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ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DESCARACTERIZAÇÃO DO ACIDENTE DE TRABALHO
ÓNUS DA PROVA
Sumário
I - Para cumprir os ónus legais a Recorrente sempre terá de alegar e levar para as conclusões sob pena de rejeição do recurso, a indicação dos concretos pontos facto que considera incorretamente julgados, como estabelecido na alínea a), do n.º 1, do artigo 640.º do Código de Processo Civil, enquanto definição do objeto de recurso. II - Para que ocorra a descaracterização do acidente de trabalho, em virtude de negligência grosseira do sinistrado [artigo 14.º, n.º 1, alínea b), e n.º 3, da Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro], torna-se necessário que se preencha o duplo requisito de negligência grosseira e causa única. III - A descaraterização do acidente de trabalho contemplada na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º, da LAT, pressupõe-se a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: 1. Existência de condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei; 2. Violação, por ação ou por omissão, dessas condições, por parte da vítima; 3. Que a atuação desta seja voluntária, embora não intencional, e sem causa justificativa (n.º 2, do citado artigo 14.º); 4. Que o acidente seja causa dessa atuação. IV - O ónus da prova impende sobre o responsável no tocante à alegação e prova dos requisitos determinantes da exclusão ou redução da sua responsabilidade. V - A culpa grave e indesculpável não deve ser apreciada em relação um tipo abstrato de comportamento, mas sim em concreto.
(Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil)
Texto Integral
Processo n.º 507/21.6T8AVR.P1
Origem: Comarca do Porto, Juízo do Trabalho de ...
(secção social)
Relatora: Juíza Desembargadora Sílvia Gil Saraiva
Adjuntos: Juíza Desembargadora Eugénia Pedro
Juiz Desembargador António Luís Carvalhão
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Recorrente: “A... Unipessoal, Lda.”
Recorrido: AA
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Sumário:
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Acordam os Juízes subscritores deste acórdão da quarta secção, social, do Tribunal da Relação do Porto:
Depois de decorrida a fase conciliatória deste processo especial emergente de acidente de trabalho veio o Autor – AA -, e porque não foi possível obter a conciliação, dar início à fase contenciosa com a dedução da petição inicial contra “A... Unipessoal, Lda.“, formulando os seguintes pedidos:
Ser a Ré empregadora condenada a pagar-lhe:
I. A quantia de € 29.592,09 a título de indemnização pelo período de incapacidade temporária absoluta para o trabalho de 06.09.2021 a 03.05.2021;
II. A pensão anual e vitalícia de € 6.499,24, com efeitos desde 04.05.2021;
III. Os juros de mora à taxa legal (atualmente de 4%) contados desde a data dos respetivos vencimentos até efetivo e integral pagamento.
Para tanto, alegou, resumidamente, que se encontrava em pausa para o lanche quando um colega de trabalho o atingiu acidentalmente, de forma súbita e inesperada, com um objeto metálico no olho direito.
A Ré empregadora contestou, alegando que o acidente de trabalho só ocorreu porque o Autor, tendo conhecimento do perigo da conduta do colega, nunca a impediu, nem procurou proteger-se através de equipamento individual de proteção.
Considera, assim, o acidente de trabalho descaracterizado nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, sustentando que o Autor violou expressamente as instruções da Ré no que concerne à segurança e saúde no local de trabalho.
Finaliza a sua contestação solicitando a citação da “B..., S.A.”, o que foi deferido pelo Tribunal a quo.
O Tribunal a quo proferiu despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial apresentada pelo Autor, o que foi por este acatado.
Foi proferido despacho saneador, no qual se verificou a validade e regularidade da instância, selecionando-se a matéria de facto assente e controvertida.
Nesse mesmo despacho, a “B..., S.A.”, foi absolvida dos pedidos.
Realizada a audiência final, foi proferida sentença datada de 11 de janeiro de 2025, que concluiu com a seguinte decisão (dispositivo):
«Assim, e nos termos expostos, julgo a ação procedente por provada e, consequentemente, condeno a ré A... Unipessoal, LDA., sem prejuízo dos juros que se mostrem devidos (art.º 135.º do Código de Processo do Trabalho) no pagamento ao autor das seguintes quantias:
A quantia de € 29.582,09[2] relativa a ITA, acrescida de juros de mora contados sobre esse capital, à taxa legal, desde essa data e até efetivo e integral pagamento.
A pensão anual e vitalícia de € 6.499,24, a pagar no seu domicílio, com início no dia seguinte ao da alta, ou seja, a 04-05-2021, calculada com base no salário atrás referido eno coeficiente global de incapacidade de 37,50%, atualizável nos termos legais, acrescida de juros de mora contados sobre esse capital, à taxa legal, desde essa data e até efetivo e integral pagamento.
Custas pela ré.
Valor da ação – Valor da ação correspondente ao que seria o capital de remição da pensão somado das quantias devidas a título de temporárias, artigo 120º do Código de Processo do Trabalho.
Registe e notifique.»(Fim da transcrição)
Desta sentença interpôs a Ré “A..., Unipessoal, Lda.”, recurso de apelação visando a sua revogação.
