ESPECTÁCULO DESPORTIVO
CRIME DE ARREMESSO DE OBJECTO
TIPO OBJECTIVO
Sumário


I. A circunstância de, antes do início de um jogo de futebol, um grupo de adeptos correr na direcção de outro grupo rival com intenção de atemorizar é, sem mais, manifestamente insuficiente para fazer incorrer qualquer dos membros do primeiro na prática de um crime.
II. A referida intenção não implica a prova de outra – no caso, a de atacar o grupo ao qual se dirigem, nomeadamente atirando-lhes objectos.
III. Se nem na acusação se afirma que algum dos arguidos atirou um objecto que fosse – limitando-se à sua integração no grupo donde foram arremessadas pedras, garrafas e artefactos pirotécnicos, em que eles eram apenas onze dos trinta que o constituíam –, sempre faltaria o elemento objectivo indispensável para a respectiva condenação: a imputação da prática de um crime tem de se traduzir em actos concretos.
IV. Ao dar como não provado que tivesse sido algum dos onze arguidos a atirar os objectos, a sentença recorrida, com o rigor que se lhe impunha e em obediência ao princípio in dubio pro reo, fez exactamente o que a acusação não tinha ousado fazer, embora em sentido contrário.

Texto Integral


Neste processo n.º 1/24.3PFBRG.G1, acordam em conferência as Juízas na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I - RELATÓRIO

No processo abreviado n.º 1/24.3PFBRG, a correr termos no Juízo Local Criminal (J3) de ..., na mesma Comarca, em que são arguidos AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ e KK, foi proferida sentença que os absolveu da prática, em co-autoria material, de um crime de arremesso de objecto ou de produtos líquidos, previsto e punido pelos arts. 31.º, c), e 35.º, nºs. 1, 3 e 5, da Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho, em concurso aparente com um crime de participação em rixa no âmbito de espectáculo desportivo ou em acontecimento relacionado com o fenómeno desportivo, p. e p. pelo art. 30.º, nºs. 1 e 3, b), do mesmo diploma, um crime de dano qualificado no âmbito de espectáculo desportivo ou de acontecimento relacionado com o fenómeno desportivo, p. e p. pelo art. 29.º, n.º 1 da citada Lei e uma contra-ordenação, p. e p. pelos arts. 39.º, n.º 1, h) e o), e 42.º, n.º 1, da mesma Lei.

Inconformado, recorreu o Ministério Público, apresentando as seguintes conclusões[1]:

