ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
SANÇÃO DISCIPLINAR
JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO
FALTAS INJUSTIFICADAS
Sumário

I – Não cumpre o ónus previsto pelo art.º 640.º, n.º 1, al. b) do CPC a impugnação da decisão da matéria de facto fundada em meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador, sem que se mostre feita qualquer conexão entre tais meios de prova e a decisão pretendida relativamente a cada ponto concreto impugnado.
II – Apresenta-se como excessiva, sendo enquanto tal ilícita, a sanção disciplinar de dois dias de suspensão do trabalho com perda de retribuição e antiguidade com fundamento em dois dias de faltas injustificadas, se não se demonstra que a ausência do trabalhador nesses dias gerou qualquer consequência ou prejuízo para a empregadora.
III – Tornam imediatamente impossível a continuação da relação de trabalho, constituindo justa causa para o despedimento, catorze faltas injustificadas, por falta de aviso prévio e de apresentação de comprovativo do motivo, dadas pelo trabalhador no mesmo mês, quando as mesmas eram previsíveis, o mesmo sabia que a falta de aviso prévio prejudica a normal laboração da empresa, devendo ser objeto de justificação, foi alertado da necessidade de colocar os documentos de justificação de faltas no Portal do Trabalhador, procedimento que conhecia e sobre o qual recebeu formação, tendo ainda sido expressamente advertido de que que tinha ausências para justificar e nem sequer alegou qualquer motivo que o impossibilitasse de avisar ou apresentar justificação.

(Sumário da responsabilidade da Relatora).

Texto Integral

Processo n.º 5227/23.4T8MTS.P1

Origem: Comarca do Porto, Juízo de ...

Acordam os juízes da seção social do Tribunal da Relação do Porto

Relatório

AA apresentou requerimento de impugnação da regularidade e licitude do despedimento que lhe foi movido por A..., S.A..

Realizada audiência de partes, não foi possível a conciliação.

Regularmente notificada para o efeito, a entidade empregadora apresentou articulado de motivação do despedimento e juntou o procedimento disciplinar, reafirmando os factos constantes da decisão final deste e pugnando pela legalidade e fundamentação do despedimento do trabalhador. Concluiu pela improcedência da ação.

O trabalhador contestou, reafirmando o que fez constar na resposta à nota de culpa que apresentou no procedimento disciplinar. Terminou pedindo a declaração de ilicitude da sanção disciplinar de suspensão com perda de dois dias de retribuição e antiguidade (que lhe havia sido aplicada pela ré a 13/6/2023); a declaração de ilicitude do despedimento e a condenação da entidade empregadora na sua reintegração, pagamento de retribuições intercalares e créditos.

A entidade empregadora apresentou resposta, mantendo o por si alegado no articulado de motivação do despedimento e impugnando o alegado em sede reconvencional pelo autor.

Não foi realizada audiência prévia, tendo sido proferido despacho saneador, no qual foi admitida a reconvenção deduzida pelo autor e foi dispensada a fixação do objeto do litígio e dos temas de prova.

Foi realizada a audiência de discussão e julgamento, na sequência da qual foi proferida sentença que culminou no seguinte dispositivo:

«a) declaro ilícito o despedimento de AA, levado a cabo pela entidade patronal e ré A..., S.A., por decisão proferida em 9/10/2023;

b) julgo a reconvenção procedente por provada e, consequentemente:

i) declaro ilícita a sanção de dois dias de suspensão com perda de retribuição e antiguidade, aplicada pela ré ao autor a 13/6/2023,

ii) condeno a ré:

- a reintegrar o autor no seu posto de trabalho, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade;

- a pagar ao autor as retribuições mensais, à razão (da retribuição base) de €1.337,57, (que neste momento, com os subsídios de férias e natal vencidos ascende ao valor de €20.063,55), até ao trânsito em julgado da decisão final deste processo, a liquidar posteriormente, descontado do valor correspondente ao montante das importâncias que o autor tenha obtido com a cessação do contrato e não obteria sem esta e dos montantes pelo autor recebidos a título de subsídio de desemprego, nos termos do disposto no art.º390.º do Código do Trabalho, sendo certo que tem a ré a obrigação de restituir à Segurança Social as quantias por esta paga ao autor a título de subsídio de desemprego;

- a pagar ao autor a quantias de €151,56 a título de restituição da retribuição descontada pela aplicação da sanção de suspensa de dois dias, acrescida de €2,18 de juros de mora vencido e juros vincendos à taxa de 4%, contados desde 9/11/2023 e até efetivo pagamento.»

O valor da ação foi fixado em € 32.101,68 (trinta e dois mil cento e um euros e sessenta e oito cêntimos).

Inconformada a ré interpôs o presente recurso, impugnando a decisão quer de facto, quer de direito, apresentando alegações que concluiu nos seguintes termos:

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O autor não apresentou contra-alegações.


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O recurso foi admitido e remetidos os autos a este tribunal, o Ministério Púbico, ao abrigo do art.º 87.º, n.º 3 do Código de Processo do Trabalho, emitiu parecer, no qual pugnou pela revogação da sentença na parte relativa à ilicitude do despedimento, por entender que “O comportamento do recorrido foi violador de seu dever de assiduidade, a que se alude no art.º 256.º n.º 1 do C. T. tendo exorbitado nas sucessivas não comparências no seu local de trabalho e sem justificar as suas ausências. Mais teve a virtualidade, de modo culposo e grave, de tornar imediata e praticamente impossível a subsistência da relação laboral que havia sido estabelecida.”

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A recorrente apresentou requerimento de pronúncia sobre o parecer do Ministério Público, o qual veio a ser desentranhado, por despacho que deferiu a pretensão da própria recorrente após notificação para pagamento da multa devida nos termos do art.º 139.º, n.º 6 do CPC.

O autor/recorrido pronunciou-se sobre o aludido parecer, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.


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Por despacho da relatora, os autos foram, entretanto, devolvidos à 1.ª instancia com vista à tramitação do incidente de caução requerido pela recorrente com vista à atribuição de feito suspensivo ao recurso, e subsequente pronuncia sobre o efeito do recurso, que havia sido omitida.

Aquele despacho foi proferido, tendo sido fixado efeito suspensivo ao recurso e os autos regressaram a este tribunal.


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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.


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Delimitação do objeto do recurso

Resulta do art.º 81.º, n.º 1 do CPT e das disposições conjugadas dos arts. 639.º, nº 1, 635.º e 608.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil, aplicáveis por força do disposto pelo art.º 1.º, n.º 1 e 2, al. a) do CPT, que as conclusões delimitam objetivamente o âmbito do recurso, no sentido de que o tribunal deve pronunciar-se sobre todas as questões suscitadas pelas partes (delimitação positiva) e, com exceção das questões do conhecimento oficioso, apenas sobre essas questões (delimitação negativa).

Assim, são as seguintes as questões a decidir:

- impugnação da matéria e facto;

- licitude da sanção disciplinar de suspensão do trabalho com perda de retribuição;

- licitude do despedimento.


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Fundamentação de facto

Na decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância foram considerados provados os seguintes factos:

«1. A Ré é uma sociedade comercial que se dedica ao fabrico e comercialização de pneus para veículos automóveis.

2. O Autor foi admitido como trabalhador da Ré no dia 01/01/2016, desempenhando, aquando do seu despedimento, as funções de Operador de Apex, no Departamento de Produção – Preparação Quente.

3. O autor faltou ao serviço nos seguintes dias:

- 19/05/2023, das 00:00 às 08:00 horas;

- 04/06/2023 das 14:00 às 23:59 horas;

- 06/06/2023 das 16:00 às 23:59 horas;

- 07/06/2023 das16:00 às 23:59 horas;

- 11/06/2023 das 08:00 às 14:00 horas;

- 12/06/2023 das 00:00 às 08:00 horas;

- 14/06/2023 das 08:00 às 16:00 horas;

- 16/06/2023 das 00:00 às 08:00 horas;

- 17/06/2023 das 19:00 às 23:59 horas;

- 18/06/2023 das 00:00 às 06:00 horas;

- 18/06/2023 das 14:00 às 23:59 horas;

- 19/06/2023 das 16:00 às 23:59 horas;

- 20/06/2023 das 08:00 às 16:00 horas;

- 25/06/2023 das 08:00 às 14:00 horas;

- 26/06/2023 das 00:00 às 08:00 horas;

- 27/06/2023 das 00:00 às 08:00 horas, num total de 122 horas e 54 minutos.