Termina as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. «É incontroverso, com base nos depoimentos gravados (especialmente os das testemunhas BB e CC), que o Recorrido retirou, de forma voluntária e consciente, os Equipamentos de Proteção Individual (EPI) durante as pausas de trabalho, contrariando as normas de segurança claramente definidas pela Recorrente.
2. A Recorrente cumpriu rigorosamente o seu dever de fornecer e instruir os trabalhadores sobre o uso dos EPIs.
3. A conduta do Recorrido, ao desobedecer expressamente às referidas orientações, demonstra a sua responsabilidade na ocorrência do infortúnio.
4. Ao optar por remover os EPIs, o Recorrido assumiu, de forma inequívoca, o risco inerente a essa decisão.
5. Tal atitude afasta o nexo causal entre o acidente e as condições de trabalho normalmente garantidas pela Recorrente.
6. Conforme o artigo 14.º, n.º 1, alínea a), da Lei n.º 98/2009, a conduta culposa do trabalhador que, por sua própria iniciativa, ignora as normas de segurança, descaracteriza o acidente de trabalho, o que isenta o empregador de responsabilidade.
7. A prova testemunhal demonstra que o acidente decorreu da conduta imprudente do Recorrido, e não de falhas na organização ou execução das medidas de segurança pela Recorrente, afastando, assim, qualquer nexo de causalidade imputável à mesma.
8. Os Acórdãos do Tribunal da Relação de Évora (Processo n.º 1515/19.2T8BJA.E1), do Tribunal da Relação de Guimarães (Processo n.º 1732/20.4T8VCT.G1) e do Tribunal da Relação do Porto (Processo n.º 375/18.5T8AGD.P1) evidenciam que a descaracterização do acidente de trabalho deve ser aplicada quando o trabalhador, por decisão própria, ignora normas de proteção essenciais.
9. A Recorrente demonstrou, de forma inequívoca, que cumpriu todas as suas obrigações legais e normativas relativamente à segurança no trabalho, não havendo qualquer conduta, por ação ou omissão, que possa imputar-lhe a responsabilidade pelo infortúnio.
10. As instruções relativas à obrigatoriedade do uso dos EPIs estavam claramente definidas e eram de conhecimento de todos os trabalhadores, evidenciando que o Recorrido agiu em desconformidade com o que era exigido para a sua própria proteção.
11. A decisão do Recorrido de retirar os EPIs, especialmente considerando os riscos inerentes à atividade que exercia, revela uma conduta grave e culposa, que, por si só, configura um elemento determinante para a ocorrência do acidente.
12. Ao ignorar as normas de segurança, o Recorrido expôs-se a um risco previsível e evitável.
13. Essa previsibilidade é um fator determinante para a descaracterização do acidente, afastando a responsabilidade da Recorrente.
14. As transcrições dos depoimentos das testemunhas demonstram que a decisão de remover os EPIs foi tomada de forma deliberada e não por um mero lapso ou acidente, evidenciando a intencionalidade que, por consequência, fragiliza qualquer alegação de acidente de trabalho fortuito.
15. Diante do exposto, a conduta do Recorrido, que se afastou de forma substancial das normas de segurança, afasta a responsabilidade da Recorrente, que, ao contrário, agiu em conformidade com as suas obrigações legais.
16. É inegável que o comportamento imprudente do Recorrido foi um fator determinante das lesões que sofreu, o que torna a imputação de responsabilidade à Recorrente juridicamente insustentável.
17. Face à inadequada apreciação da prova gravada e da errada valoração dos depoimentos que comprovam a conduta culposa do Recorrido, requer-se a substituição da sentença proferida pelo Tribunal a quo, reconhecendo-se, assim, a descaracterização do acidente de trabalho.
18. Em consequência da descaracterização do acidente de trabalho, nos termos do artigo 14.º da Lei n.º 98/2009, a Recorrente deve ser absolvida de todas as condenações relativas ao evento em crise.» (Fim da transcrição)
O Autor apresentou contra-alegações, opondo-se à procedência do recurso e referindo que o recurso da Recorrente deve ser rejeitado no que respeita à impugnação da matéria de facto.
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O Meritíssimo Juiz a quo admitiu o recurso interposto como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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Recebidos os autos o Exmo. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se, em douto parecer, referindo ser evidente a fragilidade argumentativa apresentada quanto à impugnação da matéria de facto, por incorreta observância do triplo ónus a que se alude no artigo 640.º do mesmo diploma legal.
As conclusões são omissas quanto aos concretos pontos factuais que se pretendem impugnar. Tal é causa de imediata rejeição do recurso nesta parte - cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5 e 27 ambos de setembro de 2018 e deste Tribunal da Relação do Porto de 22.02.2021; vide, também António Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, páginas 126, 127 e 129.
Estabilizada deste modo a matéria de facto, que deverá ser integralmente confirmada, não há motivo para alteração da matéria de direito.
Assim, emitiu parecer no sentido de ser negado provimento ao recurso e de ser confirmada a douta sentença recorrida.
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Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II - Questões a decidir:
O objeto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente [artigos 635.º, n.º3 e 4, e 639.º, n.ºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil, ex vi, artigo 1.º, n.º 2, alínea b), do Código de Processo do Trabalho], por ordem lógica e sem prejuízo da apreciação de questões de conhecimento oficioso e da indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artigo 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), observado que seja, quando necessário, o disposto no artigo 3.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
As questões a decidir consistem em saber:
A - Da impugnação da matéria de facto dada como provada.