«2. O objeto do presente recurso envolve o julgamento da matéria de facto e de direito.
3. Foram incorretamente julgados os factos da matéria de factual dada como não provada.
4. Tais factos deveriam ter sido dados como provados e tal resulta da simples leitura da sentença e, da lógica e das regras de experiência comum.
5. Não se concede que, tendo-se apurado que os arguidos praticaram os factos dados como, se entenda que os mesmos não agiram em comunhão e conjugação de esforços, com intenção concretizada de atemorizar os adeptos do Clube ..., atingir estes na sua integridade física e destruir bens alheios.
6. Tal organização e execução dos arguidos, e dos demais elementos do grupo, aquando da realização do jogo de futebol e por causa desse evento desportivo, impõe de forma inequívoca a conclusão que os mesmos agiram de modo livre, voluntária, e com a intenção concretizada de atemorizarem os mesmos, colocarem em perigo a integridade física e os bens patrimoniais dos adeptos do Clube ... e dos agentes da Polícia de Segurança Pública, como efetivamente fizeram.
7. Pelo exposto, deverão constar dos factos dados como provados todos os factos, tal como era imputado na acusação, e foram dados como não provados no aresto em crise.
8. Encontra-se preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do crime previsto e punido pelo art. 31º, al. b) da lei nº 29/2009, de 30 de julho.
9. Com efeito, resulta provado que os arguidos atuaram em acontecimento relacionado com evento desportivo.
10. Resulta da matéria de facto provada que os arguidos praticaram os factos aquando do jogo de futebol que opôs as equipas do “Clube 1...” e “Clube ...”, realizado 6 de janeiro de 2024, quando decorria uma no decurso de uma ação de policiamento e em zona de especial de acesso de adeptos.
10. O Tribunal ter dado cumprimento ao previsto no art. 358º do Código de Processo Penal e condenado os arguidos pela prática do ilícito previsto e punido pela alínea b) do art. 31º da lei nº 29/2009, de 30 de julho.
11.Os arguidos levaram a cabo, de acordo com planos previamente gizados, os factos apurados, participando na execução conjunta dos mesmos, exercendo cada um as tarefas de que estavam incumbidos.
12. É indiferente para se concluir pela coautoria que se determine o que fez cada um dos 30 elementos do grupo integrado pelos arguidos, ou seja que se apure quem atirou os objetos em causa contra os adeptos do Clube ..., pois tal foi o plano gizado, querido e executado por todos.
13. Não sendo de aplicar nesta parte, como se fez na douta sentença em crise, o estatuído pelo art. 127º do Código de Processo Penal e no art. 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
14. Violou a douta sentença em crise o disposto nos arts. 127º, 358º e 410º, nº 2, al. c) do Código de Processo Penal, 31º da lei nº 29/2009, de 30 de julho, e 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.»
Pugna o recorrente pela revogação da sentença e por serem «os arguidos condenados pela prática, em coautoria material e na forma consumada, de um crime de arremesso de objeto ou de produtos líquidos, p.e p. pelo art. 31.º, al. b), da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, e na pena acessória de interdição de acesso a recintos desportivos, nos termos do art. 35.º, nºs 1, 3 e 5, da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho.».
O recurso foi admitido.
Na 1.ª instância, os arguidos CC e FF apresentaram resposta conjunta, sendo as conclusões[2]:
«III. Para fundamentar a absolvição, o Tribunal Recorrido apresentou a factualidade que considerou como provada e como não provada, a qual foi exemplarmente fundamentada e é resultado da prova produzida e examinada em sede de audiência de discussão e julgamento, que também ela foi devidamente interpretada e valorada, sendo insuscetível de qualquer tipo de censura e não havendo qualquer erro de julgamento de facto, nem de direito, tendo sido os Arguidos devidamente absolvidos.
IV. Ora vejamos, em primeiro lugar, o Ministério Público sustenta que o Tribunal a quo julgou incorretamente todos os factos dados como não provados, pois entende que os mesmos deveriam ter sido dados como provados, posição que, com o devido respeito, não pode vingar.
V. A matéria de facto dada como não provada, concretamente impugnada pelo Ministério Público, foi, na sua globalidade, corretamente apreciada, analisada, decidida e fundamentada pelo Tribunal Recorrido, de acordo com os meios de prova apresentados em audiência de discussão e julgamento de que resultou valor probatório, devidamente articulados com as regras da experiência comum, do princípio da livre apreciação da prova, sendo a mesma insuscetível de qualquer tipo de correção ou alteração (cfr. artigos 127.º e 355.º a contrario sensu do Código de Processo Penal).
VI. Resulta da sentença recorrida que “O Tribunal baseou a sua convicção quanto à matéria de facto na cuidada análise de toda a prova documental junta aos autos, bem como na adequada ponderação de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, devidamente confrontada com as regras da experiência e comum e a livre convicção do julgador (cfr. o artigo 124.º do Código de Processo Penal – adiante designado pela sigla C.P.P.) e o princípio da presunção da inocência previsto no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.”.
VII. O julgador, ao apreciar livremente a prova, ao procurar através dela atingir a verdade material, deve observância a regras de experiência comum utilizando como método de avaliação a aquisição do conhecimento mediante critérios objetivos, genericamente suscetíveis de motivação e controlo (Nesse sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/09/2008, processo n.º 07P792, in www.dgsi.pt).
VIII. O princípio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento, encontrando afloramento, nomeadamente, no artigo 355.º do CPP, sendo aí que existe a desejável oralidade/imediação na produção de prova, na sua receção direta (A este propósito, vide Figueiredo Dias, In “Direito Processual Penal”, 1.º Vol., Coimbra Ed., 1974, páginas 233 a 234).
IX. Assim, e para respeitarmos estes princípios, se a decisão do julgador, estiver fundamentada na sua livre convicção e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum, ela não deverá ser alterada pelo Tribunal de Recurso (cfr. o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15/03/2006, processo n.º 4172/05, in www.dgsi.pt).
X. No caso em apreço, o Meritíssimo Juiz a quo, fundou a sua convicção na conjugação das declarações prestadas pelas testemunhas com a prova documental junta aos autos.
XI. Aliás, consta da motivação da douta sentença, na parte que se reporta à matéria de facto dada como não provada e a qual é objeto do recurso interposto pelo Ministério Público, que “a convicção deste Tribunal resultou da sua falta de prova em sede de audiência de julgamento.” (sublinhado e negrito nosso).
XII. Ao contrário do alegado pela Exm.ª Sr.ª Procuradora da República, que obviamente nos merece o maior respeito, não ocorre qualquer incompatibilidade entre a matéria de facto dada como provada, nomeadamente a alínea g) dos factos provados, e a matéria de facto dada como não provada, tal como cabalmente explicado pelo Meritíssimo Juiz a quo.
XIII. Com efeito, começou o Tribunal recorrido por assinalar que os Arguidos presentes se remeteram ao silencio em sede de audiência de julgamento, conduta que não os pode desfavorecer/prejudicar à luz do consagrado no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa.
XIV. Continuando, elucida que nenhuma das testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento identificou “os arguidos de forma inequívoca como tendo sido os autores do arremesso dos objetos que acabaram por acertar nos agentes e no motociclo da Polícia de Segurança Pública, ou do arremesso de outros objetos na direção dos adeptos rivais, confirmando apenas que os onze arguidos foram intercetados na zona para onde fugiram todos os elementos do grupo de trinta, sendo que apenas alguns elementos dos trinta atiraram com tochas e outros objetos na direção da caixa de segurança onde seguiam os adeptos do Clube ... (leia-se, Clube ...).”.
XV. Mais esclarece que “(…) as testemunhas não confirmaram que chegou a haver confronto físico entre os adeptos rivais sobre uma forma de rixa e nem que os adeptos da equipa visitante tenham respondido com o arremesso de objetos igualmente aos membros integrantes do grupo adepto da equipa visitada. Anota-se inclusivamente que o Chefe LL esclareceu que nenhum dos adeptos do Clube ... (leia-se, Clube ...) lhe reportou a ocorrência de ferimentos.”.
