281º do CPP)”. 8.º Do despacho de arquivamento, aceite pelo JIC, resulta o entendimento de que na reciprocidade das lesões há lugar a uma compensação ao nível do facto típico ilícito, que se repercute na extinção da obrigação de indemnizar e consequentemente na perda de fundamento para a abertura de instrução. 9.º Dever-se-á, no entanto, compreender que tal entendimento viola expressamente a lei, na medida em que o facto de haver reciprocidade de lesões não implica a extinção de créditos por compensação, por tal ser proibido pelo artigo 853º, n.º1, al. a) do Código Civil. Deste modo, elimina-se a hipótese de fundamentação por reparação do dano, exigida pelo artigo 74º do Código Penal e, consequentemente, pelo artigo 280º CPP. 10.ª Vejamos o que diz a jurisprudência sobre a situação sub judice: i) Ac. 64/20.0GACBC.G1 do Tribunal da Relação de Guimarães, datado de 07-02-2022: “O entendimento de que na reciprocidade de lesões - pressuposto da dispensa de pena prevista nos arts. 143.º, n.º 3 e 74.º, nºs 1 e 3 ambos do Código Penal e 280.º do Código de Processo Penal -, há lugar a uma compensação ao nível do facto ilícito típico, que se repercute na obrigação de indemnizar, viola o disposto no art. 853.º, n.º 1, a) do Código Civil”, aditando o seguinte: “Portanto, só esta constatação impediria a afirmação de que se verifica o pressuposto da efetiva reparação do dano, exigido pelo artigo 74º do Código Penal e, consequentemente, pelo artigo 280º do CPP. Isto é, o despacho de arquivamento ao desconsiderar aquela realidade viola lei expressa e, nessa medida, seria suscetível de impugnação (…)”. 11.º Isto é, o despacho de arquivamento e, na sua sequência, o despacho de recusa de abertura de instrução violam lei expressa, já que despacho de arquivamento era, como é, suscetível de impugnação, desde logo através de Requerimento de Abertura de Instrução, conforme jurisprudência do Tribunal Constitucional e jurisprudência do Tribunal da Relação de Guimarães. 12.º Por outro lado, não se verificam os pressupostos da dispensa da pena a que alude o artigo 143º, n.º 3, alíneas a) e b) do CP, porquanto dos elementos probatórios constantes dos autos não é possível extrair-se, ou concluir-se que as agressões efetuadas pelos arguidos entre si, foram praticados exclusivamente e apenas em resposta às agressões que cada um deles ia sofrendo. 13.º Não podia o MP concluir que o Assistente AA agrediu o arguido BB, e também não podia concluir que não se conseguiu determinar quem deu a primeira pancada, quando a prova aponta apenas para um sentido: o Assistente foi o primeiro a levar uma pancada certeira no nariz e no olho, a qual o deixou a sangrar, com ossos partidos, e com necessidade de tratamento hospitalar e cirúrgico. 14.º Invoca o recorrente, em seu abono, o depoimento da testemunha CC (id. a fls. 28, 29 do apenso 130/23.0PBVRL), testemunha ocular, que identificou o “reclamante” como sendo “o indivíduo estava com o seu veículo devidamente estacionado na Rua ..., estando este a apitar, para alertar o condutor de um outro veículo que lhe estava a impedir a saída do estacionamento”, mais referindo que “ao local chegou o condutor da carrinha que se encontrava mal estacionada”, até que viu – após uma discussão verbal – “o condutor da carrinha de porta aberta a sair desta, bastante exaltado e o outro condutor que identifica como o reclamante todo contorcido e a sangrar”, concretizando que viu o agressor a desferir um murro à vítima, ao que se seguiu um “bater de mãos um no outro”, até que pararam. 15.º Ora, face a este depoimento, outra conclusão não se pode retirar que não seja a de que esta testemunha VIU o Assistente AA a ser agredido com um murro certeiro, um soco que colocou a vítima AA a sangrar. 16.º Mais: para além da patente desproporcionalidade, os danos do Assistente não foram reparados efetivamente e, portanto, não se mostram preenchidos os pressupostos de que o artigo 74º, n.º1, alíneas a) e b) do CP faz depender a possibilidade de recurso à dispensa de pena. 17.ª Conforme relatórios médicos juntos a fls. 9, 10, 11, 91, 92 e 93, o assistente AA sofreu os seguintes danos: - Fratura Nasal/ Traumatismo nasal à direita, com epistaxis; - Deformidade Nasal; - Múltiplas fraturas dos ossos próprios do nariz, bilaterais, desalinhadas e condicionando desvio da pirâmide nasal para a esquerda; - Edema e Hematoma palpebral à direita; - Desvio acentuado da pirâmide nasal para a esquerda; - Afundamento dos ossos do nariz à direita; - 1.