B - Do erro na aplicação do direito: Há descaracterização do acidente de trabalho por violação de normas de segurança imputáveis ao sinistrado.
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III- FUNDAMENTOS DE FACTO: Matéria de facto dada como provada em primeira instância[3]
Factos assentes no saneador:
1. A ré é uma empresa que se dedica à construção civil e obras públicas. Recuperação e remodelação de edifícios, limpeza, conservação e manutenção de edifícios e condomínios; instalações elétricas e hidráulicas, fabrico e montagem de estruturas metálicas, serviços de carpintaria civil e industrial. Comércio, importação, exportação e representação nacionais e internacionais de materiais e equipamentos relacionados com a atividade.
2. Através da celebração, em 10/05/2019, de um contrato de trabalho a termo certo, pelo prazo de 6 meses, renovável por iguais períodos de tempo, o autor foi admitido ao serviço da ré para exercer as funções de pedreiro.
3. No dia 5 de setembro de 2019, em ... – Espanha, o autor encontrava-se a trabalhar como pedreiro num prédio, em construção, que a ré havia adjudicado, por ordem, direção e fiscalização da mesma.
4. Na sequência de ter sido atingido no olho por objeto estranho, no dia referido em 3., o autor sofreu as lesões descritas no relatório do INML dos autos, as quais lhe determinaram:
a. o seguinte período de incapacidade para o trabalho: Incapacidade temporária absoluta (ITA): de 06/09/2019 a 03/05/2021 – fixável num período de 606 dias.
b. incapacidade permanente parcial (IPP) com o coeficiente global de 37,50 %.
5. O autor teve alta clínica em 03/05/2021.
6. A ré não celebrou contrato de seguro destinado a cobrir eventuais danos emergentes de acidentes de trabalho do autor
7. O autor nasceu no dia ../../1961.
Factos da petição inicial:
8. O autor estava a trabalhar mediante a retribuição mensal de 1.708,00 € e, por dia de trabalho, um subsídio de alimentação no valor de 3,50 €.
9. O autor encontrava-se na pausa para o lanche, quando o colega de trabalho, DD, acidentalmente, atingiu-o, de uma forma súbita, repentina[4], com um objeto metálico no seu olho direito.
10. O objeto metálico em questão era uma bala de gesso que se encontrava no chão, na qual o referido DD, bateu, apenas uma vez, com uma ferramenta[5]. Tendo essa bala de gesso explodido e atingido o olho direito do autor.
11. O autor encontrava-se a cerca de 5 metros do DD, não teve qualquer conversa antes do acidente com o mesmo e, quando sentiu o impacto no olho direito e começou a sangrar, entrou em pânico.
12. O autor não incentivou o DD a praticar tal ato.
13. À data da alta o autor tinha 59 anos.
14. À data do evento o autor auferia a retribuição mensal de 1.708,00 € x 14 meses + 3,50 € x 22 dias x 11 meses – subsídio de alimentação = 24.759,00 € (retribuição anual).
15. Não lhe foi paga qualquer quantia a título de indemnização por incapacidades temporárias.
16. O autor não gastou qualquer quantia em honorários clínicos, nem em despesas medicamentosas, porquanto a ré tinha celebrado um contrato de seguro de assistência médica em Espanha, seguro este que foi acionado pela mesma.
17. A ré não celebrou contrato de seguro destinado a cobrir eventuais danos emergentes de acidentes de trabalho do autor.
18. Como consequência direta e necessária do evento descrito anteriormente o autor teve as seguintes sequelas:
A data da consolidação médico-legal das lesões é fixável em 03/05/2021. Incapacidade temporária absoluta desde 06/09/2019 até 03/05/2021, fixável num período total de 606 dias.
A incapacidade permanente parcial de 37,50%.
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Factos não provados 1. O que de facto aconteceu, foi que o colega do A., de nome DD, se encontrava, naquele dia e àquela hora, a manusear uma enxada, sem qualquer motivo e sem ordens para tal. 2. E tentava, com essa enxada, aplicar golpes num objeto metálico para fixação de pladur que se encontrava no chão da obra, para gáudio seu e dos seus colegas. 3. Ora, enquanto o referido trabalhador manuseava a enxada nos termos e para os efeitos descritos no ponto anterior, o A. em momento algum tomou uma atitude preventiva e de segurança, pedindo ao colega para parar ou, até, abandonado o local. 4. Antes pelo contrário. 5. O A., incentivou o Colega a praticar os atos descritos, mesmo sabendo da perigosidade dos mesmos. 6. E nunca, em momento algum, o A. praticou atos de prevenção e segurança que pudessem impedir a lesão que sofreu. 7. O A. sabendo do perigo da conduta do Colega, nunca a impediu, não lhe pediu, nunca, que a cessasse, nunca se procurou proteger através de equipamento individual de proteção e, em último caso, não tomou a iniciativa de abandonar o local e reportar os eventos ao responsável da obra. 8. Pelo que a responsabilidade do A. não se resume a uma mera omissão de adoção de comportamentos de segurança, mas radicam em ação, consciente, de incentivo da prática, por colega de trabalho, de atos manifestamente inseguros, violando as mais elementares normas de segurança em local de trabalho. 9. O Autor, recebia, isso sim, um salário base de 600,00€ (seiscentos euros) mensais, mais o subsídio de alimentação de 3,50€ (três euros e cinquenta). 10. A este valor, seriam somados, eventualmente, outros valores a título de ajudas de custo, que poderiam aumentar o valor recebido pelo A. 11. Após os eventos aqui relatados, a R. continuou a pagar ao A., pelo menos até outubro de 2020, a retribuição a que este tinha direito.