XVI. Por fim, o Meritíssimo Juiz a quo é claro e escorreito ao concluir da forma como o fez, ora vejamos: “A circunstância de onze cidadãos se encontrarem integrados num grupo de cerca de trinta, grupo esse que se aproximou de uma caixa policial de segurança onde seguiam adeptos rivais, grupo esse cujos elementos começaram a entoar cânticos e a proferir insultos, sendo que alguns dos elementos arremessaram pedras, garrafas e tochas na direção dos adeptos rivais, só por si, não permite desde logo responsabilizar criminalmente, quer de forma objetiva, quer subjetiva, os arguidos do presente processo pelo arremesso de tais objetos.
Estar integrado num grupo e fugir de uma carga policial destinada a dispersar não significa automaticamente a existência de um plano conjunto e a adesão a tal plano.
E esse é precisamente o conteúdo material do princípio de presunção da inocência previsto no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Assim, atento o princípio da presunção da inocência previsto no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, este Tribunal considerou como não provada a matéria de facto supra descrita.” (sublinhado e negrito nosso).
XVII. Ora, tendo em conta a globalidade da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, muito bem andou o Tribunal recorrido ao considerar como não provada a factualidade constante da matéria de facto não provada e, consequentemente, ao decidir-se pela absolvição dos Arguidos, não se verificando qualquer erro no julgamento da matéria de facto.
XVIII. Em segundo lugar, alega o Ministério Público que a sentença proferida incorre em erro de direito, por não se ter procedido à alteração não substancial dos factos e assim condenar os Arguidos pela prática, em coautoria e na forma consumada de um crime de arremesso de objeto ou de produtos líquidos, previsto e punido pelo artigo 31.º, alínea b) da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho e na pena acessória de interdição de acesso a recintos desportivos, nos termos do artigo 35.º, n.os 1, 3 e 5 da referida lei, o que, com o devido respeito, não se pode aceitar.
XIX. É que, também quanto a tais alegações, a douta sentença proferida não merece qualquer reparo.
XX. Desde logo, tais considerações de direito implicam que, primeiramente, tenha provimento a alteração à matéria de facto defendida pelo Ministério Público, o que, como vimos supra, não poderá proceder.
XXI. Não obstante, ao contrário do que vem vertido no recurso, o Tribunal a quo não se limitou a absolver os Arguidos da prática do crime de que vinham acusados apenas pelo facto de não se ter dado como provado que os Arguidos se deslocavam de ou para recinto desportivo, mas também e principalmente pelo facto de não se ter dado como provado que os Arguidos foram os autores do arremesso dos objetos em causa nem que existia um plano conjunto de atuação e adesão a tal plano.
XXII. Nesse sentido, não competia ao Meritíssimo Juiz a quo equacionar o cometimento, pelos Arguidos, do crime previsto e punido pela alínea b) do artigo 31.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho.
XXIII. Repare-se que, a absolvição não se prendeu com o contexto inserido em cada uma das alíneas previstas no artigo 31.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, mas antes pela não verificação da conduta concretamente prevista e punida pela norma, ou seja, “arremessar objetos ou produto líquido e criar deste modo perigo para a vida ou a integridade física de outra pessoa”, tendo o Tribunal recorrido explicado que “não resultou provado que os arguidos tenham arremessado qualquer tipo de objeto ou produto líquido e nem resultou provado igualmente que os arguidos estivessem em deslocação para espetáculo desportivo”, logo “Não se encontram, assim, preenchidos os requisitos objetivos do tipo de crime supra referido, tal com não se encontram preenchidos os requisitos subjetivos.
XXIV. Ainda assim, e cumprindo a lei, nomeadamente o disposto no artigo 358.º do Código de Processo Penal, o Tribunal a quo equacionou a prática, pelos Arguidos, dos crimes previstos nos artigos 29.º, n.º 1 e 30.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de julho, tendo concluído de igual forma, ou seja, pela sua não verificação.
XXV. De modo que, também de direito não assiste qualquer razão ao Ministério Público no seu recurso.
XXVI. Relativamente ao facto de ser “irrelevante para a consumação do crime em questão, ao contrário do vertido na douta sentença, que se apure quais os concretos objetos arremessados pelos arguidos”, tal como defendido pela Exm.ª Sr.ª Procuradora da República no seu recurso, a questão sub iudice não é essa, ou seja, não se trata de apurar quem arremessou o quê, mas antes, como bem explicou o Tribunal recorrido, não foi produzida prova de que foram estes concretos Arguidos que arremessaram os objetos identificados nos autos, não tendo aplicação a este caso concreto o douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça citado no recurso.
XXVII. É que, nem sequer resultou provado nos autos que os Arguidos tenham levado a cabo os factos apurados de acordo com qualquer plano previamente gizado, como muito bem assinalou o Meritíssimo Juiz a quo com a frase: “Estar integrado num grupo e fugir de uma carga policial destinada a dispersar não significa automaticamente a existência de um plano e a adesão a tal plano”, e nenhuma prova foi sequer minimamente produzida quanto a tal “plano”.
XXVIII. Daí que, com o devido respeito, não se entende o alcance pretendido pelo Ministério Público quando refere que, “nesta parte”, o princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127.º do Código de Processo Penal e o princípio da presunção de inocência, consagrado constitucionalmente no artigo 32.º, n.º 2, não têm aplicação…
XXIX. Como se sabe, não podendo ser de outra forma, no direito penal português, e tendo em conta a sua estrutura acusatória, não é o Arguido que tem de provar a sua inocência, mas antes é o Ministério Público que tem de provar que o Arguido é culpado, o que, in casu, indubitavelmente, não logrou fazer.
XXX. Sendo certo que, na dúvida, isto é, não tendo sido obtida convicção plena, para lá da dúvida razoável, não resta outra opção ao julgador que não seja a de decidir favoravelmente ao Arguido, à luz do princípios da presunção de inocência (cfr. artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa e Eduardo Correia, in RDES, Ano XIV, n.º 1, 1967, págs. 171 e 172).
XXXI. Em suma, a decisão proferida pelo Tribunal recorrido não merece qualquer censura, nem de facto, nem de direito, tendo a prova examinada e produzida em sede de audiência de discussão e julgamento sido devidamente interpretada e valorada, como é espelho disso a correta motivação constante da sentença recorrida, encontrando-se a mesma devidamente fundamentada, não havendo qualquer erro de julgamento de facto, nem de direito, tendo sido os Arguidos devidamente absolvidos como melhor se demonstrará infra.
XXXII. O Meritíssimo Juiz a quo muito bem decidiu ao absolver os Arguidos da prática do crime pelo qual vinham acusados, não podendo ter sido outra a sentença a proferir, não tendo sido violada nenhuma disposição legal, muito menos as elencadas no recurso interposto pelo Ministério Público.
XXXIII. Pelo exposto, a decisão recorrida é insuscetível de qualquer tipo de censura ético-jurídica, devendo manter-se inalterável.»
Nesta Relação, o Senhor Procurador-Geral Adjunto entende que o recorrente não concretizou uma legal impugnação ampla da matéria de facto, por falta de cumprimento do art. 412.º, n.º 3, b), do Código de Processo Penal[3], mas que existe uma contradição insanável na fundamentação, do art. 410.º, n.º 2, b), porque se deu como provado que os arguidos integravam um grupo de adeptos correu em direcção a um outro para os intimidar, por um lado, e por outro se deu como não provado que o tenham feito de forma voluntária, livre e consciente, pelo que é caso de reenvio do processo para novo julgamento para conhecer de todo o seu objecto.
Cumprido o contraditório, reagiram:
- os arguidos CC e FF deram por reproduzido o teor da sua resposta ao recurso, entendendo não existir a contradição apontada no parecer; e
- o arguido MM, alegando que no recurso não é indicado nenhum meio de prova que imponha uma decisão diversa da recorrida, pelo que deve o mesmo improceder.
Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO

A. Delimitação do objecto do recurso

Nos termos do art. 412.º, e face às conclusões do recurso, são três as questões a resolver:
- se há erro de julgamento;
- se há contradição insanável na fundamentação;
- se o Tribunal a quo devia ter dado cumprimento do previsto no art. 358.º e condenado os arguidos pelo crime previsto no art. 31.º, b), da Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho.

B. Decisão recorrida

1. Factos provados
«a) No dia 6 de janeiro de 2024, pelas 20 horas e 30 minutos, no Estádio ..., ocorreu um jogo de futebol que opôs as equipas do “Clube 1...” e “Clube ...”, a contar para a ....ª jornada da ..., época 2023/24, organizado pela Liga Portuguesa de Futebol Profissional;        
b) Antes do início do mencionado jogo, foi montado um dispositivo de segurança, nomeadamente, para o acompanhamento da deslocação apeada dos adeptos da equipa visitante até ao estádio;     
c)  O dispositivo de segurança da Polícia de Segurança Pública era composto, para além do mais, pelos agentes principais NN e OO, os quais se encontravam devidamente uniformizados e enquadrados na Equipa de Intervenção e Reação Imediata – adiante designada pela sigla EPRI;
d) Para além disso, a EPRI tinha ao seu serviço o motociclo de matrícula ..-XT-..; 
e)  Perto das 19 horas e 45 minutos, nas imediações do estádio, foi detetado um grupo composto por cerca de 60 indivíduos afetos à equipa visitante, que foram devidamente enquadrados e encaminhados em caixa de segurança para o aludido estádio;
f)  Quando este grupo caminhava pela Avenida ... e na direção do referido recinto desportivo, um grupo rival, composto por cerca de 30 indivíduos, nos quais se encontravam os onze arguidos em causa nos presentes autos, com roupa e adereços alusivos à equipa visitada – pertencentes aos “...” do grupo organizado de adeptos “...” – encaminhou-se em passo de corrida na direção do grupo de adeptos da equipa visitante;   
g) Este grupo de cerca de 30 indivíduos, nos quais se encontravam os onze arguidos em causa nos presentes autos, tinha como objetivo atemorizar aquele grupo de adeptos, unicamente devido às rivalidades que historicamente existem entre ambos os clubes, que naquele dia se iam defrontar;
h) Quando chegaram junto desse grupo rival, indivíduos não concretamente identificados do referido grupo de adeptos da equipa visitada, começaram a arremessar pedras, garrafas e artefactos pirotécnicos (do tipo “facho de mão”) na direção do grupo rival dos adeptos da equipa visitante e, bem assim, do dispositivo policial que assegurava a deslocação deste;          
i) Entre o mais, estes objetos arremessados atingiram o motociclo de matrícula ..-XT-.., bem como a zona da cabeça do Agente Principal NN e ainda do Agente Principal OO, que, por sorte, na ocasião tinham o respetivo capacete colocado;           
j) Só por mero acaso nenhuma dessas pedras, garrafas e artefactos pirotécnicos arremessados veio a atingir com gravidade qualquer outra pessoa, uma vez que a maioria desses objetos vieram a cair precisamente no meio do grupo de adeptos da equipa visitante, que se foram desviando e protegendo da forma que lhes foi possível;  
k) Perante aquele cenário, a Polícia de Segurança Pública respondeu com uso de bastões e a realização de disparos com munições não letais, com o objetivo de dissuadir aquele grupo;           
l) Ao depararem-se com esta resposta da Polícia de Segurança Pública, o grupo de adeptos da equipa visitada, onde se incluíam os onze arguidos, começou a fugir em sentido oposto, tendo os onze arguidos sido intercetados na Rua ..., a qual entronca com a Avenida ...;
m) Em consequência direta e necessária do arremesso dos objetos perpetrados por indivíduos não concretamente identificados do grupo onde se inseriam os onze arguidos, resultaram os seguintes danos:    
i. dois capacetes acima mencionados de marca ..., modelo ..., propriedade dos agentes acima mencionados, ficaram riscados na casca externa do capacete, provocando um prejuízo unitário de 830,40€, o que perfaz um total de 1.660,80€;   
ii. motociclo de matrícula ..-XT-.., partiu um dos sinais luminosos (“strobs”) do lado direito, provocando um prejuízo avaliado em cerca de 225,21€;
n) Este episódio gerou ainda alarme e inquietude entre os populares e demais adeptos que, naquele momento, se encontravam na aludida zona e que também se encaminhavam para assistir ao referido jogo;   
o) Os mencionados agentes apenas não sofreram ferimentos na cabeça por força dos objetos arremessados pelo grupo onde se incluíam os arguidos, por naquele momento estarem a utilizar os respetivos capacetes;     
p) O arguido MM é sócio do Clube 1... n.º ..., com lugar anual;                                             
q) O arguido FF é sócio do Clube 1... n.º ...19, com lugar anual;                                           
r) O arguido GG é sócio do Clube 1... n.º ..., com lugar anual e tinha na sua posse um cartão dos ... “...”;           
s) O arguido EE é sócio do Clube 1... n.º ...75;           
t) O arguido AA é sócio do Clube 1... n.º ..., com lugar anual;                                              
u) O arguido CC é sócio do Clube 1..., com o número ...69, com lugar anual;          
v)  O arguido BB é sócio do Clube 1... n.º ..., com lugar anual;          
w) O arguido DD é sócio do Clube 1... n.º ...14;           
x) O arguido HH é sócio do Clube 1... n.º ...72;           
y) O arguido II é sócio do Clube 1... n.º ..., com lugar anual;                                     
z)  O arguido JJ é sócio do Clube 1... n.º ...58, com lugar anual.»

2. Factos não provados

«a) Os arguidos AA, BB, CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ e MM agiram com a intenção comum e em comunhão de esforços e vontades tendo como objetivo comum atacar fisicamente o grupo de adeptos da equipa visitante que seguia integrado numa caixa policial;
b) Os onze arguidos supra identificados arremessaram os objetos supra referidos na matéria de facto provada;                                
c)  Os arguidos agiram com a intenção de atacar um grupo de adeptos rival, atuando de forma concertada de modo a lograrem arremessar os objetos acima referidos na direção daquele grupo rival e dos elementos das forças de segurança que os acompanhavam, antes do início de um espetáculo desportivo e quando os adeptos da equipa visitante se encontravam em deslocação para o recinto desportivo; 
d) Os arguidos sabiam também que ao atuar daquela forma punham em perigo a integridade física dos referidos adeptos, elementos das forças de segurança e demais pessoas que aí se encontravam, bem como, causavam alarme e inquietação entre a população local, o quiseram e veio efetivamente a acontecer;
e)  Os arguidos sabiam também que, ao atuar do modo descrito, intervinham ou tomavam parte numa rixa que se gerou entre dezenas de apoiantes de equipas adversárias, quando se deslocavam para o espetáculo desportivo acima referido, sendo que dessa rixa resultou alarme e inquietação entre a população local;         
f)  Os arguidos sabiam também que ao arremessar aqueles objetos podiam vir a atingir bens pertencentes a terceiras pessoas, nomeadamente, veículos ou outro equipamento policial, causando estragos nesses bens, mas, não obstante esse conhecimento, os arguidos atuaram da forma descrita, conformando-se com esse resultado e indiferentes às suas consequências, tal como efetivamente veio a suceder;
g) Os arguidos agiram em comunhão de esforços e vontades, sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas.»     