º incisivo direito superior lascado; - Necessidade de cirurgia sob anestesia para redução da fratura e realinhamento da pirâmide nasal; - Necessidade de tala no nariz; - Entubação orotraqueal, analgesia em SOS, gelo local e Thrombocid 18.º Através da documentação referenciada, percebemos ainda que, após observação em consulta no Hospital ..., em 13 de Março de 2023, e por apresentar desvio da pirâmide nasal, o AA foi nesse mesmo dia ao bloco operatório para redução da fratura e realinhamento da pirâmide nasal, tendo removido a tala uma semana depois. 19.º As lesões atrás referidas determinaram, ao AA, 52 dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral e com afetação da capacidade de trabalho profissional durante 7 dias. Em face do exposto, o AA necessitou de assistência médica, de cirurgia sob anestesia geral e entubação orotraqueal, necessitando ainda de tomar medicação, de analgesia em SOS, gelo local e Thrombocid, realizando os respetivos tratamentos clínicos. 20.º Enquanto isso, a fls. 69, 70 e 71 dos autos apensos 131/23.0PBVRL, consta o relatório do IML, elaborado ao arguido BB, documento importante para percebermos que: - Em 07-03-2023, aquele arguido recorre ao Hospital ..., efetua TAC CE e ouvidos, não apresentando lesões traumáticas intracranianas, nem traços de fratura de calote ou base de crânio; - Em 10-03-2023, recorre de novo ao SU, por otalgia e noção de agravamento de hipoacusia prévia, pelo que foi orientado para ORL, uma vez que como antecedentes tem história de timpanoplastia bilateral. No exame de ORL a otoscopia era normal; 21.º Com o evento, aponta-se como possível lesão relacionável uma mera equimose retroauricular inferior à esquerda, numa área de 3 x 2,5 cm de tamanho; sem relação com evento, o relatório do IML aponta para as inerentes às cirurgias de ouvido efetuadas. – Cfr. fls. 60, 70 e 71 dos autos. 22.º A gravidade e disparidade dos danos do aqui recorrente e do arguido é patente, tal a desproporcionalidade. 23.º Assim o requerimento de abertura de instrução interposto pelo assistente deve ser admitido, com as devidas e legais consequências, já que legalmente admissível. 24.º O tribunal a quo violou, por erro e interpretação, entre outros, os artigos 853º, n. º1, al. a) do Código Civil, 74º, n.º3, alíneas a) e b) do CPP, 74º, n.º1, alíneas a) e b), e 143º, n.º 1, ambos do CP, violando ainda os artigos 280º, ns.º 1 e 3, e 287º, n.º 3, ambos do CPP. Pelo exposto, deve a decisão proferida na parte aqui impugnada ser revogada, substituindo-a por outra que determine a procedência do presente recurso, conforme alegado e concluído, seguindo-se os demais termos legais, assim se fazendo a costumada e boa justiça.
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O Ministério Público respondeu ao recurso, propondo a sua improcedência, concluindo perlo seguinte modo:
1) Não é admissível impugnação do despacho de arquivamento proferido nos termos do artº 280, n.º 1 do CPP, mediante requerimento de abertura de instrução; 2) O recorrente, fundamenta a alegada ilegalidade do despacho recorrido - que rejeitou o requerimento de abertura de instrução, com base na sua inadmissibilidade legal e, desta forma, com base em fundamentos de direito, a saber: omissão de pronuncia e/ou falta de fundamentação, por contaminação com o despacho de concordância com o arquivamento com dispensa de pena, 3) Tal não cabe apreciar no âmbito deste recurso; 4) A decisão do Ministério Público de arquivar o inquérito já mereceu comprovação judicial mediante a prolação do despacho de concordância emitido pelo juiz de instrução a que faz alusão o art 280º n.º 1 do C.P.P; 5) A admitir a abertura de instrução, ocorreria a dupla comprovação judicial, do mesmo despacho de arquivamento do Ministério Público, por diferentes juízes de instrução; 6) Deverá ser proferida decisão sumária negando provimento ao recurso, nos termos do artigo 417º, n.º 6, al. d) do CPP, ficando desta forma prejudicada, a apreciação da alegada e eventual não verificação, no caso sub iudice, dos pressupostos do arquivamento com dispensa de pena. 7) Não ocorreu a nulidade invocada nos termos do 379º, nº 1, al. c), do CPP; 8) Pelo que é nossa opinião que o despacho recorrido deve ser mantido nos seus precisos termos, negando-se provimento ao recurso interposto. 9) Não foi, pois, violado qualquer dispositivo legal. Deve, deste modo, e no nosso entendimento, ser integralmente confirmada a douta decisão recorrida e julgado totalmente improcedente o recurso interposto pelo DD, como é de toda a justiça.