4. Com o objetivo de justificar algumas dessas faltas, o Autor entregou à sua empregadora, aqui Ré, três documentos denominados de “Atestado Médico-Dentário”, constando em cada um deles três diferentes rubricas, sem vinheta de médica e com as seguintes datas e menções:

- um datado de 14/6/2023 e com os seguintes dizeres:


- outro, datado de 22/6/2023 e com os seguintes dizeres:


- e outro, datado de 30/6/2023, com os seguintes dizeres:


5. A chefia do autor não teve conhecimento antecipado de que o autor iam falta nos dias elencados em 3..

6. As faltas do autor implicaram que a sua chefia tivesse de procurar e encontrar outro trabalhador para o substituir, implicando perdas de tempo e sobrecarga de trabalho para outros trabalhadores.

7. O Autor sabia que as faltas ao trabalho, principalmente quando não sejam objeto de aviso prévio, como não o foram, prejudicam a normal laboração da empresa, devendo ser sempre objeto de justificação.

8. Em sede de resposta à nota de culpa, apresentada a 6/9/2023, o autor juntou declaração, assinada e com vinheta do Dr. BB, da qual consta que o autor, ali identificado, “esteve na nossa clínica para tratamentos dentários e cirurgia oral nos dias 04/06/07/11/12/14/16/ 17/18/19/20/25/26 e 27 de junho de 2023”.

9. A 13 de junho de 2023 a ré aplicou ao autor a sanção disciplinar de 2 de suspensão com perda de retribuição e antiguidade, por faltas injustificadas nos dias 22 e 23 de janeiro, 15 de março, 2 e 21 de abril, 16 de maio, 4 e 5 de junho, 23 de agosto e 8 de dezembro, do ano de 2022, num total de 91 horas.

10. Durante todo o mês de junho de 2023 o autor sujeitou-se a tratamento médico dentário de extração de dentes e colocação de próteses dentárias, numa clínica onde trabalha o Dr. BB.

11. A falta registada no dia 19 de maio de 2023 foi justificada pelo autor mediante a apresentação pelo autor de Certificado de Incapacidade para o Trabalho.

12. No dia 9 de junho o autor foi advertido pelos serviços da ré que tinha ausências por justificar nos dias 7, 6 e 4 de junho.

13. Por email de 13/3/2022, CC, superior hierárquico do autor, pediu que as faltas do autor dos dias 22 e 23/1/2022 fossem consideradas como férias. – aletrado, passando a ter a redação que se segue:

13. Por email de 13/03/2022, CC, superior hierárquico do autor, pediu que as faltas deste dos dias 22 e 23/01/2022 fossem consideradas como férias, o que não foi atendido pela ré.

14. No ano de 2023, como contrapartida pelo exercício daquelas funções, a ré pagou ao autor as seguintes remunerações mensais ilíquidas:

- €1.337,57 de salário base;

- €21,00 de prémio de antiguidade;

- €401,27 de subsídio de turno;

- €334,39 de prémio de fim de semana;

- €179,23 de prémio de fim de semana 40 h;

- €7,65 de subsídio de alimentação por cada dia efetivo de trabalho

15. Nos meses de janeiro a setembro de 2023, inclusive, com exceção do mês de junho, a ré pagou ao autor as quantias de €237,98, €313,22, €320,43, €241,35, €171,88, €131,46, €225,31 e €354,54 a título de Prémio de Produtividade.

16. A ré procedeu ao desconto ao autor da quantia de €151,56 no mês de agosto pelos dois dias de suspensão, como sanção disciplinar que lhe aplicou por decisão de 13/6/2023

17. O autor foi alertado da necessidade de colocar os documentos de justificação de faltas no Portal do Trabalhador (procedimento que conhecia e sobre o qual recebeu formação).

18. A ré elaborou e remeteu ao autor nota de culpa, com advertência da cominação do despedimento, datada de 22/8/2023 e rececionada por este a 23/8/2023.

19. A 6/9/2023 o autor remeteu à ré, por correio registado, a sua resposta à nota de culpa.

20. A 9/10/2023 a ré profere decisão final de despedimento, a qual é remetida ao autor e por este rececionada a 11/10/2023.


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E foi considerado não provado o seguinte:

«a) que algumas das faltas do autor tenham ocorrido antes e/ou depois de dias de descanso;

b) que o autor tenha comunicado sempre e previamente ao seu superior hierárquico e aos seus chefes de equipa de turno que teria de faltar nos dias indicados supra em 3. Por motivo de doença;

c) que o autor tenha recorrido ao centro de saúde na manhã do dia 19/5/2023 para tratar de lesão que sofreu no joelho esquerdo enquanto caminhava no fim do dia anterior;

d) que o autor estivesse sempre convencido que as justificações que entregou à ré eram suficientes para a justificação das faltas que deu;

e) que o autor tenha entregue à ré o atestado datado de 30/6/2023, e referente ao dia 25/6/2023 (que constitui o doc. 5 do seu articulado de contestação/reconvenção);

f) que o autor tenha sido sempre um trabalhador brioso, aplicado, produtivo e responsável;

g) que a solicitação do superior hierárquico do autor, referida em 12., não tenha sido atendida pela ré; - eliminado

h) que o Autor tenha ou não faltado, sem que tenha avisado previamente ou que o tenha justificado posteriormente, nos dias 15 de março, 2 e 21 de abril, 16 de maio, 4 e 5 de junho e 23 de agosto de 2022.»


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Apreciação

Seguindo a ordem imposta pela precedência lógica (cfr. art.º 608.º, n.º 1 do Código de Processo Civil), importa começar a apreciação do recurso pelas questões atinentes à matéria de facto, começando por aferir se o recorrente cumpriu os ónus previstos pelo art.º 640.º do CPC ou se a impugnação da decisão da matéria de facto deve ser rejeitada, como pretende o recorrido.

Nos termos do disposto pelo art.º 662.º, n.º 1 CPC «A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.»

A Relação tem efetivamente poderes de reapreciação da decisão da matéria de facto decidida pela 1ª instância, impondo-se-lhe no que respeita à prova sujeita à livre apreciação do julgado, a (re)análise dos meios de prova produzidos em 1ª instância, desde que o recorrente cumpra os ónus definidos pelo art.º 640.º do CPC.

Na verdade, quando estão em causa meios de prova sujeitos à livre apreciação do julgador, decorre da conjugação dos art.º 635.º, nº 4, 639.º, nº 1 e 640.º, nº 1 e 2, todos do CPC, que quem impugna a decisão da matéria de facto deve, nas conclusões do recurso, especificar quais os pontos concretos da decisão em causa que considera errados e, ao menos no corpo das alegações, deve, sob pena de rejeição, identificar com precisão quais os elementos de prova que fundamentam essa pretensão, sendo que, se esses elementos de prova forem pessoais, deverá ser feita a indicação com exatidão das passagens da gravação em que se funda o recurso (reforçando a lei a cominação para a omissão de tal ónus, pois que repete que tal tem de ser feito sob pena de imediata rejeição na parte respetiva) e qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em questão[1].

A modificação da matéria de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova (sujeitos à livre apreciação do tribunal) determine um resultado diverso daquele que for declarado pela 1.ª instância. Porém, como também sublinha António Santos Abrantes Geraldes[2] «(...) a reapreciação da matéria de facto pela Relação no âmbito dos poderes conferidos pelo art. 662.° não pode confundir-se com um novo julgamento, pressupondo que o recorrente fundamente, de forma concludente, as razões por que discorda da decisão recorrida, aponte com precisão os elementos ou meios de prova que impliquem decisão diversa da produzida e indique a resposta alternativa que pretende obter».

Nos termos do n.º 1 do art.º 640.º do CPC, impõe-se, pois, ao recorrente, na impugnação da matéria de facto, a obrigação de especificar, sob pena de rejeição:

“a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”

E nos termos do n.º 2 da mesma disposição legal, no caso da alínea b) deve ser observado o seguinte:

“a) quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.”

Apesar de apenas ter sido fixada jurisprudência a respeito da alínea c) do n.º 1 do art.º 640.º do CPC, o certo é que a fundamentação do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 12/2023 (já identificado em nota de rodapé) contém um conjunto de considerações com importância determinante quanto à interpretação dos ónus a que se referem as demais alíneas, que, pela sua relevância, a seguir se transcrevem (sem menção das notas de rodapé, por desnecessária):

«(...) Da articulação dos vários elementos interpretativos, com cabimento na letra da lei, resulta que em termos de ónus a cumprir pelo recorrente quando pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, sempre terá de ser alegada e levada para as conclusões, a indicação dos concretos pontos facto que considera incorretamente julgados, na definição do objeto do recurso.