3. Motivação

«O Tribunal baseou a sua convicção quanto à matéria de facto na cuidada análise de toda a prova documental junta aos autos, bem como na adequada ponderação de toda a prova produzida em sede de audiência de julgamento, devidamente confrontada com as regras da experiência e comum e a livre convicção do julgador (cfr. o artigo 124.º do Código de Processo Penal – adiante designado pela sigla C.P.P.) e o princípio da presunção da inocência previsto no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Relativamente à alínea a) da matéria de facto provada, a convicção deste Tribunal resultou da análise da ficha de jogo junta aos autos a fls. 73.
Relativamente às alíneas b) a o) da matéria de facto provada, a convicção deste Tribunal resultou das declarações das testemunhas PP, NN, OO, LL, QQ, RR e SS, as quais confirmaram todos os factos provados por desempenharem funções na Polícia de Segurança Pública e nessa qualidade tido intervenção no policiamento do evento desportivo em apreço, tendo presenciado total ou parcialmente os factos em causa nos presentes autos, apresentando um depoimento coerente, espontâneo e merecedor de plena credibilidade.
As testemunhas PP, NN e OO, respetivamente, Chefe e agentes da equipa EPRI presente no local, esclareceram que estava no local em policiamento ativo para evitar confrontos entre adeptos das equipas de futebol de ... e de ..., os quais têm um infelizmente já longo historial de rivalidade e confrontos, tendo sido alertados pelos “Spotters” de que tinha sido intercetado um grupo de adeptos casuais do Clube ... e era necessário encaminhar os mesmos em segurança para o estádio. Foi então organizada uma caixa policial com os elementos da Polícia de Segurança Pública que integravam a equipa EPRI e os “Spotters”. Quando chegados sensivelmente junto à Rua ..., já com a caixa a meio da passagem, receberam o aviso da chegada eminente e em passo de corrida de um grupo de adeptos do ... vindo da mesma, os quais surgiram repentinamente e começaram a entoar cânticos contra a equipa visitante, a arremessar pedras, garrafas e tochas, tendo uma pedra atingido o motociclo da EPRI, danificando uma luz do mesmo, bem como tendo uma tocha e uma pedra atingido os capacetes dos agentes NN e OO, os quais integravam a equipa EPRI e estavam felizmente com o capacete colocado na cabeça. Mais descreveram a forma como toda a equipa EPRI reagiu, protegendo os adeptos que seguiam no interior da caixa e fazendo uso dos bastões e realizando diversos disparos com munições não letais, assim fazendo com que os grupos não entrassem em confronto e logrando dispersar todo o grupo de adeptos da equipa visitada pela Rua ..., para onde foi movida pronta perseguição dos mesmos para a sua identificação e detenção.--------------------------------------------------------
A testemunha LL, Chefe da Polícia de Segurança Pública, esclareceu que estava a desempenhar funções de “Spotter” no jogo em causa, tendo a incumbência de encaminhar os adeptos da equipa visitante e evitar qualquer tipo de confrontos entre adeptos. Esclareceu que detetou um grupo de “...” adeptos do Clube ... num determinado local no alto da Avenida ..., grupo esse denominado “Suspeitos do Costume” e já conhecido, constituído no momento por cerca de 60 elementos. Deslocou-se então até junto dos mesmos e, após perceber que iam assistir ao jogo e tinham de descer toda a Avenida ... até ao estádio, pediu mais apoio de meios fardados da Polícia de Segurança Pública com o fim de encaminhar os adeptos em causa numa caixa de segurança policial. A testemunha mais esclareceu a forma como todo o grupo que compunha a caixa, quer os agentes da Polícia de Segurança Pública, quer os adeptos do Clube ..., foram repentinamente abordados por um grupo de cerca de 30 adeptos igualmente casuais do ... e que, com cânticos, insultos e arremesso de pedras, tochas e garrafas, atacaram o grupo. Optou a testemunha por continuar a levar toda a caixa para longe do conflito e encaminhar os adeptos para dentro do estádio, enquanto os elementos da equipa EPRI intervieram de forma musculada.
A testemunha QQ, agente principal da Polícia de Segurança Pública, confirmou todo o depoimento da testemunha LL, tendo em conta que igualmente estava no local a desempenhar funções de “Spotter”.
A testemunha RR esclareceu que fazia o policiamento da zona à civil integrado numa brigada de investigação criminal da Polícia de Segurança Pública, tendo detetado um grupo de adeptos do ... a encaminhar-se em passo de corrida desde ... pela Rua ... e na direção da Avenida ..., por onde circulavam os adeptos da equipa visitante integrados numa caixa policial. Avisou então via rádio tal situação e logo se encaminhou com mais colegas igualmente pela Rua ... e na direção da Avenida ..., cortando assim a possibilidade de fuga a todo o grupo de cerca de 30 indivíduos que por ali se deslocava em passo apressado. Esclareceu a testemunha que mais ninguém entrou na Rua ... naquele momento além do grupo de adeptos e dos agentes da Polícia de Segurança Pública. Percebeu então que houve grande confusão na Avenida ..., mas que não logrou ver por se encontrar na Rua ..., tendo então barrado a passagem dos indivíduos que bateram em retirada, muitos dos quais lograram fugir pelos muros e campos adjacentes, tendo logrado, com a colaboração dos restantes elementos da Polícia de Segurança Pública chegados ao local e oriundos da Avenida ..., concretizar a detenção e identificação dos onze arguidos em causa nos presentes autos.
Anota-se que a testemunha SS não presenciou o ataque à caixa de segurança, tendo na qualidade de Comissário da Polícia de Segurança Pública, coordenado todo o dispositivo de segurança para o jogo de futebol de alto risco que envolviam as equipas de futebol das cidades de ... e de ..., descrevendo todos os meios que foram colocados no terreno.---------------------------------------------------------------------
Foi igualmente relevante a análise da imagem do local dos factos junta aos autos a fls. 74, a reportagem fotográfica de fls. 43 a 49, bem como as faturas de fls. 170 e 171, no que se refere aos danos e respetivo valor sofridos no motociclo e nos capacetes dos agentes da Polícia de Segurança Pública identificados na matéria de facto provada.
Quanto às alíneas p) a z) da matéria de facto provada, a convicção deste Tribunal resultou da análise da informação prestada pelo Clube 1..., S.A.D., junta aos autos a fls. 164 a 167.
Relativamente à matéria de facto não provada, a convicção deste Tribunal resultou da sua falta de prova em sede de audiência de julgamento.
Os arguidos AA, BB, CC, EE, FF, GG, HH, II, JJ e KK não prestaram declarações em sede de audiência de julgamento, ficando em silêncio. Tal conduta processual, nos termos do disposto no artigo 343.º, n.º 1, do C.P.P., não os desfavorece, em obediência ao comando constitucional previsto no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Anota-se ainda que o arguido DD foi julgado na ausência nos termos do artigo 334.º, n.º 2, do C.P.P..
As testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento - PP, NNOO, LL, QQ, RR e SS - não identificaram os arguidos de forma inequívoca como tendo sido os autores do arremesso dos objetos que acabaram por acertar nos agentes e no motociclo da Polícia de Segurança Pública, ou do arremesso de outros objetos na direção dos adeptos rivais, confirmando apenas que os onze arguidos foram intercetados na zona para onde fugiram todos os elementos do grupo de trinta, sendo que apenas alguns elementos dos trinta atiraram com tochas e outros objetos na direção da caixa de segurança onde seguiam os adeptos do Clube ....
Por outro lado, as testemunhas não confirmaram que chegou a haver confronto físico entre os adeptos rivais sobre uma forma de rixa e nem que os adeptos da equipa visitante tenham respondido com o arremesso de objetos igualmente aos membros integrantes do grupo adepto da equipa visitada.----------
Anota-se inclusivamente que o Chefe LL esclareceu que nenhum dos adeptos do Clube ... lhe reportou a ocorrência de ferimentos.
A circunstância de onze cidadãos se encontrarem integrados num grupo de cerca de trinta, grupo esse que se aproximou de uma caixa policial de segurança onde seguiam adeptos rivais, grupo esse cujos elementos começaram a entoar cânticos e a proferir insultos, sendo que alguns dos elementos arremessaram pedras, garrafas e tochas na direção dos adeptos rivais, só por si, não permite desde logo responsabilizar criminalmente, quer de forma objetiva, quer subjetiva, os arguidos do presente processo pelo arremesso de tais objetos.
Estar integrado num grupo e fugir de uma carga policial destinada a dispersar não significa automaticamente a existência de um plano conjunto e a adesão a tal plano.
E esse é precisamente o conteúdo material do princípio de presunção da inocência previsto no artigo 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Assim, atento o princípio da presunção da inocência previsto no artigo 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, este Tribunal considerou como não provada a matéria de facto supra descrita.»