4
Recebidos os autos neste Tribunal da Relação de Guimarães, o Ministério Público emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
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Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foi apresentada resposta pelo recorrente.
6
Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
II FUNDAMENTAÇÃO
1 Objeto do recurso:
A
A decisão recorrida é nula por omissão de pronúncia e/ou falta de fundamentação?
B
O despacho de arquivamento proferido nos termos do artigo 280.º do Código de Processo Penal pode ser impugnado mediante requerimento de abertura da instrução?
2 Decisão recorrida:
I. Da abertura da instrução – do requerimento de abertura de instrução do assistente AA [cf. req. com a ref. n.º ...44] Por requerimento com a ref. n.º ...44 veio o assistente AA requerer a abertura de instrução, nos termos do disposto no art. 287.º, n.º 1, al. b) do C.P.P., face ao despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público [cf. despacho com a ref. n.º ...31], nos termos do disposto no art. 280.º, n.º 1 do C.P.P.. Nesse sentido requer que seja proferido despacho de pronúncia contra o arguido BB pelos factos descritos no requerimento de abertura de instrução, os quais, no seu entender, consubstanciam a prática por este de 1 (um) crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art. 143.º, n.º 1 do C.P.. Apreciando e decidindo. Preceitua o art. 286.º, n.º 1 do C.P.P. que «A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.». Por sua vez, de acordo com o disposto no art. 287.º, n.ºs 1 a 3 do C.P.P. «1 - A abertura da instrução pode ser requerida, no prazo de 20 dias a contar da notificação da acusação ou do arquivamento: a) Pelo arguido, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público ou o assistente, em caso de procedimento dependente de acusação particular, tiverem deduzido acusação; ou b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação. 2 - O requerimento não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos atos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e de outros, se espera provar, sendo ainda aplicável ao requerimento do assistente o disposto nas alíneas b) e d) do n.º 3 do artigo 283.º, não podendo ser indicadas mais de 20 testemunhas. 3 - O requerimento só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução. (…)». No caso concreto, constata-se que por despacho com a ref. n.º ...31 [de 21-04-2024] o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento dos presentes autos, nos termos do disposto no art. 280.º, n.º 1 do C.P.P. [que tem como epígrafe «Arquivamento em caso de dispensa da pena»] – o qual veio a merecer a concordância do Juiz de Instrução Criminal [cf. despacho com a ref. n.º ...06 de 24-04-2024]. Ora, é contra este despacho de arquivamento que o assistente AA se insurge e vem requerer a abertura de instrução, nos termos do disposto no art. 287.º, n.º 1, al. b) do C.P.P.. Todavia, conforme resulta do disposto no art. 280.º, n.º 3 do C.P.P., «3 - A decisão de arquivamento, em conformidade com o disposto nos números anteriores [i.e. em conformidade com o disposto nos n.ºs 1 e 2 do art. 280.º do C.P.P.], não é susceptível de impugnação.». Dúvidas inexistem que o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo assistente AA consiste, precisamente, num mecanismo de impugnação da decisão de arquivamento do Ministério Público, já que aquele pretende que tal arquivamento seja substituído por uma decisão de pronúncia do arguido BB pela prática de 1 (um) crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art. 143.º, n.º 1 do C.P.. Contudo, nos termos do disposto no art. 280.º, n.º 3 do C.P.P., como se disse, a decisão de arquivamento do Ministério Público, nos termos do n.º 1 do mesmo preceito legal, não é suscetível de impugnação, pelo que a abertura de instrução não se mostra como legalmente admissível [cf. art. 287.º, n.º 3 do C.P.P.]. Conforme se escreveu no recentíssimo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06-03-2024, processo n.º 325/22.4GBSRT.C1, relator: João Novais, disponível em www.dgsi.pt, «O art. 280º n.º 3 do C.P.P. não permite a impugnação da decisão de arquivamento em caso de dispensa de pena mediante requerimento de abertura da instrução.» [no mesmo sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25-09-2017, processo n.º 409/17.0T9EVR.E1, relatora: Ana Barata Brito, disponível: em www.dgsi.pt, onde se escreveu: «III - Não pode assim o assistente impugnar o despacho de arquivamento, apesar de ele não ter intervenção no processo decisório. Ao determinar a inimpugnabilidade dessa decisão, a lei veda não só a possibilidade de recurso jurisdicional, que aliás não teria sentido, uma vez que a decisão é do Ministério Público, como também a possibilidade de impugnação, quer por via hierárquica, quer através da abertura de instrução.» e ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 21-01-2015, processo n.º 316/13.6GAPMS-A.C1, relator: Jorge França, disponível em www.dgsi.pt]. Em face do exposto, e ao abrigo do preceituado nos arts. 280.º, n.º 3 e 287.º, n.º 3 ambos do C.P.P., decide-se rejeitar o requerimento de abertura de instrução com a ref. n.º ...44 apresentado pelo assistente AA por inadmissibilidade legal.