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Da impugnação da decisão de facto Questão prévia:
O Recorrido, nas suas contra-alegações de recurso, sustenta que a Recorrente não cumpriu os ónus estabelecidos pelo artigo 640.º do Código de Processo Civil, o que implica a rejeição do recurso nessa parte.
Tal é secundado e corroborado no douto parecer emitido pelo Ministério Público.
Cumpre, então, averiguar pelo cumprimento dos ónus a cargo da Recorrente que impugne a decisão sobre a matéria de facto:
Como é sabido, nos termos do disposto pelo n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, incumbe ao recorrente, em primeiro lugar, circunscrever o âmbito do recurso indicando claramente os segmentos da decisão que considerados viciados por erro de julgamento com indicação da decisão que a seu ver deveria ter sido proferida [alíneas a) e c), do n.º 1] e, em segundo lugar, fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa [alínea b) do, n.º 1].
Na verdade, se ao Tribunal é atribuído o dever de fundamentação e de motivação crítica da sua decisão em matéria de facto (artigo 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil), facilmente se compreende que, em contraponto, o legislador tenha imposto à parte que pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto o respetivo ónus de impugnação, ou seja o ónus de expor, em termos claros e suficientes, os argumentos que, extraídos da sua própria apreciação crítica dos meios de prova produzidos, determinem, em seu entender, um resultado diverso do decidido pelo Tribunal a quo.
Conforme é observado por Abrantes Geraldes[6], quando o recurso verse a impugnação da decisão da matéria de facto deve o recorrente observar as seguintes regras: «a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; (negrito nosso)[7] b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; (negrito nosso) c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos; (negrito nosso) (…) e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente. (negrito nosso) (…).» (Fim da transcrição)
Assim, em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve identificar os pontos de facto que considera incorretamente julgados, não podendo limitar-se a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham para que cada um desses pontos de facto fosse julgado provado ou não provado.
Nesta conformidade, lê-se no Acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 23.11.2020[8], que na indicação dos meios probatórios (sejam eles documentais ou pessoais) que sustentariam diferente decisão [artigo 640.º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Civil], deverão eles ser identificados e indicados por referência aos concretos pontos da factualidade impugnada de modo a que se entenda a que concretos pontos dessa factualidade se reportam os meios probatórios com base nos quais a impugnação é sustentada, mormente nos casos em que se pretende a alteração de diversa matéria de facto.
Contudo, este conjunto de exigências reporta-se especificamente à fundamentação do recurso, não se impondo ao Recorrente que, nas suas conclusões, reproduza tudo o que alegou acerca dos requisitos enunciados no artigo 640.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil.
Neste sentido, Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, e Luís Filipe Pires deSousa[9]: «(…) O Supremo tem vindo a sedimentar como predominante o entendimento de que as conclusões não têm de reproduzir (obviamente) todos os elementos do corpo das alegações e, mais concretamente, que a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar das conclusões, diversamente do que sucede, por razões de objetividade e de certeza, com os concretos pontos de facto sobre que incide a impugnação (STJ 9-6-16, 6617/07, STJ 31-5-16, 1572/12, Supremo Tribunal de Justiça 28-4-16, 1006/12, Supremo Tribunal de Justiça 11-4-16, 449/410, Supremo Tribunal de Justiça 19-2-15, 299/05 e STJ27-1-15, 1060/07).» (Fim da transcrição)
Sublinham tais autores que o Supremo Tribunal de Justiça tem afirmado que na verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no artigo 640.º, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade[10]. (negrito nosso)
No tocante ao cumprimento do ónus estabelecido na alínea c) do n.º 1 do citado artigo 640.º, o nosso mais alto Tribunal pronunciou-se no Acórdão de 17 de outubro de 2023[11], e uniformizou a jurisprudência nos seguintes moldes: «Nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.» (Fim da transcrição)
Segue-se neste particular o prolatado no Acórdão desta secção social de03.06.2024[12] (relator: Nelson Fernandes), Processo n.º 2015/23.1T8AVR.P1 quando nele se diz: «(…) Muito embora apenas tenha sido fixada jurisprudência a respeito da referida alínea, resultam, porém, do mesmo Acórdão, assim da sua fundamentação, considerações que temos como claramente relevantes quanto às demais exigências que resultarão do mesmo preceito, nos termos que seguidamente se transcrevem: «(…) Desse modo, impõe-se a respetiva harmonização com os mais ditames no que concerne à admissibilidade do recurso, legitimidade para recorrer, prazos para tanto, bem como as regras no que concerne ao modo de interposição, no que para aqui releva, os recursos interpõem-se por meio de requerimento, devendo conter obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade, artigo 637, n.º 1 e n.º 2, especificando o n.º 1, do artigo 639, que o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, artigo 639, n.