(…)

5 - Em síntese, decorre do artigo 640, n.º 1, que sobre o impugnante impende o dever de especificar, obrigatoriamente, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera julgados de modo incorreto, os concretos meios de probatórios constantes do processo, de registo ou de gravação nele realizado, que imponham decisão diversa da recorrida, bem como aludir a decisão que no seu entender deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Tais exigências, traduzidas num ónus tripartido sobre o recorrente, estribam-se nos princípios da cooperação, adequação, ónus de alegação e boa-fé processuais, garantindo a seriedade do recurso, num efetivo segundo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, necessariamente avaliado de modo rigoroso, mas sem deixar de ter em vista a adequada proporcionalidade e razoabilidade, de modo a que não seja sacrificado um direito das partes em função de um rigorismo formal, desconsiderando aspetos substanciais das alegações, numa prevalência da formalidade sobre a substância que se pretende arredada.(...).»

Assim, e como se mostra sintetizado no Acórdão desta Secção Social de 20/05/2024[3], «[d]o que nos afigura também resultar da citada fundamentação, entendemos como adequado, em face do que resulta da lei, o entendimento de que, para cumprir os ónus legais aqui analisados, o recorrente sempre terá de alegar e levar para as conclusões, sob pena de rejeição do recurso, a indicação dos concretos pontos facto que considera incorretamente julgados, como estabelecido na alínea a) do n.º 1 do preceito citado, enquanto definição do objeto do recurso, sendo que, noutros termos, já quando ao cumprimento do disposto nas alíneas b) e c) do mesmo número, desde que vertido no corpo das alegações, a respetiva não inclusão nas conclusões não determina tal rejeição do recurso».

Neste mesmo sentido, se pronuncia António Santos Abrantes Geraldes[4], quando elenca as situações de rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto.

Assim, nos termos da al. a) do n.º 1 do art.º 640.º do CPC, é imprescindível ao recebimento e apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto, a indicação nas alegações e respetivas conclusões dos concretos pontos impugnados.

Quanto ao ónus previsto na alínea b) do n.º 1 do art.º 640.° do CPC, e como se afirma no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05-09-2018[5], essa alínea, «ao exigir que o recorrente especifique os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo de gravação nele realizada, que impunham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, exige que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens da gravação de cada um dos depoimentos», sendo que «não cumpre aquele ónus o apelante que, nas alegações e nas conclusões, divide a matéria de facto em três "blocos distintos de factos" e indica os meios de prova relativamente a cada um desses blocos, mas omitindo-os relativamente a cada um dos concretos factos cuja decisão impugna».

No recente Acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 28/06/2024[6], assinala-se o seguinte:

«Decorre do exposto que a parte recorrente deverá também (a par da indicação dos concretos pontos de facto e concretos meios probatórios), relacionar ou conectar cada facto, individualizadamente, com o concreto meio de prova que, em seu entender, sustentaria diferente decisão, designadamente, caso a discordância se fundamente em depoimentos que hajam sido gravados, identificando as testemunhas por referência a cada um dos factos que impugna.

Em conformidade, diz-se no acórdão desta Secção Social do TRP de 23/11/2020[7], que na indicação dos meios probatórios [sejam eles documentais ou pessoais] que sustentariam diferente decisão [art.º 640°, n° 1, al. b) do Código de Processo Civil], deverão eles ser identificados e indicados por referência aos concretos pontos da factualidade impugnada de modo a que se entenda a que concretos pontos dessa factualidade se reportam os meios probatórios com base nos quais a impugnação é sustentada, mormente nos casos em que se pretende a alteração de diversa matéria de facto.

Na verdade, só assim será possível ao tribunal ad quem perceber e saber quais são os concretos meios de prova que, segundo o recorrente, levariam a que determinado facto devesse ter resposta diferente da que foi dada. (…)

Quer isto dizer que não obedece ao estipulado pelo legislador indicar depoimentos (mesmo que transcrevendo/indicando excertos deles) e apenas dizer que com base neles a decisão sobre certos pontos de facto devia ser diferente, impondo-se que em relação a cada ponto (ou grupo de pontos que a parte recorrente mostre que têm apoio nos mesmos concretos meios de prova, ou estejam relacionados entre si) seja feita a conexão com o meio de prova que suporta a decisão diferente da tomada pelo tribunal a quo.

É que, de outra forma cairíamos na realização de um segundo julgamento (ainda que parcial), isto é, traduzir-se-ia em pedir simplesmente ao tribunal ad quem que faça uma reapreciação dos meios de prova, o que não corresponde claramente ao consagrado pelo legislador.».

Quanto ao cumprimento do ónus previstos pelo art.º 640.º, n.º 1, al. c) do CPC, importa ter presente o Acórdão do STJ n.º 12/2023, supra identificado, que uniformizou a jurisprudência nos seguintes moldes:

«Nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 640.° do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações.».

No mesmo sentido, se pronunciaram ainda, ente outros, os Acórdãos desta Secção Social 29-01-2024[8], e de 10-07-2024[9].

Importa também referir que, no que toca ao recurso da decisão da matéria de facto, como vem sendo entendimento do STJ[10], que se perfilha, não é possível despacho de aperfeiçoamento .

Vejamos a situação dos autos.

A recorrente impugna a decisão relativa às alíneas a), h) e g) dos factos não provados, pretendendo que a matéria constante da primeira seja considerada provada, que parte da matéria constante da segunda seja considerada provada, mantendo-se como não provado apenas o restante e que a terceira seja considerada provada.

O teor das alíneas em causa é o seguinte:

“a) que algumas das faltas do autor tenham ocorrido antes e/ou depois de dias de descanso;

g) que a solicitação do superior hierárquico do autor, referida em 13. (na decisão refere-se o ponto 12, tratando-se de lapso manifesto, como bem assinala a recorrente), não tenha sido atendida pela ré.

h) que o Autor tenha ou não faltado, sem que tenha avisado previamente ou que o tenha justificado posteriormente, nos dias 15 de março, 2 e 21 de abril, 16 de maio, 4 e 5 de junho e 23 de agosto de 2022.”

Nas conclusões K) a O) do recurso, mostra-se feita a indicação daqueles concretos pontos de facto impugnados, pelo que foi cumprido o disposto pelo art.º 640.º, n.º 1, al. a) do CPC.

Está também cumprido o disposto pelo art.º 640.º, n.º 1, al. c) do mesmo Código, tendo a recorrente no corpo das alegações indicado a decisão que, em seu entender deveria ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

Assim, a impugnação deverá ser conhecida se e na medida em que se mostre cumprido o disposto pelo art.º 640.º, n.º 1, al. b) do CPC, ou seja, se a recorrente tiver indicado quais os concretos meios probatórios que impõem decisão diversa da proferida relativamente a cada ponto concreto impugnado ou relativamente a um conjunto de pontos impugnados relacionados entre si.

Ora, se quanto à impugnação das alíneas h) e g) dos factos não provados tal indicação se mostra efetuada, já quanto à alínea a) a recorrente não cumpre o referido ónus, limitando-se à conclusão de que a matéria ali constante deve ser dada como provada, mediante afirmação de que as faltas nos dias 15 de março, 2 e 21 de abril, 16 de maio e 23 de agosto ocorreram imediatamente antes e/ou depois de dias de descanso, sem que se mostre feita qualquer conexão com meios de prova que suportem a decisão pretendida, como é exigível na interpretação do citado art.º 640.º, n.º 1, al. b), cuja conformidade constitucional foi afirmada pelo Tribunal Constitucional no recente acórdão n.º 148/2025, de 18/02/2025, proferido no processo n.º 245/2024[11].

Rejeita-se, pois, a impugnação no que respeita à alínea a) dos factos não provados, nos termos do n.º 1 do art.º 640.º do CPC.