C. Apreciação do recurso

1. Do erro de julgamento
A este respeito, invoca o recorrente o art. 410.º, n.º 2, c), mas afirmando terem sido incorrectamente julgados os factos não provados que, na sua óptica, deveriam ter sido dados como provados (conclusões 3 a 7).
Estabelece aquela norma: “Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamento[s], desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o erro notório na apreciação da prova”.
Este ocorre, por exemplo, “quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou quando notoriamente violadora das regras de experiência comum[4].
É, assim, óbvio que neste vício o único domínio de análise relevante é o texto da decisão recorrida, e nada que dela extravase: não se trata aqui de reapreciar a prova, mas de detectar alguma deficiência no teor da decisão da 1.ª instância.
Ora, atentamente lida a sentença (maxime, factos provados e sua fundamentação), nada se vislumbra que se possa enquadrar na figura do erro notório, porquanto todos os factos provados são naturalisticamente possíveis e deles não foi extraída qualquer conclusão contrária às regras da experiência.
Há, portanto, dois planos distintos que o recorrente manifestamente confunde como fundamentos de recurso:
- o primeiro deles, do art. 410.º, n.º 2, c), não passa da leitura e exame da sentença recorrida, de forma a que este Tribunal possa verificar se nesta há algo dissonante, pelo erro notório;
- o segundo, de âmbito mais alargado, previsto no art. 412.º, n.º 3, que se reporta já à forma como o Tribunal a quo avaliou a prova produzida, e que pressupõe exorbitar da sentença e passar para o sucedido em audiência de julgamento.
Daí as frequentes confusões dos recorrentes quando invocam, nomeadamente, a figura do erro, entre o notório na apreciação da prova e o de julgamento.
Analisadas as citadas conclusões, resulta claro não ser o erro notório do art. 410.º o nó górdio da questão, mesmo para o recorrente: o que este assaca à decisão recorrida é uma deficiente valoração da prova produzida em audiência de julgamento, dando lugar, concretamente, a factos que o Tribunal a quo entendeu dar como não provados mas que, na visão do recorrente, deviam ter sido dados como provados.
Ou seja, o que o recorrente não aceita é que a sua própria avaliação da prova não tenha sido acolhida pelo Mm.º Juiz a quo. Ora, no dizer do Supremo Tribunal de Justiça, o erro notório do art. 410.º “não reside na desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido” a do recorrente[5].
Portanto, é cristalino que está em causa, para a recorrente – e deve ser analisado por este Tribunal, desde que cumpridos os respectivos requisitos legais – um erro de julgamento, e não o invocado erro notório.
Colocada agora a questão central levantada pelo recorrente na sede própria – porque a decisão da 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada, nos termos do art. 431.º, b), “se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º” –, prevê esta última disposição legal: “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
Deixando de lado esta última alínea, já que o recorrente não pretende qualquer renovação da prova, restam as duas primeiras.
O recorrente observou o requisito da alínea a), porque especificou os pontos de facto que considera incorrectamente julgados: todos os que foram dados como não provados; para eles pretende destino oposto, e que passem a constar dos factos provados.
Porém, o mesmo já não se pode dizer do da alínea b), como se assinala no parecer do Ministério Público nesta Relação, porquanto o recorrente nem sequer indica – nas conclusões ou na motivação do recurso – qualquer meio de prova: não refere um único depoimento, uma prova documental ou outra, a que este Tribunal tivesse de atender nesta matéria.
Ora, devendo as conclusões do recurso ser o resumo das razões do pedido (art. 412.º, n.º 1, in fine), como é próprio da definição etimológica mais adequada nesta circunstância – “parte final de um texto, raciocínio, discurso, etc., em que se apresenta uma síntese das principais ideias anteriormente desenvolvidas[6] –, não pode o recorrente nelas omitir um dos essenciais alicerces da sua pretensão: a indicação específica dos meios de prova (e, mais concretamente, dos seus excertos, nos termos do art. 412.º, n.º 4) que serviriam para impor ao Tribunal a quo (e, reflexamente, a este Tribunal) conclusão diversa quanto aos factos não provados, nos termos do art. 412.º, n.º 3, b).
Face à omissão do recorrente, também no texto da motivação, de tais especificações, não há lugar “ao convite para correcção, uma vez que tal se traduziria na ultrapassagem do limite que o texto da motivação consiste[7], limite que é absoluto[8].
Assim, tem este Tribunal de considerar que o recurso, tal como foi interposto e no que respeita ao erro de julgamento, carece das exigências legais para constituir válida impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto na 1.ª instância.
 