º 1, preceito legal de cariz genérico, reportando-se assim aos recursos onde sejam apenas suscitadas questões de direito, mas também se pretenda impugnar a decisão sobre a matéria de facto(57), procedendo à delimitação do objeto do recurso, como avulta do previsto no artigo 635, n.º 3 e 4. Em conformidade, não surpreende que no artigo 640 não se faça qualquer referência aos aspetos formais, antes enunciados, relevando sim, que sejam dadas essencialmente as indicações previstas na alínea a), na medida em que as mesmas delimitam a atividade de reapreciação junto do Tribunal da Relação, do julgado quanto à matéria de facto. 4 - Não pode, no entanto, ser esquecida a ratio legis, no atendimento dos princípios já enunciados na abordagem do histórico do preceito, que seria despiciendo repisar, mas também, e com eles necessariamente relacionados, os hodiernos vertidos no vigente Código de Processo Civil, caso do princípio da cooperação, enquanto responsabilidade conjunta de todos os intervenientes processuais, numa visão instrumental do processo para a obtenção da solução justa e atempada do litígio, bem como, com as devidas adaptações, o dever da gestão processual na vertente da respetiva adequação, sublinhando a prevalência da matéria em relação à forma, sempre pautados pelo dever de boa-fé, não esquecendo o ónus de alegação, numa pretendida colaboração ativa para a apreciação a realizar pelo Tribunal, inculcada com a inclusão do apontamento da decisão alternativa, e tendo presente a imprescindível consideração da proporcionalidade e razoabilidade que para a causa em concreto seja atendível e se justifique. Da articulação dos vários elementos interpretativos, com cabimento na letra da lei, resulta que em termos de ónus a cumprir pelo recorrente quando pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, sempre terá de ser alegada e levada para as conclusões, a indicação dos concretos pontos facto que consideraincorretamente julgados, na definição do objeto do recurso. Quando aos dois outros itens, caso da decisão alternativa proposta, não podendo deixar de ser vertida no corpo das alegações, se o for de forma inequívoca, isto é, de maneira a que não haja dúvidas quanto ao seu sentido, para não ser só exercido cabalmente o contraditório, mas também apreendidos em termos claros pelo julgador(58), chamando à colação os princípios da proporcionalidade e razoabilidade instrumentais em relação a cada situação concreta, a sua não inclusão nas conclusões não determina a rejeição do recurso(59), conforme o n.º 1, alínea c) (60) do artigo 640, apresentando algumas divergências ou em sentido não totalmente coincidente, vejam-se os Autores, Henrique Antunes(61), Rui Pinto(62), Abílio Neto(63). 5 - Em síntese, decorre do artigo 640, n.º 1, que sobre o impugnante impende o dever de especificar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera julgados de modo incorreto, os concretos meios de probatórios constantes do processo, de registo ou de gravação nele realizado, que imponham decisão diversa da recorrida, bem como aludir a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. Tais exigências, traduzidas num ónus tripartido sobre o recorrente, estribam-se nos princípios da cooperação, adequação, ónus de alegação e boa-fé processuais, garantindo a seriedade do recurso, num efetivo segundo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, necessariamente avaliado de modo rigoroso, mas sem deixar de ter em vista a adequada proporcionalidade e razoabilidade, de modo a que não seja sacrificado um direito das partes em função de um rigorismo formal, desconsiderando aspetos substanciais das alegações, numa prevalência da formalidade sobre a substância que se pretende arredada. (…)» Do que consideramos resultar da citada fundamentação, afigura-se-nos adequado, em face do que resulta da lei, o entendimento de que, para cumprir os ónus legais, o recorrente sempre terá de alegar e levar para as conclusões, sob pena de rejeição do recurso, a indicação dos concretos pontos facto que consideraincorretamente julgados, como estabelecido na alínea a) do n.º 1 do preceito citado, enquanto definição do objeto do recurso, sendo que, noutros termos, já quando ao cumprimento do disposto nas alíneas b) e c) do mesmo número, desde que vertido no corpo das alegações, a respetiva não inclusão nas conclusões não determina tal rejeição do recurso. (…) Em face do exposto, não cumprido a Recorrente o referido ónus legal, daí decorre, como cominado no normativo mencionado, a rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto.» (Fim da transcrição e negrito nosso)
Aplicando os critérios indicados ao caso em apreço, constata-se que no corpo das alegações a Recorrente evidencia pretender impugnar o ponto 7 dos factos não provados; todavia, essa indicação não é transposta para as conclusões, onde deveria constar o concreto facto que considera incorretamente julgado e a decisão que, no seu entender, deveria ter sido proferida sobre o mesmo.
Por conseguinte há que entender que a Recorrente, ao não cumprir esse ónus, acabou por não circunscrever o objeto do recurso no que concerne à matéria de facto, nos termos exigidos pelo legislador, pelo que se impõe a rejeição do recurso relativamente à impugnação da matéria de facto.
Desta forma, a factualidade a atender para a apreciação do direito que se segue é a que foi considerada na 1.ª instância.
Sem embargo, por se considerar serem de índole conclusiva e não factual expurgou-se dos factos provados nos pontos 9) e 10), as menções “acidental” e “pelo que o autor não pôde adotar nenhuma medidapreventiva”.