No que respeita à impugnação da alínea h) dos facos não provados a recorrente invoca o depoimento da testemunha DD, os documentos 16 a 23 juntos com a contestação apresentada pelo recorrido e os registos por este juntos no processo disciplinar, bem como as posições das partes assumidas nos articulados, pretendendo que, em alternativa à decisão do tribunal seja considerado provado que: “O Autor faltou, sem que tenha avisado previamente ou que o tenha justificado posteriormente, nos dias 22 e 23 de janeiro, 15 de março, 2 e 21 de abril, 16 de maio e 23 de agosto” mantendo-se, o mais, como não provado.

A Mm.ª Juiz “a quo” fez constar o seguinte da motivação da decisão relativa à alínea h) não provada:

“Em relação às faltas do autor, referidas em h), a verdade é que a única prova apresentada foi pelo autor e constituíram nuns registos de picagem, que nem sempre se revelaram fidedignos (pois é certo que os registos dos meses de junho e julho são iguais) e seriam, de qualquer modo insuficientes, por si só, para que se pudesse concluir ou não por uma efetiva falta (conforme expressamente afirmou a testemunha DD).”

E resulta ainda da motivação que a testemunha “DD, trabalhador da ré desde 2017, a exercer funções do Departamento de Processamento de Salários (departamento este que também faz o controlo de faltas) (…) afirmou ainda a testemunha que apenas com os registos de picagem apresentados pelo autor não se pode apurar uma falta efetiva.”

Ouvido o depoimento da testemunha a este respeito, importa realçar que, pela mesma foi esclarecido que ainda que do mapa de picagem, cujas cópias foram juntas aos autos, conste a indicação dos dias de descanso, a mera falta de registo de picagem num determinado dia não permite aferir se o trabalhador faltou ou não, sendo necessário o confronto daquele registo (“página de picagem”), como o constante da “página das escalas”, sendo as faltas identificadas automática e informaticamente na “página de ausências”. Por esse motivo, apesar de ter analisado os registos de picagem juntos aos autos pelo autor (apenas os de picagem), na falta das escalas, a testemunha referiu, sem margem para qualquer dúvida, não poder afirmar quais os dias em que o autor faltou.

Daí que, independentemente da fidedignidade (ou falta dela) dos ditos registos, como concluiu acertadamente a Mm.ª Juiz “a quo”, sempre tais registos seriam insuficientes para prova dos concretos dias em que o recorrido faltou.

E a insuficiência dos registos de picagens resultou ainda do depoimento da testemunha CC, supervisor, segundo o qual, por vezes é necessário pedir a reposição das picagens, porque os trabalhadores ou o próprio sistema não as fazem corretamente, como terá acontecido no caso do recorrido, nos dias 13 e 14 de janeiro de 2022, identificados no mail de fls. 65, cuja autoria confirmou, como “falta de picagem”, que não se confunde com falta ao trabalho. O mesmo foi confirmado pela testemunha EE, Chefe de Departamento da Área de Gestão dos Recursos Humanos.

Acresce que das posições das partes assumidas nos articulados, designadamente do alegado pelo recorrido na contestação, nunca se poderia concluir ter o mesmo faltado no dias de 2022 em que a recorrente lhe imputou as faltas, pois, é evidente que aquele não aceita ter faltado ao trabalho em tais dias.

Inexiste, pois, fundamento para a alteração da decisão relativa à alínea h) dos factos não provados, pretendida pela recorrente, improcedendo a impugnação.

Da alínea g) dos factos não provados consta o seguinte:

“que a solicitação do superior hierárquico do autor, referida em 13. (já acima esclarecemos existir lapso na referência a 12.), não tenha sido atendida pela ré.”

A recorrente pretende que tal matéria deve ser considerada provada, por ser um facto notório, já que, se considerou as faltas injustificadas é porque não atendeu ao pedido, resultando ainda dos depoimentos das testemunhas CC e EE.

Da motivação da sentença recorrida consta o seguinte:

“Os demais factos não resultaram provados por deles não ter sido feita qualquer prova.

Na verdade, de todos os factos elencados sob as alíneas a) a f) não foi apresentada qualquer prova testemunhal ou documental (…).”

Do depoimento da testemunha CC nada de útil se colhe quanto à questão em análise, já que o mesmo tendo enviado o pedido a que se reporta o ponto 13 dos facto provados, não referiu qual foi a decisão da ré, nem podia fazê-lo, porque se trata de matéria na qual não intervém.

A passagem do depoimento da testemunha EE, Chefe de Departamento da Área de Gestão dos Recursos Humanos e trabalhador da recorrente há 11 anos, que a recorrente invoca, não tem qualquer relevo para o efeito pretendido, pois, ainda que a recorrente não o diga, reporta-se apenas à apresentação de justificação das faltas, que a testemunha referiu dever ser feita no prazo de 20 dias, sendo, por vezes aceites justificações apresentadas posteriormente no caso de trabalhadores com faltas injustificadas esporádicas e dependendo do motivo invocado, nada tendo, sido referido, nesse âmbito, quanto à substituição de faltas por dias de férias.

O depoimento desta testemunha, prestado, de resto, com objetividade e de forma circunstanciada e credível, permitiu, contudo, mais adiante, perceber qual o procedimento da recorrente no caso dos pedidos de substituição de faltas por férias, tendo a mesma afirmado que as chefias, passado o prazo para a justificação das faltas, podem pedir tal substituição, não sendo o pedido suficiente para que a pretensão seja considerada. É feita uma análise na situação do trabalhador, em concreto, e o pedido “pode não ser tido em conta”, sendo as faltas consideradas injustificadas.

Diz a recorrente que, tendo as faltas em causa (dias 22 e23 de janeiro de 2022), sido consideradas injustificadas e englobadas no primeiro processo disciplinar é facto notório que o pedido de substituição por dias de férias não foi atendido.

Não está em causa um facto notório no sentido que lhe atribui o art.º 412.º, n.º 1 do CPC, mas que a ré não atendeu ao pedido de substituição é a conclusão inevitável face à instauração do processo disciplinar com fundamento também nessas faltas. Veja-se que, do depoimento da testemunha EE, o que resulta é que face a um pedido da natureza do aqui em causa a exteriorização da decisão da ré, se reconduz a atender o pedido ou a manter a falta como injustificada, não existindo uma decisão autónoma de deferimento ou indeferimento do pedido.

Por isso, afigura-se-nos ser de deferir a impugnação deduzida pela recorrente, considerando-se provada a matéria que constava como não provada da alínea g).

Não se ignora que a matéria em causa pode ser considerada conclusiva mas, na situação em apreço, a mesma contem ainda assim substrato factual bastante, cujo sentido não suscita dificuldades significativas de apreensão a um destinatário normal[12].

Em consequência, elimina-se a alínea g) dos factos não provados, alterando-se a redação do ponto 13. dos factos provados que passará a ser a seguinte:

“13. Por email de 13/03/2022, CC, superior hierárquico do autor, pediu que as faltas deste dos dias 22 e 23/01/2022 fossem consideradas como férias, o que não foi atendido pela ré.”

A recorrente pretende também que sejam aditados à matéria de facto provada os seguintes factos, que, no seu entender resultam do depoimento da testemunhas CC, na parte que identificou e transcreveu;

- “O Autor, pelas funções que desempenhava na empresa, que se lhe impunham uma formação muito especifica, que poucos trabalhadores tinham, era muito difícil de substituir no imediato”;

- “Quando o Autor faltava sem avisar, a sua chefia tinha de contactar telefonicamente outros colegas, muitas vezes que estivessem em gozo de folga ou fim-de-semana, para o substituir”;

- “Com vista a colmatar as ausências não previamente informadas do Autor, a sua chefia viu-se obrigada a dar formação a outro trabalhador, para que pudesse substituir o Autor, quando este faltasse sem avisar”.

Analisados o articulado de motivação do despedimento e a resposta à contestação/reconvenção, verifica-se que aqueles factos não foram concretamente alegados, podendo ser considerados complementares ou concretizadores do alegado no ponto 15. e reiterado no ponto 26. do articulado motivador e que consta do ponto 6. dos factos dados como provados (6. As faltas do autor implicaram que a sua chefia tivesse de procurar e encontrar outro trabalhador para o substituir, implicando perdas de tempo e sobrecarga de trabalho para outros trabalhadores).

Na verdade, os factos essenciais são os que permitem individualizar a situação jurídica alegada na ação ou na exceção, enquanto os factos complementares são os que, sendo ainda, indispensáveis à procedência dessa ação ou exceção, não integram o núcleo essencial da situação jurídica alegada pela parte.