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Custas pelo assistente AA, nos termos dos arts. 8.º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais e 515.º, n.º 1, al. a) do C.P.P., cuja a taxa de justiça se fixa em 1 UC [devendo ter-se em consideração a taxa de justiça já paga pelo assistente no seu requerimento de abertura de instrução].
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Notifique.
3 O direito.
A A decisão recorrida é nula por omissão de pronúncia e/ou falta de fundamentação?
O recorrente começa por imputar à decisão recorrida a invalidade da nulidade por omissão de pronúncia e/ou falta de fundamentação. Trata-se da formulação de, por assim, dizer, um pedido alternativo, endossando a escolha ao tribunal de recurso, o que, em processo penal, não é curial – os pedidos alternativos têm a sua sede própria no processo civil, e a respeito da pretensão que constitui o objeto do processo, não se estendendo, também aí, a outros segmentos processuais.
Esta imperfeição técnica não impedirá, todavia, que, muito perfunctoriamente, nos debrucemos sobre a questão suscitada.
Vejamos o que diz a lei, designadamente o Código de Processo Penal:
Artigo 97.º Actos decisórios 1 - Os actos decisórios dos juízes tomam a forma de: a) Sentenças, quando conhecerem a final do objecto do processo; b) Despachos, quando conhecerem de qualquer questão interlocutória ou quando puserem termo ao processo fora do caso previsto na alínea anterior. 2 - Os actos decisórios previstos no número anterior tomam a forma de acórdãos quando forem proferidos por um tribunal colegial. 3 - Os actos decisórios do Ministério Público tomam a forma de despachos. 4 - Os actos decisórios referidos nos números anteriores revestem os requisitos formais dos actos escritos ou orais, consoante o caso. 5 - Os actos decisórios são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão.
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Artigo 118.º Princípio da legalidade 1 - A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei. 2 - Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular. 3 - As disposições do presente título não prejudicam as normas deste Código relativas a proibições de prova.
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Artigo 379.º Nulidade da sentença 1 - É nula a sentença: a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F; b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º; c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. 2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º 3 - Se, em consequência de nulidade de sentença conhecida em recurso, tiver de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido, o recurso que desta venha a ser interposto é sempre distribuído ao mesmo relator, exceto em caso de impossibilidade.
Ora, não resta dúvida alguma que:
- a decisão recorrida é um despacho, de acordo com o art.º 97.º, n.º 1, alínea b);
- tal decisão deve ser fundamentada, nos termos do artigo 97.º, n.º 5;
- apenas para a falta de fundamentação da sentença prevê a lei a sanção da nulidade, como se verifica do teor do art.º 379.º, n.º 1, alínea a);
- a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei, o que não sucede no caso.
Assim sendo, e como não existe qualquer norma a cominar a nulidade de um despacho que padeça de omissão de pronúncia ou de falta de fundamentação, a existirem estas, a imperfeição apontada à decisão recorrida constituiria irregularidade, cujo regime e prazo de invocação se encontram previsto no artigo 123.º do Código de Processo Penal, prazo esse há muito exaurido, sendo certo que a reparação oficiosa de irregularidades ali prevista só pode ocorrer se, existindo, puder afetar o valor do ato praticado.