2. Da contradição insanável da fundamentação
Tal como o já citado erro notório e a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação – expressamente invocada no parecer dos autos, mas que se trata de vício de conhecimento oficioso deste Tribunal – pode ser fundamento do recurso, “desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” (alínea b) do art. 410.º, n.º 2).
Quando está em causa a fundamentação, haverá contradição se, por exemplo, se dão como provados dois factos totalmente incompatíveis entre si, ou se dá, simultaneamente, o mesmo facto como provado e como não provado.
Numa fórmula lapidar e sintética[9], este vício “supõe que, no texto da decisão, e sobre a mesma questão, constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspectiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respectivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito.
Haverá contradição entre os factos provados – maxime f) e g) – e os não provados – com destaque para os c) e g)?
Lembrem-se os dois primeiros:
«f) Quando este grupo caminhava pela Avenida ... e na direção do referido recinto desportivo, um grupo rival, composto por cerca de 30 indivíduos, nos quais se encontravam os onze arguidos em causa nos presentes autos, com roupa e adereços alusivos à equipa visitada – pertencentes aos “...” do grupo organizado de adeptos “...” – encaminhou-se em passo de corrida na direção do grupo de adeptos da equipa visitante;   
g) Este grupo de cerca de 30 indivíduos, nos quais se encontravam os onze arguidos em causa nos presentes autos, tinha como objetivo atemorizar aquele grupo de adeptos, unicamente devido às rivalidades que historicamente existem entre ambos os clubes, que naquele dia se iam defrontar;»
Já os dois últimos (não provados) são:
«c) Os arguidos agiram com a intenção de atacar um grupo de adeptos rival, atuando de forma concertada de modo a lograrem arremessar os objetos acima referidos na direção daquele grupo rival e dos elementos das forças de segurança que os acompanhavam, antes do início de um espetáculo desportivo e quando os adeptos da equipa visitante se encontravam em deslocação para o recinto desportivo; (…)
g) Os arguidos agiram em comunhão de esforços e vontades, sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas.»
Ora, no que respeita à relação entre aqueles dois factos provados e este último não provado, só uma leitura apressada (e parcelar) da sentença pode dar azo ao que, mesmo assim, não passa de vislumbre de uma contradição:
- por um lado, é evidente, face à leitura da acusação (ref.ª ...78), que a co-autoria e o elemento volitivo (ponto 21) se reportava a toda a conduta dos arguidos aí descrita (o arremesso de objectos, a participação em rixa e o dano – pontos 17 a 20), e que foi dada como não provada na sentença, em estrita observância do princípio in dubio pro reo, uma vez que os arguidos usaram do direito ao silêncio, ninguém os identificou como autores de arremesso de objectos nem as testemunhas confirmaram a existência de confronto físico com adeptos rivais; por isso, o facto não provado g) só pode ser lido em sequência com os anteriores;
- por outro lado, este facto não provado não colide com as demonstradas circunstâncias de um grupo de trinta adeptos, integrando os arguidos, ter corrido na direcção de outro da equipa adversária, tendo como objectivo atemorizar estes, pela rivalidade existente entre os dois clubes desportivos; é evidente que, ao dar isso como provado – o que o Mm.º Juiz a quo cabalmente justificou baseando-se nos depoimentos dos agentes da PSP que se encontravam em funções no local dos factos –, tal significa que os arguidos, fazendo parte daquele grupo, agiram nessa parte de forma livre, voluntária e consciente, já que isso decorre do próprio movimento de corrida e da direcção que tomavam.
É aqui indiferente se tal corrida foi fruto de uma comunhão de vontades – como muitas vezes acontece – ou de uma acção de um a que os demais aderiram; o que importa é saber se tal intenção configura ou não um crime. Ora, correr em grupo na direcção de outro grupo rival com intenção de o atemorizar, sem mais, é manifestamente insuficiente para fazer incorrer qualquer dos seus membros na prática de um crime, e muito menos dos que eram imputados aos arguidos: arremesso de objecto ou de produtos líquidos (art. 31.º da Lei n.º 39/2009, de 30 de Julho) ou, em concurso aparente, participação em rixa no âmbito de espectáculo desportivo (art. 30.º da mesma Lei), ou dano qualificado em idêntico âmbito (art. 29.º dessa Lei).
Mas haverá contradição entre aqueles dois factos provados e o facto não provado c)? A resposta também tem de ser negativa: aquela intenção de atemorização não implica, sem mais, a prova de uma outra intenção, no caso a de atacar o grupo ao qual se dirigem, nomeadamente atirando-lhe objectos (e às forças de segurança que o acompanhavam). Uma coisa é correr, acompanhado de mais pessoas, na direcção de outros indivíduos, ainda que seja para lhes meter medo; outra, bem diferente, é nessa corrida serem arremessadas coisas a estes últimos pelos primeiros, tendo ficado por apurar sequer se essa era a intenção inicial do grupo ou de algum dos seus membros.
Portanto, não se descortina nenhuma das contradições apontadas quer no recurso (ainda que de forma imperfeita, como se viu) quer no parecer do Ministério Público neste Tribunal, entre os factos provados e os não provados.
Aliás, lida a acusação facilmente se percebe que o “pecado original” destes autos nela reside: é que em nenhum dos seus pontos se afirma sequer terem sido os arguidos os autores dos arremessos de objectos! Veja-se o ponto 8: «Quando chegaram junto desse grupo rival, o grupo de adeptos da equipa visitada, onde se incluía os onze arguidos, começaram a arremessar pedras, garrafas e artefactos pirotécnicos (do tipo “facho de mão”), na direcção do grupo rival dos adeptos da equipa visitante e, bem assim, do dispositivo policial que assegurava a deslocação deste.» Com esta fragilidade, não se vislumbra como poderia o Ministério Público sequer esperar uma condenação…
Recorde-se que, além de outros elementos, a acusação “contém, sob pena de nulidade (…) a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena (…), incluindo, se possível, (…) o grau de participação que o agente neles teve” – art. 283.º, n.º 3, b). Ora, nem na acusação se ousa afirmar que algum dos arguidos atirou um objecto que fosse, limitando-se à sua integração no grupo donde foram arremessadas pedras, garrafas e artefactos pirotécnicos: eles eram apenas onze dos trinta que formavam o grupo. Manifestamente escasso, ainda que houvesse fundamento para dar como provado aquele ponto da acusação, para a pretendida condenação pelo citado crime do art. 31.º da Lei n.º 39/2009 (ou dos demais relativos ao concurso aparente).
Note-se que a sentença recorrida fez exactamente aquilo que a acusação não tinha ousado fazer, embora em sentido contrário: deu como não provado que tenha sido algum dos onze arguidos a atirar os objectos, com o rigor que se lhe impunha, deixando para trás – em obediência ao princípio in dubio pro reo, cuja aplicação foi exemplar – a indefinição do libelo acusatório. Aliás, mal se compreende, por parte do titular da acção penal, a afirmação de que é «indiferente para se concluir pela coautoria que se determine o que fez cada um dos 30 elementos do grupo integrado pelos arguidos, ou seja que se apure quem atirou os objetos em causa contra os adeptos do Clube ...» (conclusão 12): a imputação da prática de um crime tem de se traduzir em actos concretos, e está longe de bastar que os arguidos estivessem integrados num grupo que arremessou os objectos para os condenar pela prática do crime do art. 31.º (ou pelos restantes, perante a ausência de prova de existência de uma rixa ou de terem sido os arguidos os causadores de danos).
Conclui-se, assim, pela inexistência da invocada contradição do art. 410.º, n.º 2, b), pelo que está fora de questão aplicar o art. 426.º.
Reforce-se, aliás, que a motivação de facto da sentença recorrida é não só de uma clareza assinalável, como, recorrendo simultaneamente às regras da experiência comum e à aplicação do princípio da presunção da inocência do art. 32.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa – que, incompreensivelmente, o recorrente censura, como se este comportasse excepções… (conclusão 13) –, se mostra absolutamente rigorosa e sem falhas, respeitando o princípio da livre apreciação da prova do art. 127.º.