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IV - FUNDAMENTOS DE DIREITO:
A sentença sob recurso fundamenta a sua decisão na análise que efetuou sobre a dinâmica do acidente de trabalho e se este se ficou a dever a negligência grosseira do sinistrado.
Concluiu que, atendendo às circunstâncias concretas do caso, é evidente que o sinistrado em nada contribuiu para o acidente.
Como é sabido, o acidente descaracteriza-se como de trabalho ou deixa de ter que ser reparado pelo empregador/seguradora, nas situações descritas no artigo 14.º, n.º 1, da Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro[13], desde logo, na situação prevista na alínea b), do n.º 1, do citado preceito legal.
Para que ocorra a descaracterização do acidente de trabalho, em virtude de negligência grosseira do sinistrado [artigo 14.º, n.º 1, alínea b), e n.º 3], torna-se necessário que se preencha o duplo requisito de negligência grosseira[14] e causa única.
Assim, nas situações em que ocorra um concurso de causas para o acidente, a descaracterização por negligência grosseira não terá lugar, uma vez que o nexo de causalidade entre aquela negligência e o acidente tem de ser exclusivo.
Por outro lado, tem-se entendido,quer na doutrina, quer na jurisprudência, que a negligência grosseira diz respeito a uma ação especialmente perigosa, desde que o resultado, à luz da conduta adotada, seja de verificação altamente provável, e desde que a atividade seja especialmente censurável, reveladora de insensatez e irresponsabilidade. A isto acresce a ponderação de que a realização de trabalhos perigosos não é possível sem uma habituação ao perigo.[15]
Não obstante, esta culpa grave e indesculpável não deve ser apreciada em relação um tipo abstrato de comportamento, mas sim em concreto.[16]
Finalmente, o ónus da prova impende sobre o responsável no tocante à alegação e prova dos requisitos determinantes da exclusão ou redução da sua responsabilidade.
É que a situação de “descaracterização” do evento como sendo acidente de trabalho, configura-se como um facto impeditivo (extintivo) do direito invocado pelo sinistrado/ou seus beneficiários e, nessa medida, prefigura-se como uma exceção de cariz perentória [artigos 342.º, n.º 2, do Código Civil, 571.º, n.º 2 e 576.º, n’s 2 e 3 do Código de Processo Civil “ex vi” artigo 1.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo do Trabalho].
No caso concreto, a propósito da dinâmica do acidente [cfr. factos provados de 9) a 12)], provou-se que:
· O autor encontrava-se na pausa para o lanche, quando o colega de trabalho, DD, atingiu-o, de uma forma súbita, repentina, com um objeto metálico no seu olho direito.
· O objeto metálico em questão era uma bala de gesso que se encontrava no chão, na qual o referido DD, bateu, apenas uma vez, com uma ferramenta. Tendo essa bala de gesso explodido e atingido o olho direito do autor.
· O autor encontrava-se a cerca de 5 metros do DD, não teve qualquer conversa antes do acidente com o mesmo e, quando sentiu o impacto no olho direito e começou a sangrar, entrou em pânico.
· O autor não incentivou o DD a praticar tal ato.
Não se vislumbra, assim, a verificação de uma negligência grosseira – entendida como um comportamento temerário em alto e relevante grau – por parte do sinistrado e que o acidente tenha resultado exclusivamente desse comportamento.
Contudo, a Recorrente, em sede de recurso, para a descaracterização do acidente coloca ainda a tónica na violação, sem causa justificativa, das condiçõesde segurança como motivo de descaracterização do acidente de trabalho, causa essa prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º.
Vejamos, então, se a descaraterização ocorre por esse motivo:
Para a descaraterização do acidente de trabalho contemplada na alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º, pressupõe-se a verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
i. Existência de condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei[17];
ii. Violação, por ação ou por omissão, dessas condições, por parte da vítima;
iii. Que a atuação desta seja voluntária, embora não intencional, e sem causa justificativa (n.º 2, do citado artigo 14.º);
iv. Que o acidente seja causa dessa atuação.