Efetivamente, como se viu, manda a lei que em face de um despacho visto pelo seu destinatário como insuficientemente fundamentado ou omitindo pronúncia, cumpre-lhe invocar, no prazo previsto do aludido artigo 123.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a respetiva irregularidade, e só em face de uma eventual decisão de indeferimento dessa arguição se poderá interpor recurso, o qual incidirá, precisamente, sobre a aludida decisão de indeferimento da irregularidade.
A questão está, assim, naturalmente resolvida, porque, por exaurimento do prazo para a suscitar, ainda que existisse, ficou sanada.
B O despacho de arquivamento proferido nos termos do artigo 280.º do Código de Processo Penal pode ser impugnado mediante requerimento de abertura da instrução?
Comecemos por rememorar o Código de Processo Penal a este respeito:
Artigo 280.º Arquivamento em caso de dispensa da pena 1 - Se o processo for por crime relativamente ao qual se encontre expressamente prevista na lei penal a possibilidade de dispensa da pena, o Ministério Público, com a concordância do juiz de instrução, pode decidir-se pelo arquivamento do processo, se se verificarem os pressupostos daquela dispensa. 2 - Se a acusação tiver sido já deduzida, pode o juiz de instrução, enquanto esta decorrer, arquivar o processo com a concordância do Ministério Público e do arguido, se se verificarem os pressupostos da dispensa da pena. 3 - A decisão de arquivamento, em conformidade com o disposto nos números anteriores, não é susceptível de impugnação.
Estamos em face de um afloramento do consenso em processo penal.
“O modelo de um processo penal basicamente acusatório integrado por um princípio subsidiário e supletivo de investigação oficial deve, pois, permanecer intocado. O que sucede, em meu parecer, é que este modelo tem agora, se quiser adequar-se à transformação ideológica, cultural e social dos tempos ditos pós-modernos e às exigências acrescidas de eficácia processual, de ser integrado num paradigma assaz diferente do que até há pouco presidiu a toda a conceção europeia continental. Num paradigma que, não deixando de assinalar ao processo penal uma característica adversarial, deve dar passos decisivos na incrementação, em toda a media possível, de estruturas de consenso em detrimento de estruturas de conflito entre os sujeitos processuais; como forma de oferecer futuro a um processo penal dotado de «eficácia funcionalmente orientada» indispensável à ultrapassagem da atual sobrecarga da justiça penal, sem menoscabo dos princípios constitucionais adequados aos Estado de Direito.
(…)
Mas traços característicos do movimento em prol de uma certa «consensualização» do processo penal surgiram logo de resto – como tem sido generalizadamente reconhecido –no nosso Código de Processo Penal de 1987, através sobretudo de institutos como os do arquivamento do processo em caso de dispensa de pena, da suspensão provisória do processo e do processo sumaríssimo.
(…)
A decantada e já operada consensualização do processo penal português (…) não se baseia assumidamente em estruturas e procedimentos de verdadeiro «consenso», mas simplesmente em meras concordâncias perante (ou na aceitação de) propostas ou requerimentos de um ou mais sujeitos processuais dirigidos a outro ou a outros. Vistas as coisas à luz do sistema português: por exemplos, a concordância entre o juiz e o ministério público no caso do artigo 280.º, n.º 1, ou também do arguido, no caso do art.º 280.º, n.º 2; a concordância entre o ministério público, o juiz de instrução, o arguido e o assistente no caso do art.º 281.º, n.º 1; a concordância do arguido com a - sob a forma de não oposição à - sanção proposta pelo ministério público na hipótese do artigo 396.º, n.º 2, alínea a) (todos do Código de Processo Penal). Não estão, pois, aqui em causa procedimentos metodológicos – nomeadamente o uso de estruturas comunicacionais não ritualizadas – aplicados pelos intervenientes em ordem a uma tomada de decisão, como sempre se tornaria necessário para se poder falar de uma autêntica estrutura de consenso.