Tratando-se de factos complementares e/ou concretizadores, ainda que não alegados, a sua consideração encontra enquadramento no art.º 5.º, n.º 2, al. b) do CPC, aplicável por remissão expressa do art.º 72.º, n.º 1 do CPT, pressupondo, contudo, que as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar.

Como se observa no Ac. do STJ 07/12/2023[13]:

“O disposto no artigo 5.º, n.º 2, b), do Código de Processo Civil de 2013, corresponde essencialmente ao que constava do n.º 3, do artigo 264.º, do Código de Processo Civil de 1961, o qual havia sido introduzido pelo Decreto-lei n.º 180/96, de 25 de setembro, tendo a redação do código atual deixado de exigir a manifestação da parte interessada, para que integrem a factualidade relevante, os factos complementares ou concretizadores dos factos já alegados que apenas resultem da instrução da causa, podendo, por isso, a sua inclusão na factualidade integrante do objeto do processo ser da iniciativa do tribunal.

De modo a garantir o imprescindível exercício do contraditório, continua, no entanto, a exigir-se que ambas as partes tenham tido a possibilidade de se pronunciar sobre os factos aditados, o que inclui a possibilidade de produzir prova e contraprova sobre eles. Essa possibilidade só pode ser proporcionada se o tribunal, antes de proferir a sentença, sinalizar às partes os factos que, apesar de não terem sido por elas alegados, se evidenciaram na instrução da causa e sejam relevantes para a decisão da mesma, permitindo que estas se pronunciem sobre eles, concedendo-lhes prazo para indicarem os meios de prova que pretendam produzir, relativamente aos factos aditados ao objeto do litígio.

Como bem se explicou no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.02.2017: “Admitir-se que o juiz possa, sem mais (isto é, apenas com a exigência de audiência contraditória na produção do meio de prova), considerar o facto novo, essencial (complementar ou concretizador), corresponderia a exigir ao mandatário da parte interessada um grau de atenção e diligência incomum, dirigida não só à produção e valoração da prova que fosse sendo realizada, mas também, antecipando o juízo valorativo do tribunal, à possibilidade de vir a ser retirado desse meio de prova e considerado provado um novo facto nele mencionado.

Crê-se que a disciplina prevista no art.º 5º, nº 2, al. b), do CPC exige que o tribunal se pronuncie expressamente sobre a possibilidade de ampliar a matéria de facto com os factos referidos, disso dando conhecimento às partes antes do encerramento da discussão. Só depois poderá considerar esses factos (mesmo que sem requerimento das partes nesse sentido).

Só assim é conferida à parte "a possibilidade de se pronunciar" sobre o facto que o tribunal se propõe aditar. E só assim se assegurará um processo equitativo (art.º 547º do CPC), facultando-se às partes o exercício pleno do contraditório, requerendo – como é admitido por qualquer das teses –, se for caso disso, novos meios de prova em relação aos factos novos, quer para reafirmar a realidade desses factos, no sentido da sua prova, quer para opor contraprova a respeito dos mesmos, infirmando a realidade que aparentam”.

Prosseguindo, no douto aresto, refere-se: “[a] sua invocação nas alegações do recurso de apelação, com a consequente possibilidade da parte contrária, na resposta, se pronunciar sobre a pretensão de aditamento de facto não alegado mas que sobressaiu na instrução da causa, não é suficiente para que encontre garantido o contraditório exigido na parte final da alínea b), do n.º 2, do artigo 5.º, do Código de Processo Civil, não sendo, pois, permitido ao tribunal da Relação, nos casos em que o contraditório não foi assegurado na 1.ª instância, valorar a prova aí produzida, e decidir que o mesmo se encontra provado, aditando-o à lista dos factos provados.

Nessas situações[…], deve a Relação, caso entenda que o facto é complementar dos factos já alegados, se evidenciou na instrução da causa e é relevante para o seu desfecho, utilizar o poder que lhe é conferido pelo artigo 662.º, n.º 1, c), do Código de Processo Civil, para ampliação da matéria de facto”.

Revertendo estas considerações para o caso dos autos, afigura-se-nos, contudo, que a matéria em causa, ainda que assuma a natureza complementar ou concretizadora, não pode ser atendida, não se justificando, pois, a anulação da sentença com aquela finalidade.

Na verdade, está em causa uma ação de impugnação judicial da licitude do despedimento na qual, nos termos do disposto pelo art.º 387.º, n.º 3 do CT o empregador apenas pode invocar factos constantes da decisão de despedimento. Os factos que a recorrente agora pretende ver aditados não foram oportunamente invocados na decisão de despedimento, pelo que, não podem ser atendidos.

Mesmo que assim não se entendesse, os factos em causa não são indispensáveis à decisão. Os mesmos respeitam, às consequências para a empregadora das ausências do recorrido ao trabalho no ano de 2023. Estas ausências, tendo sido consideradas injustificadas foram invocadas pela empregadora/recorrente como justa causa para o despedimento.

No recurso não se discute se as faltas são ou não injustificadas, tendo, a sentença transitado em julgado nessa parte. Correspondendo as mesmas a 10 ou mais faltas (no caso a 14 dias de faltas), como melhor explicaremos adiante, a lei (art.º 351.º, n.º 2, al. g) do CT), na apreciação da gravidade das consequências dos factos constitutivos da justa causa, dispensa a existência de quaisquer prejuízos reais ou potenciais.

Desta forma, não podendo os factos que a recorrente pretende ver aditados, ser atendidos e, de todo o modo, não sendo tais factos indispensáveis à decisão, entendemos que nunca poderia haver lugar à ampliação da matéria de facto, ao abrigo do disposto no art.º 662.º, n.º 1, al. c) do CPC.

Improcede, pois, esta pretensão da recorrente.

A impugnação da decisão da matéria de facto procede, assim, apenas parcialmente.


*

Fixada a matéria de facto, importa começar por decidir se a sanção disciplinar de suspensão do trabalho com perda de retribuição aplicada ao recorrido foi lícita, ao contrário do decidido em 1.ª instância.

Na sentença recorrida a questão foi apreciada nos seguintes termos:

«Conforme resulta dos factos provados, a 13 de junho de 2023 a ré aplicou ao autor a sanção disciplinar de 2 de suspensão com perda de retribuição e antiguidade, por faltas injustificadas nos dias 22 e 23 de janeiro, 15 de março, 2 e 21 de abril, 16 de maio, 4 e 5 de junho, 23 de agosto e 8 de dezembro, do ano de 2022, num total de 91 horas.

Do contrato de trabalho resultam para as partes determinados deveres específicos, sendo que para o trabalhador esses deveres estão elencados nas diversas alíneas do n.º 1 do art. 128º, sendo que a al. b) deste preceito prevê expressamente o dever de assiduidade e pontualidade do trabalhador.

As sanções disciplinares que o empregador tem à sua disposição são as previstas no art. 328.º do Código do Trabalho: repreensão, repreensão registada, sanção pecuniária, perda de dias de férias, suspensão do trabalho com perda de retribuição e de antiguidade e despedimento sem qualquer indemnização ou compensação. Estabelece o art. 330º do Código do Trabalho que a sanção deve ser proporcional à gravidade da infração e à culpabilidade do infrator.

A sanção disciplinar tem um objetivo “conservatório e intimidativo, isto é, o de se manter o comportamento do trabalhador no sentido adequado ao interesse da empresa. Visa em primeira linha a prevenção especial e geral. (…) É (…) uma reacção que visa, em primeira linha, a pessoa do trabalhador (…) de modo a reprimir a sua conduta inadequada, a levá-lo a proceder de harmonia com as regras de disciplina, reintegrando-o assim no padrão de conduta visado.” (Monteiro Fernandes, (Direito do Trabalho, 14.ª edição, Almedina, pg. 274)

Considerando que o exercício do poder disciplinar é uma prerrogativa da entidade patronal, é sem duvida sobre esta que impende o ónus da prova dos factos que o determinaram (conforme estipula o art. 342º, n.º 1, do Código Civil).»

Com este enquadramento, com o qual se concorda na íntegra, dispensando novas considerações, a Mm.ª Juiz “a quo” concluiu pela ilicitude da sanção aplicada, por entender que a ré não logrou provar as faltas que tinha imputado ao recorrido, não tendo sequer demonstrado que não considerou a afetação a férias das faltas dos dias 22 e 23 de janeiro de 2022.