Conforme sublinha, José Eduardo Sapateiro[18]: «A violação depende, em primeiro lugar, da existência de condições de segurança determinadas pelo empregador (e da sua inerente prova em tribunal) ou pelo legislador e, por outro, terá de referir-se a ordens ou normas referentes às concretas condições de segurança reclamadas para o modo, local e tempo da prestação de trabalho concretamente desenvolvida pelo sinistrado e não quaisquer outras, quer nada tenham a ver com a segurança, saúde e higiene no ambiente de trabalho, quer não se mostrem adequadas a prevenir os riscos derivados efetivamente da atividade desenvolvida.» (Fim da transcrição)
Quanto ao grau de culpa que se exige para a verificação da descaracterização prevista na segunda parte, da alínea a) do n.º 1 do artigo 14.º, conforme menção feita no douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-07-2017 (relator: Ferreira Pinto), Processo n.º 1637/14-6T8VFX.L1.S1[19], emergem três posições distintas, não existindo divergência quanto facto de nessa norma só estarem abrangidos os comportamentos voluntários do sinistrado. Pedro Romano Martinez[20] sustenta que: «[n]este caso, o legislador exige somente que a violação careça de «causa justificativa», pelo que está fora de questão o requisito negligência grosseira da vítima; a exigência dessa culpa grave encontra-se na alínea seguinte do mesmo preceito. A diferença de formulação constante das alíneas a) e b) do n.º 1 do art.º 14º da LAT tem de acarretar uma interpretação distinta. Por outro lado, há motivos para que o legislador tenha estabelecido regras diversas. Na alínea a) só se exige a falta de causa justificativa, porque atende-se à violação das condições de segurança específicas daquela empresa; por isso, basta que o trabalhador conscientemente viole essas regras (…). Se o trabalhador, conhecendo as condições de segurança vigentes na empresa, as viola conscientemente, e por força disso, sofre um acidente de trabalho, não é de exigir a negligência grosseira do sinistrado nessa violação para excluir a responsabilidade do empregador.» (Fim da transcrição) Carlos Alegre[21], com referência à anterior LAT, afirma que o acidente só não confere direito a reparação se se verificarem, cumulativamente, as seguintes condições: «1ª. Que sejam voluntariamente violadas as condições de segurança, exigindo-se, aqui, a intencionalidade ou dolo, na prática ou omissão, o que exclui as chamadas culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distração, esquecimento ou outras atitudes que se prendem com os atos involuntários resultantes ou não da habituação ao risco. 2ª. Que a violação das condições de segurança seja sem causa justificativa (do ponto de vista do trabalhador), o que passa pelo claro conhecimento do perigo que possa resultar do ato ou omissão: a causa justificativa não tem que ter um carácter lógico ou normal em relação à atividade laboral, pode ser uma brincadeira a que não se associam consequências danosas, uma inadvertência ou momentânea negligência, uma imprudência ou mesmo um impulso instintivo ou altruísta. 3ª. Que as condições de segurança sejam, apenas, estabelecidas pela entidade patronal (em regulamento de empresa, ordem de serviço ou outra forma de transmissão)». (Fim da transcrição)
Finalmente, Júlio Vieira Gomes[22]sustenta que a parte final da alínea a) do n.º 1 do citado artigo 14.º pressupõe, pelo menos, a negligência grosseira, isto é, a culpa extremamente grave do trabalhador a que alude expressamente a alínea b), e que «(…) a diferente redação das alíneas se compreende apenas tendo em atenção a história do preceito e a técnica legislativa empregue (…)», sendo de sublinhar, (…) desde logo, que «a prática de atos e omissões que importem a violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei» não representa uma alínea autónoma, mas a parte final da alínea a) onde estão igualmente previstos os acidentes dolosamente provocados pelo sinistrado.
Além disso, a culpa para efeitos da dita violação das condições de segurança, por ação ou omissão, sem causa justificativa, também tem de ser aferida em concreto e não em abstrato.
Como se salienta no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.02.2021 (relator: Júlio Vieira Gomes), Processo n.º 103/16.0T8MTR.C1.S2[23]: «Também aqui há, no entanto, que acrescentar que a gravidade das consequências da descaracterização do acidente de trabalho (artigo 14.º da Lei n.º 98/2009) pressupõe um comportamento subjetivamente grave por parte do trabalhador. A letra da lei é o ponto de partida da interpretação da lei, mas a interpretação tem de atender a outros elementos, como o histórico e o sistemático. Atendendo a que boa parte dos acidentes de trabalho decorre da violação de regras de segurança entender que mesmo uma atuação com culpa leve acarretaria a descaracterização entraria em contradição com outros aspetos da norma que devem ser aferidos no seu conjunto, como, por exemplo a definição de negligência grosseira e de que a mesma, a existir, seja causa exclusiva do acidente. Em suma, e como se pode ler no Acórdão deste Tribunal proferido a 12/12/2017, no processo n.º 2763/15.0T8VFX.L1.S1 (RIBEIRO CARDOSO), “a descaracterização do acidente de trabalho com fundamento na 2.ª parte da alíneaa) do n.º 1 do artigo 14.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (…) exige que o trabalhador atue com culpa grave, que tenha consciência da violação, não relevando os casos de culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distração ou ao esquecimento». (Fim da transcrição).
No caso sub judice, além de não estarmos de todo perante um comportamento voluntário imputável ao Recorrido (este foi atingido por um ato de terceiro - um colega de trabalho), e não ser sequer claro qual a norma de segurança violada (o sinistrado, aquando do evento, estava na sua pausa para o lanche), nunca existiria uma culpa grave e indesculpável.
Secundando as sábias palavras de Júlio Vieira Gomes[24]: «(…) desde a sua génese que os sistemas de reparação dos acidentes de trabalho assentam na normal coexistência entre o risco (ou a responsabilidade objetiva do empregador) e a culpa do sinistrado: boa parte dos acidentes de trabalho decorre de distrações, inadvertências, imperícia, mas também desatenção e mesmo desrespeito por regras de segurança».
Logo, tal como se refere, nesse escrito: «Só em casos excecionais é que a responsabilidade do empregador deve ser excluída nestas situações – em suma, a descaracterização do acidente deve restringir-se a situações muito graves também do ponto de vista do juízo de censura ao sinistrado – sob pena de a pessoa que trabalha e que, como pessoa que é, comete erros, com maior ou menor frequência, ficar desprovida de proteção por um erro momentâneo». (Fim da transcrição).