3. Do cumprimento do art. 358.º

Pretendia ainda o recorrente que o Tribunal a quo tivesse dado cumprimento do art. 358.º do Código de Processo Penal, o que, no seu entender, permitiria a condenação dos arguidos na prática do crime do art. 31.º da Lei que se vem citando (conclusões 10)[10].
Para o que aqui releva, esta norma, que pune quem “arremessar objectos ou produto líquido e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outra pessoa”, prevê que o crime pode ser praticado “na deslocação para ou de espectáculo desportivo” – na alínea c), invocada na acusação – mas também “em acontecimento relacionado com o fenómeno desportivo” – alínea b).
Percebe-se que – mais uma vez tentando suprir uma acusação imperfeita – o recorrente pretendia que o Tribunal a quo tivesse usado a figura da alteração não substancial dos factos (art. 358.º), para acrescentar expressão que, embora o recorrente não especifique, seria no sentido de tudo ter ocorrido, por exemplo, antes da realização do jogo de futebol em causa; isto porque da matéria provada resulta que quem se dirigia para o estádio – ao abrigo da alínea c) – eram os adeptos da equipa visitante, o mesmo não se afirmando (já na acusação) quanto aos arguidos e ao grupo no qual se integravam, adeptos da equipa visitada.
Porém, esta pretensão está destinada ao fracasso, por duas razões:
- em primeiro lugar, assenta num logro do recorrente, quando afirma, na sua motivação do recurso, que o Tribunal a quo absolveu os arguidos da prática do crime do art. 31.º «porquanto não se apurou que os arguidos praticaram os factos quando se deslocavam de ou para recinto desportivo»; ora, não é isso que vem em primeira linha afirmado como fundamento para a absolvição dos arguidos, mas sim «desde logo não resultou provado que os arguidos tenham arremessado qualquer tipo de objeto ou produto líquido», só depois se afirmando, ex abundantiae, a falta de prova daquela deslocação;
- em segundo lugar, et pour cause, o aditamento/alteração do facto pretendido pelo recorrente sempre configuraria a prática de um acto inútil, uma vez que bastava a falta de prova da participação dos arguidos no arremesso de objectos, requisito fundamental para configurar a prática deste crime, para impor a sua absolvição; ora, vigorando também em processo penal o princípio da limitação dos actos (art. 130.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art. 4.º do Código de Processo Penal), a prática de actos inúteis é ilícita.
Por isso, e ao contrário do que entende o recorrente, nada obrigava o Mm.º Juiz a quo a proceder à alteração não substancial dos factos, não merecendo acolhimento este segmento do recurso.

III - DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam as Juízas na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, confirmando-se integralmente a sentença recorrida.
Sem custas, face à isenção do recorrente.

Guimarães, 13 de Maio de 2025
(Processado em computador e revisto pela relatora)

As Juízas Desembargadoras

Cristina Xavier da Fonseca
Fátima Furtado
Anabela Rocha


[1] Suprime-se a primeira, por reproduzir os termos da absolvição.
[2] Omitem-se a primeira, relativa ao dispositivo da sentença, e a segunda, reportada ao recurso; respeitam-se os destaques de origem.
[3] Diploma legal donde provêm as normas a seguir citadas sem indicação de origem.
[4] Leal-Henriques e Simas Santos. Código de Processo Penal anotado, 2.ª ed., II, pág. 740, citados pelos Ac. da Rel. Coimbra de 9.03.18 – https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRC:2018:628.16.7T8LMG.C1.BB/ -,   Rel. Guimarães de 10.5.21 – https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRG:2021:2434.18.5T9VCD.G1.AB/ – e Rel. Lisboa de 21.3.23 – https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:TRL:2023:324.21.3PCSNT.L1.5.61/.
[5] https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2023:1368.20.8JABRG.G1.S1.DE/.
[6] In https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/conclus%C3%A3o.
[7] Ac. STJ de 15.12.05, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2005:05P2951.BC/.
[8] Ac. STJ de 9.03.06, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2006:06P461.19/.
[9] Ac. STJ de 19.11.2008, proc. n.º 3453/08, citado por Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 1367.
[10] Numeração repetida.