Concorda-se que a recorrente não cumpriu o ónus que sobre a mesma impendia de demonstrar que o recorrido, nos dias 15 de março, 2 e 21 de abril, 16 de maio, 4 e 5 de junho e agosto de 2023, faltou sem que tenha avisado previamente ou justificado posteriormente, motivo pelo qual não se pode concluir que o recorrido violou o dever de assiduidade, ficando, nesta parte por demonstrar o fundamento invocado para a aplicação da sanção disciplinar.

Já no que respeita aos dias 22 e 23 de janeiro de 2022, importa extrair as consequências da alteração introduzida no ponto 13. dos factos provados.

Com efeito, o que se apurou relativamente a tais dias é que, tendo o recorrido faltado, o seu superior hierárquico, em 13/03/2022 (quase dois meses depois da ausência do trabalhador), pediu que tais faltas fossem consideradas como férias, não tendo a ré atendido a tal pedido.

Da matéria de facto não resulta que tais faltas tenham sido justificadas por qualquer forma ou que o recorrido tenha previamente avisado a empregadora de que iria faltar nesses dias, o que, de resto, nem foi por aquele alegado, como, enquanto factos impeditivos do direito da recorrente, lhe competia face à alegação e imputação da recorrente (cfr. art.º 342.º, n.º 2 do Código Civil), pelo que, tais faltas não podem deixar de ser consideradas como injustificadas face ao disposto pelo art.º 253.º, n.º 1, 2 e 5 do Código do Trabalho (CT), constituindo violação do dever de assiduidade como expressamente previsto pelo art.º 256.º, n.º 1 do mesmo Código.

Acresce que o facto de ter sido solicitado que essas faltas fossem substituídas por dias de férias não afasta a culpa do recorrido. Na verdade, quem fez tal solicitação foi o superior hierárquico não o recorrido, nem sequer resultando da matéria de facto que tenha sido feito a pedido ou com o conhecimento do mesmo. Por outro lado, importa referir que não existe qualquer obrigatoriedade legal ou convencionada de a recorrente aceitar essa possibilidade, que não se confunde sequer com a situação prevista pelo art.º 257.º do CT., pelo que, mesmo que se desconheça a existência de uma concreta decisão de indeferimento, tendo-se a recorrente limitado a não atender o pedido, e atentando-se a que este apenas foi efetuado 49 dias depois das faltas consumadas, não pode esta atuação da recorrente ser considerada contrária ao dever geral de boa-fé a que o empregador (assim como o trabalhador) está vinculado no exercício dos seus direitos e no cumprimento das obrigações contratuais (cfr. art.º 126.º, n.º 1 do CT).

Nessa medida, o recorrido praticou infração disciplinar.

Nem por isso, se pode concluir pela licitude da sanção aplicada.

Na verdade, o art.º 330º do CT estabelece que a sanção deve ser proporcional à gravidade da infração e à culpabilidade do infrator.

Como afirma Maria do Rosário da Palma Ramalho[14] «O princípio da proporcionalidade entre a infração e a sanção disciplinar é consagrado no artigo 330.º, n.º 1 do Código do Trabalho. Este princípio impõe ao empregador que proceda a um juízo de adequação entre a infração cometida e sanção a aplicar, com base na gravidade da infração e no grau de culpa do trabalhador.

Em desenvolvimento deste princípio no âmbito do despedimento, o art.º 351.º, n.º 3 determina que a apreciação da infração disciplinar tenha em conta, no âmbito da empresa, o grau de lesão dos interesses do empregador, as suas relações com o trabalhador, e entre este e os colegas, e as demais circunstâncias relevantes no caso. Embora esta norma reporte especificamente à apreciação da infração disciplinar que consubstancia justa causa para despedimento, ela fornece critérios gerais para a aferição da gravidade do facto e da culpabilidade do trabalhador em qualquer infração disciplinar.»

A sanção aplicada foi de 2 dias de suspensão com perda de retribuição e antiguidade, tendo por fundamento faltas injustificadas em 10 dias, num total de 91 horas de trabalho. Destas, apenas subsistem enquanto infrações disciplinares faltas injustificadas em dois dias (22 e 23 de janeiro de 2022), ignorando-se quantas horas faltou o recorrido em cada um daquele dias.

Por outro lado, da matéria de facto provada não resulta que a ausência do trabalhador nesses dias tenha gerado qualquer consequência ou prejuízo para a recorrente (o que ficou provado no ponto 6 – “As faltas do autor implicaram que a sua chefia tivesse de procurar e encontrar outro trabalhador para o substituir, implicando perdas de tempo e sobrecarga de trabalho para outros trabalhadores” - reporta-se às faltas do ano de 2023).

Nesta medida, não se pode concluir estarmos perante uma situação com gravidade bastante para justificar a aplicação da sanção pela qual a recorrente optou, e cujas razões não subsistem.

Assim, ainda que por razões parcialmente diferentes, conclui-se, como na sentença recorrida, pela ilicitude da sanção disciplinar de dois dias de suspensão com perda de retribuição e antiguidade, aplicada pela ré ao autor por decisão de 13/06/2023, improcedendo o recurso nesta parte.


*

A terceira questão a apreciar é a atinente à (i)licitude do despedimento.

Na situação em apreço, a licitude ou ilicitude do despedimento do autor está dependente da existência ou inexistência de justa causa (art.º 381º, al. b) do CT aprovado pela Lei 7/2009 de 12/02), incumbindo à recorrente, entidade empregadora, a prova dos factos que motivaram o despedimento constantes da decisão disciplinar.

Na verdade, constituindo os factos invocados como justa causa de despedimento, factos impeditivos do efeito jurídico pretendido pelo trabalhador, é à entidade empregadora que incumbe a sua prova em consonância com o disposto pelo art.º 342.º, n.º 2 do Código Civil, tal como resulta também, da configuração da ação de impugnação do despedimento a qual se inicia pela apresentação pelo trabalhador do simples formulário inicial a que aludem o art.º 98.º-C do CPT e o art.º 387.º do CT, competindo ao empregador a apresentação do articulado inicial no qual motivará o despedimento.

Nos termos do art.º 351.º, n.º 1 do CT constitui justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.

Trata-se de um conceito normativo, como tal carecido de preenchimento valorativo caso a caso, devendo o tribunal, atender no quadro da gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses da entidade empregadora, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes (art.º 351.º, n.º 3 do CT).

São três os elementos da justa causa a preencher em cada caso: a) comportamento culposo do trabalhador; b) comportamento grave por si e pelas suas consequências; c) nexo de causalidade entre o comportamento e a impossibilidade de subsistência da relação laboral, de onde se extrai que o despedimento só é admissível em casos culposos e particularmente graves, o que deve ser aferido em concreto segundo critérios objetivos e de razoabilidade de acordo com o entendimento de um bom pai de família ou de qualquer pessoa de são e mediano critério.

Assim, na apreciação da justa causa deverá ser analisado o comportamento do trabalhador no quadro de gestão da empresa, tendo em atenção as consequências resultantes da(s) infração(ões) cometida(s), a natureza das funções exercidas, a antiguidade do trabalhador na empresa, os seus antecedentes disciplinares e tudo o mais que no caso se mostre relevante para aferir da impossibilidade prática da manutenção do vínculo, ou seja, para aferir se no confronto entre a premência da desvinculação do empregador e a premência da conservação do vínculo laboral pelo trabalhador, se considera preponderante o interesse do empregador por a continuidade da relação laboral representar uma insuportável e injusta imposição.

Tal impossibilidade prática de manutenção do vínculo laboral existirá, pois, como se lê no Ac. RP de 18/09/2006[15] “quando se consubstancie uma situação de quebra absoluta ou abalo profundo na relação de confiança entre o trabalhador e o empregador, tornando inexigível ao contraente interessado na desvinculação o respeito pelas garantias da estabilidade do vínculo, o que sucederá sempre que a rutura da relação laboral seja irremediável, na medida em que nenhuma outra sanção seja suscetível de sanar a crise contratual aberta por aquele comportamento culposo”. Ainda neste mesmo sentido vejam-se, entre outros, o Ac. STJ de 10/10/2007[16].

Como diz Pedro Furtado Martins[17] tal impossibilidade há-de ser entendida não em sentido material, mas em sentido jurídico, pelo que somos levados para o campo da inexigibilidade, a determinar através do balanço, em conflito, dos interesses em presença - o da urgência da desvinculação e o da conservação do contrato de trabalho – e envolve um juízo de prognose sobre a viabilidade da relação laboral, a realizar segundo um padrão essencialmente psicológico - o das condições mínimas de suporte de uma vinculação duradoura, que implica frequentes e intensos contactos entre os sujeitos.