Soçobram, assim, as conclusões do recurso, mantendo-se, por conseguinte, o decidido na douta sentença recorrida.
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V. DECISÃO:
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Pelo exposto, acordam os juízes desembargadores da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente, com taxa de justiça conforme tabela I-B anexa ao Regulamento Custas Processuais (cfr. artigo 7.º, n.º 2 do Regulamento Custas Processuais).
Valor do recurso: o da ação (artigo 12.º, n.º 2 do Regulamento Custas Processuais).
Notifique-se e registe-se.
Porto, 2 de junho de 2025
Sílvia Gil Saraiva (Relatora)
Eugénia Pedro (1.ª Adjunta)
António Luís Carvalhão (2.º Adjunto)
_________________________________ [1]Segue-se, com ligeiras alterações, o relatório da decisão recorrida. [2]Valor inicial posteriormente retificado pelo Tribunal a quo (cfr. Ref.ª 467609449 Citius). [3]Objeto de transcrição - e os não provado em itálico. [4]Por ser claramente conclusivo retirou-se a menção “acidental”. [5]Por ser claramente conclusivo retirou-se a menção “pelo que o autor não pôde adotar nenhuma medidapreventiva”. [6]GERALDES, António Santos Abrantes, in “Recursos em Processo Civil”, 7.º Edição; Edições Almedina, S.A. p. 197-199. [7]Nota: A apresentação das transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a), do n.º 2, do artigo 640.º do Código de Processo Civil, neste sentido, veja-se, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19.02.2015, (relator: Tomé Gomes), Processo n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1; (relatora: Maria dos Prazeres Pizarro Beleza). Processo n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt. Veja-se, todavia, sobre a admissibilidade da impugnação de factos em bloco, desde que interligados, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 14.07.2021, Processo n.º 1006/11 (relator: Júlio Gomes), e de 19.05.2021, Processo n.º 4925/17 (relator: Chambel Mourisco), ambos disponíveis em www.dgsi.pt. [8]Veja-se, por todos, Processo n.º 6107/18.0T8MTS.P1 (relatora: Paula Leal de Carvalho). [9] GERALDES, António Abrantes; PIMENTA, Paulo, e SOUSA, Luís Filipe Pires de, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. I (parte geral e processo de declaração), 3.ª Ed. Edições Almedina, S.A., p. 832.º. [10] Veja-se, por todos. GERALDES, António Abrantes, PIMENTA, Paulo, e SOUSA, Luís Filipe Pires de, in op. citada, p. 822.º,e ainda os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça nele mencionados: de 18.01.2022, Processo n.º 701/19 (relatora: Maria João Vaz Tomé); de 06.05.2021, Processo n.º 618/18 (relator: Nuno Pinto Oliveira); de 11.02.2021, Processo n.º 4279/17 (relatora: Maria da Graça Trigo); de 12.07.2018, Processo n.º 167/11 (relator: Ferreira Pinto) e de 21.03.2018, Processo n.º 5074/15 (relator: Ferreira Pinto), todos disponíveis in www.dgsi.pt. [11]Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 12/2023 (relatora: Ana Resende), Processo n.º 8344/17.6T8STB.E1-A.S1 (Recurso para Uniformização de Jurisprudência), publicado no Diário da República n.º 220/2023, I Série. de 14-11-2023, pp. 44.º a 65.º, com a declaração de retificação n.º 35/2023, publicado no Diário da República, I Série, de 28.11.2023. [12]Disponível in www.dgsi.pt. [13]Diploma legal a que iremos fazer referência sem menção diversa. [14] Nos termos do n.º 3, do citado artigo 14.º, entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão. [15]Neste sentido, veja-se, GOMES, Júlio Vieira, “O acidente de trabalho – O acidentein itinere”, Coimbra Editora, 2013, pp. 220/221. [16] Conforme salienta, GOMES, Júlio Vieira, em obra supracitada, p. 218, permitindo ter em conta fatores como o cansaço, o stress no trabalho, e o ritmo de produção imposto ao trabalhador. [17] As condições de segurança a que o legislador na alínea a) do, n.º 1, do artigo 14.º se pretende reportar, são as condições ou regras que estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei, esteja direta ou indiretamente ligadas à própria execução do trabalho que o sinistrado se obrigou a prestar no âmbito do contrato de trabalho estabelecido com aquela, ou seja, as condições de segurança com que o trabalho deva ser desempenhado – neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05-12-2018 (José Feteira), Processo n.º 2576/16.1T8VFX-L1-4, in www.dgsi.pt. [18]SAPATEIRO, José Eduardo, in “Reflexões em torno da descaracterização do Acidente de Trabalho”, Revista do Centro de Estudos Judiciários. 2.ª Semestre 2013, Número 12.º, p. 217.º [19]Disponível em www.dgsi.pt. [20]MARTINEZ, Pedro Romano, in “Direito do Trabalho”, 2017, 8ª edição, Almedina, pp 897/898. [21] ALEGRE, Carlos, in “Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais”, Regime Jurídico Anotado – 2ª edição, Almedina, pp 61. [22]GOMES, Júlio Vieira, “O acidente de trabalho – O acidentein itinere”, Coimbra Editora, 2013, pp 232/234. [23] Disponível in www.dgsi.pt. [24] In obra supracitada pp. 267-268.º.