(…)
De «consenso» bastará tomar aqui a ideia central de que se trata de um processo democrático de alcançar a solução de um problema em que participa construtiva e ativamente e de modo inclusivo – num ambiente em que todas as opiniões são respeitadas e todas as contribuições avaliadas – todo o grupo ou conjunto de pessoas diretamente interessadas no problema. Quando todos os envolvidos no debate ou no diálogo se prestam a cumprir o que for acordado através de uma norma decisória, está alcançada a universalização concreta e pragmática do processo instalado para se alcançar o consenso: o «consenso como processo» e não necessariamente também o «consenso (auto) legitimador»” - cfr. Figueiredo Dias, Acordos Sobre a Sentença em Processo Penal, Coleção Virar de Página, Edição do CDOA do Porto, pag. 16, 18, 21 e 22.
Por tudo isto, dissemos logo a começar que se trata no caso sub judice de um mero afloramentodo consenso, porque, como é bom de ver, um dos interessados, um ofendido que se constitui assistente, não foi tido nem achado na resolução do caso, nem devia tê-lo sido, em face da lei – mas tanto basta para negarmos ao mecanismo em causa a natureza de verdadeiro procedimento consensual de resolução do processo, atentos os ensinamentos acima transcritos.
E constitui também, por isso, precisamente por ser um mero afloramento do consenso, um afloramento do princípio ou sistema da oportunidade, que vigora em pleno nos países anglo-saxónicos, e segundo o qual a entidade acusadora pode selecionar os processos de acordo com a sua importância e gravidade, e decidir não promover o processo penal e relação àqueles em que estas características se assumam como menores, em ordem a, essencialmente, não congestionar os tribunais – sobre o tema veja-se o lapidar estudo de Costa Andrade, Consenso e Oportunidade, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, CEJ, Almedina, pag. 317 e segs,. Ou seja, se estivéssemos em face de um verdadeiro consenso, e não estamos, como demonstra o presente recurso, não haveria necessidade de invocar e fazer atuar o poder de oportunidade.
No âmbito da operacionalização do dito procedimento, os principais problemas colocaram-se na decorrência do n.º 3 do artigo 280.º: a decisão de arquivamento, em conformidade com o disposto nos números anteriores, não é suscetível de impugnação.
Atenta a nossa tradição de restrição das decisões irrecorríveis (ainda hoje vigorosíssima, reconheça-se), logo surgiu um acentuado horror vacui, por assim dizer, por causa desta limitação impugnativa.
E, tal como acertadamente se refere no recurso, o Acórdão do Tribunal Constitucional 397/2004, decidiu “não julgar inconstitucional a norma do artigo 280º, n.º1 e 3 do CPP, interpretando como não admitindo recurso para o Tribunal da Relação das decisões do MP de arquivamento de inquérito, no caso de dispensa da pena”, não sem que antes tenha deixado claro que “para além da possibilidade da reclamação hierárquica da decisão de arquivamento do Ministério Público, o assistente tem sempre a possibilidade de requerer a abertura de instrução e de obter, no seu termo, a pronúncia do arguido, estando assim suficientemente assegurado o direito de acesso aos tribunais”.
Claro que estamos, no que aqui interessa, em face de um mero obiter dictum, mas nem por isso despiciendo.
Ora, a questão do recurso da decisão de arquivamento nos termos do artigo 280.º do Código de Processo Penal está resolvida, quer porque, naturalmente, se não pode recorrer de um despacho do Ministério Público, seja para onde for, quer porque a decisão de concordância do juiz de instrução não constitui propriamente uma emanação do poder jurisdicional, antes configurando como que um pressuposto formal de uma decisão própria e autónoma do detentor da ação penal, através do qual se põe termo a um inquérito.
Resta saber se é possível requerer a abertura da instrução para controlo jurisdicional da aludida decisão, e, caso tal seja possível, em que termos o é.
A decisão recorrida, estribando-se em Jurisprudência concordante, entende que não.
O recorrente, igualmente alicerçado, defende que sim.
Ora, desde já cumpre ter presente que a lei não prevê, tout court, que a decisão não é impugnável; prevê, isso, sim, que a decisão de arquivamento, em conformidade com o disposto nos números anteriores, não é suscetível de impugnação.
Cumpre agora averiguar qual é alcance do segmento em conformidade com o disposto nos números anteriores – estará apenas em causa o respeito pelos pressupostos formais (decisão do procurador e concordância do juiz de instrução), ou poderá querer atingir-se o conteúdo material dos pressupostos? Por outras palavras, poderá sindicar-se, através do requerimento de abertura da instrução, o juízo de legalidade, uma vez que, e disso estamos inteiramente certos, o juízo de oportunidade não é sindicável?