Assim, existirá impossibilidade prática de subsistência da relação laboral sempre que, nas circunstâncias concretas, a permanência do contrato e das relações pessoais e patrimoniais, que ele importa, sejam de forma a ferir, de modo exagerado e violento, a sensibilidade e a liberdade psicológica de uma pessoa normal, colocada na posição do empregador, ou seja, sempre que a continuidade do vínculo represente uma insuportável e injusta imposição ao empregador[18], o que entronca com a obrigação de proporcionalidade entre a gravidade da infração e a culpa do trabalhador, por um lado, e a sanção disciplinar por outro (art.º 330.º, n.º 1 e art.º 351.º, n.º 1, ambos do CT).

Como se pode ler no Ac. STJ de 08/07/2020[19] «É, assim, obrigação de qualquer entidade empregadora, perante uma infração disciplinar cometida pelo trabalhador, usar da proporcionalidade à gravidade da infração e à culpabilidade do infrator, conforme disposto pelo art.º 330.º, n.º 1 do Código do Trabalho, e, nessa conformidade, aplicar a sanção mais adequada e proporcional à gravidade da infração, ficando a sanção do despedimento reservada para os casos de maior gravidade, que comprometam em definitivo a manutenção da relação laboral. O que acontece, desde logo, devido à própria proteção constitucional do trabalho, - art.º 53.º da Constituição da República Portuguesa - que proíbe os despedimentos sem justa causa.»

A recorrente imputou ao recorrido a violação do dever de assiduidade, sendo que o fundamento para o despedimento traduz-se na imputação de faltas injustificadas nos dias 19 de maio; 4, 6, 7, 11, 12, 14, 16, 17, 18, 19, 20, 25, 26 e 27 de junho de 2023.

Destas, foi considerada como justificada pelo tribunal “a quo” a do dia 19 de maio (o que a recorrente não põem em causa no recurso) e injustificadas as restantes (14 dias), decisão que não tendo sido impugnada pelo recorrido, único com legitimidade para o efeito, já transitou em julgado.

Nos termos do art.º 351.º, n.º 2, al. g) do CT, constituem justa causa de despedimento faltas não justificadas ao trabalho que determinem diretamente prejuízos ou riscos graves para a empresa, ou cujo número atinja, em cada ano civil, cinco seguidas ou 10 interpoladas, independentemente de prejuízo ou risco.

Mas, não é suficiente a verificação das faltas injustificadas em quantidade superior a 10 dias interpolados para se concluir pela existência de justa causa. Na verdade, nenhuma das situações exemplificativamente previstas pelo n.º 2 do citado art.º 351.º do CT, vale por si só, carecendo de ser conjugado com cláusula geral a que se refere o n.º 1 da mesma disposição legal, de tal modo que as faltas injustificadas iguais ou superiores a 10 dias interpolados no mesmo ano civil, só constituirão justa causa de despedimento, quando de tal atuação do trabalhador, pela sua gravidade e consequências, resulte a impossibilidade prática e imediata da subsistência da relação laboral.

A culpa tem de assumir uma tal gravidade objetiva, em si e nos seus efeitos, que, minando irremediavelmente a confiança que deve existir entre as partes no cumprimento do contrato, torne inexigível ao empregador a manutenção da relação laboral, o que se verificará sempre que a atuação do trabalhador destrua, de forma irreversível, a confiança na idoneidade futura da sua conduta.

Estando em causa 10 ou mais faltas injustificadas interpoladas no mesmo ano civil, a lei dispensa, na apreciação da gravidade das consequências dos factos, a prova de quaisquer prejuízos reais ou potenciais, podendo, pois, afirmar-se que os presume.

Como resulta do supra exposto, no ano de 2023 o autor faltou injustificadamente 14 dias interpolados, num total de 114 horas e 54 minutos.

Tais faltas constituirão justa causa para o despedimento do trabalhador, ao contrário do decidido em 1.ª instância?

A discordância da recorrente é relativa à apreciação feita na sentença, na qual a Mm.ª Juiz “a quo” afirmando que o comportamento do recorrido preenche objetivamente a previsão da segunda parte da al. g) do n.º 2 do art.º 351º do Código do Trabalho, concluiu que “os factos que descrevem o acontecimento não permitem concluir pela inviabilidade, pela inexigibilidade de manutenção da relação laboral” e que “no presente caso, a sanção de despedimento é excessiva, na medida em que o comportamento do trabalhador não é enquadrável nos nºs 1 e 3 do artigo 351º do Código do Trabalho, tendo em conta que a sanção deve ser proporcional à gravidade da infracção e à culpabilidade do infractor, conforme dispõe o nº 1 do artigo 330º do mesmo Código, não sendo os factos, apesar de revestirem gravidade, susceptíveis de criarem uma situação geradora de uma absoluta necessidade de fazer fraturar a relação laboral.”

Tem razão a recorrente.

Com efeito, no mês de Junho de 2023, tendo o recorrido faltado injustificadamente 14 dias, foram mais os dias em que faltou do que aqueles em que trabalhou.

O recorrido sabia que as faltas, principalmente quando não sejam objeto de aviso prévio, como o não foram no caso, prejudicam a normal laboração da empresa, devendo ser objeto de justificação e ficou provado que aquele foi alertado da necessidade de colocar os documentos de justificação de faltas no Portal do Trabalhador, procedimento que conhecia e sobre o qual recebeu formação e ainda que, no dia 9 de junho, foi advertido pelos serviços da recorrente que tinha ausências para justificar dos dias 4, 6 e 7 de junho.

Apesar disso, não tendo dado prévio conhecimento das faltas, não cumpriu aquele procedimento, nem mesmo depois de advertido.

É certo que no dia 14/06/2023 e no dia 22/06/2023 o recorrido entregou à recorrente documentos denominados “Atestado Médico-Dentário”. Mas tais documentos não tinham aposta qualquer vinheta médica, continham três rubricas diferentes e, o primeiro, apesar de referir o impedimento de comparecer por um período de 48 horas, não continha a data de início do impedimento, o que o recorrido não podia desconhecer (o documento entregue em 30/06/2023 é inócuo, pois não foi imputada ao autor qualquer falta no dia 30/06/2023).

De todo o modo, os referidos documentos nem sequer abrangem todos os dias em que o recorrido faltou. O primeiro refere-se a um período de 48h de impedimento cujo início e fim, em concreto, se desconhece, mas que admitindo-se ter início na data do documento se reportava apenas à falta do dia 14 de junho de 2023 (pois no dia 15 de junho não há imputação de falta). O segundo refere-se a período de 3 dias (18 a 20 de junho de 2023).

Sempre subsistiriam, pois, 10 dias de faltas injustificadas, tornando, por isso, irrelevante na perspetiva da justa causa invocada, que a recorrente tivesse ou não informado o recorrido da irregularidade e insuficiência dos documentos supra referidos, já que os mesmos nunca poderiam justificar aquelas 10 faltas.

Ficou provado que o recorrido juntou ao processo disciplinar declaração, assinada e com vinheta do Dr. BB, da qual resulta que aquele esteve numa clínica para tratamentos dentários e cirurgia oral nos dias, 4, 6, 7, 11, 12, 14, 16, 17, 18, 19, 20, 25, 26 e 27 de junho de 2023, estando ainda provado que durante todo o mês de junho de 2023 o recorrido se sujeitou, efetivamente, a tratamento médico dentário de extração de dentes e colocação de próteses dentárias.

Trata-se, contudo, de situação que, não sendo, por si só, apta à justificação das faltas, como acertadamente foi considerado pela Mm.ª Juiz “a quo” - e não está em causa no recurso -, atenta a natureza e duração dos tratamentos a que o recorrido foi sujeito, evidencia que o mesmo bem podia ter avisado a recorrente da impossibilidade de comparecer ao trabalho. Não é crível que o recorrido se tivesse sujeitado à colocação de próteses dentárias, sem prévia marcação ou planeamento.

Apesar disso, o recorrido não invocou, como lhe competia, nem se demonstrou, qualquer motivo para a falta de comunicação antecipada das faltas e/ou do seu motivo, nem para falta de apresentação de documento comprovativo do motivo da totalidade das faltas.