Como vimos, estamos em presença de um tertium genus, por assim dizer: nem se trata de uma aplicação pura do consenso, porque há interessados que não participaram na decisão, nem de uma aplicação plena da oportunidade, porque o detentor da ação penal carece do consentimento de um juiz para proferir a decisão em causa. E se assim fosse, ou seja, se estivesse em causa um dos dois princípios em toda a sua plenitude, certamente que a norma da proibição de impugnação apenas teria efeitos internos, uma vez que, naturalmente, não é possível, como já se disse, recorrer de uma decisão do detentor da ação penal para um tribunal. Ora, esta natureza mista do instituto, reveladora de alguma hesitação do legislador (ordinário e constitucional) em retirar por completo o tema do âmbito da jurisdição, convence, decididamente, no sentido que o juízo de legalidade é sindicável em via de instrução, e não já o de oportunidade.
No caso presente, que versa sobre ofensas à integridade física simples, com lesões reciprocas, nos termos do artigo 143.º, n.º 3, do Código Penal, que permite a dispensa de pena, veja-se, por exemplo, que se afirma que, no que concerne à reparação do dano, existiu reparação natural através da ofensa perpetrada ao outro agente (que leva a que os direitos indemnizatórios se compensem). Ora, este autêntico atropelo legal afigura-se, no mínimo, perturbador, quer porque, evidentemente, não se repara um dano físico com a inflição de outro ao autor daquele, quer porque a compensação (que nunca existiria assim, sequer, enquanto conceito legal/dogmático) é, neste caso, proibida por lei, como expressamente dispõe o artigo 853.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil.
E admite-se que a prolação, em 24/04/2024 do despacho jurisdicional tabelar de duas linhas a manifestar concordância com esta evidente ilegalidade apenas se pode justificar por distração ou pura credulidade no acerto da promoção em causa, e que num juízo mais sereno e ponderado certamente terá outro desfecho.
O consenso e a oportunidade, se bem que potenciadores de inúmeras vantagens, como vimos, representam sempre, também, um certo risco, por implicarem uma abdicação do Estado do seu poder em favor dos interessados no processo e num seu órgão que tem por missão, precisamente, promover a ação penal, o que certamente, levou o nosso legislador processual penal, até pela novidade dos institutos em causa na nossa ordem jurídica, a avançar com passos pequenos e seguros, em ordem a, certamente, num futuro que se adivinha relativamente próximo, avançar decididamente na implementação destes procedimentos, tal como tem proposto a mais autorizada Doutrina. E, nesse contexto, é nosso entender que parte do procedimento aqui analisado poderá ser sindicado em instrução, apenas no segmento de legalidade – verificada esta, o juízo de oportunidade efetuado pelo detentor da ação penal com o acordo do juiz de instrução não é sindicável.
E não se diga que constitui necessariamente entrave a este procedimento o prévio acordo jurisdicional à decisão do Ministério Público: na verdade, poderá ser outro o juiz de instrução a receber os autos (por haver vários, ou por já não estar colocado no tribunal aquele que acordou), quer porque a concordância constitui ato de contornos mal definidos, mesmo na lei, quer ainda porque os mecanismos de escusas, recusas e impedimentos podem aqui ter aplicação – e note-se que, por exemplo, um juiz que defira um requerimento que argui uma nulidade de uma decisão por si tomada, e que, por isso, profere decisão em sentido contrário, e prossegue ao leme dos autos, nem por isso fica afetado na sua condição jurisdicional, designadamente na sua imparcialidade e isenção, pelo que a minudente e quase rotineira significação da dita concordância não será certamente necessariamente impeditiva de uma reapreciação do caso do ponto de vista da legalidade estrita.
Assim sendo, o recurso deve proceder, revogando-se o despacho recorrido.
III DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso apresentado por AA, e, em consequência, revogam a decisão recorrida.
Sem tributação.
Guimarães, 13 de Maio de 2025
Os Juízes Desembargadores
Bráulio Martins
Paulo Correia Serafim (vencido, de acordo com declaração de voto)
Anabela Rocha
Voto de vencido:
Salvo o muito respeito que nutro pela posição vencedora no aresto, negaria provimento ao douto recurso do Assistente por entender que a decisão do Ministério Púbico de arquivamento em caso de dispensa de pena (art. 280º do Código de Processo Penal - doravante denominado, abreviadamente, CPP, e diploma a que nos referimos na ausência de indicação em contrário) não é suscetível de sindicância através de requerimento de abertura de instrução.