Não podemos ainda deixar de referir que, apesar da declaração de ilicitude da sanção disciplinar aplicada quanto a faltas injustificadas dadas pelo recorrido no ano de 2022, é de ter em conta na apreciação da conduta do recorrido que o mesmo já havia faltado injustificadamente dois dias seguidos em 2022 (22 e 23 de janeiro), como acima se decidiu.

A atuação do recorrido revelou uma total displicência no cumprimento das suas obrigações para com a empregadora, um desinteresse censurável pela sua prestação de trabalho, bem como manifesta desconsideração pela entidade empregadora, pelos interesses desta enquanto organização produtiva, bem como pelos colegas de trabalho, para os quais tal comportamento constituiria, necessariamente, um sinal, do mesmo modo que o constituiria a aceitação por parte da empregadora de tal comportamento sem qualquer reação, sobretudo quando, como ficou provado, as faltas do recorrido implicaram que a sua chefia tivesse de procurar e encontrar outro trabalhador para o substituir, implicando perdas de tempo e sobrecarga para outros trabalhadores.

E sendo assim, tais faltas, quer pela sua duração, quer pelas inevitáveis consequências para a ré, enquanto organização empresarial, traduzindo uma violação grave do dever de assiduidade, o qual é estruturante da relação laboral, que em última análise se reconduz a uma violação do dever de lealdade, e do dever de cooperar com a entidade empregadora para a obtenção da maior produtividade (cfr. art.º 126.º, n.º 2 do CT), quer ainda pelas suas consequências sobre as demais relações de trabalho existentes na empresa, determinam uma quebra irreparável da confiança merecida pelo trabalhador, constituindo justa causa para o despedimento.

Como refere Menezes Cordeiro[20] «Se o trabalhador duma empresa se sente autorizado a faltar sem justificação, ele está a sobrecarregar os seus colegas e a economia em geral. Tal como ele, todos teriam igual direito a faltar; nenhum processo produtivo seria possível. Por isso o absentismo é um problema público, que não pode deixar de ser disciplinarmente reprimido. Além disso, a falta injustificada faz esboroar a confiança merecida pelo trabalhador.

Provadas as faltas injustificadas – logo ilícitas e culposas – no máximo legal, está praticamente preenchido o tipo de justa causa. Os seus reflexos na relação de trabalho advêm agora de juízos de experiência e de razoabilidade. Admite-se que, por essa via, se salve o contrato do trabalhador que não logrou justificar a falta em tempo útil, por mera falha documental, mas que objectivamente, possa convencer que isso nunca mais se repetirá. Mas não parece adequado, por essa via, deixar penetrar um tipo de benevolência que a lei expressamente vedou e que tem imensos custos para o País.»

Nestes pressupostos, a reação da recorrente, consistindo no despedimento afigura-se-nos adequada e proporcional à gravidade do comportamento do recorrido, tornando praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, por ser legítimo que a recorrente, tendo deixado de saber quando é que podia contar ou não com a presença e com o trabalho do recorrido, tenha perdido nele de forma irremediável a confiança para a manutenção do vínculo laboral.

Conclui-se, pois, que o recorrido foi despedido com justa causa, sendo lícito o seu despedimento, impondo-se a revogação da sentença, na parte em que declarou ilícito o despedimento do recorrido, levado a cabo pela recorrente por decisão proferida em 9/10/2023 e em que condenou a recorrente a reintegrá-lo no seu posto de trabalho, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade e a pagar as retribuições intercalares até ao trânsito em julgado da sentença.


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Nos termos do disposto pelo art.º 527.º do CPC, as custas em ambas as instâncias são da responsabilidade do autor/recorrido e da ré/recorrente na proporção dos respetivos decaimentos.

Consigna-se que resulta dos autos que o recorrido litiga com apoio judiciário, mas nas modalidades de nomeação de patrono e de pagamento faseado da taxa de justiça e encargos no valor mensal de € 160,00.


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Decisão

Pelo exposto acorda-se julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência:

- revogar-se a sentença recorrida na parte em que declarou “ilícito o despedimento do recorrido, levado a cabo pela recorrente por decisão proferida em 09/10/2023”, bem como na parte em que condenou a recorrente a reintegrar “o recorrido no seu posto de trabalho, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade e a pagar as retribuições mensais, à razão (da retribuição base) de €1.337,57, (que neste momento, com os subsídios de férias e natal vencidos ascende ao valor de €20.063,55), até ao trânsito em julgado da decisão final deste processo, a liquidar posteriormente, descontado do valor correspondente ao montante das importâncias que o autor tenha obtido com a cessação do contrato e não obteria sem esta e dos montantes pelo autor recebidos a título de subsídio de desemprego, nos termos do disposto no art.º 390.º do Código do Trabalho, sendo certo que tem a ré a obrigação de restituir à Segurança Social as quantias por esta paga ao autor a título de subsídio de desemprego”;

- manter a sentença recorrida quanto ao mais, sem prejuízo das alterações da matéria de facto nos termos supra definidos.


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Custas em ambas as instâncias pelo autor e pela ré na proporção dos respetivos decaimentos.

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Notifique.

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Porto, 02/06/2025

Maria Luzia Carvalho (Relatora)

Nelson Fernandes (1.ª Adjunto)

Sílvia Gil Saraiva (2.ª Adjunta)

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[1] A respeito do cumprimento dos ónus impostos pelo art.º 640.º do Código de Processo Civil, importa ter presente o Ac. do STJ, Uniformizador de Jurisprudência n. º 12/2023, de 17/10/2023, publicado no DR, I série, de 14/11/2023, com Declaração de Retificação n.º 35/2023, publicada no DR, I série, de 28/11/2023.
[2] Código de Processo Civil Anotado, volume II, págs. 350.
[3] Processo n.º 14580/21.3T8PRT.P1, ao que se julga não publicado, mas disponível no registo de acórdãos.
[4] In "Recursos em Processo Civil - Recursos nos Processos Especiais, Recursos no Processo do Trabalho", Almedina, 7.ª edição atualizada, 2022, pág. 200/201.
[5] Processo n.º 15787/15.T8PRT.P1.S2, acessível em wwww.dgsi.pt.
[6] Processo n.º 1472/23.0.T8AVR.P1, ao que se julga não publicado, mas disponível no registo de acórdãos.
[7] Nota de rodapé do Acórdão (7) com o seguinte teor: Consultável em www.dgsi.pt, processo n° 607/18.0T8MTS.P1.
[8] Processo n.º 16293/ 23.2T8PRT.P1, acessível em www.dgsi.pt.
[9] Processo n.º 4199/23.0T8VLG.P1, acessível em www.dgsi.pt.
[10] Entre outros, veja-se o Ac. do STJ de 06/02/2024, Processo n.º 18321/21.7T8PRT.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[11] Acessível em https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/
[12] Ac. STJ de 02/04/2025, processo n.º 2414/23.9T8PTM.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[13] Processo n.º 2017/11.0TVLSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[14] Tratado de direito do Trabalho, Parte II - Situações laborais Individuais, 9.ª edição, revista e atualizada à Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, pág. 720/721.
[15] Processo 0542236, acessível em www.dgsi.pt. No mesmo sentido, vd. o Ac. do STJ de 06/09/2022, processo n.º 3714/15.7T8LRA.C1.S1, acessível no mesmo sítio.
[16] Cfr., entre muitos outros, o Ac. STJ de 10/10/2007, processo 07S2363, o Ac. STJ de 21/11/2018, processo n.º 1043/16.8T8CLD.C2.S1, Ac. RP de 20/05/2024, processo n.º 9150/21.9T8VNG.P1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[17] Cessação do Contrato de Trabalho”, 2ª edição, pág. 85.
[18] Monteiro Fernandes, “Direito do Trabalho, 8ª edição, págs. 461 e segs., Menezes Cordeiro, “Manual do Direito do Trabalho”, 1997, págs. 822 e segs., Lobo Xavier, “Curso de Direito de Trabalho” págs. 488 e segs., Jorge Leite e Coutinho de Almeida, “Colectânea de Leis do Trabalho”, 1985, págs. 249 e segs., Motta Veiga, “Direito do Trabalho”, II, págs. 128 e segs. e Ac. do STJ de 05.02.97, CJ/STJ, Ano V, T. 1, pág. 275 e jurisprudência aí citadas.
[19] Processo n.º 19538/17.4T8LSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt.
[20] Manual de Direito do Trabalho, 1997, págs. 833 a 840.