Os fundamentos aduzidos no douto despacho recorrido merecem a nossa concordância.
De modo sucinto, adicionamos breves considerandos:
O intérprete e aplicador da lei deve presumir que o respetivo texto exprime cabalmente o pensamento legislativo, isto é, que o legislador sabe o que disse, que a norma, na sua literalidade corresponde ao que quis dizer, e que conhece as implicações, neste caso processuais, da norma dessa concreta forma exteriorizada.
Dito isto, ressuma para nós inequívoco que o legislador, ao consignar no nº3 do art. 280º do CPP que “a decisão de arquivamento, em conformidade com o disposto nos números anteriores, não é suscetível de impugnação” e, no art. 287º, nº1, do mesmo diploma legal, que a abertura de instrução requerida pelo assistente só pode incidir sobre a decisão de arquivamento tout court (art. 277º), não prevendo a hipótese específica de o arquivamento se estribar em caso de dispensa de pena, pretendeu propositadamente obstar à impugnação destoutra decisão, por qualquer meio, incluindo a abertura de instrução, quando este arquivamento do Ministério Público tenha sido patrocinado pelo juiz competente.
Assim, perante um arquivamento em caso de dispensa de pena avalizado por juiz, afastada que estaria ab initio a hipótese de recurso, visto não se tratar de uma decisão jurisdicional, mas de uma decisão do Ministério Público, também se mostra arredada a possibilidade de requerimento de intervenção hierárquica (278º) ou de reabertura do inquérito (279º) por banda do assistente.
Outrossim, afastada está a faculdade de o assistente requerer a abertura da instrução.
Não se compreenderia a concessão ao assistente da faculdade de requerer a abertura da instrução, para “controlar a legalidade da decisão”, fazendo intervir novamente no processo um outro juiz, da mesma instância, com o fito de contrariar o já decidido por outro magistrado judicial.
Como loquazmente assinala o Exmo. Conselheiro Maia Costa [in Código de Processo Penal Comentado, 3ª Edição Revista, 2021, Almedina, anot. 8 ao art. 280, pág. 941: «Também não tem cabimento a abertura de instrução, que se destinaria, afinal, a solicitar ao juiz de instrução a revogação da sua anterior decisão de concordância com o arquivamento, quando o seu poder jurisdicional está esgotado sobre essa matéria. Contudo, se o Ministério Público arquivar o inquérito nos termos deste artigo faltando a concordância do juiz, poderá o assistente requerer a abertura de instrução, único meio que então disporá para reagir contra aquela ilegalidade.»
E sobre a conformidade constitucional do dispositivo legal em apreço: «Esta interpretação da norma não poderá considerar-se inconstitucional, por deixar sem proteção a posição do assistente. Note-se que o Tribunal Constitucional julgou, no acórdão nº 397/2004 [DR, II Série, de 08.07.2004], que a norma não é inconstitucional, fundado numa interpretação segundo a qual o assistente poderá reagir ao despacho de arquivamento por meio de reclamação hierárquica ou de requerimento de abertura de instrução. Essa não é, como vimos, a melhor interpretação da lei. Mas, mesmo sem a possibilidade de recurso a nenhum desses mecanismos, não poderá arguir-se de inconstitucional a norma. É que a exclusão da intervenção do assistente no processo de decisão assenta nos propósitos de política criminal que justificam o instituto do arquivamento em caso de dispensa de pena (…). Por outro lado, a defesa da legalidade fica assegurada com a intervenção fiscalizadora do juiz, cuja decisão é impugnável judicialmente pelo assistente.» [negrito nosso]
No mesmo sentido, para além da jurisprudência citada na decisão recorrida, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14.12.2005, Processo nº 0544322, relator António Gama, e decisão sumária do Tribunal da Relação de Coimbra de 22.01.2014, Processo 148/13.1GCVIS.C1, relator Vasques Osório.
Em suma, o regime processual sob apreciação justifica-se pela primazia que o legislador quis conceder ao arquivamento, por razões de política criminal e de economia processual, em determinados casos, associados à pequena criminalidade, verificados especificados pressupostos que confluem para a desnecessidade de aplicação de uma pena, sempre sem prescindir, para controlo da legalidade da decisão proferida pelo Ministério Público, da supervisão jurisdicional proporcionada pela intervenção de um juiz (de instrução), que lhe confere constitucionalidade.
Por conseguinte, divirjo da tese que fez vencimento no acórdão.